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Aluguel de baixa renda e preservação patrimonial: o caso da Boa Vista (Recife)* * Este estudo foi desenvolvido no âmbito da Pesquisa sobre o Funcionamento do Mercado Imobiliário em Centros Históricos das cidades brasileiras, desenvolvida com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe).

Resumo

Estudos recentes demonstram a importância do mercado de aluguel de moradia em vários centros históricos brasileiros. No Centro Histórico do Recife (CHR) – composto, grosso modo, pelos bairros do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista, que conformam seis diferentes submercados –, verifica-se que a locação constitui uma importante forma de acesso à moradia, sobretudo para a população de baixa renda. Considerando que o submercado Boa Vista configura o último reduto habitacional do CHR, sendo este uso um fator de fundamental importância para a preservação de seu patrimônio edificado, este artigo tem o objetivo de analisar o funcionamento do mercado de aluguel habitacional de baixa renda da Boa Vista, buscando revelar as razões da resistência desse uso em uma centralidade histórica.

mercado imobiliário; aluguel habitacional; centro histórico; Recife; Boa Vista

Abstract

Recent studies have demonstrated the importance of the housing rental market in several Brazilian historic centers. In the Historic Center of Recife (HCR) – composed, roughly, of the neighborhoods of Bairro do Recife, Santo Antônio, São José and Boa Vista, which make up six different submarkets –, rental constitutes an important form of access to housing, especially for the low-income population. Considering that the Boa Vista submarket constitutes the last housing stronghold of the HCR, this use being a fundamental factor to the preservation of its built heritage, this article aims to analyze the functioning of the low-income housing rental market in Boa Vista, seeking to reveal the reasons for the resistance of this use in a historical centrality.

real estate market; housing rental; historic center; Recife; Boa Vista

Introduzindo o debate

Estudos recentes sobre a questão habitacional vêm demonstrando a importância do mercado de aluguel de moradia em vários centros históricos brasileiros, a exemplo dos elaborados por Pasternak e Bógus (2014)PASTERNAK, S.; BÓGUS, L. M. M. (2014). Habitação de aluguel no Brasil e em São Paulo. Caderno CHR. Salvador, v. 27, n. 71, pp. 235-254.; e Lacerda e Anjos (2015)LACERDA, N.; ANJOS, K. (2015). “A regulação da dinâmica espacial nos centros históricos brasileiros em tempos de globalização: o caso do Recife (Brasil)”. In: FERNANDES, A. C.; LACERDA, N.; PONTUAL, V. (orgs.). Desenvolvimento, planejamento e governança: expressões do debate contemporâneo. Rio de Janeiro, Letra Capital, Anpur.. Estas duas últimas autoras testemunham essa relevância ao apontar que, no Centro Histórico do Recife (CHR) – composto, grosso modo, por quatro bairros, Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista –, em 1991, 51,6% dos domicílios particulares permanentes eram alugados, passando a 46,1% em 2010, segundo o IBGE. A redução não é significativa, porquanto quase 20 anos separam os censos aqui considerados, embora revele uma possível tendência de alteração das condições de acesso aos domicílios no CHR.

De qualquer forma, os dados indicam que a locação constitui uma importante forma de acesso à moradia nesse centro. Na cidade do Recife, a relação era, em 2010, de 22,2% de domicílios alugados para 73,1% de domicílios próprios. Cabe anotar que Lacerda e Anjos (ibid.) desenvolveram o mencionado estudo no âmbito da pesquisa em rede sobre o Funcionamento do mercado imobiliário em centros históricos das cidades brasileiras: Recife, Olinda, Belém e São Luís (MICH). Ainda como produto dessa pesquisa, ressalta-se o estudo de autoria de Menezes (2015)MENEZES, L. R. (2015). Habitar no centro histórico: a habitação de interesse social como instrumento de reabilitação do Centro Histórico do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco., no qual foi possível identificar que o sítio histórico da Boa Vista abriga o último reduto habitacional do CHR. Esse uso foi decisivo para a preservação de seu patrimônio cultural.

Indo de encontro às propostas normalmente consideradas para reabilitação de centros históricos, a moradia que preserva o conjunto edificado da Boa Vista é a de aluguel e de baixa renda (cerca de 70% dos chefes de domicílio nesse sítio histórico possuíam renda de até 3 salários-mínimos, em 2010). Conquanto Menezes (ibid.) tenha relacionado a habitação de aluguel de baixa renda com a preservação do sítio histórico da Boa Vista, resta desvendar o funcionamento desse submercado imobiliário, o que significa revelar as razões da sua resistência em uma centralidade histórica, as características dos produtos nele ofertados, os agentes atuantes e suas respectivas condutas, a estrutura fundiária, as articulações entre esse submercado e o do seu entorno imediato.

Para esse desvendamento, foi percorrido um trajeto investigativo dividido em cinco etapas. Na primeira, recupera-se a história da ocupação do bairro da Boa Vista, para entender como um nicho habitacional foi se formando/consolidando na centralidade histórica recifense. Na segunda, analisam-se as características habitacionais desse bairro. Na terceira, delimitam-se, espacialmente, os submercados imobiliários do CHR, distinguindo o da Boa Vista em virtude da sua funcionalidade predominantemente residencial, tributária do seu padrão de ocupação. Na quarta, revelam-se a importância do mercado de aluguel habitacional e o perfil dos proprietários/locadores quanto ao status jurídico (pessoa física ou pessoa jurídica) – desvendando, inclusive, a estrutura fundiária, para assinalar o modelo de mercado a partir do qual eles tomam as suas decisões – e dos inquilinos. Na quinta, analisam-se as condutas desses agentes quanto aos imóveis, considerando sua preservação e conservação, para, enfim, relacioná-los com os preços ofertados no mercado de locação habitacional. Nesse percurso, iremos nos aprofundar desde o bairro até o sítio histórico, chegando, por fim, ao submercado Boa Vista.

Bairro da Boa Vista: montando a sua história

Montar a história do bairro significa tornar visíveis o que Didi-Huberman (apud Jacques, 2019JACQUES, P. B. (2019). Montagem de uma outra herança: urbanismo, memória e alteridade. Tese (professor titular). Salvador, Universidade Federal da Bahia.) chamou de sobrevivências, de anacronismos, de encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Essa montagem revelou as razões dos traços essenciais da concretude do bairro da Boa Vista, incluindo, como se verá adiante, em “Boa Vista: um singular submercado na centralidade recifense”, a do submercado homônimo.

A ocupação do bairro da Boa Vista relaciona-se à formação do Bairro do Recife – um istmo que abrigava o porto – e dos bairros de Santo Antônio e São José, na Ilha de Antônio Vaz, a partir da qual a urbanização viria a se expandir para o continente, sobretudo com o desenvolvimento da Ilha proporcionado pela ocupação holandesa (1630-1654). Em 1637, Maurício de Nassau assumiu como governador da conquista e, durante sua gestão, levou a cabo a urbanização da Ilha de Antônio Vaz, norteada por um plano urbanístico atribuído ao arquiteto Pieter Post, datado de 1639 (Figura 1). No plano, foi definida a construção de dois palácios: o de Vrijburg (residência oficial) e o Schoonzit ou da Boa Vista (para lazer e repouso); além das primeiras pontes da cidade (erguidas em 1644). A primeira ligava o istmo à Ilha e a segunda, a Ilha ao continente, partindo do palácio da Boa Vista, o que levou o lugar aonde chegava, no continente, a ser conhecido pelo mesmo nome.

Figura 1
– Plano da Cidade Maurícia (1639) com indicação dos futuros bairros

O objetivo das pontes era proporcionar maior acessibilidade entre o porto, a sede da ocupação e a zona produtora de açúcar, além de possibilitar a futura expansão urbana. No entanto, apesar da ponte e da existência de alguns arruamentos e de pequenas propriedades, a Boa Vista ainda estava “fora das portas” da cidade, abrigando apenas atividades rurais e periféricas (Bernardino, 2011BERNARDINO, I. L. (2011). Para morar no centro histórico: condições de habitabilidade no sítio histórico da Boa Vista. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco.). Em 1683, Cristóvão de Barros Rego construiu diante de sua residência a capela de Nossa Senhora da Conceição (atual Igreja de Santa Cecília), mas um maior adensamento da Boa Vista somente ocorreu a partir do século XVIII, nas proximidades da cabeceira da ponte, com a construção da Igreja de Santa Cruz (iniciada em 1711) e da Igreja da Irmandade dos Homens Pardos de São Gonçalo (iniciada em 1712).

O casario construído no entorno dessas igrejas conformou o primeiro núcleo urbano do bairro, que se consolidou na primeira metade do século XVIII. No entanto, em meados do século XVIII, a primeira ponte da Boa Vista ruiu, sendo substituída por uma ponte bifurcada. Uma delas chegava à rua Velha – no mesmo lugar da ponte holandesa – enquanto a outra chegava ao que viria a ser a rua do Aterro (atual rua Imperatriz Tereza Cristina), chegando à praça da Boa Vista (antigo Pátio da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, hoje praça Maciel Pinheiro).

A configuração da ponte permitiu o deslocamento da urbanização para o entorno dessa praça, processo reforçado quando o braço que ligava Santo Antônio à rua Velha desmoronou e não foi reconstruído (ibid., 2011), deixando o núcleo inicial de ocupação da Boa Vista sem conexão direta com a Ilha de Antônio Vaz. Essa situação levou a uma diferenciação entre o núcleo urbanizado mais antigo e aquele que se estabeleceu na rua do Aterro e no entorno da praça da Boa Vista. Esta passou a ser a área mais valorizada, o que se refletiu em maior verticalização das edificações. Nos pavimentos térreos dos imóveis, instalaram-se estabelecimentos comerciais, enquanto os superiores eram ocupados pelas residências dos comerciantes. Dessa forma, os sobrados, tipologia dominante nessa área, contrastam com as casas térreas preponderantes no núcleo mais antigo, marcando distintos padrões de ocupação e usos diferenciados das edificações.

Possivelmente, muitas dessas edificações eram alugadas. Afinal, a sociedade brasileira, desde a sua origem, cultuou o rentismo. Não se pode olvidar que os portugueses o trouxeram para os trópicos junto à mentalidade possessória europeia (Pedroza, 2016PEDROZA, M. (2016). Mentalidade possessória e práticas rentistas dos jesuítas: américa portuguesa, séculos XVI, XVII e XVIII. Topoi. Rio de Janeiro, v. 17, n. 32, pp. 66-90.), fundamentada nas expectativas a respeito dos melhores investimentos dos proprietários e no justo retorno deles. Acrescente-se que a propriedade imobiliária autorizava e continua a autorizar o seu detentor a participar de um segmento social que, historicamente, tem estado relacionado ao poder. Tem mais: o indivíduo, em face da certeza da morte e da angústia da sua finitude, vê na durabilidade de seu patrimônio, passado às mãos de seus descendentes, uma forma de sobrevivência material. Assim, a construção de um patrimônio, mesmo que modesto, e sua transmissão representam "a solução mais accessível, a mais 'democrática': reduzido ao ter, o ser com isso ganha em troca a crença de uma perpetuação profana da sua pessoa [...]" (Capdevielle, 1986CAPDEVIELLE, J. (1986). Le fétichisme du patrimoine. Paris, Presses de la Fondation Nationale des Scienes Politique., p. 20).

Lacerda (1993) afirma que, no Brasil colonial, a propriedade podia ser vendida livremente, sendo o aluguel a forma dominante de acesso ao solo. Ela assegura que a composição das fortunas coloniais se baseava na propriedade agrícola, nos estabelecimentos para a criação de animais, nos investimentos em habitações, entrepostos e imóveis para fins comerciais e administrativos. Essas inversões criavam a oportunidade de ganhos imobiliários que se realizavam, sobretudo, a partir do aluguel. Todavia, para que a produção rentista destinada à habitação aparecesse com maior pujança, foi necessário o surgimento de um segmento social remunerado, sustentado por pequenos negócios, a partir do século XIX.

Nessa época, desenvolvia-se no Recife uma camada de funcionários ligados ao controle fiscal; a cidade se tornava o lugar de interesse para o capital comercial e também o locus de instalação dos aparelhos de Estado, incluindo o conjunto burocrático de troca das mercadorias. As camadas assalariadas e aqueles que viviam de pequenos negócios se tornaram, então, os primeiros locatários. Desde então, as transações de locação, em especial aquelas com imóveis comerciais e de serviço, se intensificaram e se fortaleceram (Lacerda, 1993).

Retomando o caso da Boa Vista, importa observar que a consolidação do núcleo comercial só aconteceria após o início do século XIX. Tollenare, viajante francês que esteve no Recife entre 1816 e 1817, observou: “o bairro da Boa Vista, sobre o continente, é mais alegre e mais moderno. As ruas e as calçadas são ali mais largas, tem algumas casas bonitas habitadas por gente rica, mas que não pertence ao comércio porquanto quase todos os negociantes moram no Recife” (Tollenare, 1978TOLLENARE, L. F. (1978). Notas dominicais. Recife, Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco., pp. 22-23).

No século XIX, as diferenciações em termos de valorização das áreas em Boa Vista e em seu entorno acentuaram-se. Na área ao sul do núcleo mais antigo foram construídos equipamentos públicos relacionados a uma baixa valorização: um matadouro público, além de um hospital de caridade – o Hospital Pedro II (1846-1861) –, o qual contribuiu para um adensamento de seus arredores, preenchendo os vazios ao sul da Igreja de São Gonçalo com moradia de baixa renda. Ademais, uma série de aterros levou à expansão da Boa Vista ao longo do Rio, dando lugar ao cais José Mariano e à rua da Aurora. Nesta última, houve valorização imobiliária, ao ser escolhida como moradia por ilustres figuras da cidade. Assim, na Boa Vista, assiste-se a um encontro de temporalidades, de ciclos de valorização, que se refletem nos padrões de ocupação e nas atividades desenvolvidas em cada uma de suas porções territoriais.

A partir de meados do século XIX, o início da operação do transporte ferroviário teve Boa Vista como importante eixo ao ligar os bairros mais centrais (Bairro do Recife e Santo Antônio) às novas áreas de ocupação da cidade. A malha ferroviária ajudou no processo de relocação da burguesia – que se concentrava nos altos sobrados em Santo Antônio e no Bairro do Recife – em direção à margem esquerda do rio Capibaribe. Novos modos de morar (casas cercadas de jardins e com uso exclusivamente residencial) contrastavam com as antigas casas e os sobrados coloniais. Na Boa Vista, o novo padrão de moradia da burguesia teve lugar a oeste das áreas de ocupação mais antiga.

Nesse período, o perfil da população das áreas centrais do Recife mudava paulatinamente, não só pelo abandono por parte das classes abastadas, mas também pelo aumento da população livre e pobre (fim da escravidão e migrações campo-cidade). Esse aumento contribuía para o surgimento de habitações precárias em espaços em que antes só havia alagados. Mas habitações precárias ocorriam também nas antigas residências das aludidas classes, as quais eram subdivididas (encortiçamento) e alugadas para a população de baixa renda.

No início do século XX, o Recife iniciou o seu processo de modernização. Começou pelas reformas do porto e do Bairro do Recife (1910-1913) e pela dotação de infraestruturas de saneamento, etc. Além disso, em 1919, uma legislação urbanística buscava promover a especialização funcional do centro, bem como novas tipologias que viessem a configurar esse centro moderno. De acordo com Ludermir (2005)LUDERMIR, R. B. (2005). Um lugar judeu no Recife: A influência de elementos culturais no processo de apropriação do espaço urbano do bairro da Boa Vista pela imigração judaica na primeira metade do século XX. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco., esse processo de modernização, somado à rápida urbanização da cidade, estimulou a imigração de estrangeiros, destacando-se os judeus, desembarcados nas duas primeiras décadas do século XX, acompanhando as ondas de evasão judaica da Europa, Turquia e Marrocos.

Para esses imigrantes, a Boa Vista apareceu como local preferencial, sobretudo o núcleo mais antigo do bairro. Ludermir acredita que a escolha dessa área se relaciona (1) à disponibilidade de estoque imobiliário; (2) a preços dos imóveis mais acessíveis em relação aos outros bairros centrais, devido à baixa valorização do núcleo mais antigo; (3) à menor presença de católicos (irmandades e edifícios), no cotejo com os bairros de Santo Antônio e São José; e (4) à proximidade de consumidores dos seus produtos.

Pouco a pouco, a comunidade foi construindo escolas, centro comunitário, clubes, além da sinagoga, fundada em 1926. A presença dessa comunidade contribuiu para a configuração dos seus atributos físicos e da identidade desse lugar. A partir da década de 1930, quando se delineava a II Guerra Mundial, a comunidade judaica recifense aumentou, o que levou à sua dispersão para outras áreas da cidade. No entanto, esse processo não se verificou apenas em relação a essa comunidade. Fez parte de um movimento maior de descentralização da moradia que afetava todos os bairros do centro.

Paralelamente a isso, o bairro de Santo Antônio passava por uma reforma urbana (entre as décadas de 1930 e 1970) que promovia sua especialização como centro de serviços, expulsando seus antigos moradores. São José e Boa Vista mantinham-se como bairros residenciais, até que, em 1970, a abertura da avenida Dantas Barreto, em um trecho de São José, provocou uma ruptura que deu início a transformações funcionais também nesse sítio histórico (Menezes, 2015MENEZES, L. R. (2015). Habitar no centro histórico: a habitação de interesse social como instrumento de reabilitação do Centro Histórico do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco.). No entanto, já a partir de 1970, a descentralização do setor terciário – entre outros fatores – levou a uma desvalorização mesmo das áreas centrais recém-reformadas, acarretando um esvaziamento de funções e especialização em comércio de caráter popular, sobretudo em São José e parte de Santo Antônio.

Quanto à moradia, entre as décadas de 1960 e 1980, o processo de descentralização foi ainda mais impulsionado. De acordo com Lacerda e Anjos (2015)LACERDA, N.; ANJOS, K. (2015). “A regulação da dinâmica espacial nos centros históricos brasileiros em tempos de globalização: o caso do Recife (Brasil)”. In: FERNANDES, A. C.; LACERDA, N.; PONTUAL, V. (orgs.). Desenvolvimento, planejamento e governança: expressões do debate contemporâneo. Rio de Janeiro, Letra Capital, Anpur., os financiamentos do Banco Nacional da Habitação (1964-1986) retiraram definitivamente o CHR da agenda da promoção imobiliária de imóveis novos, com grande impacto em termos de depreciação dos preços do metro quadrado construído. Além disso, o Banco promovia a moradia em imóvel próprio, em contraponto à moradia de aluguel, tradicional na região do centro. Assim, a Boa Vista sofreu um duplo impacto: nas áreas de ocupação mais recente, o bairro recebeu investimentos imobiliários para habitação em novas tipologias e com outras condições de ocupação dos domicílios (propriedade); enquanto, no tecido antigo, houve desvalorização das formas de morar que ali se reproduziam há séculos, permitindo a continuidade de moradia de baixa renda, sobretudo através do aluguel, configurando, portanto, a permanência desse reduto habitacional.

O processo de desvalorização do centro do Recife contribuiu para sua preservação em larga escala, pois praticamente não houve resistência à implementação da lei n. 13.957/1979 (Prefeitura do Recife, 1979PREFEITURA DO RECIFE (1979). Lei n. 13.957/1979. Preservação de Sítios Históricos. Recife, Prefeitura da Cidade do Recife. Acesso em: 13 jul 2015.), que instituiu as atuais Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPHs) subdivididas em Setor de Preservação Rigorosa (SPR) e Setor de Preservação Ambiental (SPA).1 1 Toda ZEPH é formada por, ao menos, um Setor de Preservação Rigorosa (SPR), em que incidem restrições legais para prevenir alterações nas edificações, em feição, materiais e volumetria. O SPR pode, em alguns casos, ser envolvido por um Setor de Preservação Ambiental (SPA), que serve como área de transição para a cidade regular. Nele, é possível a criação de novas espacialidades, respeitando alguns parâmetros com vistas a preservar a ambiência e a visibilidade da área protegida. Com base nessa lei, foi promulgado, pela prefeitura da cidade do Recife, o decreto n. 11.888/1981 (Prefeitura do Recife, 1981PREFEITURA DO RECIFE (1981). Decreto n. 11.888/1981. Preservação de Sítios Históricos. Recife, Prefeitura da Cidade do Recife. Acesso em: 13 jul 2015.), que protege o sítio histórico da Boa Vista através da criação da ZEPH-08, compreendendo parte dos bairros da Boa Vista, Coelhos, Ilha do Leite, Soledade e Santo Amaro. Essa normativa consolidou o padrão de ocupação existente até aquele momento, não sendo mais possível, no SPR, a criação de novas espacialidades. Não sem razão, esse setor foi se constituindo em um singular submercado imobiliário do CHR.

Sítio histórico da Boa Vista: um reduto habitacional no CHR

Em relação à população e aos domicílios, pode-se identificar uma diferenciação entre os sítios históricos que conformam o CHR quanto aos processos de esvaziamento populacional, que tiveram início com a reforma do Bairro do Recife, no início do século XX. Prosseguiram com a reforma de Santo Antônio, iniciada na década de 1930 e finalizada na de 1970, quando atingiu também parte de São José. E culminaram com o processo de descentralização, ocorrido com mais força a partir dos anos de 1960. Este processo começou esvaziando São José – impactado também pela abertura da avenida Dantas Barreto – e atingiu a Boa Vista, que, embora tenha perdido população a partir de 1970, manteve-se num patamar claramente mais elevado que os bairros vizinhos.

O Gráfico 1 mostra a diferenciação entre o esvaziamento populacional dos sítios históricos que passaram por reformas urbanas na primeira metade do século XX (Bairro do Recife e Santo Antônio) e dos que se mantiveram, até meados do século, como áreas habitacionais (Boa Vista e São José). Isso se destaca, também, no período 1991-2010, quando é possível verificar que os sítios históricos que passaram por reformas urbanas tiveram um leve aumento populacional, entre 1991 e 2000, e uma queda no período 2000-2010. Boa Vista e São José passaram por um movimento inverso: queda populacional entre 1991 e 2000 e leve recuperação no período seguinte. Mesmo havendo um movimento semelhante ao de São José, o número de habitantes no sítio histórico da Boa Vista apresenta-se muito acima dos outros. Em 2010, nele residiam 9.427 habitantes, número correspondente a 76,64% da população total do CHR (12.301).

Gráfico 1
– Evolução da população do CHR (1910-2010)

Os dados a seguir referem-se apenas ao sítio histórico da Boa Vista. Em termos de domicílios, verifica-se que acompanharam o movimento do número de habitantes, de redução e posterior incremento, mas com um percentual de perda menor. Consoante o Gráfico 2, o acréscimo de domicílios entre 2000 e 2010, na Boa Vista, ocorreu tanto na tipologia de casas (14,52%) quanto na de apartamentos (21,15%), sendo a quantidade de casas em 2010 (347) inferior à registrada em 1991 (363). Os apartamentos, por sua vez, superaram o registro de 1991, devido à construção de edifícios multifamiliares nos SPAs.

Gráfico 2
– Bairro da Boa Vista: evolução no número de casas e apartamentos

No geral, ocorreu durante o intervalo de quase vinte anos (1991 e 2010), uma redução de residentes e de domicílios no sítio histórico da Boa Vista, com alterações nos padrões de moradia, reduzindo a participação do domicílio tipo casa. A densidade domiciliar também diminuiu, ficando abaixo da média da cidade, o que indica que esse sítio é procurado por famílias unipessoais, monoparentais, jovens e/ou sem filhos, idosos viúvos e outras configurações familiares diferenciadas da tradicional família nuclear. Os dados do Gráfico 3 revelam que os domicílios com 1 a 2 moradores têm apresentado um aumento constante em toda a cidade, indicando uma mudança demográfica geral, porém mais acentuada na Boa Vista, onde os Domicílios Próprios Permanentes (DPPs) com até 2 moradores perfazem mais de 60% do total, não chegando a 40% na cidade do Recife.

Gráfico 3
– Boa Vista e cidade do Recife: evolução dos domicílios particulares permanentes por número de moradores

Quanto ao envelhecimento da população, trata-se de um fenômeno nacional, verificado também no Recife, mas que apresenta mais relevância nos bairros centrais, como mostra o caso do sítio histórico da Boa Vista. Os moradores acima dos 40 anos são mais de 40% do total de residentes. Ademais, entre 2000 e 2010, ocorreu um aumento no número de moradores de 20 a 39 anos, devido a uma procura da área também por jovens adultos.

A diminuição do número de pessoas por domicílio tem relação com a perspectiva de envelhecimento populacional e com os novos arranjos familiares, demandantes de um maior número de domicílios. Esses dados indicam a relação do perfil populacional com o estilo de vida da Boa Vista, relacionado a valores de centralidade/acessibilidade e à necessidade da transitoriedade, para os jovens, ofertada pelo aluguel, enquanto facilitador da mobilidade residencial. Assim, é importante analisar a evolução na condição de ocupação dos DPPs (Gráfico 5) para identificar o quão relevante é a função do aluguel para a moradia nesse sítio histórico.

Gráfico 5
– Boa Vista e cidade do Recife: condição de ocupação dos DPPs

Entre 1991 e 2010, ocorreu um aumento no número de domicílios próprios. No entanto, estes permanecem em torno de 40% do total dos domicílios do sítio histórico da Boa Vista, cerca da metade do percentual do Recife (aproximadamente 80%). Esses dados refletem os resultados da política habitacional do BNH – bem como as políticas habitacionais subsequentes –, que estimulava, fora áreas centrais, a aquisição da casa própria. Já, em áreas como o sítio histórico da Boa Vista, permaneceu a importância da moradia de aluguel – que corresponde a cerca de 51% dos domicílios –, sobretudo de baixa renda. Afinal, para essa população, acessar a propriedade é mais difícil e, nos sítios históricos, não existe a possibilidade de autoconstrução como nas periferias.

Nesse sentido, o sítio histórico da Boa Vista passou por um processo de redução dos níveis salariais dos chefes de domicílio (Gráfico 6). A participação dos chefes de família com renda acima de 20 salários-mínimos passou de 6%, em 2000, para 0,64% em 2010. Além disso, a faixa de menores ingressos cresceu mais de 30% nesse mesmo período. Predominam, nesse bairro, os domicílios cuja renda do chefe de família está situada na faixa de 0 a 3 salários-mínimos, o que indica uma substituição da população de maior renda por moradores de baixos ingressos.

Gráfico 6
– Sítio histórico da Boa Vista e cidade do Recife: evolução da renda do chefe de domicílios (1991-2010)

Boa Vista: um singular submercado na centralidade recifense

Cabe, inicialmente, destacar que o CHR não é formalmente delimitado. Por isso a iniciativa do Grupo de Estudos sobre o Funcionamento do Mercado Imobiliário em Centros Históricos (Gemfi/UFPE) de estabelecer o seu perímetro. Foi considerado que ele é formado pelos Setores de Preservação Rigorosa (SPRs) das ZEPHs-08 (Boa Vista); 10 e 14 (Santo Antônio e São José); e o Setor de Intervenção Controlada (SIC) da ZEPH-09 (Bairro do Recife), também de preservação rigorosa, conforme a Figura 2.

Figura 2
– CHR: setores de preservação rigorosa

O Gemfi também identificou os padrões de ocupação presentes no CHR. Cada um deles resulta da síntese dos tamanhos e formas das quadras e dos lotes e das características edilícias predominantes. Tal identificação revelou 6 padrões, correspondendo cada um a uma função predominante (habitacional, comercial, serviços, etc.). Em suas linhas centrais, isso estabelece uma hierarquia de funcionalidades que, por sua vez, define uma hierarquia de submercados com diferentes mecanismos de funcionamento. Um desses submercados, nomeado de Boa Vista (Figura 3), corresponde ao mencionado reduto habitacional. Os demais foram chamados de submercados Bairro do Recife, Santo Antônio-Guararapes, Santo Antônio-Diario, São José e Imperatriz-rua Nova. Eles são distintos porquanto cada um deles é singular, isto é, irreprodutível.

Figura 3
– CHR: submercados imobiliários

Convém anotar que o universal, o particular e o singular coexistem em qualquer fenômeno a ser analisado, incluindo o mercado imobiliário. Nos centros históricos, este mercado apresenta duas características ou regras gerais de funcionamento (universais): (1) é formado por vários submercados (particulares), da mesma forma como ocorre no mercado imobiliário de unidades novas; e (2) cada um deles é tipificado pelos respectivos padrões de ocupação e prevalência de funções (singularidades).

O padrão de ocupação do submercado Boa Vista caracteriza-se pela presença de lotes alongados e pequenos (entre 70m2 2 A parte sul do Bairro do Recife conforma o submercado imobiliário homônimo. Nele se concentram as empresas de TIC e EC, abrigadas no Projeto Porto Digital. e 250m2 2 A parte sul do Bairro do Recife conforma o submercado imobiliário homônimo. Nele se concentram as empresas de TIC e EC, abrigadas no Projeto Porto Digital. ), em sua grande maioria ocupados por edificações térreas, com significativa participação de imóveis (42,2%) destinados unicamente à residência (Tabela 1). Nos demais submercados, o uso exclusivamente residencial não ultrapassa 3,1%, sendo, inclusive, inexistente nos submercados Santo Antônio-Guararapes e Santo Antônio-Diario.

Tabela 1
– CHR: usos dos imóveis por submercado imobiliário

A realidade da Boa Vista é bem distinta da dos demais submercados. Como exemplos, citam-se (1) o submercado Bairro do Recife, distinguido por lotes retangulares alongados, predominantemente entre 150m2 2 A parte sul do Bairro do Recife conforma o submercado imobiliário homônimo. Nele se concentram as empresas de TIC e EC, abrigadas no Projeto Porto Digital. e 600m2 2 A parte sul do Bairro do Recife conforma o submercado imobiliário homônimo. Nele se concentram as empresas de TIC e EC, abrigadas no Projeto Porto Digital. , que abrigam sobrados e edificações ecléticas de até 4 pavimentos, apropriados para acolher atividades de serviços (36,1%), como as de tecnologia da informação e comunicação (TIC) e as de economia criativa (EC);2 2 A parte sul do Bairro do Recife conforma o submercado imobiliário homônimo. Nele se concentram as empresas de TIC e EC, abrigadas no Projeto Porto Digital. e (2) o submercado Santo Antônio-Guararapes, diferenciado por seus lotes de 800m2 e 1600m2, que receberam prédios de 8 a 12 pavimentos, adequados para funções educacionais (17,1%).3 3 Na década de 2000, a área correspondente ao submercado Santo Antônio-Guararapes foi redescoberta pelo setor privado de educação superior.

Importa ainda observar a diferenciação entre as características das edificações no submercado Boa Vista e as do seu entorno. O Gráfico 7 indica as tipologias presentes nos SPRs e SPAs da ZEPH-08 que correspondem ao núcleo mais antigo do sítio histórico da Boa Vista.4 4 A ZEPH-08 é dividida em três polígonos: ZEPH-08.1, 08.2 e 08.3. Os dois últimos correspondem a polígonos na rua da Aurora, compreendendo um conjunto de ocupação mais recente. O submercado Boa Vista, aqui analisado, está situado no polígono 08.1 – o núcleo mais antigo. É possível observar que os imóveis do tipo “casa” correspondem a mais de 70% do total no SPR, caindo a proporção para menos de 50% no SPA. Dessa forma, conquanto não seja possível diferenciar os dados do censo em relação a SPR e SPA (ver Gráfico 2), pode-se inferir que há uma primazia do domicílio tipo casa no submercado da Boa Vista.

Gráfico 7
– Submercado da Boa Vista (SPR) e entorno (SPA): tipologias das edificações

Consoante o Quadro 1, nos submercados localizados no bairro da Boa Vista (Imperatriz-rua Nova e Boa Vista), predomina o tipo “casa sem recuos”; e, na porção de ocupação mais antiga (submercado Boa Vista), quase 80% de seus imóveis correspondem a essa tradicional tipologia edilícia. O submercado Bairro do Recife, como dito, possui predominância de edifícios horizontais ecléticos, resultados de sua reforma urbana e construídos a partir das décadas de 1910-1920. Já, nos dois submercados situados em Santo Antônio, predominam um tipo colonial (sobrado) e um outro produzido após sua reforma urbana (edifício vertical com galeria). Destaca-se o caso de São José. Este possuía padrão de ocupação próximo ao submercado Boa Vista (casas térreas com uso habitacional popular), mas sofreu profundas alterações promovidas pelo uso comercial (Menezes, 2015MENEZES, L. R. (2015). Habitar no centro histórico: a habitação de interesse social como instrumento de reabilitação do Centro Histórico do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco.). Seu tipo predominante é, atualmente, o edifício horizontal, mas sem características estilísticas, o que denota a extensa descaracterização relacionada a esse uso (também perceptível no submercado Imperatriz-rua Nova), que será abordada adiante.

Quadro 1
– CHR: tipologias e estilos predominantes por submercado

Outro importante elemento que diferencia esses submercados é a qualidade de seus espaços públicos. Bernardino (2018)BERNARDINO, I. L. (2018). Mercado imobiliário residencial em áreas centrais tradicionais: produção de novas espacialidades e obsolescência imobiliária na definição de submercados residenciais. Tese de doutorado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco. afirma que a evasão da área central por parte de uma camada social de maiores rendimentos acarretou uma mudança no comportamento do poder público, revelada pela predominante má condição de manutenção e conservação de muitos espaços públicos desses submercados.

No sítio histórico da Boa Vista, observa-se que os espaços coletivos, como praças, pátios e largos, concentram-se no submercado homônimo. Tal característica se associa à tipologia casa e ao uso predominantemente residencial nessa área, o que contribui para o convívio entre seus moradores. Situação diferente do que identificamos nos SPAs contíguos ao submercado Boa Vista, nos quais predominam as habitações em edifícios multifamiliares, tipologia que se distancia das ruas e de outros espaços públicos. Não surpreende, portanto, a inexistência de áreas de convívio público nesses tecidos mais recentes do bairro.

A predominância desses espaços no submercado Boa Vista não implica que sejam de qualidade. Na praça da Alegria (Figura 4), lixo e brinquedos em mau estado indicam manutenção precária. Apesar disso, os moradores do entorno utilizam esse espaço como extensão de suas casas. Em contrapartida, a praça Maciel Pinheiro (Figura 5), no submercado Imperatriz-rua Nova, possui melhor qualidade. É utilizada por taxistas, trabalhadores das lojas do entorno e compradores que param para descansar na praça.

Figura 4
– Praça da Alegria no submercado Boa Vista (2018)

Figura 5
– Praça Maciel Pinheiro no submercado Imperatriz-rua Nova (2018)

No submercado Boa Vista, ainda é possível observar ruas com menor movimento de carros (ruas da Alegria, da Glória e Leão Coroado), concentradoras de um número maior de residências no cotejo com as ruas de Santa Cruz e Velha. Estas últimas contam com maior trânsito de veículos e de transporte público, o que implica maior poluição sonora e ambiental. Isso afasta a ideia de uma “vizinhança tranquila”, possivelmente um dos critérios pela busca por residências na área. Importa ressaltar que as vias que compõem o submercado em questão são classificadas, em sua quase totalidade, como vias estreitíssimas e estreitas, o que inibe um fluxo mais intenso de veículos. Já as ruas do submercado Imperatriz-rua Nova e dos SPAs de entorno possuem calhas médias e largas, suportando um fluxo mais intenso.

Outro indicador da má qualidade dos espaços públicos é a situação das calçadas. Em levantamento realizado pela Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural da Prefeitura do Recife (DPPC/PCR), identificou-se que, no submercado Boa Vista, as calçadas, em sua maioria, estão em estado precário. Os passeios em estado de conservação entre regular e bom concentram-se no submercado Imperatriz-rua Nova, no qual predomina o uso comercial, e nos SPAs. A Figura 6 mostra uma calçada, no SPA, com tamanho e superfícies regulares, o que possibilita um passeio agradável ao transeunte, inclusive com a presença de árvores. A Figura 7 revela a quase inexistência de calçadas em uma rua situada no SPR, induzindo os pedestres a disputarem espaço com os veículos.

Figura 6
– Rua José de Alencar no SPA da Boa Vista (2018)

Figura 7
– Rua da Glória no submercado Boa Vista (2018)

Comparando a qualidade dos logradouros do submercado Boa Vista com os do Bairro do Recife, onde inexiste o uso residencial, percebe-se que as ruas de ambos os submercados são mais limpas no confronto com o submercado São José, em decorrência de uma menor incidência do comércio informal nos dois primeiros submercados acima citados. No entanto, as ruas do submercado Bairro do Recife possuem policiamento constante, serviço público essencial, não encontrado, no submercado Boa Vista, com a mesma frequência.

Essas características dos espaços públicos nos diferentes submercados imobiliários refletem nos preços neles praticados e na atuação dos agentes que deles participam. Apresenta-se, a seguir, uma análise da dinâmica do submercado imobiliário da Boa Vista, centrando-se nas transações de aluguel e nas condutas dos agentes envolvidos.

Submercado Boa Vista: agentes do mercado de aluguel

Como visto, o aluguel corresponde à forma de ocupação de cerca da metade dos domicílios no submercado Boa Vista. Uma aproximação maior quanto a essa prática pode ser obtida através das informações dos questionários aplicados, em 2014, pela Pesquisa Mercado Imobiliário em Centros Históricos. Para a Boa Vista, foram realizados vinte questionários com inquilinos. Os endereços visitados estão distribuídos em todo o sítio histórico, contemplando, assim, áreas de ocupação mais recentes e o tecido mais antigo (submercado Boa Vista), conforme ilustrado na Figura 8.5 5 Foram realizados 20 questionários, num total de 18 lotes diferentes, devido à visita em mais de um apartamento em alguns edifícios multifamiliares.

Figura 8
– Sítio histórico da Boa Vista: localização dos endereços visitados para a aplicação de questionários de aluguel habitacional

Os inquilinos residentes na área do submercado Boa Vista (tecido mais antigo) moravam em casas, conjugadas ou geminadas. A maioria delas estava subdividida em apartamentos ou cômodos, havendo também edificações com uso misto. Essa configuração atesta a permanência do padrão de subdivisão das edificações, existente para maximizar o aproveitamento (encortiçamento), o que pode ter contribuído para o grande incremento dos domicílios tipo apartamento no período de 1991 a 2010, anteriormente exposto. Em relação à faixa etária, os inquilinos entrevistados nessa mesma área se distribuem em duas faixas: 28-29 anos e 42-60 anos. São, na maioria, mulheres e estudaram até o ensino médio. Somente dois entrevistados, dentre os oito desse grupo, eram casados ou viviam com companheiro, sendo a maioria solteiros e/ou viúvos. No entanto, a maioria tem filhos e somente um dos endereços tinha apenas um morador.

Ademais, o grupo em questão possui renda de 1 a 3 salários-mínimos. Apenas um entrevistado declarou renda de 3 a 6 salários-mínimos. Assim, quanto à renda familiar, a maioria permanece na faixa de renda mais baixa. À exceção de dois pensionistas, todos eles trabalham por conta própria. Embora o aluguel seja uma opção de mobilidade para parte dos entrevistados, grande parte deles revelou que gostaria de comprar um imóvel, mas que não tem condições financeiras. Confirma-se, assim, a análise fundamentada nos dados dos censos do IBGE, isto é, trata-se de uma população empobrecida, com algumas características semelhantes àquelas identificadas em áreas pobres.

As entrevistas realizadas por Menezes (2015)MENEZES, L. R. (2015). Habitar no centro histórico: a habitação de interesse social como instrumento de reabilitação do Centro Histórico do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco., focadas em domicílios de aluguel cuja renda média era de, no máximo, 3 salários-mínimos, continuam a corroborar o perfil apontado pelos censos do IBGE e pelos questionários aplicados pelo Gemfi. Para além de levantar o perfil dos inquilinos, as referidas entrevistas tinham o objetivo de averiguar como se dava o acesso à moradia, abordando os rendimentos médios dos domicílios, o comprometimento desse rendimento com a locação e as motivações para a opção desse tipo de transação imobiliária. Dentre os moradores declarantes de seus rendimentos e do valor do aluguel, 80% comprometiam renda igual ou superior a 30%, o que os colocava em situação de déficit habitacional.6 6 De acordo com a Fundação João Pinheiro (2015), famílias urbanas com renda de até três salários- -mínimos que despendem 30% ou mais de sua renda com aluguel são consideradas em situação de déficit habitacional. Ademais, essa condição de ocupação foi retratada como resultado da falta de alternativas, devido às baixas condições financeiras, ratificando o comentado anteriormente.

Quanto aos proprietários dos imóveis, a Tabela 2 – resultante do Cadastro Imobiliário da prefeitura do Recife – aponta que, considerando os seis submercados, predominavam, em 2018, proprietários imobiliários cujo status jurídico era de Pessoas Físicas (PF): cerca de 70,1%. No cotejo com os demais submercados, percebe-se a singularidade do submercado Boa Vista, predominantemente habitacional. Nele, os proprietários PF chegam a 87,3% do total. Dentre os proprietários Pessoas Jurídicas (PJ), destacavam-se as empresas (12,7%), representatividade muito aquém dos demais submercados.

Tabela 2
– CHR: status jurídico dos proprietários de endereços por submercado imobiliário (2018)

Quanto à estrutura fundiária, o aludido Cadastro indica que, para os 927 endereços localizados no submercado da Boa Vista, havia 682 proprietários, o que confere uma média de 1,36 endereço por proprietário. Quanto aos 809 endereços correspondentes à PF, foram levantados 634 proprietários, perfazendo uma média de 1,28 endereço por proprietário. Em contrapartida, os endereços pertencentes à PJ estavam nas mãos de 48 proprietários, com uma média de 2,46 endereços/proprietário, uma concentração maior do que nos casos de PF. Para efeitos de comparação, no submercado Bairro do Recife, os 948 endereços estavam distribuídos entre 261 proprietários, chegando a uma média de 3,63. Ademais, 16 proprietários detinham 10 ou mais endereços, correspondendo, conjuntamente, a 51,8% do total de endereços desse submercado, uma concentração significativa da propriedade. No submercado Boa Vista, apenas 3 proprietários possuem 10 ou mais endereços, respondendo por 6,26% do total.

Os dados indicam que a propriedade no submercado Boa Vista era, em 2018, bastante fragmentada quando se trata do universo de endereços pertencentes à PF. Essa é uma característica condizente com as características da área, que não passou por renovação urbana nem por nenhum outro processo de valorização imobiliária. Ademais, pode-se afirmar, a partir de Lacerda e Abramo (2020)LACERDA, N.; ABRAMO, P. (2020). O mercado de aluguel de imóveis comerciais e de serviços em centros históricos brasileiros: implicações da conservação inovadora e da destruição aniquiladora nos preços dos bens patrimoniais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 22, pp. 1-27., que o submercado em questão funciona a partir de um modelo de concorrência imperfeita, mais especificamente de concorrência monopolista. Segundo Lacerda (1993), o primeiro economista a admitir a situação de concorrência monopolista foi Edward Chamberlin (1933). Esse modelo caracteriza-se, além da atuação de muitos vendedores e de muitos compradores, pela heterogeneidade dos produtos e pela incapacidade de substituição de cada um deles. Dito de outra forma: apresenta elementos de concorrência perfeita (vários proprietários e inquilinos, ausência de concentração fundiária) e também de monopólio, por causa da diversidade de produtos e presença de diferentes níveis de qualidade do espaço público (bens únicos quanto a materialidade e localização).

Conforme aponta Tourinho (2006)TOURINHO, A. de O. (2006). “Centro e Centralidade: uma questão recente”. In: OLIVEIRA, A. U.; CARLOS, A. F. A. (orgs.). Geografia das metrópoles. São Paulo, Contexto., a fragmentação do solo e da propriedade é uma característica fundamental do centro tradicional de uma cidade, consequência do seu longo processo histórico. Essa característica dificulta a atuação do capital, que demanda maior uniformização, geralmente possibilitada por reformas urbanas ou processos de “revitalização”, como os verificados no Bairro do Recife, capitaneados pelo poder público. Assim, o perfil dos agentes e a fragmentação da propriedade são fatores que contribuem para a continuidade da singularidade do mercado habitacional de aluguel na Boa Vista. Cabe, portanto, analisar as condutas desses agentes diante dos bens patrimoniais, que podem apontar mais indícios dessa singularidade.

Submercado Boa Vista: condutas dos agentes e preços de aluguel da moradia

Para identificar as condutas dos agentes quanto aos bens patrimoniais, foram consideradas as análises dos estados de conservação e de preservação dos imóveis. No submercado Boa Vista (Tabela 3), 30,9% dos imóveis encontravam-se, em 2018, em bom estado de conservação e 52,5%, em regular estado. Os imóveis em estado precário representavam 15,7%. No cotejo com os outros submercados, o da Boa Vista está próximo aos de São José (52,7%) e de Imperatriz-Rua Nova (56,3%) quanto aos imóveis em estado regular. Em contrapartida, possui o maior percentual de imóveis em situação precária.

Tabela 3
– Submercado Boa Vista: estado de conservação dos imóveis nos submercados (2018)

Em relação ao estado de preservação (Gráfico 8), o conjunto de imóveis preservados/modificados7 7 De acordo com a classificação da DPPC, o imóvel é considerado “preservado” quando não há alteração das suas características originais; e modificado, quando as transformações verificadas não alteraram de maneira significativa a tipologia e a leitura do estilo da edificação, implicando majoritariamente alterações nas aberturas e nos materiais de revestimento. no submercado Boa Vista chega a quase 60%, ficando abaixo dos submercados Bairro do Recife (73,51%), Santo Antônio-Guararapes (62,86%) e Santo Antônio-Diário (76,33%).

Gráfico 8
– CHR: estado de preservação dos imóveis por submercado imobiliário

Importa retomar as diferentes características dessas áreas. O Bairro do Recife é o único dos seis submercados que possui tombamento em nível federal. Ademais, possui uma ocupação de padrão mais recente, o que demanda menos alterações nas edificações para novos usos. Mesma situação é verificada em Santo Antônio-Guararapes, em que predominam edifícios verticais construídos a partir da reforma urbana iniciada na década de 1930. Quanto a Santo Antônio-Diario, embora possua predominância da tipologia sobrado, a maioria de seus imóveis preservados/modificados é de edifícios verticais construídos após a referida reforma urbana.

É importante, também, anotar que os dados de preservação gerados pela DPPC dizem respeito às transformações observadas nas edificações em relação ao seu estado no período de classificação das ZEPHs (1980-1981). Assim sendo, os submercados que possuíam, no período de sua proteção municipal, uma grande predominância do padrão de ocupação tradicional de casas térreas/sobrados são aqueles que apresentam piores resultados em relação à preservação. Esses imóveis –sendo mais antigos e de menor porte – demandam maiores alterações para adaptação a usos não residenciais. Nesse contexto, observa-se que, dentre os submercados São José, Imperatriz-rua Nova e Boa Vista, este último apresenta os melhores resultados em termos de preservação.

Cabe destacar que Menezes (2015)MENEZES, L. R. (2015). Habitar no centro histórico: a habitação de interesse social como instrumento de reabilitação do Centro Histórico do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco., ao confrontar os sítios históricos de São José e da Boa Vista – ambos com o mesmo nível de preservação legal e sem terem sido objetos de investimentos públicos, como é o caso do Bairro do Recife – demonstrou que a permanência do uso habitacional na Boa Vista – moradia de aluguel de baixa renda – foi fundamental para os melhores índices de preservação nesse sítio. Por meio do levantamento realizado pela DPPC, entre 2017 e 2018, observa-se que, dentre os imóveis de uso residencial,8 8 Os imóveis com uso misto e de pensão também foram considerados como residenciais. os imóveis preservados/modificados respondem por 60% do total, enquanto, dentre os imóveis destinados a comércio/serviços, esse percentual cai para 52%

Isso significa que, diante dos bens patrimoniais, uma parte significativa dos proprietários e/ou inquilinos dos imóveis habitacionais tende a manter uma postura norteada pela conservação inovadora dos bens patrimoniais, termo proposto por Lacerda (2018) para designar os imóveis, reconhecidos pelos seus valores histórico-culturais – não passíveis de destruição, pois submetidos a normas protecionistas –, mas modificados para adequá-los às atividades contemporâneas. Trata-se, portanto, de uma aliança entre o antigo e o novo. No caso dos imóveis comerciais, ora esses agentes adotam essa postura –, conservação inovadora dos bens patrimoniais –, ora assumem condutas fundamentadas na destruição aniquiladora dos bens patrimoniais. Segundo Lacerda e Abramo (2020)LACERDA, N.; ABRAMO, P. (2020). O mercado de aluguel de imóveis comerciais e de serviços em centros históricos brasileiros: implicações da conservação inovadora e da destruição aniquiladora nos preços dos bens patrimoniais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 22, pp. 1-27., isso denota que, para além da destruição dos bens patrimoniais por meio da substituição ou descaracterização, os inquilinos e/ou proprietários os desmaterializam dos seus valores histórico-culturais.

Ainda com relação às condutas dos agentes, importa analisar os preços ofertados no submercado Boa Vista (Quadro 2) – localizado em um dos SPRs da ZEPH-08, conforme anteriormente exposto –, no confronto com os oferecidos no seu entorno (SPA). Os preços médios de oferta do metro quadrado de aluguel habitacional foram obtidos no período de janeiro de 2019 a julho de 2020, por meio do Portal Zap Imóveis e de contatos através de telefones disponibilizados nas placas de anúncio. Isso resultou na coleta de informações a respeito de 11 imóveis ofertados no submercado Boa Vista (SPR) e 21 nos SPAs (entorno). A análise dessas informações indica que a dinâmica imobiliária nos setores mais permissivos quanto à proteção do patrimônio cultural, ou seja, nos SPAs, é mais intensa do que nos SPRs.

Quadro 2
– Submercado Boa Vista e entorno (SPA): preço de oferta do m2 de locação de imóveis residenciais (2019/2020)

A média dos preços por metro quadrado de aluguel residencial no submercado Boa Vista é R$16,08, enquanto nos SPAs atinge R$19,89. As restrições sobre os bens patrimoniais nos SPRs promovem, portanto, um acréscimo razoável de 23,7% nos preços médios do metro quadrado no SPA, situação para a qual pode também contribuir a maior qualidade do espaço público, conforme exposto. Outro fator de especial relevo pode estar relacionado à idade e tipologia das edificações. Nesse sentido, verifica-se uma significativa diferença em relação ao preço máximo no SPA, muito acima da média. O preço de R$43,65 por metro quadrado foi identificado num edifício vertical na rua José de Alencar, ou seja, em um padrão de ocupação mais recente. Dessa forma, identifica-se uma diferenciação de preços de oferta de aluguel residencial entre SPR (submercado Boa Vista) e SPA, com desvalorização da área de interesse histórico.

Quanto à relação entre estado de preservação/modificação dos imóveis residenciais e preços ofertados de locação (Tabela 4), ela esclarece ainda mais as razões das condutas dos agentes. No submercado Boa Vista, a média dos preços por metro quadrado dos imóveis substituídos9 9 Dentro da amostra de preços/m analisada, não foram identificados imóveis descaracterizados. foi de R$15,27, enquanto a dos imóveis preservados/modificados foi de R$ 16,75, uma diferença de apenas 9,69%. Isso leva a inferir que o estado de preservação não é um fator tão determinante na fixação dos preços de locação de imóveis residenciais no submercado Boa Vista, mas, mesmo assim, conduz parte significativa dos proprietários e inquilinos a adotarem uma conduta fundamentada na conservação inovadora.

Tabela 4
– Submercado Boa Vista (SPR): preço de oferta do m2 de locação de imóveis residenciais segundo estado de preservação e de conservação

Quanto ao estado de conservação desses imóveis, como era de se esperar, a média dos preços do metro quadrado dos imóveis em bom estado (R$19,68) é bem superior à média dos preços em estado regular (R$12,83) ou precário (R$7,46), como pode ser observado por meio da Tabela 4. Aventa-se, portanto, que a conservação do bem é uma variável preponderante para a definição dos preços de oferta de aluguel residencial, em detrimento das características valoradas para preservação do bem patrimonial.

Se compararmos a média dos preços de aluguel ofertados no submercado Boa Vista com a dos oferecidos nas SPAs, contíguos a esse submercado (Tabela 5) verifica-se que os imóveis habitacionais preservados ostentam uma média de R$11,14, os substituídos, R$16,72, e os novos, R$22,57. Nota-se, portanto, a presença do estado de preservação “imóvel novo”, categoria não identificada no submercado Boa Vista. Ademais, constata-se que tais imóveis, por corresponderem a unidades habitacionais em edifícios multifamiliares, são mais valorizados do que as edificações antigas, mesmo preservadas.

Tabela 5
– SPA: preço de oferta do m2 de locação de imóveis residenciais segundo estado de preservação e de conservação

Dentre a amostra de imóveis residenciais de locação ofertados nos SPAs, não foram identificadas moradias em estado precário de conservação. A diferença da média de preços entre os imóveis em bom estado (R$21,00) e regular (R$15,16) é considerável, da ordem de 38,5% a mais. Porém é menor do que a diferença entre os mesmos estados de conservação (bom e regular) no submercado Boa Vista, a qual chega a 53,39%. Assim, nos SPAs, onde existe a oferta de imóveis novos, o estado de conservação é relevante do ponto de vista da formação dos preços, mas possui menor impacto do que no SPR, onde predominam imóveis antigos.

Assim, verifica-se que, no submercado Boa Vista (SPR), melhores índices de preservação corresponderam a preços mais altos, mas a diferença, em termos percentuais, é baixa, sobretudo quando se compara a preservação com o impacto dos índices de conservação. Por sua vez, nos SPAs, piores resultados do ponto de vista da preservação (imóveis novos ou substituídos) correspondem a espacialidades novas e, portanto, a preços mais altos. Quanto à conservação, ela permanece sendo um fator significativo para os preços ofertados, mas possui menor peso do que o verificado para os imóveis antigos nos SPRs. Avaliamos, dessa forma, que, no submercado Boa Vista, os valores culturais dos bens transacionados são levados em consideração para a composição dos preços. No entanto, o estado de conservação é o aspecto mais relevante no que diz respeito às características dos bens transacionados.

Finalizando/reabrindo o debate

A análise, neste artigo, permitiu verificar como, ao longo da formação e consolidação do bairro da Boa Vista, foi se conformando no seu interior o submercado homônimo, caracterizado pela resistência do uso habitacional. Territorialmente, ele corresponde a um dos Setores de Preservação Rigorosa da Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural 08, instituída em 1981.

Trata-se de um submercado singular. Além de ser o único reduto habitacional do CHR, nele predominam as transações de aluguel, envolvendo segmentos de baixa renda. Dito de outra maneira, o aluguel é a forma predominante de acesso desses segmentos a uma porção territorial estratégica da centralidade funcional e histórica recifense. A sua singularidade ainda reside na sua estrutura fundiária. Como visto, diferentemente de outros submercados, como o do Bairro do Recife, não há concentração da propriedade imobiliária. Nele, os produtos transacionados são diversos quanto à localização, à qualidade do espaço público, à época de construção, à tipologia edilícia e ao estado de conservação e preservação (bens únicos quanto à materialidade e localização). Acrescente-se que envolve muitos proprietários/locadores e inquilinos. Significa isso que esse submercado funciona a partir de um modelo de concorrência imperfeita, mais precisamente de concorrência monopolista.

Essas características diferenciam esse submercado dos demais do CHR e dificultam investimentos privados de grande porte, contribuindo para a continuidade do uso habitacional que, diante do baixo envolvimento do poder público, menos promove a descaracterização física do patrimônio edificado. Ademais, vem ao encontro dos achados de Menezes (2015)MENEZES, L. R. (2015). Habitar no centro histórico: a habitação de interesse social como instrumento de reabilitação do Centro Histórico do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco., segundo os quais elementos específicos da Boa Vista, notadamente o aluguel, contribuem para a conservação e preservação do patrimônio cultural. Isso leva a afirmar que os proprietários e/ou inquilinos, em sua maioria, são guiados, em termos de condutas, pela conservação inovadora dos bens patrimoniais. Por fim, a análise dos preços ofertados indicou que, no âmbito do mercado imobiliário de locação de unidades habitacionais no submercado Boa Vista (SPR), os valores culturais dos bens transacionados são levados em consideração para a composição dos preços. Todavia, o estado de conservação é o aspecto mais relevante para a fixação dos preços de oferta.

Ademais, no cotejo entre o conjunto antigo (submercado) e seu entorno (SPA), identificamos a continuidade do padrão de desvalorização do núcleo mais antigo da Boa Vista, verificado já desde o momento em que novas fases de ocupação do bairro foram deslocando, gradualmente, os eixos de valorização, levando consigo os investimentos públicos e privados. Esse movimento levou à queda da qualidade do espaço urbano, mas contribuiu para a manutenção do uso habitacional. A legislação urbanística, ao consolidar esse padrão de ocupação, aliada à falta de interesse na conversão do uso habitacional em outros usos – como foi o caso de São José – também foram fatores importantes para a manutenção da desvalorização imobiliária desse submercado em relação ao seu entorno. Assim, se, por um lado, os baixos preços imobiliários podem ser considerados um dado negativo com relação a esta área da centralidade histórica recifense, por outro lado, pode-se considerar que contribuíram para a permanência desse reduto habitacional singular no Centro Histórico do Recife.

Gráfico 4
– Boa Vista e cidade do Recife: evolução da faixa etária da população

Referências

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Notas

  • *
    Este estudo foi desenvolvido no âmbito da Pesquisa sobre o Funcionamento do Mercado Imobiliário em Centros Históricos das cidades brasileiras, desenvolvida com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe).
  • 1
    Toda ZEPH é formada por, ao menos, um Setor de Preservação Rigorosa (SPR), em que incidem restrições legais para prevenir alterações nas edificações, em feição, materiais e volumetria. O SPR pode, em alguns casos, ser envolvido por um Setor de Preservação Ambiental (SPA), que serve como área de transição para a cidade regular. Nele, é possível a criação de novas espacialidades, respeitando alguns parâmetros com vistas a preservar a ambiência e a visibilidade da área protegida.
  • 2
    A parte sul do Bairro do Recife conforma o submercado imobiliário homônimo. Nele se concentram as empresas de TIC e EC, abrigadas no Projeto Porto Digital.
  • 3
    Na década de 2000, a área correspondente ao submercado Santo Antônio-Guararapes foi redescoberta pelo setor privado de educação superior.
  • 4
    A ZEPH-08 é dividida em três polígonos: ZEPH-08.1, 08.2 e 08.3. Os dois últimos correspondem a polígonos na rua da Aurora, compreendendo um conjunto de ocupação mais recente. O submercado Boa Vista, aqui analisado, está situado no polígono 08.1 – o núcleo mais antigo.
  • 5
    Foram realizados 20 questionários, num total de 18 lotes diferentes, devido à visita em mais de um apartamento em alguns edifícios multifamiliares.
  • 6
    De acordo com a Fundação João Pinheiro (2015)FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (2015). Déficit Habitacional no Brasil | 2011-2012. Disponível em: http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/559-deficit-habitacional-2011-2012/file. Acesso em: 13 jul 2015.
    http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docma...
    , famílias urbanas com renda de até três salários- -mínimos que despendem 30% ou mais de sua renda com aluguel são consideradas em situação de déficit habitacional.
  • 7
    De acordo com a classificação da DPPC, o imóvel é considerado “preservado” quando não há alteração das suas características originais; e modificado, quando as transformações verificadas não alteraram de maneira significativa a tipologia e a leitura do estilo da edificação, implicando majoritariamente alterações nas aberturas e nos materiais de revestimento.
  • 8
    Os imóveis com uso misto e de pensão também foram considerados como residenciais.
  • 9
    Dentro da amostra de preços/m analisada, não foram identificados imóveis descaracterizados.
  • Imóveis novos são aqueles em que se verificou a preexistência de uma edificação no lote, que foi demolida para construção da nova edificação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2021
  • Aceito
    29 Jun 2022
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