Acessibilidade / Reportar erro

Mutilação genital feminina: feminismos ocidentais, africanos e multiculturais

Female genital mutilation: Western, African and multicultural feminisms

Resumo

A mutilação genital feminina tem frequentemente colocado feministas africanas e ocidentais em lados opostos no que tange às compreensões sobre a prática e aos métodos para sua erradicação. Neste artigo, abordamos os argumentos desse antagonismo entre feministas ocidentais e africanas, e propomos estratégias para aliar tais perspectivas dentro de um feminismo multicultural.

Palavras-chave:
Mutilação genital feminina; Feminismo ocidental; Feminismo africano; Feminismo multicultural

Abstract

Female genital mutilation has often placed African and Western feminists on opposite sides when it comes to the practice and methods of eradicating it. In this article, we address the arguments of this antagonism between Western and African feminists and offer strategies to accommodate these perspectives within a multicultural feminism.

Keywords:
Female genital mutilation; Western feminism; African feminism; Multicultural feminism

1. Introdução

Quando lançada em 2015, a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabeleceu, como uma de suas metas, a erradicação das práticas cirúrgicas nas genitálias de meninas e mulheres1 1 O ODS 5 - Igualdade de gênero e seu alvo 5.3 - Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas tratam especificamente da MGF no contexto da Agenda 2030. Para mais detalhes, ver: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5> [Acesso em: 7 de novembro de 2020]. . Conhecida pelo termo de mutilação genital feminina (doravante, MGF), ela consiste da remoção parcial ou total do órgão genital feminino, sendo realizada tradicionalmente sem supervisão médica (TRUE, 2021TRUE, Jacqui. Violence Against Women: What Everyone Needs to Know®. Oxford: Oxford University Press, 2021., p. 25; WHO, 1997). Estima-se, ainda que de maneira imprecisa, que atualmente 200 milhões de meninas e mulheres são vítimas da MGF, principalmente no continente africano e em algumas regiões do Oriente Médio e da Ásia (KHALAF, 2013KHALAF, Ismail. Female genital cutting/mutilation in Africa deserves special concern: An overview. African Journal of Urology, v. 19, p. 119-122, 2013.; UNICEF, 2020).

A MGF é considerada pelas Nações Unidas e movimentos feministas de diferentes matizes como uma clara violação dos direitos humanos das crianças e mulheres. Para além dos danos à saúde da vítima, a prática fere a autonomia individual e a disposição sobre o próprio corpo. Porém, ao passo que essa perspectiva característica do discurso feminista ocidental é fundamental para o debate sobre a MGF, os entendimentos dos feminismos africanos sobre a MGF são igualmente importantes para a realização do objetivo de eliminação da prática. Entretanto, é frequente a acusação de feministas africanas de que suas perspectivas são flagrantemente ignoradas, sendo por vezes enquadradas em uma lógica de subalternidade frente ao feminismo mainstream ocidental (LARZEG, 2005LARZEG, Marnia. Decolonizing Feminism. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 67-80.; OSSOME, 2020OSSOME, Lyn. African Feminism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 159-170.; OYEWÙMÍ, 2003aOYEWÙMÍ, Oyèrónké. The White Woman’s Burden: African Women in Western Feminist Discourse. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003a. p. 25-43.).

Esse estranhamento entre feministas ocidentais de um lado e feministas africanas de outro remonta, mais recentemente, aos primeiros debates internacionais no contexto da Década da Mulher. Durante as quatro Conferências Mundiais da Mulher, as posições africanas frequentemente se contrapunham às das mulheres ocidentais, nomeadamente dos Estados Unidos e da Europa. Suas demandas de natureza socioeconômica e o reconhecimento dos papéis específicos das mulheres africanas em suas sociedades chocavam com os ideais de autonomia e liberdade individuais apregoados pelo feminismo ocidental. Não por acaso, os alinhamentos das feministas africanas estiveram, nesse período, mais próximos dos feminismos latino-americanos, asiáticos e do antigo mundo comunista (GHODSEE, 2010GHODSEE, Kristen. Revisiting the United Nations decade for women: Brief reflections on feminism, capitalism and Cold War politics in the early years of the international women’s movement. Women’s Studies International Forum, v. 33, p. 3-12, 2010.; LENINE; ONCAMPO, 2020LENINE, Enzo; ONCAMPO, Locarine. Recuperando a justiça de gênero e a África nas Conferências Mundiais da Mulher. Meridiano 47, Brasília, v. 21, p. E21009, 2020.), visto que, nessas regiões as questões de desenvolvimento e reconhecimento de funções sociais alternativas das mulheres eram fundamentais não só para os movimentos feministas autóctones, como também para sua própria teorização (MEDIE, 2019MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.doi.org/10.1093/acrefore/978...
; OSSOME, 2020OSSOME, Lyn. African Feminism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 159-170.). É dessa percepção de necessidades e constituições sociais distintas que emergem os feminismos africanos, inserindo-se pari passu aos debates mais amplos dos feminismos pós-coloniais e decoloniais tão característicos do Sul Global (MENDOZA, 2018MENDOZA, Breny. Coloniality of Gender and Power: From Postcoloniality to Decoloniality. In: DISCH, L.; HAWKESWORTH M. (orgs.). The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 100-121.; MOHANTY, 2003MOHANTY, Chandra Tapalde. Feminism Without Borders. Durham: Duke University Press, 2003.).

Nesse sentido, as diferentes perspectivas entre feminismos mainstream e africanos sobre a MGF alicerçam o debate sobre as estratégias para lidar com a prática. Neste artigo, apresentamos os pontos de divergência e convergência entre esses feminismos, visando a situar as discussões que fundamentam as soluções que hoje buscam combinar o reconhecimento cultural e os direitos humanos para atingir o objetivo de erradicação da MGF. Para tanto, realizamos uma ampla revisão da literatura de feminismo e gênero nas Relações Internacionais (doravante, RI) em suas intersecções com o Direito Internacional, nomeadamente no que tange aos entendimentos sobre direitos das mulheres e violência de gênero. Mapeamos o arcabouço normativo sobre violência de gênero, violência contra a mulher e, em particular, MGF do sistema das Nações Unidas, bem como da União Africana (UA, AU na sigla em inglês). Utilizamos uma abordagem interpretativa tanto das normas, quanto do discurso teórico para identificar os pontos de diálogo e de tensão no que tange à MGF. Ademais, mobilizamos os debates e as críticas feministas africanos sobre a questão em tela, especificamente no que tange aos discursos dos feminismos internacionais que informam as políticas e normas sobre o tema. Trata-se, portanto, de uma análise teórico-conceitual amparada nas normas internacionais, cujo objetivo consiste em contrapor distintas perspectivas feministas sobre violência de gênero, especificamente a MGF, com vistas a uma síntese dialógica entre posições diferenciadas. Demonstramos, nesse processo, que, mais do que um reducionismo simplista de visões supostamente antagônicas, existem pontos de contato essenciais para a construção de estratégias efetivas de transformação social no que tange à prática, as quais culminam em modalidades inovadoras de feminismo multicultural. Argumentamos, a partir da leitura feminista multicultural, que a participação de mulheres africanas em processos dialógicos de construção de normas sobre a MGF é passo fundamental no processo de transformação da realidade. Identificamos, outrossim, modalidades jurídicas de consecução desse objetivo em contexto africanos.

O artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, discutimos como se formou a agenda internacional sobre a MGF, especialmente no contexto dos organismos internacionais (nomeadamente, a Organização das Nações Unidas e suas agências). Na segunda seção, apresentamos as teorias feministas que informam o debate internacional sobre a MGF, o qual hoje a enquadra como uma violência de gênero que solapa os direitos das mulheres. Em seguida, discutimos as perspectivas feministas africanas sobre a MGF, mostrando os principais argumentos das mesmas vis-à-vis a prática em si e o feminismo internacional. Finalmente, na quarta seção, debatemos estratégias feministas multiculturais capazes de equacionar as diferentes questões suscitadas pelos feminismos ocidentais e africanos.

2. A política internacional da MGF

As estimativas em centenas de milhões de casos de MGF adquiriram relevância na política internacional principalmente no contexto dos movimentos feministas globais, bem como de direitos humanos (WINTER et al., 2002WINTER, Bronwyn; THOMPSON, Denise; JEFFREYS, Sheila. The UN Approach to Harmful Traditional Practices. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 4, n. 1, p. 72-94, 2002.). Os esforços por levar o tema à agenda internacional aprofundaram-se a partir de 1997, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS, WHO na sigla em inglês), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) elaboraram uma declaração conjunta sobre a prática, definindo o que se entende pela mesma; seus diversos tipos; as consequências para a saúde e suas múltiplas causas (WHO, 1997). Destaca-se nesse documento sua fundamentação nos acordos internacionais de direitos humanos (a Declaração Universal de Direitos Humanos e os Pactos complementares); de direitos das crianças (de 1990); na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a mulher (CEDAW, em inglês); na Declaração e no Programa de Ação de Viena; e na Declaração e Plataforma de Ação da Quarta Conferência Mundial da Mulher, todos estes com particular ênfase nas discriminações e violências de gênero. Esses instrumentos anteriores já demarcavam a MGF como uma prática discriminatória contra as mulheres, cristalizando o entendimento da mesma como uma manifestação de violência contra a mulher (ACNUDH, 1992; AGONU, 1993).

Sob os auspícios dessas agências, a declaração conjunta de 1997 se desdobrou em programas de ação variados, assim como em articulações para uma abordagem mais ampla da MGF no contexto das Nações Unidas. Como resultado desses esforços, e mais recentemente, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou uma resolução conclamando os Estados-membros a intensificarem seus esforços para a eliminação da prática (AGONU, 2012), a qual foi reafirmada em novas resoluções em 2014 (AGONU, 2014) e 2018 (AGONU, 2018). Esse reconhecimento pela Assembleia não só estabeleceu um compromisso mais abrangente com a erradicação da MGF, como também consagrou as recomendações e estratégias de outras instâncias do próprio sistema ONU. Vale destacar, ainda, que essas resoluções fazem referências aos instrumentos regionais da África que versam tanto sobre o tema de direitos das mulheres, como o Protocolo de Maputo (AU, 1993); como os que estabelecem os objetivos de desenvolvimento para o continente, nomeadamente a Agenda 2063 (UA, 2015). No quadro 1, são listados os principais instrumentos normativos sobre o tema.

Quadro 1
Marcos normativos internacionais sobre a MGF

A atenção ao tema dada nos instrumentos normativos regionais africanos não é acidental: o continente ainda abriga os maiores índices de prevalência da prática (KHALAF, 2013KHALAF, Ismail. Female genital cutting/mutilation in Africa deserves special concern: An overview. African Journal of Urology, v. 19, p. 119-122, 2013.; UNICEF, 2013). Na África, a MGF é realizada em diferentes países, atingindo crianças de 4 a 14 anos; e mulheres que estão prestes a se casar ou a ter seu primeiro filho. A figura 1 apresenta a prevalência da prática no continente. Não surpreende, nesse contexto, que, em 2020, Burkina-Faso tenha proposto, no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU e em nome dos países africanos, uma resolução mais assertiva em relação à MGF (EQUALITY NOW, 2020; ver também UNHRC, 2020).

Figura 1
Prevalência da MGF na África

Essa preocupação africana com relação à MGF assenta-se, principalmente, em suas múltiplas consequências, que envolvem aspectos não só da saúde das vítimas e das comunidades, como também elementos sociais, culturais, econômicos e políticos (TRUE, 2021TRUE, Jacqui. Violence Against Women: What Everyone Needs to Know®. Oxford: Oxford University Press, 2021.). A prática geralmente é realizada por curandeiros locais, que têm no procedimento sua fonte de renda, sendo comumente praticada com instrumentos inapropriados, como facas, lâminas de barbear, navalhas, tesouras ou bisturi, frequentemente sem o uso de anestesia (UNICEF, 2013). Essas condições não só impõem riscos de contaminação, como podem conduzir à morte, a depender do tipo de cirurgia realizada. Por tal razão, a OMS (2008) estabeleceu uma classificação das formas da MGF, visando a caracterizá-las e identificar os riscos associados a cada tipo de mutilação. O quadro 2 sintetiza essa classificação.

Quadro 2
Classificação da MGF

A diversidade de instrumentos normativos e as próprias iniciativas das diferentes agências da ONU revelam a complexidade do tema, reconhecendo a multiplicidade de causas sociais, culturais e econômicas subjacentes à prática, como as diversas consequências individuais e coletivas da mesma.2 2 No que tange às consequências médicas, alguns procedimentos de restauração da genitália - especialmente para os tipos II e III da MGF - apresentam sucesso principalmente para minimizar as dores e melhorar o prazer sexual (FOLDÈS et al., 2012). A questão do prazer, porém, é muito mais complexa, vez que envolve o entrelaçamento de elementos individuais, culturais e sociais. Para uma discussão sobre o tema de cirurgias de reparação da MGF, ver Boynton (2013). A linguagem dos direitos humanos e da violência de gênero - além da própria linguagem médica - têm caracterizado não só as ações e os instrumentos supracitados, como também os próprios debates feministas. Passamos a essa questão na sequência.

3. A MGF no feminismo global: violência de gênero e direitos das mulheres

Os movimentos feministas no Ocidente possuem uma longa história, comumente narrada por meio da ideia de três ondas que ensejam os principais ideais e debates de cada momento histórico do feminismo. De acordo com Hay (2020HAY, Carol. Think like a feminist: the philosophy behind the revolution. Nova Iorque: W. W. Norton Company, 2020.), a primeira onda remonta ao século XVIII, quando Olympe de Gouges, na França, e Mary Wollstonecraft, na Inglaterra, ecoaram reivindicações de igualdade de direitos entre homens e mulheres, algo que retornaria posteriormente no século XIX principalmente nos textos de John Stuart Mill. A segunda onda, por sua vez, expande, principalmente ao longo dos anos 1960 e 1970, essa agenda inicial para compreender como as instituições sociais, políticas e econômicas estabelecem desigualdades de poder entre homens e mulheres, criando opressões estruturadas em torno do gênero, conceito que emerge em parte como resultado das análises de Simone de Beauvoir e Betty Friedan (PINTO, 2010PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, História e Poder. Revista Sociologia & Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, 2010.). A mais recente terceira onda desenvolve-se nas últimas décadas do século XX, tendo como cerne analítico a problematização das teorias e dos movimentos feministas anteriores, centrados única e exclusivamente nas experiências de mulheres brancas, o que os levou a ignorar as diversidades de experiências de mulheres negras, do Sul Global, trans entre outras clivagens sociais e identitárias. Graças a esse questionamento, o léxico feminista ampliou-se de forma a incluir as diversas identidades assumidas pelos indivíduos, especialmente nos termos da raça, da classe e da sexualidade.3 3 Para uma revisão mais detalhada das três ondas, ver Zerilli (2006). Para uma versão alternativa dessa narrativa, ver Hawkesworth e Disch (2018).

Nas RI, o feminismo adentra as discussões epistemológicas a partir dos anos 1980, especificamente quando da publicação do dossiê temático sobre feminismos na revista Millennium: Journal of International Studies (GRECCO, 2020GRECCO, Gabriela de Lima. Feminismos y género en los Estudios Internacionales. Relaciones Internacionales, Madri, v. 44, p. 127-145, 2020.; LENINE, 2021LENINE, Enzo. Relaciones Internacionales Feministas: silencios, diálogos y ausencias. Estudios Inernacionales, Santiago, v. 200, 2021, pp. 79-104.) e com a publicação em 1992 do livro Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security, de J. Ann Tickner.4 4 Nos Estados Unidos da América, o livro de Cynthia Enloe (1989/2014), Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Relations, marcou a discussão sobre feminismo nas RI. Esses marcos lançaram um profundo debate feminista que não só trouxe as mulheres para a cena dos estudos de RI, como sublinhou a relevância de se investigarem as experiências e vivências das mesmas (ACKERLY et al., 2006ACKERLY, Brooke A.; STERN, Maria; TRUE, Jacqui. Feminist methodologies for International Relations. In: ACKERLY, B. A.; STERN, M.; TRUE, J. (orgs.). Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 1-15.; ENLOE, 2014ENLOE, Cynthia. Bananas, Beaches and Bases: Making feminist sense of international politics. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2014.; TICKNER, 2001TICKNER, J. Ann. Gendering World Politics. Nova Iorque: Columbia University Press, 2001.). Neles, destaca-se o recorrente uso da categoria gênero, caudatária das análises feministas em outras disciplinas. Como chave conceitual,

[o] ‘gênero’ abriu todo um conjunto de questões analíticas sobre como e em que condições diferentes papéis e funções foram definidos para cada sexo; como os próprios significados das categorias ‘homem’ e ‘mulher’ variaram de acordo com o tempo, o contexto e o lugar; como as normas regulatórias de conduta sexual foram criadas e aplicadas; como questões de poder e direitos influenciaram definições de masculinidade e feminilidade; como as estruturas simbólicas afetaram as vidas e práticas das pessoas comuns; como as identidades sexuais foram forjadas dentro e contra as prescrições sociais. (SCOTT, 2010SCOTT, Joan Wallach. Gender: Still a Useful Category of Analysis? Diogenes, Paris, v. 225, p. 7-14, 2010., p. 9)

Ao lançar foco sobre as mulheres, recorrendo à análise de gênero, as feministas nas RI trouxeram à tona temas antes ignorados, tais como: as formas como os ideários de masculinidade e feminilidade estruturam instituições do sistema internacional (AGGESTAM; TOWNS, 2018AGGESTAM, Karin; TOWNS, Ann E. Introduction: The Study of Gender, Diplomacy and Negotiation. In: AGGESTAM, K.; TOWNS, A. E. (orgs.). Gendering Diplomacy and International Negotiation. Cham: Palgrave, 2018. p. 1-22.; ENLOE, 2000ENLOE, Cynthia. Maneuvers: The International Politics of Militarizing Women’s Lives. Berkeley: University of California Press, 2000.; LENINE; PEREIRA, 2021LENINE, Enzo. Relaciones Internacionales Feministas: silencios, diálogos y ausencias. Estudios Inernacionales, Santiago, v. 200, 2021, pp. 79-104.; MATHERS, 2013MATHERS, Jennifer G. Women and State Military Forces. In: COHN, C. (org.). Women & Wars. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 124-145.); como essas próprias definições de masculinidade se demonstram hegemônicas, posicionando os indivíduos não só de maneira desigual, mas tornando as mulheres particularmente mais vulneráveis em diversas dimensões da arena internacional (COHN, 2013COHN, Carol. Women and Wars: Toward a Conceptual Framework. In: COHN, C. (org.). Women & Wars. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 1-35.; DURIESMITH, 2018DURIESMITH, David. Manly States and Feminist Foreign Policy: Revisiting the Liberal State as an Agent of Change. In: PARASHAR, S.; TICKNER, J. A.; TRUE, J. (orgs.). Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 51-68.; GUNAWARDANA, 2018GUNAWARDANA, Samanthi J. Gendered State Assemblages and Temporary Labor Migration: The Case of Sri Lanka. In: PARASHAR, S.; TICKNER, J. A.; TRUE, J. (orgs.). Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 85-101.; TICKNER, 2001TICKNER, J. Ann. Gendering World Politics. Nova Iorque: Columbia University Press, 2001.); e, dentro dessas vulnerabilidades, especial atenção é dada à violência de gênero (BAAZ; STERN, 2009BAAZ, Maria Eriksson; STERN, Maria Stern. Why Do Soldiers Rape? Masculinity, Violence and Sexuality in the Armed Forced in the Congo (DRC). International Studies Quarterly, Oxford, v. 53, n. 2, p. 495-518, 2009.; SHEPHERD, 2008SHEPHERD, Laura J. Gender, Violence & Security. Londres: Zed Books, 2008.; SJOBERG, 2016SJOBERG, Laura. Women as Wartime Rapists: Beyond Sensation and Stereotyping. New York: New York University Press, 2016.; TRUE, 2012TRUE, Jacqui. The Political Economy of Violence Against Women. Oxford: Oxford University Press, 2012., 2021).

A violência de gênero e, dentro de suas diversas manifestações, a violência contra a mulher tem, cada vez mais, chamado a atenção das feministas em RI, as quais, por sua vez, informam as políticas internacionais sobre o tema. Parte da literatura sobre violência de gênero desenvolveu-se no âmbito dos estudos feministas de segurança, com um particular enfoque na violência sexual (GERECKE, 2010GERECKE, Megan. Explaining Sexual Violence in Conflict Situations. In: SJOBERG, L.; VIA, S. (orgs.). Gender, War, and Militarism: Feminist Perspectives. Santa Barbara: Praeger Security International, 2010. p. 138-154.), especialmente como resultado das atrocidades e crimes contra a humanidade observados nos anos 1990 no contexto dos conflitos na Bósnia-Herzegovina e em Ruanda (GALLIMORE, 2010; HANSEN, 2001). As explicações resultantes da análise de casos dessa natureza acabaram por assumir um enfoque eminentemente causal, o que, segundo Davis e True (2015), desvia a atenção para como as desigualdades de gênero se estruturam em dinâmicas complexas que não se resumem a um único fator determinante.

Não por acaso, Shepherd (2008SHEPHERD, Laura J. Gender, Violence & Security. Londres: Zed Books, 2008., p. 51) defende uma abordagem das violências de gênero que as compreenda como atos generificados e generificantes, que estabelecem narrativas e discursos para além da materialidade de um determinado ato violento. Se as violências resultam do sistema masculino hegemônico (Ayiera, 2010AYIERA, Eve. Sexual violence in conflict: A problematic international discourse. Feminist Africa, Acra, v. 14,p. 7-20, 2010.; ver também Connell, 2005), o qual codifica as mulheres como indivíduos subalternizados pelo seu gênero, a análise das mesmas perpassa, necessariamente, a compreensão das múltiplas faces da subordinação de gênero cristalizadas na sociedade, uma vez que são as hierarquias de gênero que garantem o mandato de dominação do homem sobre a mulher. Tal dominação se manifesta nos atos violentos, na restrição de liberdades e direitos das mulheres, na discriminação institucional e familiar baseada no gênero e, finalmente, nas violações cotidianas e normalizadas da integridade física e corporal das mulheres (DAVIS; TRUE, 2015: 507).

No que tange especificamente à MGF, a análise de gênero aplicada por feministas das RI evidencia as normas sociais e crenças culturais subjacentes à prática como elementos estruturantes dessa violência. True (2021TRUE, Jacqui. Violence Against Women: What Everyone Needs to Know®. Oxford: Oxford University Press, 2021., pp. 65-66) destaca que, nas sociedades onde a MGF persiste, a prática é vista como um ritual de passagem associado à identidade cultural e ao pertencimento ao grupo nacional. Ademais, percepções generificadas sobre a genitália feminina - tais como impura ou mesmo masculina (especificamente, o clitóris) - também desempenham um papel na manutenção da MGF. Independentemente das motivações por trás da prática, a mesma é enquadrada pelas feministas das RI como uma violência de gênero, e tal enquadramento informa a linguagem das resoluções internacionais que tratam dos direitos das mulheres e das violências (HARCOURT, 2014HARCOURT, Wendy. Review Essay: Sexuality in International Development Studies. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 16, n. 3, p. 515-522, 2014.; MANDERSON, 2004MANDERSON, Lenore. Local Rites and Body Politics. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 6, n. 2, p. 285-307, 2004.).

Essa linguagem é, em si, problemática, vez que ela se apoia fundamentalmente em uma divisão de mundo que reforça o papel hegemônico do Ocidente, especialmente ao tratá-lo - ou dar a impressão de que o trata - como desprovido de tradições ou culturas nocivas às mulheres (VOLPP, 2001VOLPP, Leti. Feminism versus Multiculturalism. Columbia Law Review, Nova Iorque, v. 101, n. 5, p. 1181-1218, 2001.; WINTER et al., 2002WINTER, Bronwyn; THOMPSON, Denise; JEFFREYS, Sheila. The UN Approach to Harmful Traditional Practices. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 4, n. 1, p. 72-94, 2002.: 72). Não por acaso, a relação dos feminismos africanos com a MGF perpassa pelo equacionamento dessa linguagem ocidental - que remonta às experiências do colonialismo - com o desiderato de erradicar uma prática nociva às mulheres, mas com fortes apelos culturais, sociais, políticos e econômicos.

Nesse sentido, a atenção aos efeitos persistentes do colonialismo é enfatizada pela virada pós-colonial e decolonial observada no Sul Global, principalmente nos contextos africanos (MEKGWE, 2006MEKGWE, Pinkie. Theorizing African Feminism(s): The Colonial ‘Question’. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, p. 11-22, 2006.; OSSOME, 2020OSSOME, Lyn. African Feminism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 159-170.; OYEWÙMI, 2003aOYEWÙMÍ, Oyèrónké. The White Woman’s Burden: African Women in Western Feminist Discourse. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003a. p. 25-43., 2021), latino-americanos (BALLESTRIN, 2017BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Feminismos Subalternos. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1035-1054, 2017.; LUGONES, 2010; MENDOZA, 2018MENDOZA, Breny. Coloniality of Gender and Power: From Postcoloniality to Decoloniality. In: DISCH, L.; HAWKESWORTH M. (orgs.). The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 100-121.) e asiáticos (MOHANTY, 2003MOHANTY, Chandra Tapalde. Feminism Without Borders. Durham: Duke University Press, 2003.; SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). Os feminismos pós-coloniais, decoloniais e subalternos visam a situar o colonialismo como um eixo analítico central para a constituição das violências experimentadas pelas populações do Sul Global, principalmente por meio da introdução do racismo e das hierarquias de gênero coloniais (BALLESTRIN, 2017; LUGONES, 2010). A colonização e suas diversas dicotomias (Ocidente vs. Oriente, civilizado vs. primitivo, racional vs. cultural) estabeleceram marcadores para os corpos dos indivíduos colonizados, impondo-lhes uma condição de subalternidade alicerçada na violência física e simbólica (MENDOZA, 2018). Os processos de independência de nações outrora colonizadas (seja no século XIX, seja no século XX) mantiveram esses marcadores, e, consequentemente, as estruturas de subordinação e violência neles ensejadas. Como reação a esse fenômeno, as abordagens pós-coloniais, subalternas e decoloniais, bem como os feminismos pós-coloniais, decoloniais e subalternos, identificam essas estruturas de subordinação e ressignificam a violência como parte de um projeto colonial que ainda perdura, e que trata os corpos dos indivíduos subalternos como mais um domínio a ser colonizado e explorado. No caso das mulheres, os atos violentos reproduzem uma lógica de domínio territorial no qual o locus de colonização é seu próprio corpo, tanto em sua materialidade anatômica, como na sua individualidade, autonomia e, sobremaneira, agência (GAGO, 2020; LENINE, GONÇALVES, 2021LENINE, Enzo. Relaciones Internacionales Feministas: silencios, diálogos y ausencias. Estudios Inernacionales, Santiago, v. 200, 2021, pp. 79-104.; SEGATO, 2016).

4. Feminismos africanos e a prática da MGF

Diferentemente dos feminismos ocidentais, o desenvolvimento histórico das perspectivas feministas africanas deu-se por meio de eras políticas, cujo eixo analítico central é o elemento do colonialismo (GOREDEMA, 2010GOREDEMA, Ruvimbo. African Feminism: the African woman’s struggle for identity. African Yearbook of Rhetoric, Cidade do Cabo, v. 1, n. 1, p. 33-41, 2010.). Dessa forma, a pluralidade de abordagens atualmente presentes no continente africano e na diáspora não resultaria de uma repetição das ondas feministas, mas sim de uma abordagem que reconhece as resistências das mulheres africanas à colonização e à hegemonia ocidentais. No entanto, isso não implica perder de vista as interações entre os feminismos autóctones e os feminismos globais em um momento no qual as mulheres adentram na vida política e econômica do continente (OSSOME, 2020OSSOME, Lyn. African Feminism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 159-170.). Destarte, questões como liberdade, democracia, direitos humanos e violência de gênero fazem parte do léxico feminista africano (MAMA, 2004MAMA, Amina. Demythologising Gender in Development: Feminist Studies in African Contexts. IDS Bulletin, Falmer, v. 35, n. 4, p. 121-124, 2004.; MEDIE, 2019MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.doi.org/10.1093/acrefore/978...
; TRIPP, 2003TRIPP, Aili Mari. Women in Movement Transformations in African Political Landscapes. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 5, n. 2, p. 233-255, 2003.), reconhecendo os elementos distintivos das estruturas de poder subjacentes ao gênero e suas intersecções com raça, etnia, sexualidade, idade, classe entre outras clivagens (GOREDEMA, 2010; YACOB-HALISO, 2018).

Evidentemente, a terminologia feminismos africanos não implica a existência de um todo coerente, seja porque distinções substantivas entre os movimentos e mulheres africanas nas cidades e movimentos de mulheres no campo produzem agendas e reflexões diferentes (OSSOME, 2020OSSOME, Lyn. African Feminism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 159-170.: 164); seja porque a relação com os feminismos internacionais oscila entre uma crítica afrocentrada radical (DOVE, 1998DOVE, Nah. Womanism: An Afrocentric Theory. Journal of Black Studies, v. 28, n. 5, p. 515-539, 1998.; HUDSON-WEEMS, 2021HUDSON-WEEMS, Cleonora. Mulherismo Africana: Recuperando a nós mesmos. São Paulo: Editora Ananse, 2021.; NNAEMEKA, 2003NNAEMEKA, Obioma. Nego-Feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa’s Way. Signs, Chicago, v. 29, n. 2, p. 357-385, 2003.; OGUNDIPE-LESLIE, 1994OGUNDIPE-LESLIE, Molara. Re-Creating Ourselves: African Women & Critical Transformations. Trenton: Africa World Press, 1994.; OGUNYEMI, 1985OGUNYEMI, Chikwenye Okonjo. Womanism: The Dynamics of the Contemporary Black Female Novel in English. Signs, Chicago, v. 11, n. 1, p. 63-80, 1985.) e um diálogo conciliador (MEDIE, 2019MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.doi.org/10.1093/acrefore/978...
; OSSOME, 2020; TRIPP, 2003TRIPP, Aili Mari. Women in Movement Transformations in African Political Landscapes. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 5, n. 2, p. 233-255, 2003.). Nesse sentido, a própria definição das agendas feministas africanas é sujeita a tensões internas, que revelam não só o intenso debate entre movimentos e teóricas feministas, como também a multiplicidade de questões que lhes são caras, como seu papel nos movimentos de descolonização (FIGUEIREDO; GOMES, 2016FIGUEIREDO, Angela; GOMES, Patrícia Godinho. Para Além dos Feminismos: Uma experiência comparada entre Guiné-Bissau e Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 24, n. 3, p. 909-927, 2016.; LY, 2014LY, Aliou. Promise and betrayal: Women fighters and national liberation in Guinea Bissau. Feminist Africa, Acra, v. 19, p. 24-42, 2014.); suas reações aos programas de ajuste estrutural no continente (MAMA, 2004MAMA, Amina. Demythologising Gender in Development: Feminist Studies in African Contexts. IDS Bulletin, Falmer, v. 35, n. 4, p. 121-124, 2004., 2011); o lugar da família e da comunidade nas perspectivas feministas autóctones (AMADIUME, 2015AMADIUME, Ifi. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society. Londres: Zed Books, 2015.; LANDALUZE; ESPEL, 2014LANDALUZE, Iker Zirion; ESPEL, Leire Idarraga. Los feminismos africanos. Las mujeres africanas ‘en sus propios términos’. Relaciones Internacionales, Madri, v. 27, p. 35-54, 2014.; MEKGWE, 2006MEKGWE, Pinkie. Theorizing African Feminism(s): The Colonial ‘Question’. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, p. 11-22, 2006.); e as violências de gênero em tempos de paz e de conflito (BAAZ; STERN, 2013BAAZ, Maria Eriksson; STERN, Maria. Sexual Violence as a Weapon of War? Perceptions, Prescriptions, Problems in the Congo and Beyond. Londres: Zed Books, 2013.; BENNETT, 2010BENNETT, Jane. ‘Circles and circles’: Notes on African feminist debates around gender and violence in the c21. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 21-47, 2010.; EKINE, 2010EKINE, Sokari. Women’s Responses to State Violence in the Niger Delta. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 67-83, 2010.; LENINE; GONÇALVES, 2021LENINE, Enzo. Relaciones Internacionales Feministas: silencios, diálogos y ausencias. Estudios Inernacionales, Santiago, v. 200, 2021, pp. 79-104.; SADIQI, 2010SADIQI, Fatima. Domestic Violence in the African North. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 49-62, 2010.), apenas para mencionar algumas. É nesse complexo emaranhado de temas e abordagens que se inserem as discussões sobre a prática da MGF.

O fato de a África concentrar os principais loci onde meninas e mulheres passam por processos de mutilação genital acaba por mobilizar as feministas do continente e na diáspora sobre a temática. A sensibilidade do tema desperta diferentes reações que, longe de constituírem uma posição inequívoca e unidirecional, refletem concepções diversas sobre significados culturais, sociais, políticos e econômicos da prática. Nesse contexto, é possível identificar reflexões mais alinhadas com as campanhas e normas internacionais (BANYA, 2015BANYA, Moiyattu. Akara, Ampe and Fine Girls. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 17, n. 2, p. 338-344, 2015.; MEDIE, 2019MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.doi.org/10.1093/acrefore/978...
), como perspectivas mais suspeitas dos feminismos ocidentais (MURUNGA, 2005MURUNGA, Godwin Rapando. African Women in the Academy and Beyond: Review Essay. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 397-416.; OKOME, 2003OKOME, Mojúbàolú Olúnfunké. What women, whose development? A critical analysis of reformist feminist evangelism on African women. In: OYEWÙMÍ, O. (Oog.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003. p. 67-98.; OYEWÙMÍ, 2003aOYEWÙMÍ, Oyèrónké. The White Woman’s Burden: African Women in Western Feminist Discourse. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003a. p. 25-43.).

As suspeitas acerca do interesse do Ocidente na prática originam-se da complicada relação entre Ocidente e África. A mulher africana, desde o período da escravização e mais profundamente ao longo dos séculos XIX e XX, quando do desenvolvimento da medicina moderna, tem sido representada de formas que não só objetificam seu corpo, como o tornam um locus anormal de raça, sexualidade e moralidade (HOOKS, 2019HOOKS, bell. Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019.; MANDERSON, 2004MANDERSON, Lenore. Local Rites and Body Politics. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 6, n. 2, p. 285-307, 2004.). Sarah Baartman, também conhecida como a “Vênus Hottentote”, constitui talvez o maior exemplo do fetichisimo europeu nas representações das mulheres, confluindo os ideais ocidentais das mulheres africanas como detentoras de um corpo primitivo, de sexualidade anormal e descontrolada (MANDERSON, 2004; WISS, 1994WISS, Rosemary (1994). Lipreading: The Story of Saartjie Baartman. Australian Journal of Anthropology, v. 5, n. 3, p. 11-40, 1994.). Esse histórico não se restringe, porém, a uma relíquia do passado: a literatura e o cinema contemporâneos têm contribuído para a manutenção dessas imagens, e, no caso específico da MGF, cristalizam o nexo causal entre ser africana e ter sido vítima da prática (MANDERSON, 2004; OYEWÙMÍ, 2003bOYEWÙMÍ, Oyèrónké. Alice in Motherland: Reading Alice Walker on Africa and Screening the Color ‘Black’. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press 2003b. p. 159-185.). Prevalece, como salienta Oyewùmi (2003bOYEWÙMÍ, Oyèrónké. Alice in Motherland: Reading Alice Walker on Africa and Screening the Color ‘Black’. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press 2003b. p. 159-185.), um sensacionalismo acerca da MGF, que atua como obstáculo para a compreensão mais ampla dos significados da mesma.

A circuncisão feminina, como a prática é chamada por algumas feministas africanas, insere-se em um contexto mais complexo do tecido social de diferentes sociedades presentes em distintos espaços geográficos e momentos históricos nas Américas, Europa, África e Ásia (NNAEMEKA, 2005NNAEMEKA, Obioma. Bringing African Women into the Classroom: Rethinking Pedagogy and Epistemology. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 51-65.). Seus significados são variados, estando associados às maneiras como cada sociedade organiza as relações entre seus membros (MANDERSON, 2004MANDERSON, Lenore. Local Rites and Body Politics. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 6, n. 2, p. 285-307, 2004.). De modo geral, a prática confere o lastro de pertencimento à coletividade, abrindo oportunidades às mulheres dentro da mesma, tal como a melhoria de sua situação socioeconômica principalmente por meio do casamento (OLEGÁRIO; COBERLLINI, 2017OLEGÁRIO, Letícia Zimmer; CORBELLINI, Mariana Dalalana. A Mutilação Genital Feminina no Continente Africano sob a Perspectiva Feminista. Revista Artémis, João Pessoa, v. XXIII, n. 1, p. 138-148, 2017.). No entanto, e embora se reconheça a prática como uma manifestação patriarcal de exercício de poder sobre as mulheres (MEDIE, 2019MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.doi.org/10.1093/acrefore/978...
; SAADAWI, 2015SAADAWI, Nawal el. The Hidden Face of Eve. Londres: Zed Books, 2015.), as feministas africanas chamam a atenção para a maneira sensacionalista e simplista como é tratada a temática justamente porque ela estabelece uma relação dicotômica de Ocidente/civilizado vs. África/selvagem (GUNNING, 1995GUNNING, Isabelle. R. Female Genital Surgeries and Multicultural Feminism: The Ties that Bind; the Differences that Distance. Third World Legal Studies, Valparaiso, v. 13, p. 17-47, 1995.; WINTER el al., 2002WINTER, Bronwyn; THOMPSON, Denise; JEFFREYS, Sheila. The UN Approach to Harmful Traditional Practices. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 4, n. 1, p. 72-94, 2002.). Tal relação resulta dos modos de dominação colonial que necessitaram de estruturas de poder dicotômicas baseadas em conceitos de raça e gênero para se sustentarem (BALLESTRIN, 2017BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Feminismos Subalternos. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1035-1054, 2017.). O colonialismo europeu no continente africano, sobremaneira, desestabilizou as vidas das sociedades locais, criando novas estruturas de poder capazes de simultaneamente eliminar as estruturas autóctones e fortalecer os elementos patriarcais pré-existentes e criados pelo domínio colonial. Dessa maneira, os significados originais da prática se turvam diante das imposições coloniais nas sociedades africanas.

Na leitura das feministas africanas críticas às campanhas globais contra a MGF, a incapacidade do feminismo mainstream de compreender as demandas das mulheres africanas (e do Sul Global de maneira mais ampla) resulta no reducionismo da circuncisão a um exercício de controle dos homens sobre os corpos e a sexualidade das mulheres, além de ignorar a agência das próprias africanas no que tange à ressignificação da prática (NFAH-ABBENYI, 2005NFAH-ABBENYI, Juliana Makuchi. Gender, Feminist Theory, and Post-Colonial (Women’s) Writing. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 259-278., p. 268). Essa postura confrontacional do Ocidente dificulta a transformação cultural necessária para que a prática seja eliminada. Como se trata de um fenômeno que envolve uma complexa rede de relações sociais e de poder, a mera imposição de normas sem o prévio debate entre as comunidades praticantes é vista como um atentado imperialista, cuja consequência imediata é justamente oposta ao desejado: a prática persiste como forma de resistência ao neocolonialismo (OYEWÙMÍ, 2003aOYEWÙMÍ, Oyèrónké. The White Woman’s Burden: African Women in Western Feminist Discourse. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003a. p. 25-43.).

Sob uma perspectiva mais dialógica com os feminismos globais, outras feministas africanas buscam encontrar denominadores comuns para erradicarem uma das mais persistentes violências contra a mulher no continente. Há um entendimento entre essas feministas africanas de que a prática deve ser reconsiderada pelos danos que ela causa às mulheres (BANYA, 2015BANYA, Moiyattu. Akara, Ampe and Fine Girls. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 17, n. 2, p. 338-344, 2015.); por se tratar de uma violência de gênero (MEDIE, 2019MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.doi.org/10.1093/acrefore/978...
); e por refletir a política patriarcal sobre o corpo e a sexualidade femininos (WINTER et al., 2002WINTER, Bronwyn; THOMPSON, Denise; JEFFREYS, Sheila. The UN Approach to Harmful Traditional Practices. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 4, n. 1, p. 72-94, 2002.). Sob essa óptica, o enquadramento da MGF dentro do léxico dos feminismos globais cumpre o objetivo de eliminar práticas que desrespeitam a dignidade da mulher africana e que se valem de argumentos de preservação da cultura para se manterem (APUSIGAH, 2006APUSIGAH, Agnes Atia. Is Gender Yet Another Colonial Project? A critique of Oyeronke Oyewumi’s proposal. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, 2006, p. 23-44, 2006.; AYIERA, 2010AYIERA, Eve. Sexual violence in conflict: A problematic international discourse. Feminist Africa, Acra, v. 14,p. 7-20, 2010.; EZE, 2006EZE, Chielozona. African Feminism: Resistance or Resentment. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, p. 97-118, 2006.).

Embora pareçam, à primeira vista, antagônicas, essas abordagens da questão confluem para alguns pontos em comum, nomeadamente no que tange à necessidade de diálogo entre culturas para a eliminação da prática (OYEWÙMÍ, 2003bOYEWÙMÍ, Oyèrónké. Alice in Motherland: Reading Alice Walker on Africa and Screening the Color ‘Black’. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press 2003b. p. 159-185.; OKOME, 2003OKOME, Mojúbàolú Olúnfunké. What women, whose development? A critical analysis of reformist feminist evangelism on African women. In: OYEWÙMÍ, O. (Oog.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003. p. 67-98.), como também no reconhecimento de que os feminismos ocidentais representam uma visão de mundo frequentemente associada às demandas dos Estados Unidos da América e da Europa, em uma patente reprodução de políticas e discursos neocolonais (LARZEG, 2005LARZEG, Marnia. Decolonizing Feminism. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 67-80.; TAIWO, 2003TAIWO, Olufemi. Feminism and Africa: Reflections on the Poverty of Theory”. In OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton, Africa World Press, 2003. p. 45-66.; WINTER et al., 2002WINTER, Bronwyn; THOMPSON, Denise; JEFFREYS, Sheila. The UN Approach to Harmful Traditional Practices. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 4, n. 1, p. 72-94, 2002.).

5. Estratégias feministas multiculturais de combate à MGF

Consideradas as diferentes abordagens feministas do problema, faz-se mister verificar como os pontos de convergência entre elas permitem traçar estratégias de enfrentamento da prática que respeitem, de um lado, a autonomia e a liberdade individuais; e as formas como as construções históricas e culturais das sociedades africanas veem a MGF, de outro. Nesse contexto, é imprescindível uma resposta que abarque simultaneamente os direitos humanos associados aos indivíduos afetados pela prática, mas também a coletividade de maneira mais ampla, sem, com isso, cair no relativismo. Como salienta Oyewùmi:

A prática [da circuncisão/MGF] deve ser interpretada dentro do contexto cultural e histórico de cada sociedade; temos que ver como ela funciona e se ajusta a outras instituições antes de começarmos a fazer qualquer tipo de avaliação ou julgamento sobre seu propósito ou significado. (OYEWÙMÍ, 2003bOYEWÙMÍ, Oyèrónké. Alice in Motherland: Reading Alice Walker on Africa and Screening the Color ‘Black’. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press 2003b. p. 159-185., p. 167)

Nesse sentido, a proposta de uma abordagem multicultural feminista é fundamental para que se tracem estratégias de diálogo intercultural e transformação social. Tais diálogos permitem às sociedades compreender a igualdade de gênero não como um instrumento de dominação neocolonial, mas sim como uma forma de transformar a sociedade com o objetivo de assegurar direitos fundamentais às mulheres (GUNNING, 1995GUNNING, Isabelle. R. Female Genital Surgeries and Multicultural Feminism: The Ties that Bind; the Differences that Distance. Third World Legal Studies, Valparaiso, v. 13, p. 17-47, 1995.). Okome destaca, por exemplo, que as sociedades iorubá apresentam diferentes entendimentos sobre a prática: em algumas comunidades, a MGF é praticada, enquanto em outras é rejeitada. Porém, a interação entre sociedades com perspectivas distintas sobre a MGF tem levado à transformação cultural das que realizam a prática, demonstrando, na visão da autora, que o diálogo intercultural é um mecanismo mais eficiente e, sobremaneira, respeitoso às diferenças culturais de lidar com a questão (OKOME, 2003OKOME, Mojúbàolú Olúnfunké. What women, whose development? A critical analysis of reformist feminist evangelism on African women. In: OYEWÙMÍ, O. (Oog.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003. p. 67-98., p. 71).

Essa abordagem dialógica caracteriza os debates feministas multiculturais, que buscam equacionar dois projetos aparentemente conflitantes: de um lado, combater as relações desiguais entre homens e mulheres; e de outro, combater as hierarquias injustas entre grupos majoritários e minoritários (KYMLICKA; RUBIO-MARÍN, 2018KYMLICKA, Will; RUBIO-MARÍN, Ruth. The Participatory Turn in Gender Equality and its Relevance for Multicultural Feminism. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 1-45.). Frente a tal desafio, o diálogo, a democratização e o empoderamento feminino são vistos como estratégias para incluir as mulheres nos processos de formulação de normas e direitos, e, em última instância, na própria transformação cultural das coletividades às quais pertencem (PHILLIPS, 2018PHILLIPS, Anne. Democratizing Against the Grain. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 46-65., p. 47; ver também BENHABIB, 2002BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton: Princeton University Press, 2002., pp. ix-xi). Como sintetizam Kymlicka e Rubio-Marín:

[...] as feministas multiculturais têm buscado uma maneira de superar o paradoxo da vulnerabilidade multicultural, não rejeitando o multiculturalismo e contando com leis e tribunais externos, mas sim facilitando os processos de debate e reforma dentro de grupos minoritários. E isso, por sua vez, levou ao que podemos chamar de uma segunda “virada participativa”, desta vez em relação aos processos internos de tomada de decisão de grupos minoritários. (KYMLICKA; RUBIO-MARÍN, 2018KYMLICKA, Will; RUBIO-MARÍN, Ruth. The Participatory Turn in Gender Equality and its Relevance for Multicultural Feminism. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 1-45., p. 6)

Essa virada participativa tem como foco fortalecer a voz das mulheres nos grupos minoritários aos quais pertencem, assegurando-lhes participação não só nas instituições formais do Estado, mas também nos sistemas consuetudinários de decisão de seus próprios grupos (WILLIAMS, 2011WILLIAMS, Susan H. Democracy, Gender Equality, and Customary Law: Constitutionalizing Internal Cultural Disruption. Indiana Journal of Global Legal Studies, Bloomington, v. 18, n. 1, p. 65-85, 2011.). Concretamente, as abordagens feministas multiculturais informam estratégias variadas, dentre as quais se destacam aquelas centradas no ajuste dos sistemas jurídicos para garantir que os ordenamentos consuetudinários locais não sirvam de justificativa histórica e cultural para a perpetração da MGF. Algumas experiências africanas assentam-se nessa estratégia, como são os casos da África do Sul, Libéria e Tanzânia, conferindo maior participação das mulheres não só nos processos políticos, como também nos aparatos jurídicos nacionais e de direito consuetudinário (BOND, 2018BOND, Johanna. “The Challenges of Parity: Increasing Women’s Participation in Informal Justice Systems within Sub-Saharan Africa”. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 175-198.; WILLIAMS, 2018). Percebe-se que, quando as mulheres africanas se inserem nessas esferas decisórias de caráter político e jurídico, a acomodação de cultura e direitos humanos favorece a eliminação de práticas nocivas às mulheres. Nesse contexto, Williams enumera algumas estratégias para abraçar sistemas de lei consuetudinária autóctones no ordenamento jurídico mais amplo do Estado, especificamente no que tange à promoção de igualdade de gênero, quais sejam: 1. provisões constitucionais que limitam as proteções à lei consuetudinária às práticas consistentes com a igualdade e os direitos humanos; 2. proibição explícita das práticas culturais que afetam as mulheres, tais como a MGF; 3. criação e garantia de espaços para mulheres nos sistemas de formação da cultura, dos costumes e, por conseguinte, da lei (WILLIAMS, 2018, pp. 155-157). No caso específico da MGF, a proibição total e explícita não poderia ser dissociada de uma transformação social mais ampla, especificamente por meio de políticas públicas no nível educacional (Ibid., p. 164) e de participação política feminina (BOND, 2018, pp. 190-195).

Como se pode perceber, a perspectiva feminista multicultural oferece um denominador possível entre as posições do feminismo global, inclusive aquelas associadas aos debates feministas nas RI que informam parcela das políticas internacionais de gênero; e as posições dos feminismos africanos, sejam aquelas mais críticas e suspeitas das campanhas globais contra a MGF, sejam as mais dialógicas, mas que ainda ponderam os elementos neocoloniais presentes no discurso feminista internacional. Em larga medida, a perspectiva feminista multicultural, ao propor um espaço deliberativo dentro e fora dos contextos africanos, converge com as demandas das feministas africanas por respeito mútuo no tratamento do tema, especialmente no que tange à busca de soluções orquestradas em conjunto com as mulheres africanas afetadas pela prática da MGF. Um exemplo emblemático de que tal caminho é possível está cristalizado no Protocolo de Maputo, que, como Sheldon (2020SHELDON, Kathleen. Women in Africa and Pan-Africanism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 330-342., p. 336) afirma, estabeleceu um precedente no direito internacional no que tange à erradicação da MGF.

Outrossim, a compreensão da autonomia como capacidade de agência individual é fundamental para ensejar a transformação sociocultural da prática. Como elemento crucial da perspectiva feminista ocidental, a autonomia presume - ou deve presumir - a capacidade de agência da mulher frente às situações definidas como violência de gênero e sua relação com as mesmas. DeLargy, no contexto da violência sexual, salienta que reduzir a mulher a uma categoria que não necessariamente a define (qual seja, a de vítima de uma violência) implica a negação da agência da própria mulher e suas prioridades (DELARGY, 2013DELARGY, Pamela. Sexual Violence and Women’s Health in War. In: COHN, C. (org.). Women & Wars. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 54-79., p. 72-73). No caso específico da MGF, a imposição de uma visão de autonomia que nega a agência das africanas pode surtir o efeito contrário ao da eliminação da prática. A insistência das feministas africanas no diálogo intercultural, portanto, gera também como resultado a reafirmação da autonomia das mulheres que passam pelo procedimento, elemento chave para que a prática possa ser ressignificada pela agência das próprias africanas.

A recuperação da agência, na verdade, ocupa lugar central no diálogo intercultural na medida em que permite romper com as estruturas coloniais de subordinação e violência latentes nos Estados africanos e impostas pelo ordenamento normativo de matriz primariamente ocidental. Ao mesmo tempo, ao não se restringir a um único domínio analítico, a agência problematiza a noção de violência de gênero (e, por conseguinte, da MGF) de modo a demonstrar como a mesma está entrelaçada com outras formas de violência, e como isso requer, consequentemente, um confrontamento multifacetado e sensível às peculiaridades das sociedades do Sul Global. Como sintetiza Gago:

Conectar as violências implica extravasar os confins da “violência de gênero” para vinculá-la às múltiplas formas de violência que a tornam possível. Desse modo, saímos do lugar de puras vítimas - no qual desejam que permaneçamos - para inaugurar uma palavra política que não apenas denuncia a violência contra o corpo das mulheres, mas que também abre a discussão sobre outros corpos feminizados e, mais ainda, se desloca de uma única definição de violência (sempre doméstica e íntima, portanto confinada), para entendê-la em relação a um plano de violências econômicas, institucionais, laborais, coloniais etc. (GAGO, 2020, p. 73)

Nesse sentido, os feminismos multiculturais que se propõem a estabelecer seriamente um diálogo com os feminismos africanos não podem ignorar os entrelaçamentos da MGF com as demais formas de violência apontadas por Gago. Embora os sistemas jurídicos sejam peça fundamental no processo de reconciliação entre direitos das mulheres africanas e demandas feministas, as políticas coloniais seguem incidindo sobre outros domínios que fragilizam a vida das mulheres do continente. Apenas para exemplificar, os ajustes estruturais impostos aos governos locais pelos organismos financeiros internacionais precarizaram as vidas das mulheres africanas (MAMA, 2004MAMA, Amina. Demythologising Gender in Development: Feminist Studies in African Contexts. IDS Bulletin, Falmer, v. 35, n. 4, p. 121-124, 2004., 2011), o que fragiliza qualquer ação que vise a erradicar a MGF, mas que ignore, ao mesmo tempo, suas condicionantes econômicas. Portanto, o diálogo intercultural confronta-se com o desiderato de incorporar a dimensão analítica do colonialismo, em estreita conexão com os feminismos pós-coloniais, decoloniais e subalternos. Significa, assim, reposicionar a análise de modo a examinar as diversas formas como as estruturas herdadas da colonização e impulsionadas por políticas e discursos neocoloniais (re)produzem estereótipos e condicionantes da violência contra as mulheres na África. Dessa forma, é possível confrontar a MGF em um patamar de relações horizontais com os feminismos africanos.

6. Conclusão

O enfrentamento à MGF é um objetivo de longa data que se manifesta repetidamente nos diversos fóruns internacionais. A prevalência da prática no continente africano frequentemente coloca feministas ocidentais e africanas em lugares opostos, ignorando os pontos em comum que uma perspectiva feminista multicultural oferece para construir soluções de longo prazo. O diálogo cultural, o respeito à agência feminina e a construção de instituições que incorporem e transformem os sistemas de leis consuetudinárias são peças fundamentais na articulação de estratégias para combater a MGF.

Ao longo desse artigo, investigamos como diferentes abordagens feministas no Ocidente e na África lidam com a prática da MGF. Longe de haver consensos, seja dentro dos feminismos ocidentais, seja entre feministas africanas, a pluralidade de perspectivas aponta a um só tempo para a sensibilidade da matéria no âmbito das tensas relações entre Ocidente e África; como também para a necessidade da horizontalidade nos debates feministas. A prevalência de determinadas posições na formulação das políticas internacionais de violência de gênero, na qual se insere a MGF, acaba por favorecer um tipo de abordagem feminista em detrimento da deliberação conjunta, especialmente incluindo as pessoas que passam pela prática. Isso não significa - nem deve significar - que o diálogo deva promover a relativização da MGF: muito pelo contrário, se o objetivo é reconhecê-la como mais uma manifestação da política patriarcal de controle dos corpos e da sexualidade das mulheres, é apenas por meio do diálogo intercultural com a ativa participação das mulheres africanas que o mesmo pode ser alcançado. É somente quando as partes são incluídas no processo de transformação social que a mesma pode se concretizar. Nesse sentido, as convergências entre feminismos africanos e ocidentais são mais relevantes para garantir a inclusão das mulheres africanas como agentes capazes de conduzir tal transformação em suas comunidades, seja no nível cultural, seja no institucional.

Nesse processo, a dimensão colonial não pode ser perdida de vista, uma vez que as sociedades africanas, assim como as demais no Sul Global, são herdeiras de estruturas forjadas na base da violência e da subordinação. Sem essa atenção aos efeitos do colonialismo, os riscos de reprodução de discursos neocoloniais estarão sempre no horizonte. É nesse sentido que os alertas das feministas africanas não podem ser ignorados: reconhecer a dimensão colonial é elemento chave no processo de libertação das mulheres africanas, tanto no seu passado recente, quanto no presente. A luta contra a violência de gênero - e a MGF, em particular - demanda esse reconhecimento para que a agência da mulher africana seja recuperada e o diálogo feminista intercultural seja horizontal e efetivo.

Referências bibliográficas

  • ACKERLY, Brooke A.; STERN, Maria; TRUE, Jacqui. Feminist methodologies for International Relations. In: ACKERLY, B. A.; STERN, M.; TRUE, J. (orgs.). Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 1-15.
  • AFRICAN UNION - AU (1993). Protocol to the African Charter on Human and Peoples’ Rights on the Rights of Women in Africa. Adis Abeba: União Africana, 1993. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Women/WG/ProtocolontheRightsofWomen.pdf Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Women/WG/ProtocolontheRightsofWomen.pdf
  • AGGESTAM, Karin; TOWNS, Ann E. Introduction: The Study of Gender, Diplomacy and Negotiation. In: AGGESTAM, K.; TOWNS, A. E. (orgs.). Gendering Diplomacy and International Negotiation. Cham: Palgrave, 2018. p. 1-22.
  • ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS - ACNUDH. Convention on the Rights of the Child. Genebra: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 1989. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/crc.pdf Acesso em : 31 out. 2021.
    » https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/crc.pdf
  • ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS - ACNUDH. CEDAW General Recommendation No. 19: Violence against women. Genebra: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 1992. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/52d920c54.html Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.refworld.org/docid/52d920c54.html
  • ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS - ACNUDH. Vienna Declaration and Programme of Action. Genebra: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos 1993. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/Vienna.aspx Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/Vienna.aspx
  • ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS - ACNUDH. Joint general recommendation No. 31 of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women/general comment No. 18 of the Committee on the Rights of the Child on harmful practices. Genebra: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 2014. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N14/627/78/PDF/N1462778.pdf?OpenElement. Acesso em: 31 de out. 2021.
    » https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N14/627/78/PDF/N1462778.pdf?OpenElement.
  • AMADIUME, Ifi. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society. Londres: Zed Books, 2015.
  • APUSIGAH, Agnes Atia. Is Gender Yet Another Colonial Project? A critique of Oyeronke Oyewumi’s proposal. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, 2006, p. 23-44, 2006.
  • ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - AGONU. Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Nova Iorque: Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 1979. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf
  • ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - AGONU. Declaration on the Elimination of Violence Against Women. Nova Iorque: Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 1993. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/violenceagainstwomen.aspx Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/violenceagainstwomen.aspx
  • ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - AGONU. A/RES/67/146: Intensifying global efforts for the elimination of female genital mutilations. Nova Iorque: Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 2012. Disponível em: https://undocs.org/A/RES/67/146 Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://undocs.org/A/RES/67/146
  • ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - AGONU. A/RES/69/150: Intensifying global efforts for the elimination of female genital mutilation. Nova Iorque: Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 2014. Disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/69/150 Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://undocs.org/en/A/RES/69/150
  • ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - AGONU. A/RES/73/149: Intensifying global efforts for the elimination of female genital mutilation. Nova Iorque: Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 2018. Disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/73/149 Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://undocs.org/en/A/RES/73/149
  • AYIERA, Eve. Sexual violence in conflict: A problematic international discourse. Feminist Africa, Acra, v. 14,p. 7-20, 2010.
  • BAAZ, Maria Eriksson; STERN, Maria Stern. Why Do Soldiers Rape? Masculinity, Violence and Sexuality in the Armed Forced in the Congo (DRC). International Studies Quarterly, Oxford, v. 53, n. 2, p. 495-518, 2009.
  • BAAZ, Maria Eriksson; STERN, Maria. Sexual Violence as a Weapon of War? Perceptions, Prescriptions, Problems in the Congo and Beyond. Londres: Zed Books, 2013.
  • BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Feminismos Subalternos. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1035-1054, 2017.
  • BANYA, Moiyattu. Akara, Ampe and Fine Girls. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 17, n. 2, p. 338-344, 2015.
  • BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton: Princeton University Press, 2002.
  • BENNETT, Jane. ‘Circles and circles’: Notes on African feminist debates around gender and violence in the c21. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 21-47, 2010.
  • BOND, Johanna. “The Challenges of Parity: Increasing Women’s Participation in Informal Justice Systems within Sub-Saharan Africa”. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 175-198.
  • BOYNTON, Petra. Challenging Clitoraid. In: JOLLY, S.; CORNWALL, A.; HAWKINS, K. (orgs.). Women, Sexuality and the Political Power of Pleasure. Londres: Zed Books, 2013. p. 229-250.
  • COHN, Carol. Women and Wars: Toward a Conceptual Framework. In: COHN, C. (org.). Women & Wars. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 1-35.
  • COMMISSION ON THE STATUS OF WOMEN - CSW. Ending female genital mutilation. Nova Iorque: Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, 2008. Disponível em: https://www.un.org/womenwatch/daw/csw/csw52/AC_resolutions/Final%20L2%20ending%20female%20genital%20mutilation%20-%20advance%20unedited.pdf Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.un.org/womenwatch/daw/csw/csw52/AC_resolutions/Final%20L2%20ending%20female%20genital%20mutilation%20-%20advance%20unedited.pdf
  • CONNELL, R. W. Masculinities. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2015.
  • DAVIES, Sara E.; TRUE, Jacqui. Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in. Security Dialogue, Oslo, v. 46, n. 6, p. 495-512, 2015.
  • DELARGY, Pamela. Sexual Violence and Women’s Health in War. In: COHN, C. (org.). Women & Wars. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 54-79.
  • DOVE, Nah. Womanism: An Afrocentric Theory. Journal of Black Studies, v. 28, n. 5, p. 515-539, 1998.
  • DURIESMITH, David. Manly States and Feminist Foreign Policy: Revisiting the Liberal State as an Agent of Change. In: PARASHAR, S.; TICKNER, J. A.; TRUE, J. (orgs.). Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 51-68.
  • EKINE, Sokari. Women’s Responses to State Violence in the Niger Delta. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 67-83, 2010.
  • ENLOE, Cynthia. Maneuvers: The International Politics of Militarizing Women’s Lives. Berkeley: University of California Press, 2000.
  • ENLOE, Cynthia. Bananas, Beaches and Bases: Making feminist sense of international politics. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2014.
  • EQUALITY NOW. UN Human Rights Council passes a strong resolution against FGM. 2020. Disponível em: https://www.equalitynow.org/un_hrc_resolution_against_fgm Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.equalitynow.org/un_hrc_resolution_against_fgm
  • EZE, Chielozona. African Feminism: Resistance or Resentment. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, p. 97-118, 2006.
  • FIGUEIREDO, Angela; GOMES, Patrícia Godinho. Para Além dos Feminismos: Uma experiência comparada entre Guiné-Bissau e Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 24, n. 3, p. 909-927, 2016.
  • FOLDÈS, Pierre; CUZIN, Béatrice; ANDRO, Armelle. Reconstructive surgery after female genital mutilation: a prospective cohort study. The Lancet, Londres, v. 380, n.9837, p. 134-141, 2012.
  • GALLIMORE, Rangira Béa. Militarism, Ethnicity, and Sexual Violence in the Rwandan Genocide. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 9-29, 2008.
  • GERECKE, Megan. Explaining Sexual Violence in Conflict Situations. In: SJOBERG, L.; VIA, S. (orgs.). Gender, War, and Militarism: Feminist Perspectives. Santa Barbara: Praeger Security International, 2010. p. 138-154.
  • GHODSEE, Kristen. Revisiting the United Nations decade for women: Brief reflections on feminism, capitalism and Cold War politics in the early years of the international women’s movement. Women’s Studies International Forum, v. 33, p. 3-12, 2010.
  • GOREDEMA, Ruvimbo. African Feminism: the African woman’s struggle for identity. African Yearbook of Rhetoric, Cidade do Cabo, v. 1, n. 1, p. 33-41, 2010.
  • GRECCO, Gabriela de Lima. Feminismos y género en los Estudios Internacionales. Relaciones Internacionales, Madri, v. 44, p. 127-145, 2020.
  • GUNAWARDANA, Samanthi J. Gendered State Assemblages and Temporary Labor Migration: The Case of Sri Lanka. In: PARASHAR, S.; TICKNER, J. A.; TRUE, J. (orgs.). Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 85-101.
  • GUNNING, Isabelle. R. Female Genital Surgeries and Multicultural Feminism: The Ties that Bind; the Differences that Distance. Third World Legal Studies, Valparaiso, v. 13, p. 17-47, 1995.
  • HANSEN, Lene. Gender, Nation, Rape: Bosnia and the Construction of Security. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 3, n. 1, p. 55-75, 2000.
  • HARCOURT, Wendy. Review Essay: Sexuality in International Development Studies. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 16, n. 3, p. 515-522, 2014.
  • HAWKESWORTH, Mary; DISCH, Lisa. Introduction. Feminist Theory: Transforming the Known World. In: DISCH, L.; HAWKESWORTH, M. (orgs.). The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 1-15.
  • HAY, Carol. Think like a feminist: the philosophy behind the revolution. Nova Iorque: W. W. Norton Company, 2020.
  • HOOKS, bell. Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
  • HUDSON-WEEMS, Cleonora. Mulherismo Africana: Recuperando a nós mesmos. São Paulo: Editora Ananse, 2021.
  • KHALAF, Ismail. Female genital cutting/mutilation in Africa deserves special concern: An overview. African Journal of Urology, v. 19, p. 119-122, 2013.
  • KYMLICKA, Will; RUBIO-MARÍN, Ruth. The Participatory Turn in Gender Equality and its Relevance for Multicultural Feminism. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 1-45.
  • LANDALUZE, Iker Zirion; ESPEL, Leire Idarraga. Los feminismos africanos. Las mujeres africanas ‘en sus propios términos’. Relaciones Internacionales, Madri, v. 27, p. 35-54, 2014.
  • LARZEG, Marnia. Decolonizing Feminism. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 67-80.
  • LENINE, Enzo; ONCAMPO, Locarine. Recuperando a justiça de gênero e a África nas Conferências Mundiais da Mulher. Meridiano 47, Brasília, v. 21, p. E21009, 2020.
  • LENINE, Enzo; PEREIRA, Manuela. Paridad de género en las organizaciones internacionales: discurso vs. números. Relaciones Internacionales, Madri, v. 48, p. 101-121, 2021.
  • LENINE, Enzo; GONÇALVES, Elisa. Violence Against Women as a Political Act: Toward a Typology of Gendered Messages. Politikon, Abingdon, v. 48, n. 4, p.530-546, 2021.
  • LENINE, Enzo. Relaciones Internacionales Feministas: silencios, diálogos y ausencias. Estudios Inernacionales, Santiago, v. 200, 2021, pp. 79-104.
  • LY, Aliou. Promise and betrayal: Women fighters and national liberation in Guinea Bissau. Feminist Africa, Acra, v. 19, p. 24-42, 2014.
  • MAMA, Amina. Demythologising Gender in Development: Feminist Studies in African Contexts. IDS Bulletin, Falmer, v. 35, n. 4, p. 121-124, 2004.
  • MAMA, Amina. What does it mean to do feminist research in African contexts? Feminist Review, v. 98, p. 1:e-04-e20, 2011.
  • MANDERSON, Lenore. Local Rites and Body Politics. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 6, n. 2, p. 285-307, 2004.
  • MATHERS, Jennifer G. Women and State Military Forces. In: COHN, C. (org.). Women & Wars. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 124-145.
  • MEDIE, Peace A. Women and Violence in Africa. Oxford Research Encyclopedia, African History. Oxford, 2019. Disponível em: https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567 Acesso em: 20 jul. 2022.
    » https://www.doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.567
  • MEKGWE, Pinkie. Theorizing African Feminism(s): The Colonial ‘Question’. Quest: An African Journal of Philosophy, Leiden, v. XX, n. 1-2, p. 11-22, 2006.
  • MENDOZA, Breny. Coloniality of Gender and Power: From Postcoloniality to Decoloniality. In: DISCH, L.; HAWKESWORTH M. (orgs.). The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 100-121.
  • MOHANTY, Chandra Tapalde. Feminism Without Borders. Durham: Duke University Press, 2003.
  • MURUNGA, Godwin Rapando. African Women in the Academy and Beyond: Review Essay. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 397-416.
  • NFAH-ABBENYI, Juliana Makuchi. Gender, Feminist Theory, and Post-Colonial (Women’s) Writing. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 259-278.
  • NNAEMEKA, Obioma. Nego-Feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa’s Way. Signs, Chicago, v. 29, n. 2, p. 357-385, 2003.
  • NNAEMEKA, Obioma. Bringing African Women into the Classroom: Rethinking Pedagogy and Epistemology. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Gender Studies: A Reader. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005. p. 51-65.
  • OKOME, Mojúbàolú Olúnfunké. What women, whose development? A critical analysis of reformist feminist evangelism on African women. In: OYEWÙMÍ, O. (Oog.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003. p. 67-98.
  • OGUNDIPE-LESLIE, Molara. Re-Creating Ourselves: African Women & Critical Transformations. Trenton: Africa World Press, 1994.
  • OGUNYEMI, Chikwenye Okonjo. Womanism: The Dynamics of the Contemporary Black Female Novel in English. Signs, Chicago, v. 11, n. 1, p. 63-80, 1985.
  • OLEGÁRIO, Letícia Zimmer; CORBELLINI, Mariana Dalalana. A Mutilação Genital Feminina no Continente Africano sob a Perspectiva Feminista. Revista Artémis, João Pessoa, v. XXIII, n. 1, p. 138-148, 2017.
  • ONU MULHERES. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Brasília: Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, 1995. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf
  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE - OMS. “Eliminação da Mutilação Genital Feminina: Declaração Conjunta”. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2008. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43839/9789241596442_por.pdf?sequence=3 Acesso em: 31 out. 2021.
    » http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43839/9789241596442_por.pdf?sequence=3
  • OSSOME, Lyn. African Feminism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 159-170.
  • OYEWÙMÍ, Oyèrónké. The White Woman’s Burden: African Women in Western Feminist Discourse. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press, 2003a. p. 25-43.
  • OYEWÙMÍ, Oyèrónké. Alice in Motherland: Reading Alice Walker on Africa and Screening the Color ‘Black’. In: OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton: African World Press 2003b. p. 159-185.
  • OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
  • PHILLIPS, Anne. Democratizing Against the Grain. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 46-65.
  • PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, História e Poder. Revista Sociologia & Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, 2010.
  • SAADAWI, Nawal el. The Hidden Face of Eve. Londres: Zed Books, 2015.
  • SADIQI, Fatima. Domestic Violence in the African North. Feminist Africa, Acra, v. 14, p. 49-62, 2010.
  • SCOTT, Joan Wallach. Gender: Still a Useful Category of Analysis? Diogenes, Paris, v. 225, p. 7-14, 2010.
  • SHELDON, Kathleen. Women in Africa and Pan-Africanism. In: RABAKA, R. (org.). Routledge Handbook of Pan-Africanism. Londres: Routledge, 2020. p. 330-342.
  • SHEPHERD, Laura J. Gender, Violence & Security. Londres: Zed Books, 2008.
  • SJOBERG, Laura. Women as Wartime Rapists: Beyond Sensation and Stereotyping. New York: New York University Press, 2016.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
  • TAIWO, Olufemi. Feminism and Africa: Reflections on the Poverty of Theory”. In OYEWÙMÍ, O. (org.). African Women & Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood. Trenton, Africa World Press, 2003. p. 45-66.
  • TICKNER, J. Ann. Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security. Nova Iorque: Columbia University Press, 1992.
  • TICKNER, J. Ann. Gendering World Politics. Nova Iorque: Columbia University Press, 2001.
  • TRIPP, Aili Mari. Women in Movement Transformations in African Political Landscapes. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 5, n. 2, p. 233-255, 2003.
  • TRUE, Jacqui. The Political Economy of Violence Against Women. Oxford: Oxford University Press, 2012.
  • TRUE, Jacqui. Violence Against Women: What Everyone Needs to Know®. Oxford: Oxford University Press, 2021.
  • UNIÃO AFRICANA - UA. “Agenda 2063: A África que Queremos”. 2015. Disponível em: <https://au.int/sites/default/files/documents/36204-doc-agenda2063_popular_version_po.pdf>. Acesso em: 31 de outubro de 2021.
    » https://au.int/sites/default/files/documents/36204-doc-agenda2063_popular_version_po.pdf
  • UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND - UNICEF. Female Genital Mutilation/Cutting: A statistic overview and exploration of the dynamics of change. Nova Iorque: Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2013. Disponível em:https://data.unicef.org/wp-content/uploads/2019/04/UNICEF_FGM_report_July_2013.pdf Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://data.unicef.org/wp-content/uploads/2019/04/UNICEF_FGM_report_July_2013.pdf
  • UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COUNCIL - UNHRC. A/HRC/44/L.20: Elimination of female genital mutilation. Genebra: Conselho de Direitos Huamnos da Organização das Nações Unidas, 2020. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/44/L.20 Acesso em: 31 out. 2021.
    » https://undocs.org/A/HRC/44/L.20
  • VOLPP, Leti. Feminism versus Multiculturalism. Columbia Law Review, Nova Iorque, v. 101, n. 5, p. 1181-1218, 2001.
  • WILLIAMS, Susan H. Democracy, Gender Equality, and Customary Law: Constitutionalizing Internal Cultural Disruption. Indiana Journal of Global Legal Studies, Bloomington, v. 18, n. 1, p. 65-85, 2011.
  • WILLIAMS, Susan H. Legal Pluralism, Gender Equality, and Parity of Participation: Constitutional Issues Concerning Customary Law in Liberia. In: RUBIO-MARÍN, R.; KYMLICKA, W. (orgs.). Gender Parity & Multicultural Feminism: Towards a new synthesis. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 150-174.
  • WINTER, Bronwyn; THOMPSON, Denise; JEFFREYS, Sheila. The UN Approach to Harmful Traditional Practices. International Feminist Journal of Politics, Abingdon, v. 4, n. 1, p. 72-94, 2002.
  • WISS, Rosemary (1994). Lipreading: The Story of Saartjie Baartman. Australian Journal of Anthropology, v. 5, n. 3, p. 11-40, 1994.
  • WORDL HEALTH ORGANIZATION - WHO. Female genital mutilation: A Joint WHO/UNICEF/UNFPA Statement. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 1997. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/41903/9241561866.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 31 out. 2021.
    » http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/41903/9241561866.pdf?sequence=1&isAllowed=y
  • YACOB-HALISO, Olajumoke. Intersectionalities and access in fieldwork in postconflict Liberia: Motherland, motherhood, and minefields. African Affairs, Oxford, v. 118, n. 470, p. 168-181, 2019.
  • ZERILLI, Linda. Feminist Theory and the Canon of Political Thought. In: DRYZEK, J. S.; HONIG, B.; PHILLIPS, A. (orgs.). The Oxford Handbook of Political Theory. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 106-124.
  • 1
    O ODS 5 - Igualdade de gênero e seu alvo 5.3 - Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas tratam especificamente da MGF no contexto da Agenda 2030. Para mais detalhes, ver: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5> [Acesso em: 7 de novembro de 2020].
  • 2
    No que tange às consequências médicas, alguns procedimentos de restauração da genitália - especialmente para os tipos II e III da MGF - apresentam sucesso principalmente para minimizar as dores e melhorar o prazer sexual (FOLDÈS et al., 2012). A questão do prazer, porém, é muito mais complexa, vez que envolve o entrelaçamento de elementos individuais, culturais e sociais. Para uma discussão sobre o tema de cirurgias de reparação da MGF, ver Boynton (2013).
  • 3
    Para uma revisão mais detalhada das três ondas, ver Zerilli (2006). Para uma versão alternativa dessa narrativa, ver Hawkesworth e Disch (2018).
  • 4
    Nos Estados Unidos da América, o livro de Cynthia Enloe (1989/2014), Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Relations, marcou a discussão sobre feminismo nas RI.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2021
  • Aceito
    05 Ago 2022
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com