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Notas dialógicas sobre as origens da ambivalência do conceito de inferno na cultura ocidental: a simultaneidade sagrado-prosaico

RESUMO

Neste artigo, o objetivo é identificar as condições verboideológicas pelas quais valores judaico-cristãos em tensão na conceituação de inferno se instalam como memória coletiva ocidental mesmo fora do segmento religioso e, assim, emolduram uma cosmovisão. Teoricamente, a discussão se fundamenta preponderantemente numa leitura dialógica (Círculo BMV) da noção halbwachiana de memória coletiva e numa abordagem sociocognitivista de polissemia. Metodologicamente, vale-se da apocrificidade como recurso de levantamento de textos-fonte para rastreamento do percurso conceitual constitutivo da semiose de inferno em diálogo com textos canônicos. O artigo demonstra que inferno, ao comprimir o trânsito entre culturas e fazer permear valores cristãos em outros campos da criação ideológica, ativa um domínio moral-causal que, a um só tempo, faz deferência a esses valores e nega-lhes os princípios religiosos tornando o sagrado e sublime também prosaico. A ambivalência sagrado/prosaico que se dá não alternativamente, mas simultaneamente, como próprio da tensão dialógica, configura estrutura coletiva de memória.

PALAVRAS-CHAVE:
Memória coletiva; Campos da cultura; Cristianismo; Apocrificidade; Semiose

ABSTRACT

The aim of this paper is to identify the verbal-ideological conditions in which Judeo-Christin values in tension in the conceptualization of hell are installed as Western collective memory even out of the religious segment and, this way, frame a cosmovision. Theoretically, the discussion is preponderantly based on a dialogic reading (BMV Circle) of the Halbwachian notion of collective memory and on a socio-cognitivist approach to polysemy. Methodologically, apocrificity is used as a resource to trace de conceptual path constituting the semiosis of hell in dialog with canonical texts. The paper demonstrates that hell, by compressing the transit between cultures and by permeating Christian values in other fields of ideological creation, activates a moral-causal domain that, at the same time, defers to these values and denies their religious principles, making the sacred and sublime also prosaic. The sacred/prosaic ambivalence that occurs not alternatively, but simultaneously, as typical of the dialogic tension, frames a collective structure of memory.

KEYWORDS:
Collective memory; Fields of culture; Christianity; Apocrificity; Semiosis

Introdução

Deu-se aquilo porque sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. (...)

Graciliano Ramos

Publicado originalmente em 1938RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938., o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, integra o cânone da literatura brasileira. Nele são retratadas agruras psicológicas, socioeconômicas e ambientais, entre tantos outros matizes relacionais que constituem as condições duras do sertão brasileiro. Dessa rica obra, o trecho epígrafe deste artigo coloca em proeminência uma tensão entre valores de diferentes ordens socioculturais. Ali, flagra-se o conflito do filho mais velho por não dispor de repertório cultural para entender a figurativização por meio da qual sua condição de vida é comparada ao inferno. A categorização da vivência dos personagens como inferno faz coincidir conceitualmente o campo religioso, sobretudo cristão, e o político-econômico, nele incluídas tanto as condições de mobilização de recursos para suprir necessidades humanas, quanto as relações interpessoais, entre grupos sociais, entre pessoas e o ambiente árido ao redor. No fragmento, a tensão entre valores religiosos e prosaicos se erige como monumento de certa memória coletiva na obra literária, e as múltiplas categorias constitutivas da polissemia de inferno são pistas do percurso de um vetor dessa memória.

O inferno não é bom lugar. Na linguagem coloquial, mandar qualquer pessoa para o inferno é desejar um destino desagradável. No campo religioso, o inferno se torna ainda mais sério, como destino de dissidentes, equivocados ou, para não fugir ao vocabulário próprio, “pecadores”. Em sua origem, o inferno tem o peso de um espaço pertencente ao âmbito cristão, concorrente com o céu dos santos e salvos, mas que, com o tempo, se popularizou e, talvez, tenha sido “suavizado” como expressão ofensiva no cotidiano, até mesmo entre pessoas que sequer acreditem nele ou não compartilhem do sistema de crenças que originou esse lugar de castigo eterno.

Além da utilização em linguagem prosaica, a temática do inferno permanece muito presente no âmbito religioso, e parte considerável da população, ainda que não se entenda pertencente à religião cristã, consegue imaginar uma descrição do inferno cristão: um lugar escuro, mau cheiroso, cheio de demônios e monstros que castigam e punem eternamente as almas de condenados ao sofrimento. Neste artigo, examina-se o percurso conceitual de inferno (i) apresentando suas origens de um espaço absolutamente profano em que pessoas são condenadas a sofrimentos por ações e valores diferentes daqueles defendidos por determinado seguimento religioso e (ii) demonstrando como sua conceituação integra a cosmovisão contemporânea no Ocidente a partir da ambivalência semântica emergente da polissemia. O objetivo é identificar as condições verboideológicas pelas quais valores em tensão se instalam como memória coletiva ocidental mesmo fora do segmento religioso.

1 Memória coletiva em chave dialógica

Entender a discussão acerca da permeação semântico-axiológica no Ocidente requer atentar para a construção de repertórios culturais e sua difusão. Esses repertórios distribuem-se nas sociedades por meio daquilo que Maurice Halbwachs (1992) chama de estrutura coletiva de memória. Os processos mnemônicos são tradicionalmente identificados como individuais, subjetivos, a ponto de Platão, no diálogo Fedro, considerar o advento da escrita uma exteriorização do pensamento inibidora da memória. Todavia, repertórios difundidos especialmente no Ocidente a partir de fontes judaico-cristãs dizem respeito à partilha sociocultural de valores, crenças, conhecimento. Diferenciando-se do fenômeno subjetivo sem com ele rivalizar (Coser, 1992COSER, Lewis A. Introduction: Maurice Halbwachs 1877-1945. In: HALBWACHS, Maurice. On Collective Memory. Edited, translated, and with an introduction by Lewis A. Coser. (The Heritage of sociology). Chicago, London: The University of Chicago Press, 1992. p. 1-34.), a memória é concebida nesta discussão como um fenômeno coletivo de trabalho não para preservação, mas para reconstrução do passado com base no presente (Halbwachs, 1992). Jean Duvignaud (1968)DUVIGNAUD, Jean. Préface. In: HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Préface de Jean Duvignaud, Introduction de J. Michel Alexandre. 2ème édition revue et augmentée. Paris: Presse Universitaire de France, 1968. p. VII-XV. diria que a memória assim entendida empreende uma sociologia do cotidiano, do homem comum na trama de sua vida coletiva, e responde aos questionamentos concretos do homem, e não às indagações abstratas da especulação filosófica.

A estrutura coletiva de memória é aqui relida pelas lentes dialógicas, que também se ocupam, nas palavras de Gary Saul Morson e Caryl Emerson (2008MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin. Criação de uma prosaística. São Paulo: EDUSP, 2008.), de uma prosaística (Dessingué, 2015DESSINGUÉ, Alexandre. From Collectivity to Collectiveness: Reflections (with Halbwachs and Bakhtin) on the Concept of Collective Memory. In: KATTAGO, Siobhan. (Ed.). The Ashgate Research Companion to Memory Studies. London: Routledge, 2015. p. 89-101.). Dialogicamente, a dinâmica social emerge de condições verboideológicas ao mesmo tempo em que as define. Essas condições configuram sistemas de pensamentos, preceitos, valores, crenças, criações artísticas e intelectuais, entre outros, que se fixam em elementos culturais e organizam visões de mundo (Volóchinov, 2019bVOLÓCHINOV, Valentin. Estilística do discurso literário I: O que é a linguagem/língua? In: VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019b, p. 234-265.). Esse universo verboideológico se estrutura em subsistemas semântico-axiológicos abertos de criação simbólica diversamente nomeados pelo Círculo Mikhail M. Bakhtin - Pavel N. Medviédev -Valentin N. Volóchinov (Círculo BMV): campos da cultura ou da atividade humana (Bakhtin, 2003BAKHTIN, Mikhail. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. XXXIII-XXXIV.; 2016aBAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p. 11-70.), campos da criação ideológica (Volóchinov, 2017VOLOCHÍNOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) e meio ideológico (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.).

Figura 1
Mundo verboideológico. Fonte: Os autores

A codependência entre ideologia e semiotização é fundante e estruturante do mundo verboideológico (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.; Volóchinov, 2017VOLOCHÍNOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Isso significa dizer que o processo de simbolização não se separa do arranjo coletivo cognitivo plurivalorativo que instaura modos de se relacionar. A participação nessa dimensão verboideológica se dá por enunciados. Porque os enunciados não se produzem no vácuo social, mas sempre respondem a outros antecedentes e provocam respostas, o agir humano é figurativizado como uma ininterrupta cadeia comunicativa (Bakhtin, 2016aBAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p. 11-70.).

Na presente discussão, interessa o inferno tomado como objeto discursivo distribuído em uma cadeia comunicativa que perpassa por temporalidades e espacialidades distantes e permeia diferentes campos da criação ideológica. Interessa como a memória do inferno, na condição de objeto discursivo (Amorim, 2009AMORIM, Marilia. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 8-22, 1º sem. 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/2993/1927. Acesso em: 04 maio 2023.
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) no campo religioso, mais particularmente no Cristianismo, distribui-se por meio de uma estrutura coletiva para outros campos da criação ideológica. Rastreia-se parte do permanente trabalho de reconstrução do passado seguindo as pistas da simbolização linguística.

O processo de simbolização linguística pode ser retoricamente descrito pela relação entre duas contrapartes: uma conceitual, de natureza sociocognitiva, e uma discursiva, de natureza histórico-social. Ambas emergem da experiência concreta dos membros de uma cultura com o meio e com o outro.

No dialogismo, essa experiência é interpretada pelo modo como o chamado Círculo BMV elabora o materialismo histórico-dialético. Medviédev (2012)MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012., Bakhtin (2016aBAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p. 11-70.; 2016cBAKHTIN, Mikhail. Diálogo I. A questão do discurso dialógico. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016c. p. 113-24.; 2016dBAKHTIN, Mikhail. Diálogo II. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016d. p. 125-150.) e Volóchinov (2017VOLOCHÍNOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.; 2019aVOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia. In: VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019a. p. 109-146.; 2019bVOLÓCHINOV, Valentin. Estilística do discurso literário I: O que é a linguagem/língua? In: VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019b, p. 234-265.) ponderam que a linguagem se atualiza concretamente nos enunciados (Figura 1), que se encadeiam permanentemente. Embora a metáfora da cadeia comunicativa seja bastante difundida, o funcionamento histórico da interação social é mais bem representado por um emaranhando de elos, e não por uma sequencialidade linear. No emaranhado das relações histórico-sociais, cada enunciado mantém uma relação de responsividade com outros. Essa relação não é formal, embora apresente invariavelmente pistas materiais enformadas; é uma relação verboideológica ou, nos termos de Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.; 2016bBAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b. p. 71-110.; 2017BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56.), dialógica. Isso significa que essa relação emerge não do material nem da forma, mas de entes culturais capazes de estabelecê-la, seja pela produção ou pela simples compreensão (Bakhtin, 2016aBAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p. 11-70.).

Nesse quadro teórico, a dinâmica semântica que move a cadeia comunicativa é um processo tripartite de assimilação de valores disponíveis na cultura, reelaboração material inerente à produção de qualquer enunciado e reacentuação axiológica, já que não há como integrar relações sociais com ausência de valoração (Bakhtin, 2016aBAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. p. 11-70.; Volóchinov, 2017VOLOCHÍNOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). De acordo com Maria Bondarenko (2008)BONDARENKO, Maria. Reflet vs réfraction chez les philosophes marxistes du langage des années 1920-30 en Russie: V. Vološinov lu à travers V. Abaev. Cahiers de l’ILSL, n. 24, p. 113-148, 2008., em Volóchinov (2017VOLOCHÍNOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), o processo está sintetizado numa compreensão particular da semiose, que se dá pela simultânea reflexão do que está disponível socialmente (assimilação) e refração circunstanciada a cada enunciado (reelaboração e reacentuação). Seja como for, a dinâmica semântica se dá pela simultaneidade e distribuição vária desses processos (Magalhães, 2022MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Quando o discurso do sujeito não instala o sujeito do discurso: desafios para a implementação da BNCC de língua vernácula no ensino médio. Diálogo das Letras, v. 11, p. e02203, 2022. DOI: https://doi.org/10.22297/dl.v11i0.3865. Acesso em: 04 maio 2023.
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).

Na Linguística Cognitiva, a experiência concreta é enquadrada pelo que se chama de experiencialismo realista (Rohrer, 2007ROHRER, Tim. Embodiment and Experientialism. In: GEERAERTS, Dirk; CUYCKENS, Hubert. The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Nova York: Oxford University Press, 2007. p. 25-47.). Nessa abordagem, a cognição humana, em geral, e a simbolização linguística, em destaque, se desdobram filogeneticamente (Tomasello, 2007TOMASELLO, Michael. Cognitive Linguistics and First Language Acquisition. In: GEERAERTS, Dirk; CUYCKENS, Hubert. The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Nova York: Oxford University Press, 2007. p. 1.092-1.112.). O modo de significar a si, o outro e o meio se desenvolve por e nas relações culturalizadas, que incrementam processos cognitivos. A simbolização verbal consiste, desse ponto de vista, em categorização. Em outras palavras: significar é categorizar, de maneira que significado e sentido não se confundem com referentes empíricos, mas são sempre conceituação.

O processo de categorização se desenha de modo escalar (Lakoff, 1987LAKOFF, George. Women, Fire, and Dangerous Things. What Categories Reveal about the Mind. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1987.); a partir de referências conceituais prototípicas, que são centrais na categoria, os demais componentes se distribuem radialmente na periferia, de acordo com o grau de conformação com as características centrais (Rosch, 1978ROSCH, Eleanor. Principles of Categorization. In: ROSCH, Eleanor; LLOYD, Barbara B. (Eds). Cognition and Categorization. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1978.). Assim concebida, as categorias não constituem conjuntos fechados, mas abertos e com fronteiras fluidas. Esse é o modo, por exemplo, como os campos da criação ideológica são definidos: não estanques, e sim fluidos e sem fronteiras rígidas (Figura 1). Os campos funcionam como categorias superordenadas que regem os enunciados. Estes se enformam relativamente aos campos e distribuem-se a partir de características centrais ou periféricas e difusas. No caso discutido neste artigo, flagra-se um conceito fundado por valores próprios do campo religioso e que vai sendo recategorizado a ponto de penetrar e se difundir por outros campos.

No que concerne ao percurso conceitual, identifica-se uma tendência diacrônica que parte de categorizações mais experienciais e concretas se agregando a categorizações mais abstratas (Sweetser, 1990SWEETSER, Eve. From Etymology to Pragmatics: Metaphorical and Cultural Aspects of Semantic Structure. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.). Aí incidem os processos de figurativização. Não se trata de figuras de linguagem, mas de processos cognitivos de abstratização conceitual. Esse é o modo, por exemplo, como a metáfora e a metonímia são compreendidas. Discutida por George Lakoff e Mark Johnson (1980LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1980.) e elaborada, entre outros, por Mike Borkent, Barbara Dancygier e Hinnell (2013BORKENT, Mike; DANCYGIER, Barbara; HINNELL, Jennifer. Language and the Creative Mind. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.) e Barbara Dancygier e Eve Sweetser (2014DANCYGIER, Barbara; SWEETSER, Eve. Figurative Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.), a metáfora constitui um processo cognitivo de associação conceitual em que componentes de um domínio fonte, em geral, mais concreto, se projetam em um domínio alvo, figurativizado e mais abstrato. Do mesmo modo, a metonímia se processa por modos de associar simbolicamente elementos por força de contato, limitação e domínio (Peirsman; Geeaerts, 2006); cada um desses componentes submetidos à escala por prototipicidade. Desse ponto de vista, a figurativização não constitui um artifício formal da linguagem, mas um recurso cognitivo que demanda o trabalho de ativação e articulação de conceitos e promove a polissemia (Lewandowska-Tomaszczyk, 2007LEWANDOWSKA-TOMASZCZYK, Barbara. Polysemy, prototypes, and radial categories. In: GEERAERTS, Dirk; CUYCKENS, Hubert. The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 139-169.).

A abordagem desses quadros teóricos viabiliza o tratamento da estrutura coletiva de memória como um aparato simbólico de geração e distribuição de valores que permanentemente constroem o passado. Essa reconstrução constante se dá pela dinâmica das categorizações interpeladas por relações dialógicas, sempre marcadas pela tensão entre o que é assimilado ou refletido e o que é reelaborado e reacentuado ou refratado. Desse ponto de vista, o pareamento conceituação-valoração compõe a estrutura coletiva de memória e se manifesta pela simultaneidade de diferenças simbólicas.

A convivência de diferenças é uma das condições dialógicas da linguagem e, neste artigo, é tratada de duas formas. Uma delas já foi abordada: a polissemia como funcionamento sociocognitivo. A polissemia como propriedade de produção de linguagem (Lewandowska-Tomaszczyk, 2007LEWANDOWSKA-TOMASZCZYK, Barbara. Polysemy, prototypes, and radial categories. In: GEERAERTS, Dirk; CUYCKENS, Hubert. The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 139-169.), e não como atributo da forma de linguagem, gera pistas dos valores creditados a cada conceituação agregada. Como será demonstrado nas seções três e quatro deste artigo, a cada texto, assumido como enunciado circunscrito numa cadeia comunicativa, há contribuições conceituais para que inferno paulatinamente congregue, pela figurativização, valores outros. Esses valores, ainda que diferentes, não se substituem linear e sequencialmente, mas passam a compor um repertório conceitual disponível para ativação a cada novo enunciado na permanente reconstrução (e não preservação!) do passado. Essa ativação, por sua vez, esbarra na outra forma de tratar a convivência de diferenças.

Avaliado por Irina Popova (2007)POPOVA, Irina. Le “carnaval lexical” de François Rabelais. Le livre de M. M. Bakhtine dans le contexte des discussions méthodologiques franco-allemandes des années 1910-1920. Mikhaïl Bakhtine, Valentin Volochinov et Pavel Medvedev dans les contextes européen et russe. Slavica Occitania. N. 25, Toulouse, p. 343-368, 2007. como um minucioso trabalho filológico influenciado pela produção intelectual franco-alemã das primeiras décadas do século XX, Bakhtin (2008)BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2008. descreve a construção da linguagem carnavalesca pelo grotesco entendido como o encontro do escatológico (categoria por si só polissêmica!) com o renovador (igualmente polissêmica). Esse encontro, vale insistir, não se dá pela substituição nem necessariamente pela oposição, mas pela convivência, daí a ambivalência: valem os diferentes valores. Ao revisitar essa reflexão com as contribuições da Linguística Cognitiva, afirma-se que sobre a ambivalência semântica incidem as mesmas condições de categorização escalar e radial na distribuição dos valores simultaneamente ativados. Isso implica dizer que a validade das diferenças não quer dizer equilíbrio entre os conceitos ativados, e a ambivalência semântica é entendida como correlação escalar de significados validados na cultura (Magalhães, 2019MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Dos discursos que dão vida à língua: diretas já em perspectiva cognitivo-dialógica. In: BRAIT, Beth; PISTORI, Maria Helena Cruz; FRANCELINO, Pedro Farias. (Org.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). 1. ed. Campinas: Pontes, 2019, v. 1, p. 97-122.).

Em linhas gerais, neste artigo, procura-se demonstrar como o polissêmico repertório conceitual erigido a partir do conceito de inferno funciona como vetor de memória coletiva a romper os fluidos limites do campo religioso e a delinear um modo de ver o mundo. Na sequência, descrevem-se as decisões metodológicas da investigação.

2 Metodologia

O rastreamento da dinâmica polissêmica de inferno requer decisões acerca de quais enunciados selecionar para dispor numa cadeia comunicativa. No campo judaico-cristão, a noção emerge em textos considerados canônicos e em textos considerados apócrifos. Como a questão levantada neste artigo não enfrenta o dogmatismo religioso, mas as condições simbólicas de uma cosmovisão prosaica, assume-se a apocrificidade como critério para levantamento de textos-fonte. Pierluigi Piovanelli (2005)PIOVANELLI, Pierluigi. What Is a Christian Apocryphal Text and How Does It Work. Some Observations on Apocryphal Hermeneutics. Nederlands Theologisch Tijdschrift, 59, p. 31-40, 2005. discute a importância de dar atenção para além dos primeiros anos do movimento cristão e, especialmente, para outras fontes frutos desse universo religioso e cultural do Império Romano, e de tentar entender os processos histórico-sociais que cercam o Cristianismo primitivo. A assunção de fontes extra-canônicas para investigação das origens desse movimento e período histórico é o que o autor chama de apocrificidade. Nessa abordagem, assume-se uma postura de leitura de textos apócrifos e canônicos, em primeira instância, como fontes do Cristianismo Primitivo.

Se, por um lado, há escassas fontes canônicas, isto é, fontes listadas dentro da Bíblia cristã como oficiais e sagradas, para estabelecer uma origem comum do inferno cristão, por outro, da chamada literatura apócrifa emergem inúmeras narrativas que descrevem um lugar em que “pecadores” são castigados pelas mais variadas práticas, como desobediência a autoridades eclesiásticas, comportamentos sexuais considerados fora do padrão estabelecido pela doutrina da igreja e assassinato. São inúmeras fontes, como trechos de evangelhos e atos apostólicos apócrifos e, principalmente, apocalipses apócrifos. Nesse sentido, é possível questionar como textos excluídos e de certa forma proibidos podem ter sido responsáveis pelo desenvolvimento de um conceito que sobreviveu aos séculos, persistindo até a contemporaneidade. Para Piovanelli (2005)PIOVANELLI, Pierluigi. What Is a Christian Apocryphal Text and How Does It Work. Some Observations on Apocryphal Hermeneutics. Nederlands Theologisch Tijdschrift, 59, p. 31-40, 2005., a abordagem não dogmática de textos canônicos favorece a compilação também de textos apócrifos, o que amplia o escopo de investigação.

Assim, além das menções feitas em textos compilados como canônicos na Bíblia cristã, há obras como o Apocalipse de Pedro, datado aproximadamente do século II; o Apocalipse de Paulo, aproximadamente, século V, e um conjunto de textos que com ele constituem uma rede textual, como as mais antigas fontes em que aparecem uma descrição detalhada do inferno cristão. Martha Himmelfarb (1983)HIMMELFARB, Martha. Tours of Hell. An Apocalyptic Form in Jewish and Christian Literature. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1983. apresenta uma lista de 17 obras por ela analisadas, algumas com mais de uma tradução, de origens e datas imprecisas. A análise das variadas temáticas e detalhes que constituem cada uma dessas obras é feita por Carlos Eduardo de Araújo Mattos (2022)MATTOS, Carlos Eduardo de Araújo de. Corpos em sofrimentos e monstruosidades. Modos fantásticos de narrar o inferno no Apocalipse de Pedro. São Bernardo do Campo/SP: Ambigrama, 2022.. Neste artigo, importa destacar o fato de que as origens da temática do inferno cristão remontam a diferentes circunstâncias e tradições religiosas e textuais e formam, no âmbito de uma perspectiva popular de religião, uma rede formativa de valores que ultrapassa as paredes dogmáticas da igreja cristã, sobrevive ao tempo e permeia a estrutura coletiva de memória inclusive na cultura contemporânea.

Neste artigo, a apocrificidade traz duas contribuições: (i) enriquece a pesquisa e o debate sobre as origens do Cristianismo para além dos dois primeiros séculos do movimento de seguimento de Jesus ampliando os textos-fonte (Koester, 2005KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Volume 2: história e literatura do Cristianismo primitivo. Euclides Luiz Calloni (trad). São Paulo: Paulus, 2005.); (ii) viabiliza a construção e o recorte de uma cadeia comunicativa discursiva cuja heterogeneidade altera a semiose de inferno e os valores decorrentes que integram a memória coletiva para além do campo religioso.

Quadro 1
Textos canônicos com menções a inferno. Fonte: Os autores
Quadro 2
Textos selecionados pela abordagem da apocrificidade. Fonte: Os autores

Desses textos, selecionam-se os trechos em que a noção de inferno é ativada para: (a) identificação do percurso conceitual polissêmico; (b) descrição dos processos de figurativização implicados no percurso; (c) cotejo com textos de outros campos de criação ideológica.

3 Origens do Inferno Cristão: semiose e conceituação

Embora o inferno seja imaginado como espaço religioso emergente do Cristianismo, curiosamente, faltam fundamentos bíblicos - o que, no Cristianismo, equivale a dizer que faltam fundamentos documentais - que expliquem suas origens. No Novo Testamento são poucas as passagens em que tal lugar de castigos seja citado com descrições precisas, e tais passagens possuem referências externas à tradição cristã. Considerando as bases judaicas do Cristianismo, parte-se das citações ao Antigo Testamento feitas no Novo Testamento para rastreamento do conceito de inferno e os valores que o organizam.

Três passagens importantes nos evangelhos sinóticos ajudaram a formar o conceito de inferno. Marcos 9.43-48 e Mateus 25.31-46 chamam de Geena o local de punição. Trata-se de um barranco do lado de fora dos muros de Jerusalém, além do Portão (Jeremias 19.2), chamado Ge-Hinom, o vale de Hinom ou o vale do Filho de Hinom (Neemias 11.30; Josué 15.8).

Quadro 3
Referências canônicas Antigo Testamento. Fonte: Os autores
Quadro 4
Referências canônicas Novo Testamento. Fonte: Os autores

Os tradutores da Bíblia Hebraica para a Septuaginta grega transliteraram esse nome como Geena. Os primeiros cristãos de língua grega usaram a Septuaginta como sua Bíblia e, mais tarde, como o Antigo Testamento. Assim, conservaram e difundiram o termo e, aparentemente, a polissemia por ele indiciada. Para os judeus contemporâneos à produção dos escritos, não se tratava de referência a um lugar apenas imaginado; o Geena remetia a um lugar concreto e bastante conhecido.

No centro do vale de Hinom, havia um lugar alto chamado Tofete. Segundo o relato em 2 Reis 16.3, o rei Acaz caiu sob a influência de povos vizinhos a ponto de seguir sua religião e oferecer seu filho como sacrifício ao deus Moloque em Ge-Hinnom. Aparentemente, o rei Acaz não estava sozinho nessa prática. Quando o rei Josias instituiu as reformas que devolveram o país ao culto ao Senhor, profanou o altar em Tofete, em Ge-Hinnom, para impedir sacrifícios de crianças a Moloque (2 Reis 23.10). Sempre denominado como um centro para a adoração ocasional de um deus falso e, possivelmente, para o sacrifício de crianças, Ge Hinnom estava figurativa (metafórica) e axiologicamente associado à queimação, vergonha e maldade. Assim, no contexto dos escritos do Antigo Testamento, a morte e seus valores religiosos e morais remetiam a um local relevante para a memória coletiva daqueles que sabiam que o lugar se tratava de um espaço de morte e abandono, pois os corpos de criminosos executados eram descartados lá. Variando de um lugar onde inocentes foram sacrificados a uma sepultura coletiva para criminosos executados, à metonímia toponímica agrega-se, por metáfora, a conceituação de local de tormento (Bernstein, 1993BERNSTEIN, Alan. The Formation of Hell - Death and Retribution in the Ancient and Early Christian Worlds. London: University College London, 1993.).

No evangelho de Lucas 16.19-31, embora em português seja traduzido simplesmente, como “inferno,” há referência, no original grego, ao lugar daqueles que morreram distantes de Deus no além como Hades, o mesmo local e divindade grega do Hino de Deméter. Todavia, o sofrimento do pecador descrito no Evangelho coloca essa passagem no extremo punitivo do Hades clássico ou do Sheol hebraico. As fontes escritas mais antigas da mitologia grega não lidam diretamente com o inferno. No entanto, convergem para ilustrar, de diferentes maneiras, as ideias de ordem, fertilidade e sobrevivência da personalidade além da morte. Ainda que de modo diferente, cada um deles se refere às origens, manutenção e disposição do que os gregos antigos consideravam a sua ordem mundial, incluindo o submundo. E tanto o Hades grego como o Sheol judaico compartilham com os textos babilônicos da descida Inanna e da descida de Ishtar uma visão da morte como neutra, abraçando todos os mortos quase nas mesmas condições, marcadas principalmente por estrita separação dos vivos (Bernstein, 1993BERNSTEIN, Alan. The Formation of Hell - Death and Retribution in the Ancient and Early Christian Worlds. London: University College London, 1993.). Obras paradigmáticas gregas como A Odisseia, datada da segunda metade do século VIII aC, A Teogonia de Hesíodo (ou Nascimento dos Deuses), escrita entre 700 e 665 aC, e Hino Homérico para Deméter, mito registrado por volta de 678 aC, retratam o mundo subterrâneo permitindo acessar, de alguma forma, como os gregos imaginavam suas relações com seus mortos e em que mundo acreditavam se dar sua sobrevivência (Mattos, 2022MATTOS, Carlos Eduardo de Araújo de. Corpos em sofrimentos e monstruosidades. Modos fantásticos de narrar o inferno no Apocalipse de Pedro. São Bernardo do Campo/SP: Ambigrama, 2022.).

Já o Sheol é entendido no judaísmo, segundo Alan Bernstein (1993)BERNSTEIN, Alan. The Formation of Hell - Death and Retribution in the Ancient and Early Christian Worlds. London: University College London, 1993., como a sepultura propriamente dita e como um lugar de esquecimento e abandono da vida, onde nada mais pode ser feito. O Salmo139.8 inspira a crença na presença de Deus como soberano mesmo nesse lugar e, por isso mesmo, Deus, que é senhor do Sheol, pode mandar quem quiser para este lugar (Quadro 3, citação IV). É um lugar de sombras e esquecimento, mas não é um lugar de punição por nenhum tipo de erro (Bernstein,1993BERNSTEIN, Alan. The Formation of Hell - Death and Retribution in the Ancient and Early Christian Worlds. London: University College London, 1993.).

A passagem em Marcos foi a primeira a identificar o fogo e o verme de Isaías 66.24 com Geena (Quadro 4, citação II). Nesse trecho do evangelho, Geena pode ser entendida como referência experiencial concreta ao espaço físico, mas, pela relação dialógica estabelecida com o texto de Isaías, há marca de reelaboração e reacentuação valorativa: o verme e o fogo desse lugar não cessam. Essa reacentuação sugere a conceptualização metafórica de Geena como lugar de sofrimento eterno. Há uma radicalização conceitual e um preceito moral da fala de Jesus justificando esse destino para o desviante. No uso de Marcos, os tormentos do fogo e do verme devem ser sagrados ao Senhor e intermináveis. Segundo Bernstein (1993)BERNSTEIN, Alan. The Formation of Hell - Death and Retribution in the Ancient and Early Christian Worlds. London: University College London, 1993., esta referência aparentemente já figurativizada e com esse aspecto continuativo e peremptório integrando o conceito parece ser a mais antiga do Novo Testamento a um inferno.

Itsvan Czachesz (2014)CZACHESZ, Itsvan. The Grotesque Body in Early Christian Discourse - Hell, Scatology and Metamorphosis. New York: Routledge, 2014., ao discutir esse trecho do evangelho de Marcos, enxerga um aprofundamento do que Himmelfarb (1983)HIMMELFARB, Martha. Tours of Hell. An Apocalyptic Form in Jewish and Christian Literature. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1983. atribuiu ao princípio de retribuição da Bíblia Hebraica para se pensar nas condenações do inferno. Compreendendo as punições dos condenados ao inferno dentro do espectro da apocalíptica judaica, a autora entendia que, nas descrições cristãs, como nos textos dos rabinos, cada pecado seria pago, punindo a parte do corpo do condenado pelo qual se pecou. Assim, algumas descrições permitem pensar que um homem que roubou um bem do seu próximo seria castigado nas suas mãos, por exemplo. Czachesz, porém, compreende esse trecho do evangelho de Marcos como uma radicalização do princípio de retribuição. Para o autor, os apocalipses cristãos de descrição de inferno ultrapassam essa linha de retribuição, e o corpo todo pode ser lançado ao inferno por causa apenas de um olho (Mattos, 2017MATTOS, Carlos Eduardo de Araújo de. DEIXAI TODA ESPERANÇA VÓS QUE ENTRAIS: o Inferno na tradição dos apócrifos e sua recepção em textos medievais e contemporâneos. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Metodista de São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo. São Bernardo do Campo, 2017.).

Também numa possível referência ao fogo inextinguível de Isaías 66.24, Mateus muda um pouco o contexto em que Marcos se referiu ao fogo e ao verme. Em Mateus, Jesus cita os pobres de espírito, os mansos, os misericordiosos, os de coração puro, os pacificadores, os perseguidos. Suas qualidades são as medidas da retidão, sem as quais não se poderá entrar no Reino dos Céus. Após essas recomendações positivas essenciais, o relato de Mateus mostra Jesus se voltando para exemplos de más ações que podem trazer punição. Mais do que isso, estabelece um contraponto, em que pessoas que praticam o mal contra as pessoas retas estarão condenadas ao fogo eterno e aos vermes que não dormem.

No que talvez seja a passagem bíblica canônica mais importante para a semiose do inferno, Mateus relaciona a resposta de Jesus no Monte das Oliveiras à pergunta dos discípulos sobre seu retorno. Jesus precede esse relato de seu retorno com parábolas que explicam o inesperado da Segunda Vinda. No texto, Jesus relaciona a salvação às manifestações externas, em especial o cuidado com os necessitados, e a perdição com a negação desses cuidados. Entretanto, como aponta Paulo Augusto de Souza Nogueira (2015)NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Introdução. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org.). O imaginário de além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015., as dimensões desse julgamento são de caráter universal: um grupo será salvo por suas boas ações, enquanto outro grupo será condenado por não as praticar. De maneira semelhante, dá-se a separação final no Apocalipse de João: os santos perseguidos que não se dobraram à besta serão recompensados, enquanto os adoradores da besta, o diabo e seus anjos lançados ao abismo e sofrerão penas eternas. Vale ressaltar que esse abismo é apresentado não com os detalhes punitivos do inferno cristão, mas como o lugar onde será executada a destruição final dos oponentes de Deus após o juízo final. Conceitualmente, distancia-se das bases conceituais mais concretas em favor de conceituações mais abstratas.

A narrativa evangélica que apresenta, por outro lado, um caráter de condenação individual após a morte se encontra em Lucas 16. Na parábola do homem rico e o mendigo Lázaro, é possível identificar mais claramente relações dialógicas entre o Cristianismo nascente e a cultura grega. Na narrativa, o mendigo Lázaro, que em vida tinha as feridas lambidas pelos cães, é recebido após a morte no seio de Abraão, enquanto um homem rico que vivia a se banquetear, vestido de forma luxuosa, vai sofrer tormentos no Hades (Quadro 4, citação III). Além do evidente no próprio texto, como a menção do nome do deus grego do submundo como uma localização gráfica (Hades), está presente também um debate a respeito da possibilidade de comunicação entre os mundos dos mortos e dos vivos. Para o mundo greco-romano, esse parece ser um tema de relativo consenso, ao passo que o evangelho estabelece o limite da impossibilidade: é dito por Abraão ao homem rico que ninguém pode passar do lado dos mortos para o lado dos vivos.

Outro ponto em que o relato lucano se distancia da visão de submundo do universo greco-romano é no que diz respeito à sobrevivência propriamente dita no espaço do submundo. No Hades, da perspectiva grega, a existência segue uma linha de continuidade de postos e funções próximas à existência na terra; da perspectiva inaugurada por Jesus, por assim dizer, está clara uma inversão: o homem rico que vivia em banquetes agora padece implorando por uma gota de água. Nessa reacentuação de tradição cristã, Hades é metonimicamente conceituado como local de punição após a morte. A articulação com discursividades externas ao campo do Cristianismo na figurativização de um signo chave para os preceitos religiosos cristãos é importante pista da estrutura coletiva de memória. Mesmo num texto sagrado segundo a abordagem dogmática, o trânsito fora do Cristianismo é mobilizado para conceituar, e isso opera como reacentuação de um repertório cultural heterogêneo por meio da qual se (re)constrói, e não se preserva, o passado.

Em sua análise desse trecho do evangelho de Lucas, Rafael de Campos (2015)CAMPOS, Rafael de. O homem rico e Lázaro - as relações invertidas no Hades. São Paulo: Editora Reflexão, 2015. estabelece uma relação entre o relato de Lázaro e o homem rico e a obra do filosofo cínico Luciano (2007)LUCIANO. Diálogo dos mortos. Trad. Henrique G Muracho. São Paulo: Palas Atena/EDUSP, 2007., em seu Diálogo dos mortos, em que o personagem Menipo ironiza figuras proeminentes da história da Grécia em seus estados cadavéricos no submundo. Para Campos (2015)CAMPOS, Rafael de. O homem rico e Lázaro - as relações invertidas no Hades. São Paulo: Editora Reflexão, 2015., o evangelho de Lucas inverte a lógica do submundo propositalmente, para fazer graça com o entendimento do ambiente sociocultural em que o Cristianismo Primitivo está inserido.

Seja como for, essas referências no Novo Testamento indicam uma tradição à qual o Cristianismo Primitivo deu continuidade com grande ênfase e importância ao longo dos séculos que se seguiram. Algumas delas se tornaram as mais influentes descrições do inferno, gerando reelaborações e reacentuações pelas quais se estabelecem relações dialógicas em muitas outras obras.

4 Uma visita aos infernos dos Apocalipses Apócrifos de Pedro e Paulo

Com a finalidade de referenciar minimamente o que ora se discute, menciona-se brevemente o Apocalipse de Pedro (ApPe), por ser uma das obras mais antigas em que se tem uma descrição detalhada do inferno cristão, e o Apocalipse de Paulo, considerado pela pesquisa bíblica como uma das obras mais influentes em que a descrição do inferno é evidenciada.

4.1 O Apocalipse de Pedro

Segundo defende Himmelfarb (1983)HIMMELFARB, Martha. Tours of Hell. An Apocalyptic Form in Jewish and Christian Literature. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1983., algumas citações de Clemente de Alexandria localizam o Apocalipse de Pedro em meados do segundo século. Antes da descoberta em 1887 de um manuscrito grego do oitavo ou nono século na caverna de um monge em Akhmim, no Alto Egito, o ApPe era conhecido apenas por alusões e menções em listas canônicas. Na primeira década do século XX, uma longa versão etíope surgiu numa coleção de manuscritos. Há uma discussão, inicialmente sustentada por Montague Rhodes James e James Robinson (1892)JAMES, Montague Rhodes; ROBINSON James Armitage. The Gospel According to Peter and The Revelation of Peter. London: C J Clay & Sons, 1892., de que a versão etíope era mais próxima do original do que a versão grega. Os autores sugerem que a versão grega do ApPe foi adaptada para servir como parte do Evangelho de Pedro, outro texto descoberto no mesmo códex da caverna em Akhmim. Acreditam que a versão etíope tenha sido traduzida mais diretamente (Himmelfarb, 1983HIMMELFARB, Martha. Tours of Hell. An Apocalyptic Form in Jewish and Christian Literature. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1983.). Além disso, apenas a versão etíope oferece o texto de forma completa. Wilhelm Schneemelcher (2003)SCHNEEMELCHER, Wilhelm. New Testament Apocrypha. Volume II: Writings Relating to the Apostles; Apocalypses and Related Subjects. Revised Edition. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003. defende que a versão grega é mais fragmentada.

Alguns textos de Pais da Igreja1 1 Lideranças, bispos que sucederam os apóstolos e escreveram os primeiros comentários sobre os escritos cristãos, como Clemente, Inácio, Agostinho, Policarpo. mencionam o Apocalipse de Pedro, e essas menções são importantes para destacar o papel exercido pela obra e, em algum aspecto, fortalecer os argumentos de sua datação antiga. Para citar alguns dos mais antigos escritos que mencionam o ApPe, há: o fragmento de Muratori2 2 O Fragmento de Muratori é uma lista de escritos sagrados, primeiro publicado por Muratori em 1740, encontrado por ele em um manuscrito do séc. VII ou VIII na Biblioteca Ambrosiana em Milão, datado no séc. III ou IV. ; Hypotoposes e Eclogae Propheticae, de Clemente de Alexandria, por volta do ano 200 dC; o Catalogus Claromontanus, um catálogo oriental das Escrituras Sagradas do século III; História Eclesiástica, de Eusébio, cerca do ano 339 dC, que menciona a obra junto com o Pastor de Hermas (Bremmer; Czachesz, 2003BREMMER, Jan; CZACHESZ, Itsvan (org). The Apocalypse of Peter. Leuen: Peeters Press, 2003.).

Resumidamente, o Apocalipse de Pedro se inicia com uma reunião de Jesus com seus discípulos, no Monte das Oliveiras, ensinando e dando conselhos. Até certo ponto, o texto se assemelha a similares nos canônicos, como Mateus 24, em que Jesus está exatamente na mesma situação. Tal qual o canônico, os discípulos começam a indagar ao mestre sobre o final dos tempos. A diferença começa a se dar quando Jesus abre a mão e na palma da mão apresenta o destino dos mortos em visão para o discípulo Pedro. Ele então mostra a Pedro a imagem do que se cumprirá no último dia: o inferno se abrirá e ocorrerá uma ressurreição generalizada. A terra será consumida pelo fogo e coberta de trevas. Jesus virá numa nuvem e a punição eterna começará.

Segue, então, a descrição das punições: alguns pecadores são pendurados por membros específicos de seus corpos como línguas, pés, entre outros. Outros pecadores são imersos em abismos e torturados por bestas. Alguns recebem chamas de fogo. Pedro recebe um vislumbre do futuro dos santos que irão testemunhar o castigo dos pecadores e são transportados para Acherusia (um lago da mitologia grega de ligação com o mundo inferior), identificado como os Campos Elíseos. A cena final do Apocalipse de Pedro é de Jesus com seus discípulos no monte santo quando o veem com Moisés e Elias. Tem-se aqui, uma versão da transfiguração narrada nos evangelhos canônicos (Himmelfarb, 1983HIMMELFARB, Martha. Tours of Hell. An Apocalyptic Form in Jewish and Christian Literature. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1983.).

Vale citar um pequeno trecho do Apocalipse de Pedro, mencionado por Schneemelcher (2003)SCHNEEMELCHER, Wilhelm. New Testament Apocrypha. Volume II: Writings Relating to the Apostles; Apocalypses and Related Subjects. Revised Edition. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003.:

24. E havia também outras, mulheres penduradas pelo seu cabelo, em cima daquele lodo fervente: estas eram as que se adornavam para o adultério; mas os homens que se uniram com elas na corrupção do adultério (estavam pendurados) pelos pés e tinham suas cabeças naquele lodo e gritavam (em voz alta): “Não acreditávamos que chegaríamos até este lugar!”

26. E perto daquele lugar vi outro vale para o qual corriam o fluxo e os excrementos daqueles que estavam sendo castigados e se tornaram num lago. E lá estavam sentadas mulheres com os excrementos até seus pescoços e na frente delas estavam sentadas muitas crianças, chorando, que foram por elas, abortadas. E das crianças saiam raios de fogo e golpeavam as mulheres nos olhos. Eram estas que conceberam filhos fora do casamento e procuraram aborto.

32. E outros homens e mulheres que estavam sendo lançados num grande precipício abaixo, chegavam ao fundo e eram levados a subir novamente do precipício por aqueles que estavam colocados sobre eles, e novamente eram lançados para baixo e não tinham descanso deste castigo. Eram aqueles que macularam seus corpos agindo como mulheres; e as mulheres que estavam com eles eram aquelas que se deitaram uma com a outra, como um homem com uma mulher. (Bremmer; Czachesz, 2003BREMMER, Jan; CZACHESZ, Itsvan (org). The Apocalypse of Peter. Leuen: Peeters Press, 2003., p. 174)

O fragmento deixa ver como o Apocalipse de Pedro reitera a metaforização que integra à conceituação de inferno a relação moral-causal. É moral porque tem como referência axiológica preceitos religiosos cristãos que regram o que é certo e errado. É causal, porque os efeitos punitivos após a morte mantêm certa contiguidade com os atos praticados antes da morte.

4.2 O Apocalipse de Paulo

A respeito das origens do Apocalipse de Paulo, também conhecido pelo nome latino Visio Pauli, há discussões e controvérsias com as quais não se faz necessário lidar aqui. Segundo Theodore Silverstein e Anathony Hilhorst (1997), o texto foi originalmente escrito em grego, no Egito, e datado por Tischendorf do final do século IV dC. Todavia, vale reconhecer que existem pistas de que a obra fosse conhecida pelos cristãos do Egito em meados do século III e vale ressaltar, ainda, que evidências externas localizam o que o autor chama de “primeira edição,” algumas formas mais antigas dos manuscritos, também por volta do século III dC ou mesmo antes. As evidências externas, ainda segundo Silverstein e Hilhorst (1997)SILVERSTEIN, Theodore; HILHORST, Anathony. Apocaliypse of Paul: A New Critic Edition of three Latin versions. Genève: CRAMER Éditeur, 1997., são os conteúdos do texto em si mesmo, os quais não coincidem com a vida e a linguagem cristãs daquele período anterior. Por exemplo, as punições que os não crentes recebem nos lugares de tormentos estão de acordo com princípios básicos da nova fé: negar a ressurreição, a doutrina da concepção virginal e a doutrina de Cristo como Filho de Deus. São concepções teológicas desenvolvidas a partir de determinado amadurecimento da fé cristã, de modo que uma teologia mais antiga não abordaria temas como esses.

O Apocalipse de Paulo pode ser resumido como a descoberta de uma revelação de um anjo a um cidadão de Tarso, que apresenta Paulo ascendendo ao terceiro céu, onde se encontra diante do Trono de Deus. Para ali são levadas as queixas da criação contra as maldades dos homens. O testemunho dos anjos descreve essas ações e o juízo divino sobre justos e malvados. A seguir há uma descrição do momento em que as almas de pessoas boas e pessoas más deixam o corpo, na hora da morte, e uma descrição do Paraíso. Na primeira parte do livro, Paulo é levado por um anjo até o terceiro céu. De lá vê a alma de um santo deixando o corpo e sendo levado até a presença de Deus e depois vê a alma de um pecador deixando o corpo e sendo levada até a presença de Deus para uma última oportunidade de arrependimento. Como não há esse arrependimento, é levada para as trevas. Paulo conhece a Cidade do Cristo, onde é apresentado a Enoque, passa por profetas, e o Paraíso, lugar onde são recebidos os que passaram necessidades no mundo, mas morreram fiéis a Deus. Depois disso, Paulo é levado para conhecer as regiões infernais.

O apóstolo é levado por seu anjo-guia ao local onde os condenados sofrem suas penas. Novamente, os pecados castigados são descritos como blasfêmia contra autoridades religiosas, falta de piedade por órfãos e viúvas, usura e confiança em riquezas. O Apocalipse de Paulo destaca em especial pecados referentes a autoridades eclesiásticas, como não cumprimento de obrigações religiosas, quebra de jejum, falta de atenção ao anúncio da Palavra de Deus e performance de atos pecaminosos após participação na Eucaristia. Para exemplificar, mencionam-se alguns trechos de uma tradução de Michele Evangelista (2011)EVANGELISTA, Michele. Visio Pauli. A Viagem de Paulo ao Terceiro Céu. Oracula 7.12. Revista de Estudos do Cristianismo Primitivo. p. 235-266, 2011. Disponível: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/oracula/article/view/5823/4705. Acesso em: 04 maio 2023.
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Novamente eu vi homens e mulheres com um semblante negro no poço de fogo, e eu suspirei e chorei e perguntei: “Quem são estes, senhor?” E ele me disse: “Estes são os devassos e adúlteros que tiveram suas esposas e cometeram adultério. Da mesma forma as mulheres que no mesmo caminho, apesar de terem seus maridos, cometeram adultério. Portanto, eles pagam estas penas sem cessar”.

Eu vi outros homens e mulheres, suspensos por suas sobrancelhas e seus cabelos, e um rio de fogo provocava-os, e eu disse: “Quem são estes, senhor?” E ele disse: “Estes são os que não se dão aos seus maridos e esposas, mas para adúlteros, e, portanto, pagam suas devidas penalidades sem cessar”.

Eu vi outros homens e mulheres, cobertos com poeira e suas aparências eram como sangue, e eles estavam em um fosso de piche e enxofre e eram transportados para baixo em um rio de fogo. Eu perguntei: “Quem são estes, senhor?” E ele disse: “Estes são os que cometeram perversidades em Sodoma e Gomorra, homem com homem, portanto eles pagam suas penas sem cessar” (2011, p. 255).

Como se pode constatar por uma breve comparação entre os textos dos dois apocalipses cristãos, há enormes similaridades de motivos, temáticas e interesses que reforçam a estabilização da conceituação moral-causal do inferno. Essas temáticas vão se desdobrando ao longo do tempo em outras obras cristãs e apócrifas, mas, sobretudo, em textos que não necessariamente possuem esse viés cristão. Um dos exemplos mais conhecidos é A divina comédia de Dante Alighieri. Segundo Nogueira (2015)NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Introdução. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org.). O imaginário de além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015., é difícil negar a relação temática e formal entre o apócrifo e a obra literária.

Esse clássico da literatura medieval ultrapassa as fronteiras do campo religioso e constitui importante vetor de memória coletiva. A divina comédia é considerada a obra suprema de Dante Alighieri, poeta e político italiano que nasceu em Florença, na Itália, em 1265, e morreu em Ravena, em 1321. Ele se dedicou de 1307 até o fim de sua vida a esta obra, além de outras, que já teria escrito, anteriormente. A Comédia, estruturalmente, é o relato de viagem de Dante aos três reinos do outro mundo: Inferno, Purgatório e Paraíso. A viagem é narrada em 100 cantos, sendo o primeiro, a introdução. Semelhante às obras cristãs primitivas, Dante faz uma viagem guiada a esses espaços. Ao inferno e purgatório ele é guiado pelo poeta latino Virgílio e, ao Paraíso, por sua esposa Beatriz e por São Bernardo.

Na obra, há trechos e cenários do inferno muito semelhantes ao descrito pelo Apocalipse de Paulo, do século V. Mattos (2017)MATTOS, Carlos Eduardo de Araújo de. DEIXAI TODA ESPERANÇA VÓS QUE ENTRAIS: o Inferno na tradição dos apócrifos e sua recepção em textos medievais e contemporâneos. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Metodista de São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo. São Bernardo do Campo, 2017. e Henrique Mata de Vasconcelos (2022)VASCONCELOS, Henrique Mata de. Uma genealogia do inferno: do Sheol à Divina Comédia. TEOLITERARIA - Revista de Literaturas e Teologias, [S. l.], v. 12, n. 26, p. 151-182, 2022. DOI: 10.23925/2236-9937.2022v26p151-182. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/teoliteraria/article/view/51493. Acesso em: 5 maio 2023.
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discutem vários excertos em que essa reacentuação de inferno pode ser identificada. Segundo Carmelo Distante (2014)DISTANTE, Carmelo. Prefácio à edição brasileira de A divina comédia/Inferno. Dante Alighieri. Edição bilíngue. Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2014., a obra é o memorial de uma visão de mundo coletiva em (trans)formação. O autor afirma que Dante Alighieri faz uma síntese do pensamento e da cultura medieval: um mundo em que está em curso a conexão da cultura clássica com a cultura cristã. A figurativização pela qual se estabilizam valores morais na conceituação de inferno e o distanciamento da conceituação experiencial são a chave para a permeação semântica por outros campos da criação ideológica.

5 O inferno cristão “ganha o mundo” e ultrapassa o campo religioso

Além de muitos textos presentes na análise de Himmelfarb (1983)HIMMELFARB, Martha. Tours of Hell. An Apocalyptic Form in Jewish and Christian Literature. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1983. que adentram pela Idade Média e que procuram se identificar com os mais antigos já mencionados Apocalipse de Pedro e Apocalipse de Paulo, outras obras surgiram ao longo da Idade Média, em que é possível flagrar uma mudança de paradigma na apresentação da temática do inferno. Nos textos que carregam a herança dos apócrifos cristãos primitivos, o inferno é um lugar para onde são enviados “pecadores” a fim de cumprir sua pena condenatória eterna através dos mais variados castigos.

Dentre as recepções medievais mais tardias dessa temática, citam-se A visão de Túndalo (Zierer, 2015ZIERER, Adriana. A visão de Túndalo: da danação à salvação numa viagem imaginária medieval. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org). O imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015. p. 163-205.) e A visão de Thurkill (Golin; Wotckoski, 2015GOLIN, Luana Martins; WOTCKOSKI, Ricardo Boone. O além-mundo no imaginário medieval: A visão de Thurkill. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org). O Imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015. p. 243-266.). A visão de Túndalo é um relato produzido no meio monástico por um monge irlandês originário de Cashel e que se encontrava em Regensburg, no sul da atual Alemanha. Só se sabe sobre este monge que seu primeiro nome era Marcus e que dedicou sua obra à abadessa G. Escreveu em latim ou gaélico, no século XII. Teve ampla circulação na Europa. Trata de um cavaleiro-pecador chamado Túndalo que, após uma morte aparente, é levado ao Além-Túmulo por um anjo. Ali tem a oportunidade de conhecer espaços paradisíacos e infernais, com o objetivo de se corrigir de seus pecados e maldades (Zierer, 2015ZIERER, Adriana. A visão de Túndalo: da danação à salvação numa viagem imaginária medieval. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org). O imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015. p. 163-205.). A Visão de Thurkill é apresentada por seu redator como um fato verídico ocorrido na noite do dia 27 de outubro de 1206. No momento em que cuidava da lavoura do dia, Thurkill é visitado por São Juliano, enviado por São Tiago, de quem é devoto, para guiá-lo em sua viagem ao Além-Mundo. Nessa visão, Thurkill é um camponês simples e hospitaleiro e é chamado por São Juliano a uma missão especial de ir conhecer o Além-Mundo. Sua viagem se dá quando ele adormece e termina ao ser acordado com água sendo jogada em seu rosto, para que ele desperte de um demorado sono (Golin; Wotckoski, 2015GOLIN, Luana Martins; WOTCKOSKI, Ricardo Boone. O além-mundo no imaginário medieval: A visão de Thurkill. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org). O Imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015. p. 243-266.).

Adriana Zierer (2015)ZIERER, Adriana. A visão de Túndalo: da danação à salvação numa viagem imaginária medieval. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. (Org). O imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015. p. 163-205. afirma que, na Idade Média, houve uma grande produção de viagens imaginárias; relatos que explicavam os locais do Além-Túmulo e que tinham por objetivo garantir a conversão dos fiéis. A autora aponta ainda o ser humano se vendo como um viajante nesse mundo visitado, por assim dizer, que seria uma cópia do mundo celeste, destino almejado dos viajantes que fizessem boas ações. Havia, segundo ela, uma tendência, especialmente em obras de arte, de retratar o ser humano como um peregrino dividido entre dois caminhos: um da salvação e outro da danação eternas.

Na Idade Média, o inferno como temática e a conceituação figurativizada extrapolaram as paredes das igrejas e se tornaram parte da cultura em âmbito geral, ainda que, como próprio do mover da cadeia comunicativa discursiva, reelaborando e reacentuando os valores de sua origem religiosa. Muitas obras descrevem detalhadamente o inferno, se não com motivos cristãos, pelo menos, com elementos por meio dos quais se estabelecem fortes relações dialógicas. Se a conceituação experiencial já escapa à recepção medieval do conceito, a figurativizada, que consolida valores morais regentes de uma contiguidade causal entre a existência antes e depois da morte, não se restringe ao campo religioso. Emerge dessa permeação por outros campos uma estrutura coletiva de memória em que o inferno é ambivalentemente conceituado, na tensão entre referências sagradas e vulgarização prosaica.

Alguns exemplos dessa expansão das paredes das igrejas para outros campos da cultura são as pinturas de Hieronymus Bosch, do final do século XVI, Christ’s Descent into Hell, que se encontra atualmente como parte da coleção do Metropolitan Museum de Nova York; Crossing the River Styx de Joachim PatinirJOACHIM PATINIR. Landscape with the Crossing of the Styx. 1520-24. Óleo sobre madeira, 64 x 103 cm. Acervo Museo Nacional del Prado., datada aproximadamente entre 1520 e 1524; Last Judgment de Giotto di Bondone de 1306GIOTTO DI BONDONE. Last judgment. 1306. Afresco, 1.000 x 840 cm. Capella Scrovegni (Arena Chapel), Padua. e Last Judgment de Hans MemlingHANS MEMLING. Last Judgement. 1467-71. Óleo sobre tela, 221 x 161 cm. Acerco do Muzeum Narodowe, Gdansk. entre 1467 e 1471.

Entre os citados, Bosch foi um dos pintores mais influentes no século XVI a retratar o inferno. Talvez uma das obras mais famosas do artista holandês seja o Jardim das delícias terrenas, em que o artista retrata as três dimensões da vida: uma imagem paradisíaca, um jardim onde se encontram os humanos no momento da criação e onde estão retratados Adão, Eva e Deus; um segundo lugar, ao meio, em que animais e humanos se confundem e se misturam em prazeres excêntricos e vaidades; e um último ponto da pintura, retratando o inferno, com referências a torturas, excrementos e criaturas estranhas. Esse inferno vai retornar como tema, com outras dimensões e motivos, na obra Descida de Cristo ao inferno de um seguidor e discípulo do artista. Nessa obra, abismos, seres estranhos, feras, animais se misturam com bocas, cabeças e outros membros de corpos que compõem uma paisagem sombria, cercada de fumaça e fogo. É difícil desvincular a escola de Bosch do tema religioso, uma vez que, naquele período, fosse relativamente difícil desvincular quem quer que seja da religião. Inclusive porque boa parte de suas obras possui a religião e mesmo passagens bíblicas como tema. Em todo caso, em que pese a não distinção clara entre Igreja (Católica Apostólica Romana) e Estado, a apropriação na pintura da temática tal como fomentada nos escritos religiosos canônicos e apócrifos no Cristianismo primitivo se mostra como importante reelaboração material a difundir reacentuações fora do campo religioso.

Ao migrar do cânone e dos apócrifos - textos de cunho religioso, ainda que não dogmáticos - para literatura e pintura - produções culturais que atendem às coerções do campo da arte, ainda que haja espaço para hibridismo -, a semiose de inferno se consolida como vetor de memória coletiva. Isto porque a conceituação passa a difundir valores que, ao traspassar o âmbito histórico-social do judaísmo e do Cristianismo primitivo e o campo da religião, funcionam como vetor de valores e engendram uma cosmovisão partilhada por grupos sociais variados.

Conclusão

- Como é?

Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueira.

- A senhora viu?

Aí, sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. (...)

- Inferno, inferno.

Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem.

Graciliano Ramos

A narrativa de Graciliano Ramos objetifica as agruras do sertão árido. Não apenas o ambiente, como as vidas estão secas. Para o filho mais velho, que não conheceu outras referências, falta contrapartida conceitual para a dureza da vida que permita conceituar inferno. Tudo o que conhece é inóspito. Além disso, sua tenra idade o leva à busca de um conceito experiencial, não figurativizado. Na adaptação cinematográfica da obra, o trecho tomado como epígrafe desta conclusão é encenado com o filho mais velho repetindo a palavra enquanto olha ao redor, como se procurasse por um referente empírico que desse concretude ao que sequer conseguia imaginar. Se o personagem vive um drama semiótico, a recepção da obra literária ou cinematográfica ativa o domínio cultural comprimido em inferno para processar a agudeza do sofrimento do personagem. Para o leitor do romance ou espectador do filme, “espetos quentes” e “fogueira” não estão ali associados a uma festa, como a tradicional festa de São João. Diferentemente, remetem a um domínio semântico altamente negativo e desdenhável disponível no repertório ocidental.

Neste artigo, não há como reconstituir pormenorizadamente a trajetória semântica da conceituação gestada séculos antes da Era Cristã até desaguar num romance brasileiro do início do século XX. Fato é que inferno não provoca qualquer dificuldade de interpretação em sua recepção mesmo quase cem anos depois desse deságue na literatura brasileira. Isso é uma evidência de quão bem-sucedido é o processo de permeação conceitual de que se trata aqui. Não é preciso compartilhar a crença cristã para partilhar os valores difundidos fora do campo religioso.

Do cânone bíblico judaico, Antigo Testamento para o Cristianismo, deduzem-se conceitos com base experiencial. Geena nomeia um lugar concreto conhecido pelos judeus do contexto de produção dos textos-fonte. Do mesmo modo, Sheol designa a sepultura em que se enterram corpos. Por metonímia, as práticas idólatras exercidas em Geena e a condição inerte dos corpos na sepultura produzem polissemia, e o domínio semântico é alargado. No Novo Testamento, a remissão a essas referências do Antigo Testamento reelabora e reacentua o conceito já polissêmico. Todavia, o afastamento do conceito mais experiencial parece favorecer relações dialógicas com outros repertórios culturais, como a mitologia grega e babilônica. Essas relações também operam por figurativização difundindo valores cada vez menos restritos ao campo religioso.

Na Idade Média, período histórico no Ocidente crucial para permeação especialmente do Cristianismo em outros campos da criação ideológica, a captura prosaica do conceito de inferno sinaliza o grau de penetração de referências axiológicas em condições socioculturais bem distantes daquelas em que se fundam o que se pode reconhecer como tradição religiosa judaico-cristã. Mesmo no campo híbrido da pintura sacra, por exemplo, nota-se como inferno parece ativar um domínio moral-causal punitivo que, a um só tempo, faz deferência a valores cristãos e nega-lhes os princípios religiosos, tornando o sagrado e sublime também prosaico; não alternativamente, mas simultaneamente, como próprio da tensão dialógica (Clark; Holquist, 2008CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.). Eis, então, a ambivalência do conceito de inferno a se espraiar pela cultura ocidental.

Em linhas gerais, no processo de semiose indiciado pela trajetória das conceituações a formar o domínio semântico inferno, notam-se dois processos linguageiros inter-relacionados. O distanciamento de conceitos mais experienciais em direção a conceitos mais figurativizados, quer por metonímia, quer por metáfora, torna os valores de base cristã propícios à permeação de outras culturas - grega e babilônica, por exemplo - e em outros campos da criação ideológica - pintura, literatura, por exemplo. Esse trânsito conceitual entre culturas diferentes e campos diversos promove a difusão do domínio semântico em estudo, que passa a estruturar um modo ambivalente de fazer sentido, uma cosmovisão e, assim, participa de uma estrutura ocidental de memória coletiva.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

  • 1
    Lideranças, bispos que sucederam os apóstolos e escreveram os primeiros comentários sobre os escritos cristãos, como Clemente, Inácio, Agostinho, Policarpo.
  • 2
    O Fragmento de Muratori é uma lista de escritos sagrados, primeiro publicado por Muratori em 1740, encontrado por ele em um manuscrito do séc. VII ou VIII na Biblioteca Ambrosiana em Milão, datado no séc. III ou IV.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

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  • HANS MEMLING. Last Judgement 1467-71. Óleo sobre tela, 221 x 161 cm. Acerco do Muzeum Narodowe, Gdansk.
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Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O artigo está bem escrito, traz tema interessante e articulação teórica profícua para observação do objeto, mas que precisa ser mais bem entrelaçada. A articulação prometida entre estudos bakhtinianos e estudos da memória coletiva é pertinente, mas perde espaço de reflexão para as aproximações com a linguística cognitiva. O conceito “ressonância dialógica” poderia economizar o esforço de articular distantes teorias. Nesse sentido, há algum descompasso entre a importância dos conceitos bakhtinianos - menos explorados na análise - e sua presença na bibliografia. Do mesmo modo, o artigo promete uma leitura da semiose da categoria inferno tomando como apoio o conceito de memória coletiva conforme entendido por Halbwachs, mas este conceito central é pouco discutido no texto. Tendo em vista o perfil da Revista, seria desejável que a reflexão teórica se concentrasse na articulação Círculo de Bakhtin-Halbwachs. Quanto aos procedimentos metodológicos, vale explicitar as etapas percorridas de forma articulada aos objetivos e ao quadro teórico escolhido. O corpus não está delimitado e os critérios de seleção dos trechos e imagens visitadas não foram apontados, misturando-se diferentes épocas e culturas, sem que possamos agrupá-las sob o genérico “cultura ocidental”. O próprio título precisa ser adequado pois demonstra um escopo muito amplo para o que se apresenta como exemplos de análise. Alguns comentários e sugestões foram deixados no texto, mas vale reforçar que sinalizam pontos que geram dúvidas no leitor, não bastando resolvê-los para que se resolva a estrutura do artigo. Assim, vale reestruturar a proposta, recortando o escopo de análise, enxugando o referencial teórico de forma a encontrar um objetivo mais modesto - por exemplo análise dos apócrifos - e procedimentos metodológicos que tragam maior segurança para as conclusões. O salto das representações medievais para Graciliano Ramos pode deixar o leitor bastante confuso. As considerações finais não correspondem ao todo do artigo. Por fim, se a ideia é articular dialogia, polissemia e memória coletiva, é fundamental considerar os usos políticos e cotidianos da categoria inferno, mas para tanto também se necessita um recorte cronotópico, já que o cotidiano é um dos protagonistas quando se pretende trabalhar com a memória coletiva. Ao reestruturar o artigo vale considerar que a Revista pede cerca de 45 mil caracteres com espaços e o artigo encontra-se com mais de 64 mil. É necessário, ainda, indicar as referências bibliográficas conforme pedido pela Bakhtiniana, tanto no corpo do texto como nas referências ao final, pois estão em desacordo. Vale fazer uma revisão no uso de aspas e de itálicos para a palavra inferno. O artigo tem potencial, mas precisa de alterações significativas e estruturais. Acredito ser importante ressaltar de forma mais explícita as influências do pensamento platônico para a construção do inferno cristão; bem como títulos e autores importantes para o estudo da temática como Georges Minois - História dos infernos; Hanna Arendt - Condição humana; Entre o passado e o futuro; Le Goff com o nascimento do purgatório, entre outros que refletem sobre as conexões entre inferno, história, política, diabo e bem X mal, entre outros. Se o contexto cultural brasileiro for considerado será importante o diálogo com outras tradições religiosas. Ao final, o leitor não consegue apreender quais imagens do inferno se fixaram, desapareceram ou se atualizaram para ter uma visão do processo/semiose da categoria e suas relações com a vida cotidiana onde se assenta o estudo da memória coletiva. REVISÕES REQUERIDAS [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    15 Set 2023

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O artigo tem uma abordagem interdisciplinar que envolve a Sociologia (memória coletiva), Linguística Cognitiva (semiose, conceituação, categorização, figurativização) e o Dialogismo do Círculo Bakhtin, Medviédev e Volóchinov (campo, enunciado, refração, reacentuação, assimilação, relações dialógicas). Na fronteira desses campos científicos, investiga o conceito (noção, signo) de inferno em um corpus contendo 7 textos canônicos do campo religioso oficial e 6 textos apocalípticos apócrifos do campo religioso não oficial. A tensão entre as relações dialógicas entre textos oficiais e não oficiais do campo religioso permite aos autores construírem para nós, leitoras e leitores do artigo, um percurso narrativo que tem por objetivo “identificar as condições verboideológicas pelas quais valores judaico-cristãos em tensão na conceituação de inferno se instalam como memória coletiva ocidental mesmo fora do segmento religioso e, assim, emolduram uma cosmovisão”. A originalidade da reflexão e a contribuição ao campo de conhecimento interdisciplinar, na fronteira entre as abordagens do Dialogismo, da Sociologia e da Linguística cognitiva, são articuladas com uma bibliografia atualizada e relevante, notadamente as do Círculo BMV, e nos insere como um(a) participante destinatária(o) dessa memória coletiva do “inferno cristão” que extrapola o campo religioso oficial e não oficial em todos os campos da criação ideológica. Um enunciado desses outros campos que conduz nossa leitura desde a epígrafe inicial, e acaba emoldurando o artigo até a epígrafe da Conclusão, é do campo literário: Vidas Secas, de Graciliano Ramos. A da abertura com a conceituação de inferno na descrição do narrador em uma interação entre Sinha Vitória e o menino mais velho, que, ao ouvir, “inferno” da boca de Sinhá Terta, quis saber da mãe o que era. E a do fechamento, com a pergunta provocativa do menino mais velho que as crianças nos fazem até hoje: “A senhora viu?” A engenhosidade com que os autores operam a linguagem científica, “esse trânsito conceitual entre duas culturas diferentes e campos diversos” da ciência e da criação ideológica, se torna mais um elo para nos lembrar e participar do debate das guerras “religiosas” contemporâneas e seus valores herdeiros dessa memória coletiva ocidental, dessa “ambivalência infernal”. Recomenda-se a publicação do presente artigo, considerando poucas sugestões para ajustes que foram indicadas no arquivo do avaliador com comentários. APROVADO COM SUGESTÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    30 Out 2023

Parecer IV

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O artigo tem como objetivo “identificar as condições verboideológicas pelas quais valores judaico-cristãos em tensão na conceituação de inferno se instalam como memória coletiva ocidental mesmo fora do segmento religioso e, assim, emolduram uma cosmovisão”. Em outras palavras, intenta “demonstrar como o polissêmico repertório conceitual erigido a partir da noção de inferno funciona como vetor de memória coletiva a romper os fluidos limites do campo religioso e a delinear um modo de ver o mundo”. Para tal, evidencia, como córpus discursivo, fontes canônicas (bíblicas oficiais) e textos apócrifos (fontes extra-canônicas), fazendo dialogar/articular, metodologicamente, as contribuições da Linguística Cognitiva, o conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs (1991) e os estudos bakhtinianos, com o entendimento de que as relações verboideológicas são relações dialógicas (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.; 2016bBAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b. p. 71-110.; 2017BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56.). Considerando a objetividade e os referenciais requeridos, o estudo apresenta-se adequado, tanto teórica quanto metodologicamente, ao tema proposto, evidenciando progressão textual e temática, com especial relevância para a processualidade da semiose do inferno a partir da articulação entre dialogismo, memória coletiva e a inerência polissêmica do termo. Logo, trata-se de pesquisa original e temática de relevância, demonstrando atualização da bibliografia no que concerne ao aprofundamento das análises realizadas. Entende-se a sua efetiva contribuição para os estudos linguístico-discursivos e demais abordagens linguísticas, de maneira geral. Reflete-se, ainda, que o texto de Graciliano (Vidas Secas), em epígrafe, conjugou satisfatoriamente para a compreensão do objeto original referenciado a partir do percurso analítico: a ambivalência infernal constituída pela simultaneidade sagrado-prosaico. O texto apresenta adequação formal, demonstrando, de maneira geral, coerência e coesão textual, com raros pontos que requerem revisão quanto ao aspecto linguístico-textual. Sugere-se nova leitura, com vistas à primazia, em alguns poucos trechos, de estruturas sintáticas mais objetivas, a fim de possibilitar maior precisão quanto à compreensão requerida. Alguns trechos encontram-se destacados em arquivo anexo (apontamentos em caixas de revisão). Algumas sugestões são apontadas cuja consideração e entendimento de sua pertinência devem ser avaliadas pelos(as) autores(as):

- Quanto ao título, mediante o aprofundamento das conceituações teóricas apresentadas e o objeto original explicitado no resumo, corroborado ao longo do texto e na conclusão, sugere-se a inclusão de subtítulo, com vistas à transparência da amplitude temática desenvolvida. Uma possibilidade: “Notas dialógicas sobre as origens da ambivalência infernal na cultura ocidental: a simultaneidade sagradoprosaico”.

- Relativamente ao resumo, compreende-se que apresenta todas as partes constitutivas necessárias. Sugere-se, intencionando maior nitidez quanto ao corpus discursivo, a menção relativa aos textos canônicos evidenciados. Possibilidade: “Metodologicamente, vale-se da apocrificidade como recurso de levantamento de textos fonte para rastreamento do percurso conceitual constitutivo da semiose de inferno, em movimento de dialogicidade com textos canônicos”.

Orienta-se a adequação quanto às novas regras da ABNT (ABNT NBR 10520/2023) e atenção quanto às alterações constantes nas regras da Revista, em especial relativamente aos seguintes pontos:

- “Indicação de autoria de pessoa física, dentro dos parênteses, deve ser feita em letras maiúsculas e minúsculas”.

- “A primeira vez que um autor for citado deve-se utilizar seu nome completo sem abreviaturas”.

Mediante as considerações tecidas, apresenta-se manifestação favorável à aprovação do texto, evidenciando as sugestões propostas como possibilidades, não se constituindo, pois, como elementos condicionantes para sua publicação. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    03 Nov 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2023
  • Aceito
    06 Nov 2023
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