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Mito e religião na tríplice fronteira Roraima, Guiana e Venezuela: o Areruya e o entre-lugar

RESUMO

Este artigo sobre a religião Areruya dos Ingarikó da aldeia Manalai, localizada no estado de Roraima, compara o discurso de dois mitos sobre a origem do atual Areruya. Um dos mitos foi transcrito por Audrey Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960. na década de 1950 e o outro pela antropóloga Maria Virgínia do Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019. entre 2014 e 2017. O objetivo da comparação entre os dois discursos foi apresentar as articulações de cada um para uma nova configuração cosmológica e social, a partir da chegada do colonizador. Para tanto, fizemos uso da ideia de entre-lugar oriunda dos estudos de Homi Bhabha (2001)BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001. - em O local da cultura -, porque ela permite utilizar o método de análise de textos como discurso sem fixar algum sentido intrínseco a eles, criando um espaço deslizante.

PALAVRAS-CHAVE:
Areruya; Ingarikó; Mitos; Entre-lugar

ABSTRACT

This article, about the Areruya religion of the Ingarikó people in the village of Manalai, located in the state of Roraima, Brazil, compares the discourse of two myths about the origin of the current Areruya. One of the myths was transcribed by Audrey Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960. in the 1950s, and the other by the anthropologist Maria Virgínia do Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019. between 2014 and 2017. The objective of comparing the two discourses was to present the articulations of each one for a new cosmological and social configuration, following the arrival of the colonizer. To achieve this, we used the idea of the “in-between” from the studies of Homi Bhabha (1994) in The Location of Culture because it allows for the use of text analysis as discourse without fixing any intrinsic meaning to them, creating a sliding space.

KEYWORDS:
Areruya; Ingarikó; Myths; In-between

Introdução

A comunidade indígena Manalai, onde vivem os Ingarikó desta pesquisa, está localizada na TIRSS1 1 Dados sobre as terras e populações indígenas de Roraima obtidos por meio do site oficial da Funai, disponível em: http://www.funai.gov.br. Acesso em: 21/02/2022. , área homologada pelo presidente da República em abril de 2005. É uma área de aproximadamente 1,7 milhão de hectares e faz fronteira com a Guiana (a Leste) e a Venezuela (ao Norte), no estado de Roraima, extremo norte do Brasil. A aldeia localiza-se em região remota e de difícil acesso, as vias são fluvial e aérea, pois não há estradas próximas à comunidade. A Manalai é a segunda maior aldeia Ingarikó em número de pessoas, 356, ficando atrás apenas da aldeia Serra do Sol, com 378 pessoas (Coping, 2012COPING, Ata da XIII. Assembleia geral do Povo Ingarikó e VIII Assembleia do Conselho do Povo Ingarikó, Serra do Sol, RR: nov. 2012.).

Os Ingarikó pertencem ao tronco linguístico denominado Kapon, assim como os Patamona, ambos localizados em Roraima, e os Akawaio, na região da Guiana. O grupo Kapon (Ingarikó, Patamona e Akawaio), segundo Cruz (2005)CRUZ, Maria Odileiz Souza. Fonologia e Gramática Ingarikó - Kapon Brasil. Tese dedoutorado. Amsterdam: Vrije Universiteit Amsterdam, Holanda, 2005., partilha de organização religiosa e sociocultural comum. Logo, como veremos adiante, o mito registrado por Audrey Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., recolhido em seus estudos com os Akawaio, irradiou-se para os Ingarikó que passaram a partilhar de vários de seus elementos.

Nesse contexto, o presente artigo pretende investigar os espaços de entre-lugar produzidos pela articulação discursiva de dois mitos que explicitam a origem da atual religião2 2 Utilizamos o termo religião porque, em primeiro lugar, os Ingarikó o utilizam, e em segundo lugar, porque Areruya foi oficializada, na Guiana, como membro da Guyana Council of Churches em 1977 (Goodrich, 2003). Areruya, praticada pelos Ingarikó da aldeia Manalai. Esses espaços permitem formular problemas relativos às ressonâncias que inscrevem a presença dos brancos e de sua religião cristã na criação dos dois mitos.

Uma dessas narrativas mitológicas sobre a origem do Areruya que utilizamos foi transcrita pela antropóloga Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960. no artigo “The Birth of a Religion” e a outra, pela antropóloga Maria Virgínia Ramos Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019. em sua tese de doutorado intitulada Os Ingarikó e a religião Areruya.

No texto detalhado de Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019., seguindo um caminho inaugurado por Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., a autora descreve o Areruya e explica minuciosamente suas possíveis origens históricas. Estabelece relações estruturais entre as versões do mito ameríndio que apontam para a apropriação de elementos da religiosidade cristã e afirma que, “já em suas manifestações embrionárias, Areruya não parece ter pretendido ser outra coisa que a tradução indígena de aspectos das religiões cristãs” (p. 18)3 3 Todas as traduções de citações em língua estrangeira são minhas. . A autora descreve e analisa minuciosamente cada detalhe da história, cultura e comportamentos do grupo Ingarikó. A partir desse estudo, nossa proposta investigará as articulações que fizeram o que era uma “manifestação embrionária” transformar-se em uma manifestação religiosa original e descolada de sua vertente inicial.

No artigo “The Birth of a Religion”, a antropóloga Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., a partir de seu trabalho etnográfico com os povos Akawaio da região da tríplice fronteira Brasil, Guiana e Venezuela, expõe os possíveis caminhos de expansão do “Hallelujah”4 4 A autora utiliza esse termo em referência a Areruya. Por isso, quando me referir ao artigo “The Bird of a Religion” (Butt Colson, 1960), utilizarei a mesma forma que ela. . Ela reúne, no artigo mencionado, um conjunto de versões sobre a origem do termo e o interpreta, concluindo, em determinando momento e de acordo com uma das versões, que os sonhos do profeta Abel5 5 Segundo Butt Colson (1960), Abel foi profeta responsável pela fundação do Hallelujah entre os Akawaio. (p. 78). , relativos à composição do “Hallelujah”, apresentam-se como “uma mistura gloriosa de crenças tradicionais e itens de ensinamentos cristãos imperfeitamente compreendidos”6 6 “(…) a glorious mixture of traditional beliefs and items of imperfectly understood Christian teaching”. (p. 82). Entendemos que os ensinamentos cristãos se (des)organizam no discurso dos mitos para comporem a perspectiva relacional (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.), em um movimento dinâmico de diferir-se e posicionar-se, como veremos adiante.

Destarte, para desenvolvermos nossas análises, tomaremos a ideia de entre-lugar oriunda dos estudos de Homi Bhabha (2001)BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001. - em O local da cultura -, porque ela permite utilizar o método de análise de textos como discurso, sem fixar algum sentido intrínseco a eles. Na obra, o autor indo-britânico defende que as diferenças culturais devem ser pensadas por meio desse espaço deslizante, uma vez que o lugar “nem aqui nem lá” possibilita pensar “além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais” (Bhabha, 2001BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p. 20). Nesse movimento de proximidade e distância, de articulação e desarticulação, de deslocamento, surgem elementos constitutivos não essencializados, desconstruindo-se, dessa forma, a noção de fixidez. O entre-lugar ocorre porque o acontecimento precisa ser renovado, diferindo-se a cada momento discursivo, pois estabelece infinitamente o lugar da subjetividade, ou o não lugar, já que nunca se definirá de forma absoluta.

A partir do entre-lugar cunhado por Bhabha (2001)BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001., faremos um diálogo crítico com a noção de pensamento liminar (2020) de Walter Mignolo, uma vez que o autor argentino, de certa forma, promove a atualização e ampliação da noção de entre-lugar, ao refletir sobre os processos colonizadores na América Latina. O pensamento liminar acarreta a descolonização dos saberes subalternos ao desconstruir a imagem hegemônica do colonizador e produzir novos lugares de fala (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020.).

Assim, pretendemos focalizar, no espaço deslizante de reinvenção do discurso dos mitos, as instâncias que introduzem o elemento não indígena para depois sugerir um momento de dissociação nesse discurso: quando os indígenas conseguem entrar em contato com o Deus, no paraíso ou no céu, e “pegar” seu próprio Areruya (Butt Colson, 1960BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., p. 69). Sob essa ótica, novos signos são produzidos, formulando estratégias de representação diante desse “outro”, o colonizador, e nos interessa questionar de que modos as significações são formadas nesses entre-lugares, no “além” da reunião das partes. O além “significa distância espacial, marca um progresso, promete o futuro” (Bhabha, 2001BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p .23) e, talvez, um modo discursivo de resistência à assimilação, pois “o pensamento liminar, na perspectiva da subalternidade, é uma máquina para a descolonização intelectual” (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020., p. 74).

Junto a tal dinâmica, o pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2020)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020. sobre um perspectivismo ameríndio e seu nexo relacional iluminará as vias de leitura desse espaço culturalmente outro, assim como alguns instrumentos analíticos disseminados por Claude Lévi Strauss (2021) - aquele que proporcionou o porvir da antropologia atual - e de Roberto DaMatta (1970)DAMATTA, Roberto. Mito e antimito entre os Timbira. In: LÉVI-STRAUSS, Claude, CARDOSO de OLIVEIRA, Roberto; MILATTI, Júlio Cezar ; LARAIA, Roque de Barros. Mito e linguagem social - ensaios de Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.. Também as ideias da socióloga Maori Linda Tuhiwai Smith (2018)SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2018. serão de grande valia, devido ao seu olhar desconstrutor a respeito da narrativa mitológica.

É o que pretendemos realizar ao refletirmos sobre a tessitura de significação do mito ameríndio, com base em textos etnográficos, pois nossa visada sobre o corpus trabalha na fronteira entre a perspectiva discursiva e a perspectiva antropológica. Arriscamos, no movimento inevitável de leitura crítica, acrescentar novo fio: adeptos da não presença do significante, levando em consideração seus desvios e descaminhos criativos.

Se a perspectiva aqui não é nem somente discursiva, nem somente antropológica, mas se realiza ainda no entre-lugar do discurso, também nossos referenciais teóricos são aqueles (ex)cêntricos, pois seguem o ponto de vista da chamada “antropologia reversa”. Tais olhares questionam os pressupostos sobre os quais os conceitos modernos acerca do mito e do “selvagem” foram criados. Entendemos que tais conceitos pertencem às sociedades ocidentais que construíram a ideia de homem e de ciência - a episteme. Segundo Michel Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002., a ideia de homem é muito recente, data do Iluminismo e é formulada a partir dos pressupostos das Ciências Humanas, como a Filosofia, a Psicologia, a Pedagogia, a Antropologia: ciências que floresceram também no Ocidente. Segundo o autor, a prática de fazer ciência - e suas bases - está assentada numa perspectiva europeia. Logo, deve sempre colocar a si mesma em questionamento, ou corre o risco de desconhecer o que realmente produz e para quem produz.

Diante desse cenário epistemológico, a presença heterogênea e plurivocal da narrativa mitológica, cuja potência desconstrutora tentaremos descrever, vai ocorrer em outro lugar, no além dela mesma, a partir do jogo e das articulações que ela permite formular. Sua incerteza móvel é capaz de mobilizar questionamentos sobre as hierarquias opositivas que sustentam nossas certezas conceituais, como as de mito e história, ou de razão e pensamento infantil7 7 A expressão “pensamento infantil” tem origem no período posterior à chegada dos colonizadores, quando os padres entendiam e defendiam a necessária orientação aos indígenas, porque estes não possuíam maturidade para o pensamento “adulto”: “Quase um século depois de Vitória entregar The Indis, o Franciscano Juan de Silva explicou nos mesmos termos aristotélicos que Vitória havia empregado que os índios ainda eram incapazes de compreender o mundo natural ou a ordem moral (...). Para Vitória e outros como Silva, que o seguiram em sua formação intelectual, a relação do índio com seu mestre só podia ser interpretada como paternalista. A mente do índio era tão completa quanto a de seu mestre; mas por ter permanecido tanto tempo na escuridão da infidelidade e sob o domínio de uma religião brutal e diabólica, suas faculdades racionais ainda eram imaturas” (Pagden, 1982, p. 104) [Nearly a century after Vitoria delivered The Indis, the Franciscan Juan de Silva explained in the same Aristotelian terms as Vitoria had employed that the Indians were still imcapable of untherstanding either the natural world or the moral order (...). For Vitoria and those like Silva who followed in his intellectual train, the relationship between the Indian and his master could only be construed as paternalistic. The Indian’s mind was as complete as that of his master; but because it had remained so long in the darkness of infidelity an under the sway of a brutal and diabolic religion, its rational faculties were still immature]. .

1 Mito e conhecimento

Pensar o mito ameríndio não é tarefa fácil, uma vez que seu discurso pode conter um valor e um sentido dentro da cultura que o produz e outro dentro da cultura que o analisa. E, mesmo diante da premissa já mencionada aqui - a de este estudo localizar-se na fronteira entre antropologia e discurso -, o lugar de reflexão será sempre o do não indígena pensando a narrativa mitológica indígena. Desse modo, como “a análise mítica não tem nem pode ter por objeto mostrar como homens pensam” (Lévi-Strauss, 2021LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: Mitológicas I. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 30), nosso objetivo é refletir sobre o tecido textual mitológico e o modo como as articulações do entre-lugar (re)apresentam o homem branco dentro da mitologia ameríndia no entorno do Monte Roraima.

A ideia de entre-lugar possibilita a ressignificação das fronteiras entre colonizador e colonizado, reordenando o mundo para que a hegemonia do invasor seja esvaziada de poder. Assim, na nova ordem instaurada pelo mito do Areruya, o indígena não está em posição subalterna, mas é o sujeito que passa a ocupar o lugar principal na nova cosmogonia. A potência do entre-lugar na criação dos mitos de origem do Areruya veicula e faz emergir elementos culturais do povo subjugado e marginalizado,

a ‘gnose liminar’ é a razão subalterna lutando para colocar em primeiro plano a força e a criatividade de saberes, subalternizados durante um longo processo de colonização do planeta que foi, simultaneamente, o processo através do qual se construíram a modernidade e a razão moderna (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020., p. 36).

Constrói saberes a partir de outras estruturas de pensamento que negociam ou traduzem a diversidade cultural, contestando ou convergindo - ou ambos - com o saber do invasor.

Se, de acordo com Viveiros de Castro (2020)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., a antropologia é atividade de tradução e a tradução é sempre entendida como traição, não estaremos distantes de realizar alguma traição em nossas análises. Todavia, a escolha de linhas teóricas cuja diretriz se pode chamar de descolonizadora8 8 Um pensamento descolonizador compreende as culturas sem o viés da superioridade e inferioridade, além de abarcar o pensamento do outro, sua razão, inserindo-a no mundo “real”, (Mignolo, 2008, p. 290). (Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: opção descolonial e o significado de identidade em política. Tradução de Ângela Lopes Norte. Cadernos de letras da UFF- Dossiê: literatura, língua, e identidade, nº 34, p. 287-324, 2008.), talvez oriente na direção do trabalho de reflexão mais do que o de imposição de um pensamento ou de uma razão sobre outra. Importa a (re)apresentação da cosmovisão religiosa indígena não só como reação à presença dos valores e significantes do mundo dos colonizadores, mas como fruto de escolhas e “decisões históricas de recusa à assimilação pelos brancos, escolhas e decisões que privilegiaram certos valores (p. ex., a autonomia) em detrimento de outros (p. ex., o acesso às mercadorias)” (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 297).

Acreditamos que o estudo dos mitos, num viés de intercambiamento, de entre-lugar, e sendo orientado pelo perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.), pode construir experiência de reflexão sobre certa antropologia indígena, ou antropologia reversa a partir da interpretação dos entre-lugares do discurso dos mitos. Especulação esta cujo horizonte busca iluminar o caminho para a compreensão da presença do colonizador. Presença que assinala a diferença: classificação binária e hierárquica por parte do poder colonial, transformando “diferenças em valores” (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020., p. 35)

Por último, reconhecemos que nosso método de análise, orientado pelo dispositivo do entre-lugar no caminho da análise do discurso, busca o estudo mais da relação textual entre os mitos, do que da prática cúltica indígena. O que ocorre porque reconhecemos a limitação do método utilizado aqui.

1.1 Posições

Antes de iniciarmos nossa tarefa, vamos apresentar o campo a que o termo “narrativa mitológica” remete. Pensamos o mito como discurso em que determinados elementos podem trabalhar como mecanismo de deslocamento e elaborar espaços suplementares de significação a fim de apontar os processos de construção daquilo de que falam, além de possibilitarem também um horizonte que permite o surgimento de outras ideias. Além disso, o

... estudo dos mitos efetivamente coloca um problema metodológico na medida em que não pode adequar-se ao princípio cartesiano de dividir as dificuldades em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-lo. Não existe um verdadeiro término para análise mítica, nem uma unidade secreta que se possa apreender no fim do trabalho de decomposição (...). Consequentemente, a unidade do mito é apenas tendencial e projetiva, jamais reflete um estado ou um momento do mito (Lévi-Strauss, 2021LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: Mitológicas I. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 32).

Essa não conceitualização, oposta ao positivismo do pensamento, é o que pretendemos, pois não acreditamos em regra ou modelo fixo de análise9 9 Para novas interpretações e discussões sobre o mito em Lévi-Strauss, ver Aparecida Vilaça (2008), Marcel Mano (2012), Artionka Capiberibe (2017) e Odair Giraldin e Cassiano Apinagé (2019). . Ao mesmo tempo, como discutido, um horizonte deve ser apontado para que permita qualquer elaboração do pensamento.

Nesse horizonte provisório, a percepção do mito ameríndio gira em torno da compreensão de que ele é constituído a partir de discursos atravessados por relações originadas na e pela história, que o rearranja e mobiliza, e que pode mudar ao longo do tempo. Construídos geralmente a partir de experiências coletivas, têm como uma de suas funções - a que salientamos em nossas reflexões - a tradução de dinâmicas adversas e misteriosas que expressam o modo de organização do mundo. Longe das abordagens de mito como pensamento irracional e primitivo, oposto ao pensamento científico, ou pensamento infantil no caminho de evolução (Pals, 2019PALS, Daniel L. Nove teorias da religião. Tradução de Caezar Souza. Petrópolis: Vozes, 2019., p. 39), entendemos que os mitos contam uma história:

As narrativas míticas são atos de linguagem que constroem um sentido e um significado, compartilhados por um determinado grupo, e podem mudar ao longo do tempo, provocando deslocamentos, substituições e condensações de figuras e valores. Esses atos de linguagem relacionam-se com as constelações de mitos presentes no mundo religioso, em especial, os mitos de fundação, retirando deles sua legitimidade, ao mesmo tempo em que ocultam o caráter metafórico das interações linguísticas (Sampaio & Silveira, 2018SAMPAIO, Dilaine Soares & SENA DA SILVEIRA, Emerson (orgs.). Narrativas míticas: análise das histórias que as religiões contam. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 13).

Com a linguagem de significantes apontando para um horizonte de significados, os mitos de origem do Areruya marcam a presença do homem branco e o caráter dessa relação. Na versão recolhida por Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019., percebemos a atualização que ocorre por meio da introdução e articulação de elementos, todavia, o efeito final é semelhante ao de todos os outros mitos sobre a origem da manifestação religiosa: a diferenciação e separação entre índios e brancos.

Nas narrativas, acontecimentos e caracterizações da Bíblia (1969BÍBLIA sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.) se inserem articulados à cosmogonia tradicional, formando uma construção original que se tornou a referência para o surgimento dos cantos e da cerimônia do Areruya. Também o recorrente episódio da tentativa do missionário de enganar o indígena - futuro “profeta” do Areruya - aparece como indicador do período histórico da chegada dos missionários evangelizadores: o momento da entrada dessa outra expressão religiosa e as consequentes contradições trazidas pela série de novos costumes e imposições. É aí que os espaços de entre-lugar do discurso mitológico são produzidos articulando presente, passado e futuro, movimento que “renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente” (Bhabha, 2001BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p. 45). Nas duas narrativas analisadas aqui, os significantes de rompimento entre o homem branco e o indígena são anunciados como advertência por Deus, que se aproxima dos indígenas e se torna íntimo.

De acordo com a narrativa mitológica, que não possui um sentido acabado, a nova realidade divina instaurada pela visita do nativo ao Paraíso Bíblico - mencionada nos mitos elencados no corpus - propõe a intimidade com o Deus que já sempre estivera ali, só ainda não se revelara, e que passou a se constituir, ressignificado, a partir do Deus que o colonizador trouxe. Essa ordem predestinada dos eventos, tocando passado e futuro, produz e é produzida pelo ir-revir e possibilita vislumbrar a compreensão do encontro entre as expressões religiosas bíblicas e as expressões xamânicas10 10 Como veremos na análise dos mitos escolhidos, nossa concepção de xamanismo entende, junto com Viveiros de Castro (2020), que este seria a disposição presente em certos seres de cruzar as limitações corporais e adquirir a perspectiva de outras subjetividades. (p. 310). encontradas no discurso do mito indígena.

Roberto DaMatta (1970)DAMATTA, Roberto. Mito e antimito entre os Timbira. In: LÉVI-STRAUSS, Claude, CARDOSO de OLIVEIRA, Roberto; MILATTI, Júlio Cezar ; LARAIA, Roque de Barros. Mito e linguagem social - ensaios de Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970., em análise do mito de Auké do povo Timbira, chama de antimito a necessidade de negociação diante dos acontecimentos que irromperam com a chegada do homem branco. Assim, o grupo precisou “sistematizar um conjunto de novas experiências para as quais não estava preparado sociológica e historicamente” (1970, p. 80). Para o autor, enquanto o mito é criado segundo um conjunto de valores elaborados a partir dos feitos da sociedade indígena, das relações estabelecidas diante das experiências, o antimito seria o ato inaugural de tentativa de inserção do homem branco na ordenação do mundo e para “forjar para si um instrumento que permita controlar, ainda que num plano ideológico os eventos do contato e da dominação da sociedade envolvente” (1970, p. 80). Nesse sentido, podemos dizer, sem utilizar a dicotomia mito/antimito, que os mitos de origem da expressão religiosa denominada Areruya traduzem os elementos da pregação dos missionários brancos como modo de resistência e reestruturação, entendendo a reestruturação como forma de organização dos povos indígenas (Smith, 2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2018.). A pesquisadora indígena Linda Tuhiwai Smith (2018)SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2018. afirma que o processo de reestruturação promete maior autonomia sobre os modos pelos quais os problemas indígenas são discutidos, uma vez que “a necessidade de reestruturar trata de preservar as forças de uma visão de mundo e a participação de toda uma comunidade” (Smith, 2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2018., p. 179).

Partindo desse campo de ideias, passemos ao resumo do mito de origem do Areruya recolhido por Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., no período de 1951 a 1957, para nossa posterior análise.

1.2 O Hallelujah de Butt Colson

A antropóloga britânica recolheu dez versões do mito da origem do Areruya presentes na região da tríplice fronteira Brasil, Guiana e Venezuela, entre os Akawaio, grupo do qual os Ingarikó partilham características culturais e de organização social (Cruz (2005)CRUZ, Maria Odileiz Souza. Fonologia e Gramática Ingarikó - Kapon Brasil. Tese dedoutorado. Amsterdam: Vrije Universiteit Amsterdam, Holanda, 2005.. No artigo “The Birth of a Religion” (1960), as versões são apresentadas em conjunto: há a versão principal, em que confluem informações recorrentes, e outras, em que são acrescentadas algumas diferenças de acordo com os informantes. Trabalharemos com a versão principal por ser a mais completa e estruturada em início, meio e fim.

No mito principal, o fundador do Hallelujah foi um indígena da etnia Makuxi chamado Bichiwung11 11 “Bichiwung” é só um dos vários nomes possíveis para o fundador do Hallelujah, pois o nome varia de acordo com a versão. . Ele e outros Makuxis começaram a trabalhar para um pastor branco da Inglaterra, o qual morava próximo a Georgetown, na Guiana, e eles também frequentavam a escola da missão em que o pastor ensinava.

Segundo o mito, o pároco levou Bichiwung para sua casa na Inglaterra. Lá, apresentou-o a seus familiares e lhes falou sobre ele, que compreendeu a conversa porque havia aprendido um pouco de inglês. O Makuxi entendeu, na conversa do homem branco com a família, que este pretendia enganá-lo, uma vez que, apesar da promessa de lhe mostrar Deus e a Palavra, não faria isso imediatamente. Depois do diálogo, o pastor e sua família saíram, deixando-o só.

Antes de saírem, disseram-lhe que ele deveria ficar ali e cuidar da casa e da grande riqueza que havia lá. Deixado sozinho, Bichiwung sentiu-se triste e solitário. Ele pensou, e perguntou-se porque lhe tinham dito para ficar ali. Foi nessa altura que “ele viu Deus e recebeu Aleluia”12 12 No original: “Before going, they told him that he must stay in the one place and look after the house and the great wealth which was in it and go nowhere else. Left on his own Bichiwung felt sad and lonely. He thought, and he wondered why he had been told to stay in one place. It was at this time that ‘he saw God and got Hallelujah’.” (Butt Colson, 1960BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., p. 69).

Depois de estar só e querer muito ver Deus, conseguiu encontrá-lo e quis entrar no céu, mas a divindade não permitiu e perguntou porque ele estava ali. Bichiwung disse que queria saber se o homem branco estava realmente mentindo para ele, então Deus deixou-o entrar e mostrou-lhe o céu: “Deus falou com ele e disse que os brancos estavam a enganá-lo e que Hallelujah que era bom”13 13 No original: “God spoke to him and said that the white people were deceiving him and that it was Hallelujah which was good.” (p. 69). Dessa forma, o indígena obteve de Deus o Hallelujah, assim como uma garrafa de remédio branco, palavras e canções, e um pedaço de papel que seria a Bíblia indígena. Bichiwung gostou do céu e quis ficar, mas foi-lhe dito que não poderia, pois ainda não havia morrido. Foi-lhe ordenado que voltasse para sua família e ensinasse o Hallelujah,

Bichiwung regressou à casa do pastor levando as coisas que Deus lhe tinha dado e recordando o que Deus lhe tinha dito sobre os ensinamentos enganosos do homem branco e sobre Hallelujah ser boa. “Assim, ele deixou de lado o que o homem branco lhe tinha dito e deixou de ler o livro. Em vez disso, ele tomou Hallelujah, que tinha obtido por si próprio, de Deus”14 14 No original: “Bichiwung returned to the parson’s house taking the things that God had given him and remembering what God had told him about the white man’s deceitful teaching and about Hallelujah being good. ‘Through that he left off what the white man had told him and he stopped reading the book. Instead, he took Hallelujah, which he had got on his own, from God’.” (Butt Colson, p. 69-70).

Assim, o Makuxi voltou para casa com o Hallelujah, uma arma e vários recipientes cheios de coisas. Chamou seus parentes para virem a Georgetown vender seus novos bens e obtiveram muita riqueza. Bichiwung voltou para casa, nas montanhas Kunuku, com seus outros bens. Ele voltou para sua esposa e família e narrou como conseguira o Hallelujah. Em seguida, começou a ensiná-lo, abriu seu recipiente recebido de Deus e produziu a Bíblia indígena dada por Deus.

Inicialmente, ensinava somente para a família. Mas sua esposa não acreditou nele e não ficava em casa para aprender o Hallelujah. Ela ia para a roça, trabalhar para obter comida. Enquanto a mulher estava fora, o indígena se trancava em casa sozinho, dormia e seu espírito ia ao encontro de Deus. Em algumas ocasiões, sua filha estava na casa e rezava com Bichiwung, ele estava a ensinar-lhe o Hallelujah. Por causa disso, sua esposa acusou-o de incesto, mas o Makuxi contou a ela que eles tinham ficado em casa para dormir e ir para o céu. A partir de então, sua esposa acreditou e começou a pregar também.

O povo Makuxi ficou sabendo sobre Bichiwung e sua família pregando o Hallelujah e quis obtê-lo. E sua fama se espalhou.

As plantações de Bichiwung estavam férteis, havia mandioca, banana e todos os produtos de plantação. Por causa disso e de seu conhecimento sobre o Hallelujah, as pessoas passaram a ter inveja dele. Um dia, Edodo15 15 Edodo, como veremos, é uma entidade que pratica o mal e pode assumir o corpo de homem ou animal. atacou-o, quando regressava da plantação, matando-o. Sua esposa, de posse do remédio dado por Deus, esfregou-o em Bichiwung que, já no céu, regressou à Terra e voltou à vida. Na segunda vez, Edodo matou-o e dividiu seu corpo em três pedaços. A esposa então juntou os pedaços, repetiu o procedimento e o indígena retornou à vida. Na terceira, cortaram seu corpo em muitos pedaços e espalharam-nos, o que fez com que sua família não conseguisse mais ajudá-lo.

Foi assim que Bichiwung morreu e foi para o céu. Seus ajudantes não conseguiram realizar o mesmo trabalho, e o povo começou a esquecer o Hallelujah, que foi resgatado por Abel, o fundador do Hallelujah dos Akawaio.

1.2.1 Análise do mito de Butt Colson

O resumo das duas prováveis origens mitológicas do Areruya dos Ingarikó, retomando as ideias de DaMatta (1970)DAMATTA, Roberto. Mito e antimito entre os Timbira. In: LÉVI-STRAUSS, Claude, CARDOSO de OLIVEIRA, Roberto; MILATTI, Júlio Cezar ; LARAIA, Roque de Barros. Mito e linguagem social - ensaios de Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. sobre os Timbira, pode nos orientar rumo à consideração de que tais discursos são o modo de reação/tradução do contexto particular de colonização. Nelas, acontecimentos pontuais do discurso bíblico, como a existência do céu e do inferno, além de um povo “escolhido” por Deus, passam a pertencer à cosmogonia indígena por meio da criação própria: na perspectiva indígena.

As ações do homem branco obrigaram o indígena a procurar Deus, criar a própria religião e retornar ao seu grupo, ao invés de se unir ao povo não indígena, porque, assim, ficaria cada vez mais distante dos colonizadores. Ele se voltou para sua comunidade e tal retorno foi marcado pela transformação, já que agora havia conquistado novos conhecimentos que garantiriam poder à comunidade.

Como vimos, o mito descrito por Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960. inicia-se com a figura do colonizador prometendo a determinado indígena a revelação da palavra de Deus e afirmando que, se o nativo o acompanhar a um lugar, irá revelar-lhe o que deseja. Nesse contexto, o não indígena não é um amigo, ou melhor, é alguém que se finge amigo, porque promete revelar os segredos da religião mas não o faz, tenta enganar o indígena. Se não houvesse a “traição”, o Hallelujah não estaria em posse dos nativos. Os elementos da história se articulam a elementos da mitologia (Lévi-Strauss, 1987), pois, na perspectiva dos indígenas, as intenções dos colonizadores (missionários ou não) não eram positivas para com eles, desde os primeiros contatos. Mas, mesmo diante da dificuldade, de tanto desejar encontrar a divindade, o indígena chega até Deus e conversa com ele: atinge outro plano e consegue a comunicação desejada, por meios pessoais.

O discurso dos dois mitos sobre o Areruya escolhidos para análise, inscrevem o lugar dos índios e brancos na sociedade ou no mundo. Mais do que um mito de criação que explique o surgimento de ambos, depois do mundo já criado, o mito da origem do Areruya separa os dois povos e propõe uma nova ordem para o mundo já criado. O mito também apresenta a recusa da religião dos brancos, sua não assimilação. A narrativa do Areruya suplementa a história contada pelo branco, pois não recusa sua existência, mas soma-se a ela para estabelecer a diferença que separa. Desse modo, o mundo, terceiro elemento, vai estar sempre modificado por essa afetação.

O ameríndio, então, de acordo com a narrativa, revela suas dúvidas em relação às intenções do “homem branco”, o que é evidenciado pela predileção do Deus pelos nativos, pelo alerta sobre a tentativa dos não indígenas de enganá-los e pela conclusão de que não são confiáveis. A divindade anuncia, desse modo, que vai mostrar-lhe “a palavra” e convida-o para subir ao céu, no Paraíso, para “pegar” Hallelujah. Ao conhecer o Paraíso, ele deseja ficar, mas é informado que só poderia permanecer lá após sua morte, pois ainda não pertencia àquele plano: ele precisava reintegrar-se ao próprio grupo, porém agora em outro patamar, o de xamã ou profeta.

Se a principal justificativa da dominação repousava sobre a afirmação de uma “salvação” necessária, a partir da construção do mito indígena que deu origem ao Areruya Ingarikó, tal mediação deixa de ser indispensável, já que a “revelação” já se realizara. Destarte, inferimos, junto com DaMatta, que,

Nesta diretriz, pode-se dizer que os elementos do mito ultrapassam o nível da fantasia inconsequente, se existe realmente alguma. Muito ao contrário, os elementos ganham uma nova dimensão, representando além de coisas palpáveis e concretas, categorias abstratas e fundamentais, que fazem parte do universo sócio-cosmológico de um determinado grupo tribal (DaMatta, 1970DAMATTA, Roberto. Mito e antimito entre os Timbira. In: LÉVI-STRAUSS, Claude, CARDOSO de OLIVEIRA, Roberto; MILATTI, Júlio Cezar ; LARAIA, Roque de Barros. Mito e linguagem social - ensaios de Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970., p. 102).

Na tradução da religiosidade cristã, a versão Akawaio é anunciada por meio do mito, e este é e será transformado pela história (Viveiros de Castro, 2000VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “‘A história em outros termos’ e ‘Os termos da outra história’”. In: C. A. Ricardo (ed.), Povos Indígenas no Brasil (1996-2000). São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. p. 49-54.), até se tornar a versão do Areruya Ingarikó recolhida por Maria Virgínia Ramos Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019..

Assim, o indígena retorna à aldeia de posse da religião Hallelujah e de alguns papéis, que são “a Bíblia” indígena. Trata-se de reordenar o mundo, em lugar de simplesmente retornar a alguma originalidade, e essa tentativa precisa incluir/excluir o homem branco. Inicia-se, assim, o processo de entre-lugar que utiliza elementos de ambas as culturas para abertura de unidade simbólica do mundo diante dos significantes não brancos: “A ação, ainda quando na forma do deixar acontecer, é sempre indígena, porque a significação o é. Em outras palavras, os brancos só constituem os índios como não-brancos porque foram, antes, constituídos como não-índios por eles” (Viveiros de Castro, 2000VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “‘A história em outros termos’ e ‘Os termos da outra história’”. In: C. A. Ricardo (ed.), Povos Indígenas no Brasil (1996-2000). São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. p. 49-54., p. 37). Nesse sentido, a comunicação de Bichiwung com o sobrenatural explica a diferença entre as duas expressões religiosas e legitima a do não branco.

Dessa forma, entendemos que houve a necessidade dessa supervalorização da própria cultura para resistir de algum modo à dominação:

Para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa medida, mesmo da sua superioridade sobre os outros; é somente em condições de subcomunicação que ela pode produzir algo (Lévi-Strauss, 1978LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Tradução de António Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 1978., p. 34).

Chegando à aldeia, ele permanece dias em casa praticando o Hallelujah somente com sua filha, já que os demais, inicialmente, desconfiam de seu comportamento: a esposa, inclusive, como já vimos, o acusa de incesto. O plano do discurso mitológico está voltado para aspectos da estrutura social a partir do espaço íntimo, particular. O papel social da mulher nesse espaço é colocado e está bem distante da visão ocidental e cristã do gênero feminino, pois ela não é submissa ao homem. Podemos dizer, dessa forma, que havia uma preocupação em preservar a autonomia sobre a constituição da sociedade na formação do mito, uma vez que a

(...) colonização é reconhecidamente causadora de efeitos destrutivos sobre as relações de gênero indígena, o que se estendeu a todas as esferas da sociedade indígena. A organização familiar, a criação das crianças, a vida política e espiritual, o trabalho e as atividades sociais foram todos desordenados por um sistema colonial que posicionava suas próprias mulheres como propriedade dos homens, com papéis que eram principalmente domésticos (Smith, 2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução de Roberto G. Barbosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2018., p. 176).

O mito, por conseguinte, apresentando a perspectiva indígena sobre seu próprio mundo, em que a mulher tem direito de escolha, propõe um sentido próprio e um modo como acontecem as coisas nele (Hugh-Jones, 1988HUGH-JONES, Stephen. The Gun and the Bow: Myths of the White Man and Indians. L’Homme 106-107, 1988. pp. 138-158.). No mito dos Akawaio, descrito pela antropóloga britânica, a filha é orientada pelo pai para o aprendizado do Hallelujah. Ela, como ser em formação, está sob a tutela dos pais e aprendendo sobre o mundo, logo, conhecer Hallelujah ocorre de modo natural.

A mãe, distante do lugar de submissão em relação ao companheiro, ao contrário do que ocorre no modelo colonial branco, tem escolha e inicialmente resiste a acreditar na nova “religião” trazida pelo cônjuge. Preocupada com o sustento da família, vai para a roça cuidar das plantações, cumprir sua função social. Não obstante, o tempo que o pai passa sozinho em casa com a filha produz na mãe a suspeita de incesto, outra característica da estrutura social Akawaio: a proibição do incesto16 16 Não abordaremos aqui a questão da oposição entre natureza e cultura, tão cara à antropologia e por tanto tempo discutida por ela, em relação ao incesto e sua proibição como marca do estado de “cultura”. Isso porque, junto com Lévi-Strauss (2011), entendemos que a dicotomia natureza e cultura entra já na noção do homem ocidental do que é natureza e do que é cultura, ou seja, trata-se de uma criação cultural de onde a natureza já vem apreendida, faz parte da visão daquela. . Como se vê, nessa cultura a mulher não ocupa lugar passivo nem é subjugada.

Dessa forma, filha e mãe protagonizam o espaço de mediação entre o social, o particular e a propagação do Hallelujah para a comunidade, o que ocorre porque é por meio da filha que o pai consegue convencer a mãe, e é depois de ver a família praticando, que a comunidade passa a compreender a função e a importância do Hallelujah: “Logo, o povo Makusi que ouviu Bichiwung e a sua família a pregar, quis obter Hallelujah deles” 17 17 No original: “Soon, the Makusi people who heard Bichiwung and his family preaching, wanted to get Hallelujah from them.” (Butt Colson, 1960BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., p. 8).

Também é a mulher que o traz de volta à vida, em duas das três tentativas de aniquilação do marido pelo seu povo, pela inveja do poder e de suas plantações. O inimigo, a partir de então, toma a figura do Edodo, ou Kanaimà, entidade já conhecida pelos indígenas da região. Há, inclusive, um número considerável de pesquisas sobre o Kanaimà presente na cosmogonia dos povos da região do Monte Roraima. Resumidamente, Kanaimà não é sempre uma pessoa, pode ser uma presença capaz de tomar o corpo de pessoa ou de animal e fazer com que ela cometa atrocidades: algo como um inimigo invisível quando não encarnado. A violência de seus ataques, representada pelo esquartejamento do corpo de Bichuwung também é característica conhecida na região e foi chamada de “xamanismo agressivo” pelo antropólogo Neil Whitehead (2002WHITEHEAD, Neil. L. Dark shamans: Kanaimà and the Poetics of Violent Death. Durham: Duke University Press, 2002., p. 47), que realizou trabalho específico sobre o tema, no qual afirma que, “[c]omo resultado, qualquer atribuição de vingança tornou-se obra do kanaimà, e o discurso nativo pode apontar certamente kanaimà nos casos de morte violenta ou inesperada”18 18 No original: “As a result, any instance of revenge became one of kanaimà, and certainly native discourse might allude to kanaimà in cases of violent or unexpected death.” (p. 42).

Recorrendo às propriedades familiares de sua cosmologia e a elementos trazidos pela religiosidade do colonizador, o mito estrategicamente articula ambos, por meio do espaço do entre-lugar, na medida em que comunica um sentido condizente com os valores do grupo.

No mito, as tentativas de aniquilação de Bichiwung são marcadas a fim de mostrar o caráter extraordinário de sua existência, a potencialidade xamanística de transitar entre os mundos natural e sobrenatural19 19 Marco Antônio Valentim (2018), em uma análise do texto de Viveiros de Castro sobre o corpus mítico Watunna, afirma: “’O potencial’ xamânico atravessa o cosmos de ponta a ponta, confundindo-se com o próprio caráter transformacional dos sujeitos” (p. 172). , administrando o cosmos nos espaços que adentrar,

O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades aloespecíficas, de modo a administrar as relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não humanos como estes se veem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo eles são capazes de voltar pra contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 310)20 20 Para outras análises e reflexões sobre o perspectivismo em Viveiros de Castro, ver Lúcia Sá (2020), Renato Sztutman (2020), Oscar Calavia Saez (2012) e Tânia Stolze Lima (2011). .

Já tendo ido para o céu uma vez, quando conversou com Deus e pegou o Hallelujah, o xamã-profeta resiste às duas tentativas de assassinato com a ajuda do presente da divindade, mas, na terceira, ele acaba morrendo e vai viver no Céu.

O processo de transição entre vida e morte, alcançado via utilização de remédio ou veneno quase mágico, é pertencente às narrativas mitológicas ameríndias e também às do entorno do Monte Roraima. Viveiros de Castro (2020)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., escrevendo sobre algumas noções cosmológicas dos Yawalapíti, povo do Alto Xingu de origem Aruaque, traz afirmações em relação às substâncias que provocam mudança no corpo, as quais vêm ao encontro do que ocorre no mito que estamos analisando. “Esfregar o remédio” e “manchar com remédio” são ações que podem religar a pessoa ao mundo; “consiste dominante mas não exclusivamente em um conjunto de intervenções sobre as substâncias que conectam o corpo ao mundo (...): fluidos vitais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e tinturas vegetais” (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 63).

Como vimos, depois da morte de Bichiwung, o povo começou a esquecer o Areruya, “Então, Abel, o fundador do Hallelujah dos Akawaio, veio e encontrou as palavras certas e deu às pessoas um bom Hallelujah”21 21 “Then Abel, the founder of Akawaio Hallelujah, came and found the right words and gave people good Hallelujah.” (Butt Colson, 1960BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., p. 9).

A partir do momento em que “dominam” o Hallelujah, os Akawaio organizam-se de acordo com as crenças reveladas por ele. As noções de vida eterna e de Paraíso tornam-se fator determinante da cosmogonia, e, sem perder suas qualidades, a vida diária dos indivíduos passa a girar em torno dos ritos que fazem parte da prática do Hallelujah.

Entendemos que esses espaços discursivos de entre-lugar, de tentativa de interpretação e de tradução a partir da estranheza trazida pelo outro articulando o social, o psíquico e o sagrado, produziram imagens que tentam se “encaixar”, não sem criar deslocamentos. A partir do contato com os conquistadores, as temporalidades se desconstroem e os eventos relativos aos antepassados míticos se tornam mais importantes do que o que ocorreu antes deles. E isso ocorre na medida em que está presente a necessidade latente de equilíbrio entre as forças, de reorganização das crenças e dos mitos. Destarte, o terreno para criação dos mitos que explicam o Areruya é constituído agregando valores do dia a dia em articulações interpessoais e coletivas a partir da defrontação com a realidade vigente.

1.3 Versão de Amaral

A versão da narrativa de Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019. foi recolhida entre os anos de 2014 e 2017. Segundo a autora, consiste em uma síntese de seis versões que conheceu em variadas circunstâncias. Vamos ao resumo dessas seis versões e à posterior análise.

De acordo com a versão compilada entre os Ingarikó, a religião Areruya sobreveio com o indígena Pirakoman, um xamã que praticava o Areruya somente com a participação da sogra e da irmã mais nova da esposa. Ele convivia com Noé, o criador da Bíblia dos brancos. Noé tinha dinheiro e era acompanhado de muitos seguidores, ao contrário de Pirakoman, que “era feio, com a pele cheia de feridas, sua mulher não lhe dava atenção e vivia namorando com Noé. Mas ele não se importava, só queria praticar Areruya e ir para a roça” (Amaral, 2019AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019., p. 142). Noé não trabalhava na roça, ele e a esposa do indígena roubavam da roça de Pirakoman, que era abundante. Um dia o casal de amantes fugiu.

Pirakoman, quando ia para a roça, tirava sua pele feia e cheia de feridas e se tornava um homem bonito, mas quando deixava o lugar, vestia-a novamente, e ninguém sabia da transformação. E a roça era tão próspera, que alguns diziam que ela se fazia sozinha, com a ajuda de anjos.

Um dia Pirakoman subiu ao Paraíso com a sogra e a cunhada, levado pelo Areruya. “As feridas eram seus antigos pecados. Ele havia trocado de pele e subiu sem morrer, tornou-se imortal” (p. 143). Depois de encontrar Deus no céu, provocou o dilúvio.

Noé foi orientado a construir um barco para colocar animais, além da ex-esposa de Pirakoman. Depois da água baixar, os animais se espalharam e o barco encalhou em algum lugar. Eles não subiram para o céu.

1.3.1 Análise da versão de Amaral

Como já mencionado em nossa perspectiva do mito, sua disposição a frequentes alterações lhe propiciaram acompanhar os movimentos do contexto no qual está inserido. Elementos do contexto são incluídos e promovem transformações nas narrativas. Em vista disso, podemos dizer que o mito registrado por Maria Virgínia do Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019. entre os Ingarikó, aproximadamente sessenta anos depois de sua primeira descrição por antropólogo, trata da origem do Areruya, mas agora já estabelecendo outras relações entre brancos e indígenas.

Na versão de Butt Colson podemos dizer que “a referência ao Povo Branco se restringe a um ciclo mitológico”22 22 “(…) reference to White People is restricted to one mythological cycle”. A afirmação está presente na análise que o antropólogo britânico Stephen Hugh-Jones (1988) fez sobre a aparição dos brancos nos gêneros narrativos dos Barasana e demais grupos Tukano originários do noroeste da Amazônia colombiana, região de Vaupés. Utilizamos tal constatação para nossas análises porque, em comparação com o conjunto de mitos descrito por Amaral (2019), naqueles descritos por Butt Colson (1960) o homem branco aparece somente no início da narrativa: após o retorno ao mundo terrestre, não há mais nenhuma menção a qualquer tipo de relação com o colonizador. Já no mito mais recente, o branco está presente em todos os momentos. (Hugh-Jones, 1988HUGH-JONES, Stephen. The Gun and the Bow: Myths of the White Man and Indians. L’Homme 106-107, 1988. pp. 138-158., p. 138), uma vez que, por causa das relações que se estabeleceram entre estes e os indígenas (imposição, exploração, violência e transmissão de doenças), além do pensamento corrente de a cultura indígena ser bárbara e inferior23 23 A imagem do indígina como inconstante, difícil e intratável esteve presente por toda literatura religiosa do Brasil, gente “a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo” (Vieira, 2001, p. 422). , os brancos são suprimidos da ordem de intercâmbio matrimonial e comercial. Assim, sua presença estaria somente na primeira parte, antes da ida de Bichiwung ao céu.

E, se nos mitos os seres e as ações são modelos e motivos daquilo que precisa ocorrer no presente (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 57), podemos dizer que, na transcrição da antropóloga brasileira, a presença constante do colonizador com sua religiosidade, sugere período de contato contínuo: o mito mais recente configura o cenário, arrisco dizer, contemporâneo dessa presença do outro24 24 Bethania Assy e Rafael Rolo (2019), ao analisar o padrão do pensamento indígena, com base em Viveiros de Castro, defendem que este possui um tom descolonizador, uma vez que “procura projetar algo de si mesmo desde o ponto de vista de um outro” (p. 2379). Dessa forma, a introdução do não indígena no mito Ingarikó na forma de subjetividade indesejada se torna possível porque, na estrutura de pensamento do grupo indígena, ocupar o ponto de vista do colonizador torna possível “a assimilação das narrativas míticas responsáveis pela constituição do socius ameríndio, sempre em contraponto a uma exterioridade” (p. 2388), reformulando-as. . Nesse contato, o branco continua como figura não afim.

Na narrativa recolhida entre os Ingarikó, o homem branco é Noé, que tinha dinheiro, muitos seguidores, uma amante, roubava da roça de Pirakoman, não trabalhava, era desorientado, inseguro, não subiu para o céu e “fez riscos dizendo que aquelas eram palavras escritas por Deus. Foi assim que surgiu a escrita. E também a diferença das religiões, a da Bíblia e a do Areruya” (Amaral, 2019AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019., p. 144). Já Pirakoman, o indígena - dado que era orientado por Deus - sempre fazia a coisa certa: acolheu a sogra e a cunhada, não teve raiva de Nóe, praticava Areruya, tinha sua roça, “era dono de muitos alimentos que os Kapon conheciam hoje: mandioca, batata-doce, abóbora etc. Todos eles surgiram com Pîraikoman. Por isso, no canto de Areruya é mestre dos alimentos cultivados” (p. 142). Ele, conforme já dissemos, subiu para céu, encontrou Deus e tornou-se imortal.

Ao analisarmos essa narrativa, podemos dizer que as complexidades estão sintetizadas, acontecimentos reais estão eclipsados e os sujeitos, substituídos por grupos unitários - brancos com características tipificadas e que contrastam com as dos indígenas, igualmente estereotipados (Hugh-Jones, 1988HUGH-JONES, Stephen. The Gun and the Bow: Myths of the White Man and Indians. L’Homme 106-107, 1988. pp. 138-158., p. 140). Noé, representando os brancos, tem dinheiro, mas não é confiável, porque trai e engana. Pirakoman, modelo de xamã, é identificado como Cristo, o filho de Deus da religião do outro. As cosmologias estão em negociação e as articulações propostas pelo entre-lugar possibilitam ao indígena (re)apropriar-se de seu mundo. Nessa cadeia de identificação com o grupo, ele retoma a integridade em movimento por meio da mudança dos lugares. Assim, no entre-lugar a identidade, individual ou coletiva,

é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem. A demanda da identificação - isto é, ser para o outro - implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da alteridade. A identificação, (...) é sempre o retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem (Bhabha, 2001BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p. 76).

Na narrativa mitológica, as identidades coletivas - de Pirakoman e de Noé - se ligam pelo contexto, mas se desligam ideologicamente, pois cada uma toma como referência seu mito originário: a Bíblia e o Areruya, respectivamente, sendo a primeira, na mitologia indígena, um conjunto de rabiscos falsos. Outro traço importante do mito é a valorização das plantas cultivadas e dos poderes xamânicos em detrimento do dinheiro e do número de seguidores.

Podemos dizer, desse modo, que as articulações no processo de entre-lugar, resultado de um sucessivo embate cultural que obriga a buscar assimilação e analogia (Wagner, 2010WAGNER, Roy. A cultura como criatividade. In: WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010., p. 67), produzem essa antropologia reversa. Segundo o autor, a perspectiva relacional antecede os elementos relacionados, por isso é importante analisar o modo como os nativos (re)apresentam criativamente a presença do branco entre eles, uma vez que, sem essa perspectiva, o pensamento do pesquisador será etnocêntrico,

[u]ma antropologia que se recusa a aceitar a universalidade da mediação, que reduz o significado a crença, dogma e certeza, será levada à armadilha de ter de acreditar ou nos significados nativos ou nos nossos próprios. A primeira alternativa, dizem-nos, é supersticiosa e não objetiva; a segunda, de acordo com alguns, é ‘ciência’. E, todavia, esse tipo de ciência pode facilmente degenerar em uma forma de discurso indireto, em um modo de fazer afirmações provocativas traduzindo idiomas em fatos e superexoticizando os objetos de pesquisa em prol do efeito simbólico. Isso é possível porque a antropologia sempre é necessariamente mediadora, esteja ou não consciente das implicações disso; a cultura, como o termo mediador, é uma maneira de descrever outros como descreveríamos a nós mesmos, e vice-versa (Wagner, 2010WAGNER, Roy. A cultura como criatividade. In: WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010., p. 66).

A mediação, engendrada pelos deslizamentos do entre-lugar, negocia as significações que não circunscrevem o mito, mas estão dentro dele, e só podem ser observadas em suas dimensões sociais. Uma interação crítica e fecunda de criação que aponta para a releitura dos próprios não indígenas sobre si mesmos. Destarte, entendemos que os ingarikós tornam-se também autoridades na produção de sentido ao construírem os mitos sobre a origem do Areruya25 25 Fernanda Ribeiro Amaro (2020), em artigo sobre a antropologia reversa, defende que a obra A queda do céu, de Davi Kopenawa (2015), abre “um campo conceitual para se pensar a viagem ameríndia e seus desdobramentos na formulação de um conhecimento sobre nós, caraíbas, pelo qual possamos nos autorreferenciar e rever nossos posicionamentos diante de nossos pares e nossa relação com o meio” (p. 104), teorizando e produzindo sentidos sobre a própria cultura e sobre a do colonizador. Sobre a antropologia reversa, ver também Maria Virgínia do Amaral (2022). .

Na perspectiva do mito narrado pelos Ingarikó, os valores dos nativos se sobrepõem hierarquicamente aos dos forasteiros. Os valores indígenas, relacionados mais à divisão do que ao acúmulo, mais ao estabelecimento de alianças do que à exploração, mais à justeza dos acordos do que ao proveito próprio, indicavam sua superioridade em relação àqueles que sequer entendiam a relação entre o homem e a natureza.

Hugh-Jones (1988)HUGH-JONES, Stephen. The Gun and the Bow: Myths of the White Man and Indians. L’Homme 106-107, 1988. pp. 138-158., sobre a presença do branco nos mitos Barasana, traz outras considerações que podemos utilizar para o mito aqui analisado. Segundo o autor, os indígenas, a partir da imposição da aprendizagem da religião do colonizador, acabam por encontrar ressonâncias de suas próprias concepções e, a partir disso, selecionam, interpretam e organizam tais elementos com um molde pré-existente, de acordo com “seus próprios valores específicos” (1988, p. 149). No viés da contribuição da herança recebida de outros povos, como fica exposto na elaboração do mito, a cultura, a expressão religiosa dos brancos surge para ser articulada. Nesse caminho, introduz-se numa organização de diferenças que torna a sociedade possível, ao mesmo tempo em que estereotipa o branco e forma uma visão negativa dele.

A importância do discurso dos mitos que rearticulam os eventos no contato ou choque cultural com o colonizador reside no fato de os povos indígenas realizarem a antropologia reversa. Nossa hipótese aponta que, por meio do que chamamos neste estudo de trabalho de articulação do entre-lugar, os povos indígenas do entorno do Monte Roraima construíram a argumentação sobre seu lugar no mundo retomando, por meio da narrativa mitológica, um tempo pré-colonização, quando o mundo era totalmente engendrado por eles. Ao invés de se verem denominados pelos outros, criaram um modo de se autodeterminar para não terem seus discursos cosmológicos negados em sua totalidade e ao mesmo tempo negociar os elementos trazidos pelo colonizador na perspectiva relacional oriunda da visão de mundo à qual o todo está interligado.

Nessa “dimensão extra da realidade” (Hugh-Jones, 1988HUGH-JONES, Stephen. The Gun and the Bow: Myths of the White Man and Indians. L’Homme 106-107, 1988. pp. 138-158.), os mitos de origem do Areruya elencados aqui contam sua própria história sobre o mundo. Nesse discurso cosmogônico, as ideias indígenas e sua interpretação desafiam a missão colonizadora e, ao reivindicarem uma voz, podem reafirmar sua identidade, reconectar-se e reorganizar os modos de conhecer o mundo.

Considerações finais: Areruya como estratégia de descolonização

A religião Areruya praticada atualmente pelos Ingarikó chamou-nos a atenção, e, logo depois, também a tese da antropóloga Maria Virgínia do Amaral - que conheci pessoalmente, uma vez que estivemos na aldeia Manalai concomitantemente. Ambos me instigaram a pensar na perspectiva discursiva desses cantos e mitos. Uma perspectiva que investigasse tais construções como modo de autoderminação perante a representação hegemônica da cultura e do mundo. Como o trabalho com os cantos e mitos se mostrou extremamente complexo para um artigo, decidi focar aqui os dois mitos principais sobre a origem do Areruya dos Ingarikó.

Nesse caminho, ideias desenvolvidas pela antropologia lançaram novas luzes sobre o material a ser submetido à reflexão. O perspectivismo ameríndio descrito por Viveiros de Castro (2020)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., que assinala, principalmente, a ideia de perspectivas móveis, em que a situação de quem vê, define a si e ao outro, aponta a existência de diferentes modos de ver determinado fenômeno, objeto ou sujeito: o mundo é percebido e compreendido segundo o ponto de vista que o está apreendendo.

É uma percepção que desconstrói o modo de pensar dicotômico ocidental de fixidez de conceitos e identidades e coloca em cena uma razão em que a troca e a diferença, não a identidade, são os princípios indispensáveis (Viveiros de Castro, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 178). Importa mais a conexão entre os elementos no momento e na situação do contato, do que o lugar fixo que cada um ocupa, pois “trata-se do potencial dinâmico, transformador de todo campo de relações dentro do qual seres de todos os tipos mais ou menos semelhantes a pessoas ou coisas, continuam e reciprocamente trazem uns aos outros à existência” (Ingold, 2015INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Tradução de Fabio Creder. Petrópolis: Vozes 2015., p. 116).

Ao apontar as experiências históricas, os embates, as negociações e possíveis soluções criativas, os mitos sobre a origem do Areruya sugerem outra visão de mundo para além daquela do colonizador. Propõem a antropologia reversa e colocam o não indígena como sujeito não confiável e não afim, mas nem por isso há prerrogativa de dominação, qualquer que seja, sobre esse outro, apenas a separação espacial e social entre os grupos. O que ocorre porque, em ambos os mitos analisados aqui, o branco surge como desonesto e injusto: características que o tornam incapaz de viver junto ao grupo indígena.

Dessa forma, o discurso da construção do mito fomenta ponto de vista no qual natureza, cultura e sobrenatural estão imbricados, ordenando um mundo de natureza humana em que os seres devem conviver para que essa interligação não seja rompida. Para tanto, as ideias expressas pelos mitos de origem Akawaio e Ingarikó sugerem relacionamentos diferenciados entre os indígenas e os não indígenas, apontando para um redimensionamento em nossa própria visão, não indígena, de mundo.

  • 1
    Dados sobre as terras e populações indígenas de Roraima obtidos por meio do site oficial da Funai, disponível em: http://www.funai.gov.br. Acesso em: 21/02/2022.
  • 2
    Utilizamos o termo religião porque, em primeiro lugar, os Ingarikó o utilizam, e em segundo lugar, porque Areruya foi oficializada, na Guiana, como membro da Guyana Council of Churches em 1977 (Goodrich, 2003GOODRCH, Derek. Old-style Missionary - The Ministry of John Dorman, Priest in Guyana. East Harling, Northfolk, England: Taverner Publications, 2003.).
  • 3
    Todas as traduções de citações em língua estrangeira são minhas.
  • 4
    A autora utiliza esse termo em referência a Areruya. Por isso, quando me referir ao artigo “The Bird of a Religion” (Butt Colson, 1960BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960.), utilizarei a mesma forma que ela.
  • 5
    Segundo Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960., Abel foi profeta responsável pela fundação do Hallelujah entre os Akawaio. (p. 78).
  • 6
    “(…) a glorious mixture of traditional beliefs and items of imperfectly understood Christian teaching”.
  • 7
    A expressão “pensamento infantil” tem origem no período posterior à chegada dos colonizadores, quando os padres entendiam e defendiam a necessária orientação aos indígenas, porque estes não possuíam maturidade para o pensamento “adulto”: “Quase um século depois de Vitória entregar The Indis, o Franciscano Juan de Silva explicou nos mesmos termos aristotélicos que Vitória havia empregado que os índios ainda eram incapazes de compreender o mundo natural ou a ordem moral (...). Para Vitória e outros como Silva, que o seguiram em sua formação intelectual, a relação do índio com seu mestre só podia ser interpretada como paternalista. A mente do índio era tão completa quanto a de seu mestre; mas por ter permanecido tanto tempo na escuridão da infidelidade e sob o domínio de uma religião brutal e diabólica, suas faculdades racionais ainda eram imaturas” (Pagden, 1982PAGDEN, Anthony. The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins of Comparative Ethnology. New York: Cambridge University Press, 1982., p. 104) [Nearly a century after Vitoria delivered The Indis, the Franciscan Juan de Silva explained in the same Aristotelian terms as Vitoria had employed that the Indians were still imcapable of untherstanding either the natural world or the moral order (...). For Vitoria and those like Silva who followed in his intellectual train, the relationship between the Indian and his master could only be construed as paternalistic. The Indian’s mind was as complete as that of his master; but because it had remained so long in the darkness of infidelity an under the sway of a brutal and diabolic religion, its rational faculties were still immature].
  • 8
    Um pensamento descolonizador compreende as culturas sem o viés da superioridade e inferioridade, além de abarcar o pensamento do outro, sua razão, inserindo-a no mundo “real”, (Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: opção descolonial e o significado de identidade em política. Tradução de Ângela Lopes Norte. Cadernos de letras da UFF- Dossiê: literatura, língua, e identidade, nº 34, p. 287-324, 2008., p. 290).
  • 9
    Para novas interpretações e discussões sobre o mito em Lévi-Strauss, ver Aparecida Vilaça (2008)VILAÇA, Aparecida. Conversão, Predação e Perspectiva. In: Mana. Vol.14, 2008, p.173-204. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000100007.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200800...
    , Marcel Mano (2012)MANO, Marcel. Sobre as penas do gavião mítico: história e cultura entre os Kayapó. Campo Grande, MS: Tellus, n. 22, p. 133-154, jan/jul. 2012. Disponível em: https://www.tellus.ucdb.br/tellus/article/view/277. Acesso em 07 setembro, 2023.
    https://www.tellus.ucdb.br/tellus/articl...
    , Artionka Capiberibe (2017)CAPIBERIBE, Artionka. A língua franca do suprassensível: sobre xamanismo, cristianismo e transformação. Mana. vol.23, n.2, p. 311-40, 2017. DOI http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442017v23n2p311.
    http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442017v...
    e Odair Giraldin e Cassiano Apinagé (2019GIRALDIN, Odair; APINAGÉ, Cassiano Sotero. Perspectivas históricas sob a perspectiva dos Apinaje. Tellus, [S. l.], v. 19, n. 38, p. 237-288, 2019. DOI: https://doi.org/10.20435/tellus.v19i38.547.
    https://doi.org/10.20435/tellus.v19i38.5...
    ).
  • 10
    Como veremos na análise dos mitos escolhidos, nossa concepção de xamanismo entende, junto com Viveiros de Castro (2020)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020., que este seria a disposição presente em certos seres de cruzar as limitações corporais e adquirir a perspectiva de outras subjetividades. (p. 310).
  • 11
    “Bichiwung” é só um dos vários nomes possíveis para o fundador do Hallelujah, pois o nome varia de acordo com a versão.
  • 12
    No original: “Before going, they told him that he must stay in the one place and look after the house and the great wealth which was in it and go nowhere else. Left on his own Bichiwung felt sad and lonely. He thought, and he wondered why he had been told to stay in one place. It was at this time that ‘he saw God and got Hallelujah’.”
  • 13
    No original: “God spoke to him and said that the white people were deceiving him and that it was Hallelujah which was good.”
  • 14
    No original: “Bichiwung returned to the parson’s house taking the things that God had given him and remembering what God had told him about the white man’s deceitful teaching and about Hallelujah being good. ‘Through that he left off what the white man had told him and he stopped reading the book. Instead, he took Hallelujah, which he had got on his own, from God’.”
  • 15
    Edodo, como veremos, é uma entidade que pratica o mal e pode assumir o corpo de homem ou animal.
  • 16
    Não abordaremos aqui a questão da oposição entre natureza e cultura, tão cara à antropologia e por tanto tempo discutida por ela, em relação ao incesto e sua proibição como marca do estado de “cultura”. Isso porque, junto com Lévi-Strauss (2011), entendemos que a dicotomia natureza e cultura entra já na noção do homem ocidental do que é natureza e do que é cultura, ou seja, trata-se de uma criação cultural de onde a natureza já vem apreendida, faz parte da visão daquela.
  • 17
    No original: “Soon, the Makusi people who heard Bichiwung and his family preaching, wanted to get Hallelujah from them.”
  • 18
    No original: “As a result, any instance of revenge became one of kanaimà, and certainly native discourse might allude to kanaimà in cases of violent or unexpected death.”
  • 19
    Marco Antônio Valentim (2018)VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., em uma análise do texto de Viveiros de Castro sobre o corpus mítico Watunna, afirma: “’O potencial’ xamânico atravessa o cosmos de ponta a ponta, confundindo-se com o próprio caráter transformacional dos sujeitos” (p. 172).
  • 20
    Para outras análises e reflexões sobre o perspectivismo em Viveiros de Castro, ver Lúcia Sá (2020)SÁ, Lúcia de. Histórias sem fim: perspectivismo e forma narrativa na literatura indígena da Amazônia, Itinerários, Araraquara, n. 51, 2020. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/14702/10292. Acesso em 05 de setembro, 2023.
    https://periodicos.fclar.unesp.br/itiner...
    , Renato Sztutman (2020)SZTUTMAN, Renato. Perspectivismo contra o Estado. Uma política do conceito em busca de um novo conceito de política. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 63, n. 1, p. 185 - 213, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2020.169177 .
    http://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra....
    , Oscar Calavia Saez (2012CALAVIA SÁEZ, Oscar. Do perspectivismo ameríndio ao índio real. Campos - Revista de Antropologia, [S.l.], v. 13, n. 2, p. 7-23, dez. 2012. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/cam.v13i2.36728.
    http://dx.doi.org/10.5380/cam.v13i2.3672...
    ) e Tânia Stolze Lima (2011)LIMA, Tânia Stolze. Por uma cartografia do poder e da diferença nas cosmopolíticas ameríndias. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 54, n. 2, 2011. DOI: https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2011.39641.
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    .
  • 21
    “Then Abel, the founder of Akawaio Hallelujah, came and found the right words and gave people good Hallelujah.”
  • 22
    “(…) reference to White People is restricted to one mythological cycle”. A afirmação está presente na análise que o antropólogo britânico Stephen Hugh-Jones (1988)HUGH-JONES, Stephen. The Gun and the Bow: Myths of the White Man and Indians. L’Homme 106-107, 1988. pp. 138-158. fez sobre a aparição dos brancos nos gêneros narrativos dos Barasana e demais grupos Tukano originários do noroeste da Amazônia colombiana, região de Vaupés. Utilizamos tal constatação para nossas análises porque, em comparação com o conjunto de mitos descrito por Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019., naqueles descritos por Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960. o homem branco aparece somente no início da narrativa: após o retorno ao mundo terrestre, não há mais nenhuma menção a qualquer tipo de relação com o colonizador. Já no mito mais recente, o branco está presente em todos os momentos.
  • 23
    A imagem do indígina como inconstante, difícil e intratável esteve presente por toda literatura religiosa do Brasil, gente “a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo” (Vieira, 2001VIEIRA, Antônio. Sermões. Org. de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001, Vol. 2., p. 422).
  • 24
    Bethania Assy e Rafael Rolo (2019ASSY, Bethania e ROLO, Rafael. A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do outro: notas a uma Antropofilosofia Decolonial em Viveiros de Castro, Rev. Direito Práxis, v. 10, n. 4, p. 2367-2398, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/37973.
    https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/3...
    ), ao analisar o padrão do pensamento indígena, com base em Viveiros de Castro, defendem que este possui um tom descolonizador, uma vez que “procura projetar algo de si mesmo desde o ponto de vista de um outro” (p. 2379). Dessa forma, a introdução do não indígena no mito Ingarikó na forma de subjetividade indesejada se torna possível porque, na estrutura de pensamento do grupo indígena, ocupar o ponto de vista do colonizador torna possível “a assimilação das narrativas míticas responsáveis pela constituição do socius ameríndio, sempre em contraponto a uma exterioridade” (p. 2388), reformulando-as.
  • 25
    Fernanda Ribeiro Amaro (2020)AMARO, Fernanda Ribeiro. A viagem do outro: antropologia reversa em A queda do céu. Revista Landa. Vol 8, n2, 2020, p. 95-111. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209084. Acesso em 3 de setembro, 2023.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    , em artigo sobre a antropologia reversa, defende que a obra A queda do céu, de Davi Kopenawa (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), abre “um campo conceitual para se pensar a viagem ameríndia e seus desdobramentos na formulação de um conhecimento sobre nós, caraíbas, pelo qual possamos nos autorreferenciar e rever nossos posicionamentos diante de nossos pares e nossa relação com o meio” (p. 104), teorizando e produzindo sentidos sobre a própria cultura e sobre a do colonizador. Sobre a antropologia reversa, ver também Maria Virgínia do Amaral (2022)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Entre a distração e o esquecimento: a colonização na fronteira Brasil-Guiana segundo leituras históricas e míticas. Mana. Vol.28, n2, 2022, p. 1-34..
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Entre a distração e o esquecimento: a colonização na fronteira Brasil-Guiana segundo leituras históricas e míticas. Mana Vol.28, n2, 2022, p. 1-34.
  • AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019.
  • AMARO, Fernanda Ribeiro. A viagem do outro: antropologia reversa em A queda do céu. Revista Landa Vol 8, n2, 2020, p. 95-111. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209084 Acesso em 3 de setembro, 2023.
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  • WHITEHEAD, Neil. L. Dark shamans: Kanaimà and the Poetics of Violent Death Durham: Duke University Press, 2002.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O parecer é favorável à publicação. O texto está bem fundamentado, bem escrito e aborda o tema de forma interessante. No entanto, aponto algumas restrições que devem ser corrigidas para que o artigo seja publicado: 1. Em geral, não se usa o termo religião para povos indígenas. Deve-se justificar porque religião Areruya e o uso da inicial maiúscula para o ritual; 2- Uma coisa é religião, outro é ritual. Isso precisa ser bem definido; 3- Sugere-se a elaboração de um quadro comparativo entre os dois relatos, os de Audrey Butt Colson (1960)BUTT COLSON, Audrey. The Birth of a Religion. Journal of the Royal Anthropological of Great Britain and Ireland, Vol. 90, No. 1, 1960. pp. 66-106, jan-jun, 1960. na década de 1950 e o de Maria Virgínia do Amaral (2019)AMARAL, Maria Virgínia Ramos. Os Ingarikó e a religião Areruya. Tese de Doutorado. UFRJ/MN, Rio de Janeiro, Brasil, 2019.; 4- O autor ou autora deve abordar no texto, a limitação do método, e da análise do discurso, para analisar uma prática cúltica indígena. Há críticas de antropólogos ao método estruturalista, e outros, que tomam apenas o discurso e deixam de lado a performance, os contextos nos quais o discurso é feito, quem pode discursar, quando se pode discursar etc. APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    31 Maio 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

Para fins de elaboração de parecer ao artigo "Mito e religião na tríplice fronteira Roraima, Guiana e Venezuela: o Areruya e o entre-lugar", gostaria de observar os seguintes aspectos: A submissão apresenta adequação do título a seu conteúdo haja vista a centralidade de um conceito de mito para compreender as dimensões do Hallelujah na comunidade Ingarikó, comparativamente a outras versões possíveis recolhidas entre nações habitantes da região de tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. A busca por um delineamento de um conceito de mito encontra amparo, igualmente, nas fontes primárias e secundárias constantes na bibliografia do texto submetido. Quanto a uma explicitação do objetivo do trabalho, bem executada tanto no resumo quanto na introdução do texto ora submetido, consideramos que a coerência de seu desenvolvimento, no texto, se relaciona com uma dedicação maior a uma explicitação do mito sob bases estruturalistas (desde, sobretudo, as citações e comentários a Lévi-Strauss e DaMatta, por exemplo) do que a uma exploração de referências mais contemporâneas sobre o tema. Melhor dito: ainda que constem referências contemporâneas sobre os Ingarikó; e a despeito de um esforço de construir a interpretação dos relatos recolhidos na perspectiva do entre-lugar (conforme o preconiza Bhabha, em O local da cultura); o trabalho de análise, por vezes, mais afirma do que argumenta efetivamente em prol dos deslizamentos semânticos próprios ao entre-lugar, nas narrativas recolhidas, demonstrando uma necessidade de mais alguns passos argumentativos, de mais um período de maturação das categorias de análise para, efetivamente, discutir os deslizamentos semânticos observáveis nas dimensões do Hallelujah na comunidade Ingarikó, comparativamente a suas outras versões possíveis.

Sobre as referências utilizadas na confecção do texto ora submetido, cumpre ressaltar ponto anteriormente esboçado, a saber, uma dedicação maior a uma explicitação do mito sob bases estruturalistas (desde, sobretudo, as citações e comentários a Lévi-Strauss e DaMatta, por exemplo) do que a uma exploração de referências mais contemporâneas sobre o tema. Suplementando o ponto, caberia, ainda, destacar o quanto o texto tem a ganhar, em qualidade, com o acréscimo de referências contemporâneas habilitadas a discutir e enriquecer as citações às fontes primárias e secundárias ora constantes: por exemplo, interpretações contemporâneas do mito, em Lévi-Strauss; interpretações contemporâneas do entre-lugar, em Bhabha; comentários e apropriações às teses de Viveiros de Castro citadas no texto - para nos limitar a três referências fundamentais ao argumento, em seu estado atual. Por sua vez, uma das grandes virtudes do texto repousa, precisamente, em como demonstra conhecimento atualizado da bibliografia relevante seja sobre os Ingarikó, seja sobre nações contíguas e a hipótese de um tronco linguístico comum a elas. Em favor da originalidade da reflexão e contribuição para o campo de conhecimento, potencialmente apresentadas no texto ora submetido; e em consonância às observações anteriores; talvez, um maior comentário e apropriação às citações de Wagner, na página 20, forneça alguns dos elementos [ainda] faltantes a uma melhor apresentação de resultados parciais da pesquisa em andamento, naquilo que as(os) articulistas buscam se aproximar de uma antropologia reversa. Caso a longa citação a Wagner, sem comentários e apropriação, efetuada na nota de rodapé 19, constasse integrada ao texto, acrescida de a) comentário e apropriação ao ponto do artigo; e, caso possível, b) nota de rodapé invocando a referências contemporâneas sobre Wagner; a originalidade da reflexão e contribuição para o campo de conhecimento, nos termos apresentados pelo texto ora submetido, teria muito a avançar. Por fim, o texto apresenta clareza, correção e adequação da linguagem a um trabalho científico em desenvolvimento, ao qual se aplicam as observações e sugestões acima expostas. APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar
  • Parecer editorial

    Solicitamos aos autores que leiam atentamente os comentários e observações dos dois pareceristas, reflitam sobre eles, e os incorporem ao texto (ou justifiquem sua não concordância com eles em espaço adequado), reescrevendo o artigo e enviando-o novamente para avaliação até 15 de agosto de 2023.

Histórico

  • Parecer recebido em
    23 Jul 2023

Parecer III

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Parecer III

Haja vista se tratar de um segundo envio do mesmo artigo, gostaria de me limitar a uma demonstração de aquiescência e de satisfação com a segunda versão, ora reenviada pelas(os) articulistas, naquilo que ela busca atender a minhas observações, apontamentos e solicitações à primeira versão do presente texto, a mim enviada para emissão de parecer.

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    24 Ago 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2023
  • Aceito
    18 Out 2023
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