Acessibilidade / Reportar erro

Figurações da ressurreição em O pai da menina morta, de Tiago Ferro

RESUMO

Este artigo propõe uma leitura do romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, vinculada à temática da ressurreição cristã materializada no Evangelho segundo João. Os episódios bíblicos acerca da ressurreição de Lázaro e de Jesus Cristo são postos em diálogo com a narrativa do autor brasileiro, bem como os símbolos dessa temática condizentes ao pelicano e à própria celebração da Páscoa cristã, figuras pertencentes à ossatura da obra em exame. As análises postas em discussão promovem o entendimento de que Tiago Ferro, ao indicar o discurso religioso, refrata-o à constituição de sua voz narrativa, realocando-o ao nível secular, profano, próprio da condição humana. A fundamentação teórica que sustenta a leitura deste trabalho destaca-se nas contribuições de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, de Frederico Lourenço, de Northrop Frye, dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE:
Tiago Ferro; O pai da menina morta; Bíblia e Literatura; Literatura Comparada

ABSTRACT

This article proposes a reading of the novel O pai da menina morta [Dead Girl’s Father], by Tiago Ferro, linked to the theme of Christian resurrection materialized in the Gospel according to John. The biblical episodes about the resurrection of Lazarus and Jesus Christ are placed in dialogue with the narrative of the Brazilian author, as well as the symbolisms regarding the pelican and the celebration of Christian Easter, figures belonging to the structure of the work under examination. The analyses put in discussion promote the understanding that Tiago Ferro, when indicating the religious discourse, refracts it to the constitution of his narrative voice, relocating it to the secular, profane level, typical of the human condition. The theoretical foundation working as a support for the reading of this work stands out in the contributions of the Circle of Mikhail Bakhtin, Frederico Lourenço, Northrop Frye, among others.

KEYWORDS:
Tiago Ferro; O pai da menina morta; Bible and Literature; Comparative Literature

[minhafilha.doc]

NÃO QUERO MORRER

4/2011 - Eu não quero morrer.

Depois que a gente morre, pode voltar?

Silêncio.

Tiago Ferro

[lista]

Do que não vai dar para fazer neste livro:

Trazer a Minha Filha de volta à vida.

Tiago Ferro 1 1 O pai da menina morta, 2018, p. 23; p. 35.

Introdução

No clássico O grande código: a Bíblia e a literatura, Northrop Frye, sob o prisma da crítica literária, delineia a importância cultural que a Bíblia promoveu ao longo do tempo, sinalizando a autoridade que o texto, sob a perspectiva sagrada, exerceu e exerce no Ocidente. Para além dessa fulgência sagrada, o crítico apresenta posicionamentos interpretativos acerca do texto bíblico no âmbito racional, discursivo, literário, foco do seu estudo. Segundo o autor, todos os esquemas narrativos conhecidos na literatura e na arte ocidental não são senão variações de enredos bíblicos, uma vez que “[a] Bíblia, claramente, é um elemento essencial de nossa própria tradição imaginativa, não importa o que pensamos acreditar a respeito dela” (Frye, 2021FRYE, Northrop. O grande código: a Bíblia e a literatura. Tradução de Marcio Stockler. Campinas: Sétimo Selo, 2021., p. 20).

A afirmação que Frye faz dialoga e recupera os postulados de Eric Auerbach, segundo o qual “[…] nem a arte de Cervantes e do teatro espanhol, nem a de Shakespeare, para citar somente os exemplos mais conhecidos, poderiam ter sido imaginadas sem [… a] concepção realista do homem trágico, que é de origem cristã” (Auerbach, 2015AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução de José Paulo Paes. Posfácio de Marcus Mazzari. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 96).

Fiada nessa perspectiva dialógica, “centro organizador de qualquer enunciado” (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. [1929]. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 216)2 2 “O enunciado como tal é em sua completude um produto da interação social, tanto a mais próxima, determinada pela situação de fala, quanto a mais distante, definida por todo o conjunto das condições dessa coletividade falante” (Volochinov, 2017, p. 216). , a análise a respeito do romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, corpus deste artigo, iluminará o texto do estreante e premiado autor brasileiro como portador de uma variação do tópico da ressurreição bíblica, imagem recorrente no Novo Testamento da Bíblia cristã e que, por sua vez, ao contaminar o discurso do ficcionista, se consideradas as interpretações de Mikhail Bakhtin, torna-o bivocal. Para o pensador da linguagem, “As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais” (Bakhtin, 2015BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. [1929]. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 223).

Destarte, as figuras e/ou as alusões que Ferro faz do texto sagrado, tanto do Antigo, quanto do Novo Testamento, longe de se filiarem ao discurso religioso, refratam-no em sua composição ficcional, visto que “o autor inclui no seu plano o discurso do outro voltado para as suas próprias intenções” (Bakhtin, 2015BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. [1929]. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 221); isto é, sinaliza-se que o romancista, ao se apropriar das escrituras ou das temáticas sagradas, utiliza-as de forma a reverter o seu sentido ou a negar a sua configuração institucionalizada.

Embora o romance O pai da menina morta esteja “ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392., p. 297)3 3 “Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentindo mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta” (Bakhtin, 2011, p. 297). ao texto bíblico, a composição dessa produção contemporânea deve ser considerada antes de tudo como uma “resposta” aos postulados religiosos. Essa resposta, ao se basear nos textos sagrados, subentendendo-os como conhecidos, rejeita-os como expressão digna de credibilidade. Ou seja, a voz narrativa utiliza-se de uma bivocalidade e esvazia o aspecto místico condizente ao sagrado, realocando-o ao texto literário. A frase a seguir, ao profanar o mais emblemático ritual cristão, a eucaristia, exemplifica essa premissa: “A hóstia é um biscoito” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 23).

Com esse entendimento, recuperam-se neste estudo imagens bíblicas na ossatura da narrativa de Tiago Ferro, sobretudo a figura evangélica de Lázaro, personagem corporificada no Evangelho de João, que, ao reviver, após quatro dias de seu óbito, mediante intervenção de Jesus Cristo, marca-se como antítipo do próprio Messias: ambas as figuras, em contexto canônico, ressurgem da morte para a vida. Por outra via de leitura, em contexto secular, profano, isto é, no romance O pai da menina morta, produto da interação social, a temática da ressurreição, quer seja explicitamente aludida na figura de Lázaro, quer seja referenciada simbolicamente, como será exemplificado a seguir, responde opostamente à narrativa bíblica: a morte se efetiva no romance, proscênio da narrativa.

O pai da menina morta ou o autor destes fragmentos

Tiago Ferro nasceu em São Paulo em 1976. O pai da menina morta é o seu primeiro romance. Feitura que o fez vencedor, na categoria de autor estreante, em 2018, do Prêmio São Paulo de Literatura e, em 2019, do Prêmio Jabuti de melhor romance.

A história que se ergue nas páginas do livro, a apontar para uma questão pessoal, desassociada, segundo considera o autor, dos postulados da autoficção - “Eu sou o Pai da Menina Morta? Quem fala aqui afinal? Quem é Eu? (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 157)4 4 É curioso o questionamento que o autor faz da realidade de sua experimentação empírica com a representação artística, literária, que produz em O pai da menina morta. Sinaliza-se, contudo, o sobrenome do escritor, metaforicamente registrado, à continuidade do excerto referenciado: “Eu sou O Pai da Menina Morta? Quem fala aqui afinal? Quem é Eu? O corpo dilacerado pelo ferro retorcido do que um dia foi um automóvel” (Ferro, 2018, p. 157, grifo nosso). -, tem como ensejo literário o luto que o ficcionista experienciou concernente à morte de sua filha: uma menina, de oito anos, vitimada, em 2016, por miocardite, um tipo de inflamação no miocárdio (parte musculosa do coração), que pode ocasionar parada cardíaca.

Se, por um lado, ao falar acerca de aspectos de sua projeção pessoal às linhas da narrativa, o autor desconsidera a engessadura que o postulado autoficção apresenta:

Quando o rótulo da autoficção é colado a uma obra, surge uma leitura que inevitavelmente coteja ficção e realidade, vida e obra etc. E para mim arte é forma. Mas o mercado precisa de novidades e meios de alimentar a máquina da publicidade. Outro caminho seria aceitar o conceito e apenas dizer que meu livro não responde a dois pilares básicos da autoficção: narrador com o mesmo nome do autor estampado na capa e narrativa em primeira pessoa (Ferro apudPrelorentzou, 2020PRELORENTZOU, Renato. “Fragmentário e delirante, romance sobre morte de filha dá forma literária à dor do luto” In. Estadão, Cultura, São Paulo, 14 fev. 2020. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/renato-prelorentzou/fragmentario-e-delirante-romance-sobre-morte-de-filha-da-forma-literaria-a-dor-do-luto/. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://cultura.estadao.com.br/blogs/ren...
, s/p).

Por outro lado, Ferro, na mesma entrevista que concedeu ao jornal O Estado de S. Paulo, informa que: “(…) ser o autor de O pai da menina morta puxa o tapete, de vez em quando pelo menos, da identidade “o pai da menina morta”. Seja como for, é uma história que eu sigo vivendo todos os dias. E viverei até o fim” (Ferro apudPrelorentzou, 2020PRELORENTZOU, Renato. “Fragmentário e delirante, romance sobre morte de filha dá forma literária à dor do luto” In. Estadão, Cultura, São Paulo, 14 fev. 2020. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/renato-prelorentzou/fragmentario-e-delirante-romance-sobre-morte-de-filha-da-forma-literaria-a-dor-do-luto/. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://cultura.estadao.com.br/blogs/ren...
, s/p). A voz real do autor, enquanto entrevistado do jornal paulista, dialoga com sua própria narrativa. A saber: “Eu nunca mais vou conseguir sair dessa cena” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 159)5 5 Ao participar, em 2020, de uma conferência promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Tiago Ferro reafirma que seu livro não se enquadra no âmbito de autoficção. Segundo o autor, o livro não responde a dois critérios primordiais do gênero: “narrativa na primeira pessoa e personagem identificado com o nome do autor” (Ferro, 2020). .

Essa “cena” representa a maneira por meio da qual a construção de O pai da menina morta se efetiva. Livro que tem seu enredo associado à gravação ora de um filme, “Há muita apreensão no set de filmagem agora” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 68), ora à representação da escrita do livro como espetáculo teatral, “Quem morreu foi sua filha. Você está apenas encenando a sua morte na forma estética” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 129), “não sei do que trata a peça (…) fazer da dor um espetáculo (…} é preciso encenar o Pai, correto? (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 161-162); ora à apresentação circense, “Missa de Sétimo Dia (…) Respeitável público (…) mulher barbada e padre com sapatos marrons” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 82). Elementos que desvirtuam a realidade empírica do autor e a disfarça, rasurando-a pelas camadas artísticas referenciadas.

Marca-se, ainda, outra via de diálogo que o texto de Tiago Ferro estabelece no tocante ao luto que seu narrador evidencia: a sinalização no romance de outros pais que perderam seus filhos, a exemplo de Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Gil, Eric Clapton, John Travolta, dentre outros.

A problemática definição do que é real ou ficcional remete o campo dos estudos literários a catalogações ou a apriorismos, para tentar definir a autoficção como pertencente, sobretudo, à experiência real do autor, ou a aspectos dessa experiência a ganharem voz na tessitura textual. É conhecida a morte da filha de Tiago Ferro, e a isto o autor não se isenta de aludir; contudo, enxergar a realidade empírica da transposição do real ao campo ficcional, como expôs Antonio Candido, é trabalho dificultoso, fadado ao abismo:

Com efeito, todos sabemos que a literatura, como fenómeno de civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores sociais. Mas, daí determinar se eles interferem diretamente nas características essências de determinada obra, vai um abismo, nem sempre transposto com felicidade (Candido, 2006CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006., p. 20).

Nesse enquadramento, conforme orientação bakhtiniana de que, o autor, ao construir seu trabalho ficcional, “participa de fora de sua produção”, isto é, “[a] relação axiológica comigo mesmo é absolutamente improdutiva em termos estéticos, eu para mim sou esteticamente irreal. Posso ser apenas portador da tarefa da enformação e do acabamento artísticos, mas nunca o seu objeto - a personagem” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 03-192., p. 174), entende-se, neste artigo, o romance de Tiago Ferro como produção e produto estético em que os valores do mundo empírico, por ele experienciados, não são ficcionalmente transfigurados/transportados, mas readequados a uma esfera destoante do real, reapresentados e legitimados pelo campo narrativo:

O ato estético dá à luz o existir um novo plano axiológico do mundo, nascem um novo homem e um novo contexto axiológico - o plano de pensamento sobre o mundo humanizado.

O autor deve estar situado na fronteira do mundo que ele cria como seu criador ativo, pois se invadir esse mundo ele lhe destrói a estabilidade estética (Bakthin, 2010, p. 177).

O objeto estético é uma criação que inclui em si o criador: nela o criador se encontra e sente intensamente a sua atividade criativa, ou ao contrário: é a criação tal qual aparece aos olhos do próprio criador, que a cria com amor e liberdade (é verdade que não é uma criação a partir do nada, ela pressupõe a realidade do conhecimento e do ato, que ela apenas transfigura e formaliza) (Bakthin, 1998, p. 69).

Considerando a produção ficcional, a arte estética, o romance propriamente dito, como recriação/reapresentação transfigurada da realidade, as acepções de Bakhtin conduzem a reflexão para uma organização adicional: o posicionamento axiológico do autor. Interessa neste artigo, sobretudo, a consideração de que a transposição de temas biográficos de Tiago Ferro - a morte de sua filha e o luto experienciado - em sua função ficcional dialogue explicitamente com figurações bíblicas intricadas, nomeadamente, no Evangelho canônico de João, isto é, às figurações do tópico da ressurreição. Se em contexto sagrado as personagens Lázaro e Jesus Cristo ressurgem da morte à vida, metaforicamente, no romance de Tiago Ferro, a vida da menina morta reaparece, transfigura-se em ficção.

Figurações da ressurreição

Uma chave de leitura que Tiago Ferro apresenta ao seu leitor para compreensão da dor do luto que a voz narrativa expõe baseia-se no diálogo direto/explícito que o autor estabelece com a personagem bíblica Lázaro. Pertencente ao cristianismo, Lázaro - que significa aquele a quem Deus ajuda - ganha projeção narrativa no Novo Testamento da Bíblia cristã. Dos quatro Evangelhos canônicos que retratam a vida e o ministério de Jesus Cristo - Mateus, Marcos, Lucas e João -, apenas o último põe luz ao episódio da ressurreição de Lázaro, por intermédio da ação-vocal de Jesus Cristo, isto é, “um milagre supremo” (Lourenço, 2017LOURENÇO, Frederico. Bíblia Volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 374), para usar a expressão alcunhada por Frederico Lourenço.

Como esse evento, a ressurreição de Lázaro, é exclusivo do livro de João, não se configurando nos Evangelhos sinóticos (designação atribuída aos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas, por abarcarem uma quantidade expressiva de histórias em comum, com a mesma sequência, e por vezes empregando as mesmas construções de palavras), alguns especialistas refutam ou pensam ser inconsistente a narrativa registrada em João 11.

Os livros que compõem o cânone bíblico cristão são textos considerados pela religião como inspirados por Deus e/ou pelo Espírito Santo; contudo, há gamas de textos que não foram considerados canônicos à interpretação de que não possuem inspiração divina; essas narrativas recebem o nome de livros apócrifos ou pseudocanônicos. Sinaliza-se ainda que

Há um corpo de escritos, separados dos apócrifos, e que datam aproximadamente, em maior parte, do último século antes de Cristo, que são chamados de pseudoepígrafos, o que significa “escritos falsos”, pois alguns deles, como o Livro de Enoque, são atribuídos a figuras veneradas que certamente não os escreveram. A maioria dos dados geralmente aceitos nos estudos bíblicos são ligados a demonstrações de que muitos, se não a maioria, dos livros da Bíblia, são pseudoepígrafos nesse mesmo sentido (Frye, 2021FRYE, Northrop. O grande código: a Bíblia e a literatura. Tradução de Marcio Stockler. Campinas: Sétimo Selo, 2021., p. 289).

A narrativa bíblica corporificada em João 11, canônica e econômica em sua descrição, configura-se com os seguintes tópicos: os irmãos Lázaro, Marta e Maria são amigos de Jesus; como Lázaro estava enfermo, suas irmãs mandam chamar Cristo na esperança de que intervenha em seu auxílio; Jesus, por sua vez, coloca-se em direção à aldeia de Betânia, lugar onde seus amigos residem, após dois dias do recebimento do chamado; a demora, “um atraso propositado” (Lourenço, 2017LOURENÇO, Frederico. Bíblia Volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 373), estabelece na narrativa o óbito de Lázaro, uma vez que, à chegada de Jesus, a morte do amigo contava o quarto dia e, consequentemente, a decomposição de seu corpo já era pressentida: “Jesus diz: ‘Levantai a pedra’. “Diz-lhe Marta: ‘Senhor, Ele já fede; pois é já o quarto dia’” (João 11: 39).

Considerando que o atraso de Cristo em direção a Betânia se justifica pelo propósito da ressurreição, para que as pessoas vissem e cressem que Jesus era o Messias por Deus enviado (João 11:42), marca-se a consequência desse “assombroso e inconcebível” acontecimento: Cristo, ao ressuscitar seu amigo, condena-se, ao mesmo tempo, à morte; visto que “é justamente esse milagre (…) que origina a decisão definitiva, da parte dos inimigos de Jesus, de o matarem” (Lourenço, 2017LOURENÇO, Frederico. Bíblia Volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 372)6 6 “Alguns dos judeus foram encontrar com os fariseus e contaram-lhes tudo o que Jesus fizera” (João 11:46). .

A recorrência à iconografia cristã é constante em O pai da menina morta. Lázaro, a exemplo, é citado quatro vezes na narrativa. A insistência do autor em aludir à figura evangélica desdobra-se em reflexões. Ao dar-se conta de que sua filha está morta, a ressurreição que caracteriza a figura bíblica surge na ficção de Tiago Ferro e nela se vê espelhada em diferentes e refrangentes ângulos.

O primeiro ângulo, visto sob o prisma de uma voz que indaga as escrituras em contraste com a dor real da perda de uma criança, assim se materializa na narrativa contemporânea: “Por que o coração parou? Qual a causa? Lázaro realmente ressuscitou? Por que Jesus perdeu tempo transformando água em vinho em vez de salvar uma criança?” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 56).

O excerto transcrito acima evoca duas passagens em que situações sobrenaturais são materializadas exclusivamente no Evangelho de João, a legitimarem a atuação de Jesus Cristo como Filho de Deus. Essa conjuntura é apresentada na narrativa de Ferro em dois momentos díspares da vida do Messias: o seu primeiro milagre, ocorrido em um casamento, em Caná da Galileia, ensejo em que a transformação de água em vinho se consolida (João 2); e um dos seus últimos feitos, a ressurreição de Lázaro, que, como assinalado, desencadeou a perseguição a Cristo e, consequentemente, a sua crucificação (João 11).

Ao recorrer às passagens bíblicas, a narrativa dialógica do autor brasileiro vivifica-as, mas não comunga do poder miraculoso associado aos ícones do cristianismo. Nesse enquadramento, a retomada dos textos sagrados adquire uma significação que ultrapassa os limites da existência particular dos mitos bíblicos, refratando-os e distorcendo-os à concretude e à ideologia da narrativa contemporânea. E nesse veio, a ficção de Ferro é exemplo interpretativo de que “[o] signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um [novo] ponto de vista específico e assim por diante” (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. [1929]. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 93).7 7 Registre-se a distorção que José Saramago tonifica no romance O evangelho segundo Jesus Cristo concernente às personagens bíblicas materializadas no livro de João (11). Na ficção do Nobel de literatura, Cristo cura a personagem Lázaro “dumas sufocações”, conforme fragmento transposto: “De que sofre Lázaro, perguntou Jesus, Dumas sufocações, como se o coração se lhe fosse passar, depois torna-se pálido, pálido, parece que vai ficar-se” (Saramago, 2005, p. 334); contudo, posteriormente, a cura se desfaz e Lázaro morre. Desta vez, em via oposta ao texto sacro, no texto profano de Saramago, Jesus Cristo não opera a ressurreição do amigo, ao contrário, intercede por sua morte.

Há indagações, intencionalmente erguidas, à escrituração de Ferro. Em um primeiro momento, o narrador questiona o porquê de o coração da filha ter parado, querendo saber, seguidamente, a causa do infortúnio; sem pausa, ainda, os dois milagres realizados por Cristo são evocados à narrativa: a religião é sinalizada, mas a descrença a sobrepõe, em indagação refrangente à fé cristã. Esse rebaixamento, acionado nas interrogativas, evidencia a condição humana, finita, das personagens de Ferro, anulando, por sua vez, uma suposta intervenção espiritual no concreto da existência do pai que se vê obrigado a aceitar, impotente, a morte de sua menina.

Marca-se, entretanto, a contemporaneidade que o autor promove acerca dos eventos bíblicos consonantes à experimentação da voz narrativa. O tempo religioso, sagrado em sua configuração, alcança a ação atual do narrador, como se Cristo não estivesse distanciado temporalmente da narrativa contemporânea. A ação de ambas narrativas - religiosa e ficcional - se interligam, mas, sublinhe-se a informação, a refração, condizente à dor do luto (e não o contrato de alegria associado aos milagres evangélicos), se sobressai à experimentação da personagem. O que está em voga no excerto supracitado, e em outros momentos da narrativa de Tiago Ferro, é o questionamento a um Deus que é milagroso, mas apenas em (con)texto sagrado, uma vez que na experimentação do narrador, texto profano, sua filha morre, enquanto Cristo transforma água em vinho.

A expressão profana, suprarreferenciada, merece esclarecimento. Para Bakhtin, a formação das línguas modernas, particularmente a francesa, esteve em conflito com as palavras inexpugnáveis, restritivas, indubitáveis, isto é, com as palavras sagradas, autoritárias, limitadas. “A sobriedade, a simplicidade, o espírito democrático”, segundo o pensador da linguagem, “derivam dos gêneros populares e profanadores” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392., p. 368; grifo nosso), visto que as novas línguas “foram determinadas em certa medida pelo longo e complexo processo de expulsão da palavra sagrada do outro” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392., p. 368; grifo nosso)8 8 “A palavra com suas fronteiras inexpugnáveis, sagradas, é uma palavra inerte, com possibilidades limitadas de contatos e combinações. A palavra que inibe e bloqueia o pensamento. A palavra que exige repetição reverente, e não desenvolvimento sucessivo, correções e complementos (…). Foi no processo de luta com essa palavra e de sua expulsão (por intermédio dos anticorpos paródicos) que se formaram as novas línguas. As cicatrizes das fronteiras da palavra do outro. Os vestígios na estrutura sintática” (Bakhtin, 2011, p. 368) . Nesse compasso, a linguagem, expressão do pensamento que diferencia o homem dos outros seres vivos, é, em sua gênese, profana.

O termo - profano - desdobra-se neste artigo, em virtude do diálogo que o romance de Tiago Ferro faz com a questão terrena, isto é, associado às concretas e às reais experimentações humanas. Considera-se, ainda, a assertiva contribuição que Emílio Pimenta estabelece com a nomenclatura. Para o crítico, ao contrário do sagrado, o profano “é o incompleto, o imperfeito, próprios da condição humana” (Pimenta, 1980PIMENTA, Paulo Emílio. As origens do fenômeno religioso: segundo a história, a ciência e a filosofia. Belo Horizonte: Editora São Vicente, 1980., p. 135).

A consideração da condição humana evidenciada no texto literário em exame ganha proporções maiores na medida em que o fluxo narrativo avança e outra vez a personagem bíblica, Lázaro, é referenciada textualmente. Nesta ocorrência, após a realização de um teste escrito em uma Instituição Hospitalar, acionada no texto como hospício, O Pai da Menina Morta, em diálogo com o médico, possivelmente um psiquiatra, recuperam a característica ressurreta da personagem bíblica em contraste com a mortalidade que define o homem:

O médico corpulento parece satisfeito com as minhas respostas. Ele também compreende a crise de choro que eu tive depois do teste. Ninguém gosta de ficar frente a frente com a verdade. Ele me consola falando que ao menos a Instituição está me dando a opção de escolher. Não, entre a vida e a morte não é possível. Sim, mas e Lázaro? Com muita paciência ele solta uma baforada lenta de cigarro light e me explica que um dia Lázaro também morreu. Que ele ressuscitou para a filmagem da cena e seis meses depois teve um AVC fulminante em um mercado da região. Um evangelho apócrifo conta que a família nessa segunda vez não se deu ao trabalho de sepultá-lo (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 135).

No excerto acima alocado, fragmentado e aparentemente desconexo, acentuando a maneira pela qual o livro se configura, isto é, com “parágrafos curtos e desconexos” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 117), sobrepõem-se alusões a serem consideradas: os dois Testamentos bíblicos, portanto, referências a temas e a personagens bíblicas; a representação da ressurreição de Lázaro em filme, bem como a morte física do ator que o interpreta; e, por fim, a sinalização de um evangelho apócrifo (destituído de valoração pelo cristianismo) em que, a par da segunda morte de Lázaro bíblico, a personagem não recebe sepultura.

Desdobrando as referências acima elencadas, a possível sinalização ao Antigo Testamento configura-se na possibilidade de escolha “entre a vida e a morte” que o Deus de Israel propõe ao seu povo: “Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Deuteronômio, 30:19). Sublinhe-se, contudo, que na narrativa de Tiago Ferro a possibilidade de escolha entre viver e morrer não é sinalizada: a morte da menina de oito anos se efetiva e é este o pano de fundo que sustenta o romance.

Por sua vez, a frase dita pelo narrador, indagando o médico e sinalizando o Evangelho de João, “Mas e Lázaro?” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 135), convoca a crença no âmbito da ressurreição em contexto evangélico, isto é, no assombroso milagre realizado por Cristo, como possibilidade de reverter o luto em vida; entretanto, ao mesmo tempo em que essa esperança é aludida, a ironia - “categoria estruturadora de texto, cuja forma de construção denuncia um ponto de vista, uma argumentação indireta, que conta com a perspicácia do destinatário para concretizar-se como significação” (Brait, 2008BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008., p. 17) - posta à replica do médico (Lázaro morreu, mas ressuscitou para gravar a cena de um filme, e, tornou a morrer após seis meses) dessacraliza a narrativa bíblica, eivando no texto de Tiago Ferro a condição humana, finita, mortal. Enfoque que, por fim, é reiterado à alusão do suposto evangelho apócrifo, texto “de material folclórico” (Frye, 2021FRYE, Northrop. O grande código: a Bíblia e a literatura. Tradução de Marcio Stockler. Campinas: Sétimo Selo, 2021., p. 25), sem a áurea da inspiração divina, em que Lázaro, na sua segunda morte, registra-se sem sepultamento.

No emaranhado intertextual acima referenciado, “pleno de tonalidades dialógicas” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392., p. 298; grifos do autor), infere-se que o autor cria uma expressão artística, atrelando dados de sua biografia com os textos bíblicos, modificando-os e pondo-os no âmbito da ficcionalidade. A simbologia de cenas - teatrais, cinematográficas, circenses - que constroem o enredo de O pai da menina morta, tonificam o “ator Lázaro” como intérprete da morte e dessacraliza o texto evangélico, entendido como ficção. A ironia sedimenta a voz narrativa, visto que, segundo o narrador do último capítulo-fragmento que compõe o romance, “É preciso todos os evangelhos inclusive os apócrifos” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 172).

Nesse veio, para erguer o seu romance, Tiago Ferro joga com os aspectos religiosos que caracterizam a crença de seu local de fala - o cristianismo cultuado no Brasil no século XXI -, a religiosidade propriamente dita, mas não destituída de sua real configuração, a ficção, a Bíblia como produto textual. Exemplo dessa relocação pode ser enfatizado nos dois excertos justapostos:

Da sala vizinha onde estão salvando a sua filha sai uma mulher de quarenta anos. Ela fala para você que vai dar tudo certo. Ela está rezando pela sua filha. Você quer acreditar, mas uma estranha resignação já começa a entorpecer os seus sentidos. Você agradece (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 55).

[madrugada de quarta para quinta-feira. terceira pessoa do singular. feminino. a mulher que reza. filmado pelos irmãos coen. preto e branco]

Ela está há três dias sentada em uma poltrona ao lado da cama da filha. A menina de treze anos foi diagnosticada com meningite. A mãe é a Mulher Que Reza. Sem parar. Isso faz com que ela viva uma espécie de êxtase. Ela ordena que Lázaro ressuscite, que o leproso seja curado, que a mulher que sangra, logo seque. Ela cura o aleijado. Ela realiza milagres. Sem parar. Gritos no corredor a trazem de volta de Jerusalém. Ela sai do quarto e vê o homem de cabeça oval desesperado. Ela é a Mulher Que Reza. Ela olha fixamente nos olhos dele e conta de onde ela veio com o rosto coberto por uma fina camada de areia do deserto. Os olhos dela são faiscantes. A filha do homem vai viver. Ela volta para a jangada ao lado da sua menina. A filha dela não vai morrer. Nunca mais. Pedro vai andar sobre as águas. Cristãos serão devorados por leões. Serão perseguidos, mas a verdade vai prevalecer. Roma ainda vai se ajoelhar diante dos homens do caminho. A cruz vai se tornar um símbolo de esperança e não mais de dor. Ela fala coisas de que nunca imaginou ser capaz. Ninguém nunca falou como ela. Ela é a Mulher Que Reza (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 147).

No primeiro excerto, uma mulher de quarenta anos direciona orações a favor da filha do Pai da Menina Morta. Ambos estão no mesmo hospital, com suas respectivas filhas internadas. O registro dessa intercessão é sinalizado de forma sucinta, mais próximo do real, tonificado por palavras sóbrias a apontar para cenas comuns em corredores e em quartos de hospitais: a fé ativada no intuito de promover conforto e pedir cura. Contudo, o segundo fragmento subverte a sobriedade do primeiro excerto. Metaforiza-o, ficcionaliza-o em intensidade. Nele “a mulher que está rezando”, filmada pelos cineastas estadunidenses Joel e Ethel Coen, passa a ser nomeada “A Mulher Que Reza”. Nomeação que caracteriza a personagem feminina atrelada exageradamente ao cristianismo, posta que, apegada, em transe, à iconografia cristã, “A Mulher Que Reza” tem sobre si o deslocamento de eventos miraculosos do Novo Testamento. Não mais a intervenção de Cristo a realizar milagres; e, sim, passagens dos Evangelhos mencionadas por “uma falsa profeta” que prevê a vida da menina morta: “Jamais acredite nos falsos adoradores dos falsos profetas” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 139)

Considere-se, ainda, que o narrador de O pai da menina morta se utiliza de vários codinomes para se reportar a si enquanto destituído de esperança, uma vez que a realidade da morte lhe é comum à sua caracterização. Entre as nomenclaturas que apontam o estado de ânimo da personagem-narradora, marcam-se: “O Pai Leproso” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 49); “Pai Morto” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 59); “Autor Destes Fragmentos” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 117); “Pai Que Se Fodeu” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 123); “O Pai da Menina Morta” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 157); “Homem Médio Que Se Fodeu” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 169).

O uso das palavras obscenas, acima grafadas, utilizadas por Ferro em seu romance, aponta para o diálogo que o ficcionista estabelece com a produção de George Bataille, autor de A história do olho (1928): “Bataille nunca escreve ânus, ele escreve cu. Não seja pudico. Não se esqueça, você não é um romancista. Você nunca será o Bataille. Você é pudico. E não consegue escrever mais do que parágrafos curtos e desconexos” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 117).9 9 A sinalização ao romancista francês não é dissociada de sentido. A literatura de George Bataille é conhecida por dessacralizar discursos, transgredindo-os em linguagem vulgar, profana; o que Tiago Ferro faz em O pai da menina morta, embora não esteja associado ao campo do erótico, também dessacraliza discursos, e nesse veio, ambas literaturas dialogam: “O prosador não purifica seus discursos das intenções e tons de outrem, não destrói os germes do plurilinguismo social que estão encerrados neles, não elimina aquelas figuras linguísticas e aquelas maneiras de falar, aqueles personagens-narradores virtuais que transparecem por trás das palavras e formas da linguagem, porém, dispõe todos estes discursos e formas a diferentes distâncias do núcleo semântico decisivo de suas obras, do centro de suas intenções pessoais” (Bakhtin, 1998, p. 104-105).

Dentro dessa narrativa que se configura com “parágrafos curtos e desconexos”, o narrador-personagem nomeia-se “O Pai Leproso” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 49. A simbologia da lepra, se considerada a doença no contexto dos dois Testamentos bíblicos, metaforiza a condição do narrador: impotente e solitário diante da doença e, consequentemente, diante da morte. Isto porque, em texto sagrado, os possuidores da lepra eram obrigados à exclusão social, banidos do convívio familiar e amistoso, e, portanto, à degradação corporal, física, alcançando, antes do perecimento, a psiquê dos enfermos.

Voltando a análise à personagem bíblica Lázaro, interessa marcar que “Lázaro de Betânia também era considerado (…) um leproso, e tornou-se em algumas religiões o santo padroeiro daqueles que sofrem dessa doença (daí as expressões casa de lázaro, lazarado, lazareto, lazarento, lepra lazarena)” (Dicionário bíblico, 2007DICIONÁRIO BÍBLICO WYCLIFFE. Tradução de Degmar Ribas Júnior. 2. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2007., p. 1146).10 10 Há outra personagem nomeada Lázaro no Novo Testamento. Sua materialidade encontra-se, exclusivamente, no livro de Lucas, no seu capítulo 16: a parábola do Homem Rico e Lázaro. A narrativa apresenta Lázaro, um mendigo, a ter suas feridas lambidas por cães (Lucas, 16: 21).

Nesse entendimento, a morte da filha do narrador, evidenciada sem o milagre cristão da ressurreição, “Lázaro (…) morreu” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 135), alcança a morte do próprio Pai da Menina Morta, caracterizado com a doença que é aludida à personagem Lázaro. Nesse veio, a morte da filha se metaforiza ao dilaceramento nutrido pelo pai, que, sendo leproso, enterra-se com a menina: “O funcionário [do cemitério] fica de mandar uma foto da placa já instalada [no túmulo da Minha Filha]. Nunca manda. Com sorte a ferrugem vai corroer tudo aquilo antes de eu ser enterrado novamente na rua 3, bloco 19 (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 45; grifos nosso).

O excerto acima recuperado efetiva a interpretação de que, com a morte de sua filha, o pai-narrador passa a recuperar na narrativa as mortes que ele próprio já experimentou. O “Pai Morto” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 59), perturbado pela realidade implacável da perda de sua filha, passa a viver e a sonhar com a presença perturbadora da morte. Nas páginas iniciais do romance, tem-se o registro do que pode ser considerado como a representação fílmica, uma cena em que, em sonho, reminiscências da morte da menina morta são evocadas. Nesse sonho, por sua vez, a personagem nomeada pela “terceira pessoa do singular. masculino” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 11), isto é, Ele, dentro de alguns pedidos feitos no quarto hospitalar em que sua filha, assim como ele, está internada, deseja que “alguém cale a boca dos pelicanos que se batem dentro do quarto” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 11).

Marca-se o preciso esclarecimento acerca da simbologia que essa ave - Pelicano - representa. Segundo o Dicionário de símbolos (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant):

Pelícano: Antaño, con el pretexto de que alimentaba a sus crías con su carne y su sangre, se vio en el pelícano, ave acuática, un símbolo del amor paternal. Por esta razón, la iconografía cristiana lo considera símbolo de Cristo; pero también hay una razón más profunda. Símbolo de la naturaleza húmeda que, según la física antigua, desaparece por efecto del calor solar y renace en invierno, el pelícano se toma como figura del sacrificio de Cristo y de su resurrección, así como de la de Lázaro. Por ello su imagen, algunas veces, sustituye a la del fénix (2018, p. 2038).11 11 Pelícano: No passado, sob o pretexto de que alimentava os seus filhotes com a sua carne e sangue, o pelicano, ave aquática, era visto como símbolo do amor paterno. Por esta razão, a iconografia cristã considera-o um símbolo de Cristo; mas há também uma razão mais profunda. Símbolo da natureza úmida que, segundo a física antiga, desaparece por efeito do calor solar e renasce no inverno, o pelicano é tido como figura do sacrifício de Cristo e de sua ressurreição, assim como a de Lázaro. Por isso, sua imagem às vezes substitui a da fênix.

A incursão desse animal em O pai da menina morta aponta para mais uma figura que dialoga simbolicamente com a ressurreição. Presos dentro do quarto, portanto, impossibilitados de exercerem a liberdade do voo, a imagem metaforiza a inviabilidade do regresso da morte à vida em contexto secular, isto é, destituído da intervenção divina, marcando, inclusive, no final do excerto, a morte de ambas as personagens, pai e filha: “Ele tomba a cabeça para o lado. Ela também” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 11). O tombar a cabeça, se considerado o verso do Evangelho que registra a morte de Jesus Cristo - “(…) inclinando a cabeça, entregou o espírito” (João 19:30; grifo nosso), marca a morte no romance, sem apontar a ressurreição.

Nesse mesmo sentido, isto é, ao indicar a questão terrena, humana, a páscoa - em sua inclinação cristã, isto é, a celebração da ressurreição de Jesus Cristo - é materializada no romance. Lê-se em O pai da menina morta a seguinte construção:

[ quarta-feira ]

Jogo no bicho.

[ quinta-feira ]

Perco.

[ sexta-feira ]

O emprego.

[ sábado de aleluia ]

Compro ovos de Páscoa.

[ domingo ]

O começo do fim (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 114).

O ramerrão do cotidiano, mesmo na materialidade da Semana Santa cristã, é grafado à realidade do Pai Morto. Sua via crucis, marcada por perdas, realoca a simbologia da celebração à jogatina e ao comércio taxativo de chocolates. Para além desse aspecto, não se configura na narrativa a possibilidade de um ciclo alvissareiro - a passagem de um lado a outro -, e sim o início da semana a apontar o fim, isto é, o início do fim da vida em plenitude.

Considera-se, por fim, o diálogo, no mesmo veio de significação, que Tiago Ferro faz com o último verso do Evangelho segundo João, no qual a testemunha ocular dos prodígios de Jesus Cristo, o discípulo amado, justifica a impossibilidade de narrar todos os feitos do Filho de Deus em suporte material: “(…) são muitas as outras coisas que Jesus fez, que, se fossem escritas uma a uma, não penso que o mundo tivesse espaço para tantos livros escritos” (João, 21:24). No romance de Ferro, por sua vez, ao memorar a vida de sua filha, o pai-narrador materializa o diálogo com o texto sacro:

[memorioso]

Restaram poucas memórias da minha primeira infância. Já dos oitos anos da Minha Filha eu me lembro de tanta coisa, que uma única narrativa não daria conta de organizar tudo (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 44).

Considerações finais

Ao se apropriar explicitamente de figuras pertencentes ao Novo Testamento da Bíblia cristã, Tiago Ferro, autor constituinte do objeto estético em análise/que foi analisado, estabelece uma bivocalidade que direciona O pai da menina morta como produto dialógico em sua configuração. Nesse viés, segundo considerações do Círculo de Mikhail Bakhtin, o romance engendra-se em uma discussão ideológica em grande escala, isto é, ele “responde, refuta ou confirma algo, antecipa as respostas e críticas possíveis, busca apoio e assim por diante” (2017, p. 219; grifos nossos).

Destarte, recorrente na narrativa de estreia de Ferro, a ressurreição, uma das figuras basilares do cristianismo, e aqui considerada, é reafetada no texto literário, de forma a reverter o seu sentido místico. Ao aludi-la, seja em suas projeções religiosas (o reviver de Lázaro e de Jesus Cristo), seja no simbolismo atrelado ao pelicano (ave que representa a ressurreição de ambas personagens bíblicas), seja ainda na celebração pascoal (ressurreição de Jesus Cristo), o que se concretiza em O pai da menina morta é uma estrutura narrativa prenhe de diálogos com a cultura cristã, porém, em outra esteira de significação: ao se valer do discurso sobrenatural, o autor realoja-o ao nível do natural, e, ao profanar a transcendência, a narrativa contemporânea é testemunha da condição finita, precária, imperfeita do homem em suas concretas experimentações.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

  • 1
    O pai da menina morta, 2018, p. 23; p. 35.
  • 2
    “O enunciado como tal é em sua completude um produto da interação social, tanto a mais próxima, determinada pela situação de fala, quanto a mais distante, definida por todo o conjunto das condições dessa coletividade falante” (Volochinov, 2017, p. 216).
  • 3
    “Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentindo mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392., p. 297).
  • 4
    É curioso o questionamento que o autor faz da realidade de sua experimentação empírica com a representação artística, literária, que produz em O pai da menina morta. Sinaliza-se, contudo, o sobrenome do escritor, metaforicamente registrado, à continuidade do excerto referenciado: “Eu sou O Pai da Menina Morta? Quem fala aqui afinal? Quem é Eu? O corpo dilacerado pelo ferro retorcido do que um dia foi um automóvel” (Ferro, 2018FERRO, Tiago. O pai da menina morta. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018., p. 157, grifo nosso).
  • 5
    Ao participar, em 2020, de uma conferência promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Tiago Ferro reafirma que seu livro não se enquadra no âmbito de autoficção. Segundo o autor, o livro não responde a dois critérios primordiais do gênero: “narrativa na primeira pessoa e personagem identificado com o nome do autor” (Ferro, 2020FERRO, Tiago. “Literatura e pensamento crítico”: In: Diálogos PPGL 3, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dbndHHQk34c&t=3609s, a partir dos 44 min do vídeo. Acesso em: 22 mar. 2021.
    https://www.youtube.com/watch?v=dbndHHQk...
    ).
  • 6
    “Alguns dos judeus foram encontrar com os fariseus e contaram-lhes tudo o que Jesus fizera” (João 11:46).
  • 7
    Registre-se a distorção que José Saramago tonifica no romance O evangelho segundo Jesus Cristo concernente às personagens bíblicas materializadas no livro de João (11). Na ficção do Nobel de literatura, Cristo cura a personagem Lázaro “dumas sufocações”, conforme fragmento transposto: “De que sofre Lázaro, perguntou Jesus, Dumas sufocações, como se o coração se lhe fosse passar, depois torna-se pálido, pálido, parece que vai ficar-se” (Saramago, 2005SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 334); contudo, posteriormente, a cura se desfaz e Lázaro morre. Desta vez, em via oposta ao texto sacro, no texto profano de Saramago, Jesus Cristo não opera a ressurreição do amigo, ao contrário, intercede por sua morte.
  • 8
    “A palavra com suas fronteiras inexpugnáveis, sagradas, é uma palavra inerte, com possibilidades limitadas de contatos e combinações. A palavra que inibe e bloqueia o pensamento. A palavra que exige repetição reverente, e não desenvolvimento sucessivo, correções e complementos (…). Foi no processo de luta com essa palavra e de sua expulsão (por intermédio dos anticorpos paródicos) que se formaram as novas línguas. As cicatrizes das fronteiras da palavra do outro. Os vestígios na estrutura sintática” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392., p. 368)
  • 9
    A sinalização ao romancista francês não é dissociada de sentido. A literatura de George Bataille é conhecida por dessacralizar discursos, transgredindo-os em linguagem vulgar, profana; o que Tiago Ferro faz em O pai da menina morta, embora não esteja associado ao campo do erótico, também dessacraliza discursos, e nesse veio, ambas literaturas dialogam: “O prosador não purifica seus discursos das intenções e tons de outrem, não destrói os germes do plurilinguismo social que estão encerrados neles, não elimina aquelas figuras linguísticas e aquelas maneiras de falar, aqueles personagens-narradores virtuais que transparecem por trás das palavras e formas da linguagem, porém, dispõe todos estes discursos e formas a diferentes distâncias do núcleo semântico decisivo de suas obras, do centro de suas intenções pessoais” (Bakhtin, 1998BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. [1924]. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4. ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 13-70., p. 104-105).
  • 10
    Há outra personagem nomeada Lázaro no Novo Testamento. Sua materialidade encontra-se, exclusivamente, no livro de Lucas, no seu capítulo 16: a parábola do Homem Rico e Lázaro. A narrativa apresenta Lázaro, um mendigo, a ter suas feridas lambidas por cães (Lucas, 16: 21).
  • 11
    Pelícano: No passado, sob o pretexto de que alimentava os seus filhotes com a sua carne e sangue, o pelicano, ave aquática, era visto como símbolo do amor paterno. Por esta razão, a iconografia cristã considera-o um símbolo de Cristo; mas há também uma razão mais profunda. Símbolo da natureza úmida que, segundo a física antiga, desaparece por efeito do calor solar e renasce no inverno, o pelicano é tido como figura do sacrifício de Cristo e de sua ressurreição, assim como a de Lázaro. Por isso, sua imagem às vezes substitui a da fênix.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

  • AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários Tradução de José Paulo Paes. Posfácio de Marcus Mazzari. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
  • BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski [1929]. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
  • BAKHTIN, Mikhail. Adendo: Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 367-392.
  • BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal 6. ed. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 03-192.
  • BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. [1924]. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4. ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al São Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 13-70.
  • BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008.
  • CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
  • DICIONÁRIO BÍBLICO WYCLIFFE. Tradução de Degmar Ribas Júnior. 2. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.
  • FERRO, Tiago. O pai da menina morta 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018.
  • FERRO, Tiago. “Literatura e pensamento crítico”: In: Diálogos PPGL 3, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dbndHHQk34c&t=3609s, a partir dos 44 min do vídeo. Acesso em: 22 mar. 2021.
    » https://www.youtube.com/watch?v=dbndHHQk34c&t=3609s
  • FRYE, Northrop. O grande código: a Bíblia e a literatura. Tradução de Marcio Stockler. Campinas: Sétimo Selo, 2021.
  • LOURENÇO, Frederico. Bíblia Volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • PRELORENTZOU, Renato. “Fragmentário e delirante, romance sobre morte de filha dá forma literária à dor do luto” In. Estadão, Cultura, São Paulo, 14 fev. 2020. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/renato-prelorentzou/fragmentario-e-delirante-romance-sobre-morte-de-filha-da-forma-literaria-a-dor-do-luto/ Acesso em: 20 mar. 2021.
    » https://cultura.estadao.com.br/blogs/renato-prelorentzou/fragmentario-e-delirante-romance-sobre-morte-de-filha-da-forma-literaria-a-dor-do-luto/
  • PIMENTA, Paulo Emílio. As origens do fenômeno religioso: segundo a história, a ciência e a filosofia. Belo Horizonte: Editora São Vicente, 1980.
  • SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. [1929]. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O texto “Figurações da ressurreição em O pai da menina morta, de Tiago Ferro” propõe uma leitura do citado romance, muito conhecido da crítica e vencedor de prêmios. Diversamente de outros textos publicados que analisam a mesma obra, esse ensaio delimita, logo inicialmente, a sua diferença dos demais, ao eleger a afirmação de Fraye de que “todos esquemas narrativos conhecidos na literatura e na arte ocidental não são senão variações de enredos bíblicos”, seguida de esclarecimentos: investigar o texto de Ferro como portador de uma variação do tópico da ressurreição bíblica, imagem recorrente no Novo Testamento da Bíblia cristã”. O seu objetivo é, pois, dadas essas prévias condições intertextuais e interdiscursivas, analisar essa relação, indicando como ela ocorre na obra e os prováveis sentidos produzidos na variação do tópico apontado. Do ponto de vista formal, destacamos a qualidade da escrita, sua correção, o uso muito apropriado da linguagem, a organização, a orientação argumentativa e domínio da produção de artigos/ensaios. A apresentação do texto demonstra elaboração, ideias claras, informações e discussões pertinentes e relevantes à leitura proposta, em partes bem articuladas, em acordo com o gênero. Do ponto de vista teórico-metodológico, suspeita-se que os seus objetivos poderiam ter abrigo em outras teorias da linguagem/discurso ou ter-se limitado à própria teoria literária e à literatura comparada. Mas o(a) autor(a) “fia-se” na perspectiva dialógica, na bivocalidade, em que o discurso ficcional reverte o sentido e nega o discurso religioso. Não faz referências explícitas ao dialogismo polêmico, embora figuras e alusões apropriem-se de outras vozes e discursos com manifestas intenções de subvertê-los e dessacralizá-los. A “perspectiva dialógica” compreende “a fundamentação teórica que sustenta a leitura”, limitada à apresentação de citações diretas extraídas de Problemas da poética de Dostoiévski, Estética da criação verbal e Questões de literatura e de estética, obras atribuídas a Bakhtin, mais Marxismo e Filosofia da Linguagem (Volóchinov), às vezes seguidas de simples comentários. Por isso não encontramos contribuições para a teoria/análise dialógica ou mesmo referência à importância do dialogismo para a crítica literária. Por outro lado, não são verificadas inadequações ou equívocos teóricos, o que nos faz crer ser o autor um capaz conhecedor dos escritos de Bakhtin e seu Círculo, cujo interesse é tão somente indicar o princípio dialógico que subjaz à leitura, revelado nas relações dialógicas, na sintaxe da apropriação e dos prováveis sentidos produzidos por alusões e novas figurações no romance analisado. Para essa “perspectiva dialógica” são convocados e definidos conceitos e categorias tais quais interação verbal, bivocalidade, responsividade, autorias, exotopia, refração, enunciado, profano, ironia, com a finalidade de esclarecer ou abonar o fazer interpretativo, as considerações relativas à dialogicidade entre os textos/discursos. O propósito do discurso citador é questionar as escrituras, suspeitar da ressurreição, vivificar essas mesmas escrituras com acento próprio, ironizar o discurso religioso. Um discurso produzido pela dor da perda. Trata-se, finalmente, de uma proposta que apresenta um entendimento privilegiado da bivocalidade, do discurso religioso, das sagradas escrituras e do romance, que deduz, nessa inter-relação entre textos/discursos, que o romance propõe transformar o texto sagrado em ficcionalidade, com imagens terrenas e profanas. E, nesse sentido, o texto cumpre o seu papel. Mais importante que sinalizar a relativa produtividade da fundamentação teórica, o ensaio tem o mérito de uma escrita bem cuidada, questões bem colocadas, respostas que contribuem para conhecimentos da literatura, do autor, da obra e dos temas apresentados. As qualidades apontadas sugerem a publicação do artigo. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    14 Jun 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O texto está bem escrito, com linguagem clara, objetiva e agradável. A temática é tratada com cientificidade: atende aos quesitos da Metodologia, da argumentação lógica e de outros parâmetros da Hermenêutica, além demonstrar exitosa pesquisa sobre o assunto. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    20 Set 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2023
  • Aceito
    20 Out 2023
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com