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GRUA Gentlemen de Rua: modos de produção e comunicação de um processo de criação em tempos de crise

GRUA Gentlemen de Rua: modes de production et communication d’un processus de création en temps de crise

Resumo:

Este artigo examina práticas comunicativas e modos de produção do processo de criação do grupo de dança e performance GRUA Gentlemen de Rua, no período da crise de 2020, observando procedimentos criativos que se cruzam com meios audiovisuais e com o uso do ciberespaço, investigando se essas relações se caracterizam como ações de resistência e reinvenção. Para isso, discutem-se documentos gerados pelo Grupo, como projetos, anotações, roteiros, filmes, sites etc. A fundamentação teórica estrutura-se a partir da teoria crítica dos processos de criação de Cecilia Almeida Salles e propõe diálogos com Edgar Morin, Pierre Musso, Zygmunt Bauman, Josette Féral e Vincent Colapietro, entre outros.

Palavras-chave:
Processos de Criação; Crise; Artes do Corpo; Audiovisual; Comunicação

Résumé :

Cet article examine les pratiques communicatives et les modes de production du processus de création du groupe de danse et de performance GRUA Gentlemen de Rua, dans la période de la crise de 2020, en observant les procédures créatives qui se croisent avec les moyens audiovisuels et l’utilisation du cyberespace, en cherchant si ces relations se caractérisent par des actions de résistance et de réinvention. Pour cela, des documents générés par le Groupe sont discutés, tels que des projets, des notes, des scénarios, des films, des sites Internet, etc. Le fondement théorique est structuré à partir de la théorie critique des processus créatifs de Cecilia Almeida Salles et propose des dialogues avec Edgar Morin, Pierre Musso, Zygmunt Bauman, Josette Féral et Vincent Colapietro, entre autres.

Mots-clés:
Processus de Création; Crisis; Arts Corporels; Audiovisual; Communication

Abstract:

This article examines communicative practices and modes of production in the creation process of the dance and performance group GRUA Gentlemen de Rua, in the period of the 2020 crisis, observing creative procedures that intersect with audiovisual media and the use of cyberspace, investigating whether these relationships are characterized as actions of resistance and reinvention. For this, we discuss documents generated by the Group, such as projects, notes, scripts, films, websites, etc. The theoretical foundation is structured from the critical theory of creation processes by Cecilia Almeida Salles and proposes dialogues with Edgar Morin, Pierre Musso, Zygmunt Bauman, Josette Féral and Vincent Colapietro, among others.

Keywords:
Creation Processes; Crisis; Body Arts; Audio-visual; Communication

Introdução

Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa em Processos de Criação do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), que acolhe estudos sobre uma grande diversidade de arquivos de artistas e grupos das artes cênicas e cinema1 1 Este artigo é um recorte da tese Crise e Criação: interações entre as artes do corpo e o audiovisual na experimentação contemporânea (Dias, 2022). . No início, o foco das pesquisas concentrava-se em registros privados, que na experimentação contemporânea ultrapassaram tais limites e foram, em muitos casos, incorporados pela cena. Ao mesmo tempo, os registros audiovisuais dos processos aumentaram de modo significativo diante das facilidades tecnológicas com câmeras menores e celulares e da necessidade de alguns grupos que lidam com a improvisação, por exemplo. Tais interações com o audiovisual são bastantes relevantes para o Grua Gentlemen de Rua, nosso objeto de pesquisa, como veremos.

O desenvolvimento dos estudos de processo levou à observação da recorrência de aspectos gerais da criação, que, em diálogo com os artistas e os conceitos de semiose, de Charles Peirce (1955)PEIRCE, Charles S. Philosophical writings. New York: Dover Publication Inc., 1955., de rede, de Pierre Musso (2004)MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André (Org.). Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004., e o pensamento da complexidade, de Edgar Morin (2011)MORIN, Edgar. O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes organização. Tradução de Juremir Machado da Silva. 6. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011., foram sistematizados no que chamamos crítica de processos. Tal abordagem é sustentada pelo conceito de criação como rede (Salles, 2017SALLES, Cecília Almeida. Processos de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.).

Traremos alguns desses instrumentos teóricos, que serão relevantes para nossas reflexões, mais especificamente as práticas comunicativas, no âmbito das tendências peirceanas, e o espaço para a entrada de ideias novas.

A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões, com tendências vagas, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a princípios direcionadores. Esse processo contínuo, sem ponto inicial nem final, é um movimento falível, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de ideias novas.

As tendências são rumos vagos, que orientam o processo de construção dos objetos, no ambiente de incerteza e imprecisão; geram trabalho em busca de algo que está por ser descoberto. Elas podem ser observadas sob duas perspectivas: constituição de projetos poéticos ou princípios direcionadores e práticas comunicativas. Quanto às práticas comunicativas, estamos falando das relações com outros de maneira ampla: a experiência se dá nas relações entre sujeitos. O que nos interessa destacar, de modo mais específico, é o sujeito em meio a interações.

Essa noção se dá em diálogo com Vincent Colapietro (2014)COLAPIETRO, Vincent. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução de Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014., que, ao interpretar escritos de Charles Sanders Peirce sobre a subjetividade, afirma que não somos constituídos como sujeitos simplesmente divididos (consciente/inconsciente), mas como sujeitos históricos, encarnados e culturalmente sobredeterminados. Essas propriedades, que definem a construção de nossa subjetividade, significam que não temos como escapar, por exemplo, das consequências perpetradas pelas crises que se propagam pelo mundo, pois somos parte atuante de suas dinâmicas. Os estados de crise criam reflexos sobre reflexos, batem e rebatem em nós mesmos, individual e coletivamente, a ponto de tornarem essas instâncias indistinguíveis. Assim, a crise reside em todos os aspectos da nossa existência, inclusive nos processos de criação.

Sujeitos pertencentes a uma sociedade globalizada em desequilíbrio, estamos todos ligados. Nossas interações acontecem a partir da mediação de vetores sociais, econômicos, geográficos, virtuais etc. Se estamos conectados pelas redes e tecnologias comunicativas, no entanto, permanecemos em nossas frágeis bolhas. Vivemos situações de apartamento que ultrapassam a situação de afastamento social imposta pela disseminação de um vírus. Assim, apesar de conectados e de termos, a partir disso, uma sensação de proteção coletiva, estamos desprotegidos - em crise.

As crises, no contexto do conceito de criação oferecido pela crítica de processo, podem ser vistas sob duas perspectivas complementares. Sob a perspectiva da semiótica peirceana, estamos falando da crise como uma restrição comum no caso da crise pandêmica, como detonadora de hipóteses artísticas. Tais hipóteses são testadas no âmbito dos princípios direcionadores de cada grupo e abrem espaço para a entrada de ideias novas.

As crises se caracterizam por colocar obstáculos e dificuldades, por vezes intransponíveis. No entanto, podem possibilitar oportunidades para que aconteçam mudanças e novas experiências que gerem outros pontos de vista e formas de estar no mundo. Esse aspecto contraditório, engendrado pelo estado de crise, é explicado por Morin (2013MORIN, Edgar. Entender o mundo que nos espera. In: MORIN, Edgar; VIVERET, Patrick. Como viver em tempos de crise? Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013., p. 9), para quem “[...] as crises agravam as incertezas, favorecem os questionamentos; podem estimular a busca de novas soluções e também provocar reações patológicas, como a escolha de um bode expiatório. São, portanto, profundamente ambivalentes”. Morin, como pensador da cultura, oferece seu olhar para a crise, adensando, assim, nossas reflexões sobre o enfrentamento artístico desse momento vivido.

As ambivalências se inserem no próprio conceito de crise, no sentido de gerar acontecimentos que, inevitavelmente, forçarão mudanças, deslocamentos que podem ser bons ou ruins. Ao favorecer as incertezas, o estado de crise convocará um enfrentamento para sua resolução que exigirá criatividade, ousadia. É preciso abrir novos caminhos, propor soluções, tratamentos, buscar a cura. A ambiguidade também se apresenta no fato de que, apesar de nos atingir coletivamente, nem todos enfrentam as crises do mesmo modo. Então, sob essa perspectiva, as crises apresentam oportunidades. Esse aspecto é contemplado por Bauman e Bordoni (2016BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016., p. 11):

Como se pode ver, ‘crise’, em seu sentido próprio, expressa algo positivo, criativo e otimista, pois envolve mudança e pode ser um renascimento após uma ruptura. Indica separação, com certeza, mas também escolha, decisões e, por conseguinte, a oportunidade de expressar uma opinião. Num contexto mais amplo, a noção adquire sentido de maturação de uma nova experiência, a qual leva a um ponto de não retorno (tanto no âmbito pessoal quanto no histórico-social).

Os sentidos implícitos nos significados que definem o conceito de crise2 2 A origem etimológica da palavra “crise” se localiza na Grécia antiga. Segundo Bauman e Bordoni (2016, p. 9), origina-se “Da palavra grega κρίσις, ‘juízo’, ‘resultado de um juízo’, ‘ponto crítico’, ‘seleção’, ‘decisão’ (segundo Tulcídedes), mas também ‘contenda’ ou ‘disputa’ - (segundo Platão), um padrão, do qual derivam critério, ‘base para julgar’, mas também ‘habilidade de discernir’, e crítico, ‘próprio para julgar’, ‘crucial’, ‘decisivo’, bem como pertinente a arte de julgar”. O conceito de crise, para os autores, forma-se nas esferas médicas, em que é usada até hoje, pela necessidade de tomadas de decisões em contextos de extrema urgência. Quando uma doença se estabelece no paciente, um ponto de incerteza se instala, seu corpo é tomado por algo estranho, alienígena a esse sistema. , que dizem respeito a um estado limite em que a tomada de decisão é crucial para que caminhos de resolução e cura possam ser implementados, talvez possam atribuir à crise pandêmica a aceleração de processos de criação que já apontavam, nos últimos anos, caminhos de reinvenção de linguagem, trilhados por experimentações que unem as artes da cena com o audiovisual. Assim, neste artigo, para refletir sobre questões que a crise pandêmica impôs simultaneamente aos modos de produção e aos processos artístico-comunicativos, observaremos os trânsitos entre as artes do corpo e o audiovisual que se dão no ciberespaço, promovidos pelo grupo de dança e performance Grua Gentlemen de Rua, sediado na cidade de São Paulo. Para isso, discutiremos os seguintes aspectos dos processos desse grupo: a experiência que se dá na relação e a fricção entre imagem e materialização.

A experiência se dá na relação

O Grua Gentlemen de Rua (Figura 1) surge legitimado pelas interações entre o audiovisual, a dança e a performance, que se dão desde o século passado. É um entrelaçamento que conceitua o seu nascimento e que, gradativamente, tornar-se-á definidor dos seus procedimentos de criação. Osmar Zampieri, um dos fundadores e diretores do Grua Gentlemen de Rua, caracteriza o Grupo como “[...] composto por artistas interdisciplinares que, desde 2002, desbrava o encontro entre dança, cinema e espaços urbanos, em um afinado jogo de improviso entre câmera, artistas e os fluxos dos locais onde atuam”3 3 Este artigo é elaborado a partir da reflexão sobre documentos de processo de criação disponibilizados nas redes e cedidos pelo Grupo aos autores. .

Figura 1
Alguns integrantes do Grua Gentlemen de Rua.

Dirigido também por Jorge Garcia e Willy Helm, desde sua fundação o Grupo realizou trabalhos no Brasil e no exterior.

As performances são realizadas por homens vestidos de terno a rigor - os grueiros -, que criam, a partir de improvisos, situações cênicas em diálogo com o espaço, seus acontecimentos e com o espectador transeunte. Desse modo, a ação poética do Grua, que se dá por meio de interações com a ecologia urbana5 5 Segundo Oliveira e Santos (2021, p. 116), “A Ecologia Urbana foi criada em 1920 pela Escola de Chicago, emergindo da necessidade de se compreender as dinâmicas de funcionamento das cidades, abordando alterações antrópicas em áreas urbanas e sua interação com os ecossistemas naturais e o ambiente construído. As pesquisas em Ecologia Urbana podem ser estritamente biológicas (Ecologia na Cidade), ou possuir enfoque interdisciplinar com a interação das ciências naturais e sociais (Ecologia da Cidade)”. , é construída nos trânsitos entre linguagens da dança, da performance e do audiovisual, resgata os gestos, a memória, os laços da coletividade e denuncia invisibilizações, exclusões e violências cotidianas impostas aos corpos pelas arquiteturas e dinâmicas político-sociais.

O trabalho é elaborado a partir de improvisos realizados em profundo estado de atenção e disponibilidade dos grueiros, de modo a dialogar com a complexidade que surge dos cruzamentos desses elementos, “[...] como observadores acompanhando todos os acontecimentos em seu entorno através de suas ações, criando uma dança torrencial, feita de nexos de conexão com o lugar”6 6 Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA. . Assim, a ação artística do Grua pode ressignificar a historicidade e a memória do espaço público (Figura 2) e oferecer ao espectador transeunte localizações mais sutis, que vão além das geográficas.

Figura 2
Corpos de Passagem.

O advento da crise pandêmica de 2020 impôs inúmeros desafios a todos os trabalhadores de arte e atingiu, especialmente, as artes presenciais, que precisaram se reinventar para sobreviver. Foi necessário mudar sentidos e focos dos trabalhos, adequar objetivos. Naquele contexto, o Grua faz considerações sobre as mudanças que deviam ser implementadas para que seu projeto poético resistisse, numa proposta para um edital8 8 Este artigo é elaborado a partir da reflexão sobre documentos de processo de criação disponibilizados nas redes e cedidos pelo grupo aos autores. em 2021:

[...] o projeto apresentado para este edital, ‘Corpos de Passagem’, será revisitado, investigando não mais no encontro presencial entre os grueiros e transeuntes, mas entendendo como se dá essa relação dos grueiros, em um determinado espaço físico, sem a participação presencial do público, sem a relação imediata com ele, e encontrar modos de exibir essa investigação em espaço online9 9 Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA. .

Os artistas em isolamento precisaram, em muitos casos para sobreviver, aproximar-se e entender como nunca os procedimentos de criação audiovisual, o funcionamento das plataformas online, das tecnologias e redes digitais. Uma situação crítica que, naquele momento, estabeleceu a urgente necessidade de novos caminhos de criação que resgatassem e/ou reinventassem as práticas comunicativas entre artistas e, muito especialmente, com o público. O Grua, no projeto proposto, trilhou o caminho de preservação de seus processos e propôs deslocar sua investigação, que se dava presencialmente, no corpo a corpo, para um outro sentido de presença, a estabelecer-se de forma online.

O Grua sabe que essa é a questão central de nossos dias, portanto, que são muitas as tentativas que vêm sendo elaboradas por vários artistas de distintas geografias, nacionais e internacionais, mas é no esforço desse árduo exercício de buscar compreender as instâncias que norteiam essa prerrogativa, quer dizer, estamos falando sobre ‘presença’, ‘representação’, ‘corpo’, em ambiente on-line, o tônus de nosso projeto10 10 Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA. .

Destarte as interações da pesquisa do grupo com os meios audiovisuais feitas até então, a crise impôs um ambiente totalmente novo, cheio de desafios, no qual se fez necessário não só reestruturar os sentidos poéticos e os procedimentos de criação da linguagem da dança/performance, mas, também, aprofundar o conhecimento dos meios digitais de produção e difusão do trabalho e, ainda, da linguagem audiovisual. Foi importante que novas perguntas fossem feitas, que modos de produção fossem inventados ou redimensionados, que processos de criação e comunicação fossem repensados.

O Grupo percebeu que era preciso fundar outros entendimentos sobre questões importantes de seu trabalho, com a consciência de que, para isso, era necessário aprofundar as relações com a linguagem audiovisual, com as redes digitais e ressignificar os sentidos de presença, representação e corpo, pontos importantes para as artes presenciais. Desse modo, percebeu-se que outras e/ou novas possibilidades deveriam ser investigadas pelo Grupo. A partir de um maior engajamento do audiovisual em sua linguagem, o Grua reestruturou pontos importantes de seus procedimentos de criação de dança/performance relacionados aos modos de construção, manipulação e desconstrução dos nexos da presença. Esse aspecto é trazido por Féral, ao refletir sobre as relações entre a arte, o real e a diversidade de interações mídia - tecnologias - performance:

A performance se propõe, com efeito, como modo de intervenção e de ação, sobre o real, um real que ela procura desconstruir por intermédio da obra de arte que ela produz. Por isso ela vai trabalhar em um duplo nível, procurando, de um lado, reproduzi-lo em função da subjetividade do performer e, de outro, desconstruí-lo, seja por meio do corpo - performance teatral - seja da imagem - imagem do real que projeta, constrói ou destrói a performance tecnológica (Féral, 2015FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 137).

O acirramento da atuação dos meios audiovisuais e das redes digitais nos processos de criação da dança/performance do Grua, inexoravelmente modificará suas relações com o corpo, espaço, presença e com os vínculos comunicativos artista-espectador. É preciso lembrar que o Grupo, apesar de, desde sua fundação, relacionar-se com os processos cinematográficos e com a internet, somente durante a crise pandêmica utilizou o meio audiovisual para construir suas performances e o ciberespaço para transmitir e interagir com o público ao vivo.

Naquele momento, houve, então, um esforço de seus integrantes por compreender o que Féral denomina duplo nível, advindo, dessa nova experiência, a emergência de novos significados para conceitos, antes familiares, como corpo, presença e imagem. Assim, o processo de criação do Grua friccionou imagem (câmeras, projeções e transmissão online) e a materialização de presença (corpo, movimento, gesto) ao atravessar o contexto pandêmico. Foram questões de grande intensidade que surgiram, naquele momento, e que adquiriram cada vez mais complexidade, tornando urgente para o grupo repensar a relação corpo/ambiente/comunicação.

Se partimos da premissa de que a dança é um dispositivo que atua, age em ambientes, e que a experiência se dá na relação corpo e ambiente, na troca de informação entre ambos, precisamos nos atentar para as modificações que a experiência on-line vem promovendo no corpo, para compreendermos o que vimos comunicando com o nosso fazer11 11 Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA. .

Antes da pandemia de 2020, a proposição audiovisual estruturada pelo Grua, ainda que tivesse evidente preocupação com a elaboração da imagem e o desejo de se deixar contaminar pelo jogo cênico, interferia mais sutilmente nas ações performáticas do Grupo. No entanto, é o diálogo entre linguagens que engendrará obras audiovisuais potentes e independentes que se projetam publicamente - os filmes - e, também, produzirá importantes arquivos dos processos de criação do Grupo. O videomaker e sua câmera, de acordo com o Grua, estão presentes em todas as apresentações: “Todas as performances são captadas em vídeo e fazem parte de um banco de imagens para a produção audiovisual do grupo, propondo uma captação, para além de um simples registro, já que a câmera e o videomaker estão sempre dentro dos acontecimentos”12 12 Em documento Projeto Grua Pesquisa, apresentado para o Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, 28ª edição. .

As ações do Grupo, ao serem captadas, criam registros/arquivos de processo em que poderão ser fundados parâmetros e metas para o desenvolvimento de suas experimentações, procedimentos de criação e estratégias de produção. Essas imagens ultrapassarão o sentido arquivístico, tornando-se outras e/ou novas possibilidades. Nesse sentido, o registro da imagem, naquele momento, materializava essa outra possibilidade para a trajetória de criação do Grua: ser, também, filme.

Até o início da crise pandêmica, questões sobre os processos da dança e do cinema ocupavam espaços que estabeleciam pontos de convergência, mas, de modo geral, não compunham trânsitos tão veementes, como os que se deram durante a crise sanitária. As interações entre as linguagens resultavam em duas obras: uma mais ligada à dança, à performance e ao presencial e outra, mais relacionada ao cinema, ao vídeo, ao virtual - corporalidades e temporalidades distintas.

Constatamos, ao observar os processos do Grua, que a relação entre os estados de crise - ou seja, uma restrição comum - e os processos de criação, ao se friccionar, criavam brechas para os artistas promoverem o surgimento de outros procedimentos criativos, contatos com diferentes linguagens e tecnologias e o estabelecimento de novos sentidos poéticos. Diante da pandemia, essas questões emergiram com força nos processos do Grua, que, sem a possibilidade de atuação no espaço público e interações corpo a corpo com o espectador transeunte, reorganizou-se para abrir fissuras nas normatizações. Nesse cenário, o Grupo se indagou:

Em meio ao turbilhão da crise sanitária que estamos vivendo, questões que parecem óbvias nos atravessam: Como este momento afeta nossa visão e perspectiva sobre o fazer artístico na rua, em espaços públicos? Se e quais lógicas implicadas, nesse fazer, serão passíveis de modificação?13 13 Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA. .

Perguntas que alcançavam todos os artistas diante das restrições impostas pela pandemia, pois todos os espaços comunitários foram interditados. Obviamente, muita coisa muda. Mas, até que ponto os modos de produção, criação e comunicação do grupo teriam que ser outros, ou adaptados? Algumas características que surgiram na apresentação da performance Corpos de Passagem, feita em março de 2021, no Sesc Avenida Paulista, integrando o projeto Sesc em Casa, talvez possam, se não responder, ao menos acrescentar pistas para o aprofundamento de reflexões acerca de algumas dessas questões.

Antes de tudo, é importante destacar que a performance Corpos de Passagem manteve, até o evento pandêmico, as dinâmicas de apresentação tradicionais da dança/performance: presenciais e que se dão num determinado espaço de tempo. No entanto, a apresentação que aconteceu em 2021 não encontrou seu lócus físico e comunicativo nas interações convencionais de ligação artista/espectador comuns às artes presenciais. Os grueiros se perguntavam: “O público será um agente distinto daquele que experienciava na presença, portanto, qual a relação possível de se estabelecer nessa situação?”14 14 GRUA - Gentlemen de Rua em ‘Corpos de Passagem’ no palco do Sesc Avenida Paulista. Disponível em: https://www.Youtube.com/watch?v=HLG68HWWJ3M&t=4s. Acesso em: 1 mar. 2023. . São questões que produzirão um experimento mais contaminado por aspectos da linguagem do cinema, do vídeo. A interação dança/performance/audiovisual que ocorreu nesse momento no trabalho do Grua começou a ser menos dicotômica e mais permeável. O que se dará é uma complexa experiência de dança/performance/audiovisual ou audiovisual/dança/performance em que as linguagens se apresentam mais diluídas.

Friccionando a imagem e a materialização

O roteiro Corpos de Passagem, de 2021, é construído pelos sentidos de ao vivo e de online. O inacabado ROTEIRO GRUA_SESC AV PAULISTA, documento reproduzido abaixo, acrescenta características dos procedimentos de criação do audiovisual (movimento de câmera, cortes, enquadramentos de imagem etc.) aos elementos da apresentação presencial.

ROTEIRO GRUA _ SESC AV PAULISTA

1ª PARTE

Entrada do Vinicius no SESC e subida pelo elevador - (Osmar filmando em plano sequência)

Esta cena será gravada às 19h.

Som ambiente ou Eder propõe algum som

2ª PARTE - Apresentação de todos

Cena 1 - Entrada de Vinicius na sala/palco

A iluminação da sala está com ribalta e contra. Eder no set de som também está iluminado.

Cena 2 - (Osmar filma Eder tocando seus instrumentos eletrônicos)

Cena 3 - Enquadramento no Fernando

Cena 4 - Henrique solo no chão

Cena 5 - Jorge caminhando pelas janelas

Cena 6 - Jerônimo vai até o centro e começa a dar voltas em Osmar.

Cena 7 - Todos vão entrando. Ver com Rossana esta luz pontual

Cena 8 - Câmera volta para Eder

Cena 9 - Pausa em fila lateral de 4 Grueiro. Luz Foco com Moving Light. Movimento lento pra frente.

Cena 10 - Solo Jorge com detalhes nas partes do corpo. Luz geral,

3ª PARTE

Cena 1 - Jerônimo sobe pela escada lateral. Ver se é necessário iluminar escada

Cena 2 - Intimidade saudável entre Jerônimo, Fernando e Vinicius.

Cena 3 - Solo Fernando

Cena 4 - Encontro de Fernando com Jorge e caminham pelo Mezanino. Experimentar refletores acesos com porcentagem baixa, ou levar tubo leds para colocar neste caminho.

Eder caminha junto tirando som dos objetos

Cena 5 - Câmera fecha no Eder que volta para SET de som

4ª PARTE

Solos pelos corredores de luz, lâmpadas par

Início Jorge no corredor 1

Fernando corredor 3

Jerônimo Corredor 3 e 5

Henrique Corredor 6

Vinicius no 5 e 4

Restante será improviso com todos os corredores acesos

FINAL A RESOLVER

O roteiro organiza elementos das duas linguagens para estruturar o que será oferecido ao espectador. Nesse momento, apresenta-se aberto, inacabado, com questões a serem resolvidas. No entanto, já indica que objetiva a construção do trabalho a partir da perspectiva da captação das imagens pela câmera, além de preservar a improvisação - marca registrada do Grupo. A característica ativa dada à câmera, como corpo que dança, que se movimenta e joga com os outros corpos e com o espaço, rompe com as relações normatizadas entre as linguagens e as interações se fortalecem e abrem outras perspectivas, como a gravação prévia da 1a PARTE, que será inserida na edição feita no momento da apresentação.

A ideia que se revela é que a câmera, ao se mover, interagindo com os grueiros e com o espaço, seja algo além de um instrumento de captação de imagens. Nesse sentido, o documento fornece orientações bastante precisas, como podemos observar, ao indicar ações como: “Entrada do Vinicius no SESC e subida pelo elevador - (Osmar filmando em plano sequência)” ou “Câmera fecha no Eder que volta para SET de som”. No entanto, mesmo nos pontos do roteiro em que não há indicações explícitas sobre o movimento de câmera, o sentido interativo de captação da imagem e transmissão estão presentes.

O roteiro apresenta uma ordenação de ações que insere a câmera como um dos elementos principais do experimento. Na experiência Sesc Avenida Paulista (Figuras 3 e 4), a câmera entra nessa equação como um corpo-câmera que interage com outros corpos e joga no espaço, num evento transmitido simultaneamente para o espectador. O resultado é uma experimentação em que a câmera transcende a sua função como objeto de captação de imagens e passa a atuar como mais um dançarino, mais um performer. A subversão da função industrial da câmera como procedimento de criação do grupo diante das novas demandas comunicativas e artísticas encontra respaldo em Machado, ao refletir sobre o conceito de artemídia:

Figura 3
Corpos de Passagem 1.

Figura 4
Corpos de Passagem 2.

A artemídia, como qualquer arte fortemente determinada pela mediação técnica, coloca o artista diante do desafio permanente de, ao mesmo tempo em que se abre às formas de produzir do presente, contrapor-se também ao determinismo tecnológico, recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos da produtividade da sociedade tecnológica (Machado, 2007MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 16).

Negar o determinismo tecnológico da câmera é exatamente o que o Grua faz quando a assume como um corpo que dança. Em nenhum momento o Grupo, nesse experimento, estabelece a sua relação com a câmera dentro de um âmbito industrial, mas a percebe como corpo-agente de construção artística no entrelaçamento com as redes digitais. Esses processos serão detonados pela pergunta que o Grua se fez ainda no projeto do experimento: “Estaremos somente replicando o que fazíamos no mundo da presença, só que agora no espaço virtual?”15 15 Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA. . A partir dessa questão, estabeleceram-se objetivos e estratégias, pois não se quer a mera captação de uma experiência presencial.

Observa-se que o dançarino-performer-cinegrafista tem um sólido conhecimento das linguagens do audiovisual e da dança e, além disso, dirige a maioria dos filmes e experimentos audiovisuais no Grupo. Osmar Zampieri é dançarino de grande experiência no Brasil e no exterior, além de ser um dos diretores do Grua e, ainda, diretor dos filmes Grua Navegantes (2016) e Corpos de Passagem (2018) - entre outros - e dono da produtora Campevas Narrativas Audiovisuais.

Não é novidade, nos procedimentos de criação do audiovisual, a utilização da câmera subjetiva, que produz um tipo de enquadramento que simula o ponto de vista de um personagem. No caso, quem assume essa ação de ver é o operador do equipamento. No entanto, o artista assumir a operação da câmera e, com ela, imprimir um determinado olhar sobre o ambiente e o outro, é mais raro. Nessa lógica, o documentarista Evaldo Mocarzel relatou um procedimento que fez com a Cia Livre16 16 A Cia. Livre, com sede na cidade de São Paulo, trabalha coletivamente desde 1999, desenvolvendo uma práxis teatral cujo cerne reside na criação de processos de estudo, pesquisa e criação abertos ao público, o que resulta na participação ativa dos espectadores nos seus espetáculos. , que tem algumas similaridades como o trabalho do Grua feito no Sesc Avenida Paulista em 2021.

No documentário Cia Livre 10 anos, eu acoplei um body-cam nos corpos dos atores e das atrizes para que eles performassem uma improvisação misturando as inquietações das personagens com a memória do próprio processo de criação daquelas personagens e ainda com as camadas subjetivas das próprias histórias de vida, com as câmeras voltadas para os integrantes do elenco da Cia Livre, que fizeram solos performativos pelos espaços da instalação dramática que o grupo montou no TUSP como fotógrafos de si mesmo, um exercício radical de alteridade que sempre gosto de experimentar quando me dão a chance de fazer isso17 17 Entrevista dada aos autores em 2021. .

A característica de alteridade, impressa no exercício de improvisação que Mocarzel propôs à Cia Livre, apresenta similaridades com o trabalho realizado pelo Grua no Sesc em 2021. A experiência se deu num fluxo de interatividade e interdependência entre os corpos, o espaço e as linguagens - o olhar da câmera tornou-se, essencialmente, o olhar do coletivo. Houve questões importantes a serem resolvidas, como a passagem da rua para um teatro, até que ponto o sentido de improvisação poderia ser mantido nessas condições e o fato de ser a primeira vez que o grupo interagia com iluminação cênica. Além disso, a começar pela conversa do dançarino-performer Vinícius Frances com o espectador no início da apresentação, houve uma interação mais direta com a câmera, de modo geral.

Ao procurar soluções para essas dificuldades, o Grupo assumiu, como nunca anteriormente, a câmera como olho interno e coletivo do processo, dispositivo que capta aspectos objetivos e subjetivos da dança/performance e dos dançarinos/performers e recompõe o espaço, ao mesmo tempo que expõe, recria e estende essas imagens ao espectador. Roberto Alencar, um dos integrantes do Grua, relatou, em entrevista dada a esta pesquisa, que esse processo teve a participação de todo o Grupo e que o roteiro foi sendo construído de acordo com as interações com o espaço do Sesc Avenida Paulista e com discussões entre os integrantes do Grua e a equipe técnica. Aqui, apresenta-se uma característica importante dos processos de criação coletivos, de acordo com Salles (2017SALLES, Cecília Almeida. Processos de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017., p. 159):

Nos processos em equipe, trata-se do agrupamento de sujeitos em criação, imersos nesse turbilhão de sensações, no qual duas questões se colocam como bastante relevantes. Por um lado, são processos que não acontecem se não for em equipe. É da natureza do teatro, do cinema, da dança, do jornalismo etc. Um ator, por exemplo, se vê diante das possibilidades expressivas e lúdicas de seu corpo na relação com os outros atores, o diretor, o dramaturgo, o iluminador etc. Por outro lado, esse turbilhão de sensações dos sujeitos (como comunidade) acontece em meio a uma busca comum, convivendo com as sensações geradas pela interação com outros membros do grupo.

A partir dessa busca comum, produziram-se soluções para que o trabalho do Sesc acontecesse do melhor modo, não descaracterizando a busca poética do coletivo. Então, como consequência, o Grupo construiu pontes com o público nunca experimentadas anteriormente em seus processos: pontes digitais, ao vivo e online. A experiência foi nova para os grueiros - o que demandou a necessidade de criação de novas interações entre eles e, também, com o local de atuação. O Grua criou, então, um corpo-câmera que dançava com os corpos-bailarinos e com o espaço, conferindo ao corpo-câmera a capacidade de ressignificar as temporalidades, gestos, ações e processos comunicativos do experimento.

Essa experimentação destacou, também, indagações sobre as diferenças entre os modos de direcionamento e foco do olhar entre o presencial e o virtual. A distinção entre os recursos criativos e técnicos, que podem ser mobilizados para direcionar o olhar do espectador numa experiência presencial e os que podem ser feitos com a intermediação da câmera, tornou-se importantíssima naquele momento. Caldas (2006CALDAS, Paulo. Sobre o papel das tecnologias informáticas em dança. In: MENICACCI, Armando (Org.). Dança em foco. v. 1: dança e tecnologia. Curadores: Paulo Caldas e Leonel Brum; Tradução de Carla Branco et al. Rio de Janeiro: Instituto Telemar, 2006., p. 29) faz algumas considerações a respeito:

O percurso do olho no palco - mesmo num palco hierarquizado como o italiano - é, evidentemente, uma construção singular de cada espectador. Mas a composição coreográfica poderá construir, como proposta, as tendências desse percurso: a ocupação variada do palco, por exemplo (especialmente em sua profundidade, distinguindo o próximo e o distante), convida o olhar com apelos distintos; mas nossa tendência para determo-nos naquilo que nos está mais próximo pode desaparecer se aquilo que, distante, se move mais intensamente ou é iluminado mais intensamente. Uma câmera que escolhesse seu foco num corpo imóvel, no primeiro plano, e captasse - ao fundo - um corpo em movimento desfocado, poderia nos sugerir uma tensão semelhante.

No entanto, se o foco do olhar pode ser direcionado na cena presencial num palco, pela proposta coreográfica, de iluminação ou de direção, ainda assim o olhar do espectador sempre tem como perspectiva a amplitude do espaço cênico, seja ele convencional ou não. A imagem captada pela câmera, que será oferecida ao espectador, tem o potencial de direcionar o olhar muito mais fortemente, pois pode ser dimensionada por outras lógicas espaciais, em que o direcionamento do olhar pode ser mais controlado: zoom, planos, cortes, efeitos etc. E, no caso da transmissão dos experimentos de artes presenciais, transpostos para telas de TV, celulares, computadores etc., as diferenças entre tamanho de telas e aparelhos também serão definidores de como e o que o espectador experienciará no espetáculo.

Nessa acepção, a experiência do Sesc Avenida Paulista apresentou um roteiro construído a partir de inquietações que se localizavam exatamente nas distâncias entre olhares presenciais e virtuais, nas diferenças entre os sentidos de recepção dos espectadores, no redimensionamento do espaço de atuação dos corpos, nas mutualidades entre corpo-câmera. Assim, as perguntas que o Grupo se fez, para elaborar o roteiro, foram colocadas em cena no experimento no Sesc:

Tudo o que ocorre se torna elemento do jogo instaurado, construindo uma relação intensa com as situações que se apresentam no instante da performance. E se o instante é uma das questões de ‘Corpos de Passagem’, como lidar com essa condição no momento que a apresentação for transmitida - ao vivo, on-line, sem a presença do público, mas na presença dele? Com o espectador como agente distinto daquele que experienciava o espetáculo na presença, qual a relação possível de se estabelecer nessa situação?18 18 Disponível em: https://cartacampinas.com.br/2021/03/lenine-camila-pitangae-espetaculo-de-danca-corpos-de-passagem-estao-em-nova-programacao-aovivo-em-casa/. Acesso em: 1 mar. 2023.

Aspectos das interações temporais e de presença, centrais para o Grupo e que estão nos cernes das duas linguagens, foram experimentados. Nesse ponto, reaparece a questão comum às interações das artes do corpo com o audiovisual, que diz respeito às relações presenciais entre os artistas e o público. Teóricos como Glusberg (2013GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Tradução de Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 59) caracterizam a performance como uma interação que prevê “[...] o contato direto entre o emissor e receptor sem a intermediação técnica de nenhum equipamento eletrônico moderno, exceto pela utilização de som ou de vídeo”, colocando essa experiência de proximidade como condição intrínseca da prática performática. Mas, o que os cruzamentos da performance com o audiovisual instalam é algo de outra ordem. Não se trata da destruição das tradições identificadoras das linguagens, mas de sua ressignificação, de seu deslocamento. É uma experiência de reordenação dos trânsitos entre as presenças físicas e virtuais, de junção das diferentes temporalidades das linguagens que gera outras/novas possibilidades de criação. Arlindo Machado, em claro diálogo com Flusser19 19 Ao observar a relação entre câmera e fotógrafo como dinâmica produtora, manipuladora e armazenadora de símbolos, inserida no contexto cultural pósindustrial, Flusser (2009, p. 23) afirma que o que caracteriza o aparelho fotográfico é o “estar programado”, pois “[...] as superfícies simbólicas que produz estão, de alguma forma, inscritas previamente (‘programadas’, ‘pré-escritas’) por aqueles que o produziram. As fotografias são realizações de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O número de potencialidades é grande, mas limitado: é a soma de todas as fotografáveis por este aparelho. A cada fotografia realizada, diminui o número de potencialidades, aumentando o número de realizações: o programa vai se esgotando e o universo fotográfico vai se realizando. O fotógrafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da realização do universo fotográfico. Já que o programa é muito ‘rico’, o fotógrafo manipula o aparelho, apalpa-o, olha para dentro e através dele, a fim de descobrir sempre novas potencialidades”. , reflete sobre as interações entre arte, mídia e criação, considerando a ação do artista nesses cruzamentos:

O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do programa que ele utiliza, é manejá-los no sentido contrário ao de sua produtividade programada. Talvez até possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Longe de se deixar escravizar por uma norma, por um modo de comunicar, as obras realmente fundadoras na verdade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia (Machado, 2007MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007., p. 14-15).

A apropriação e a reinvenção das tecnologias e modos de produção do audiovisual, segundo Arlindo Machado, são características das obras fundadoras e se presentificam nesse trabalho do Grua, entre outras coisas, com o rompimento da passividade industrial da máquina e sua transformação em máquina-dançarino-corpo-olho. Assim, de experiências cruzadas entre dança e audiovisual, que ao acontecerem ainda preservavam limites entre as linguagens, o Grupo chegou a 2021 desnormatizando essas interações de modo a apresentar fronteiras bem mais diluídas.

Uma paisagem para abraçar os desejos e olhares de todos

O Grua preconiza as interações com o audiovisual desde seu surgimento, como uma interface de seu processo de criação, entretanto é um interesse que vai sendo ressignificado e aprofundado, como constatamos. Essas relações foram pressionadas a partir das medidas de isolamento social iniciadas em 2020; o Grupo reagiu à crise acirrando esses vínculos e, em março de 2021, propôs-se a fazer um filme.

O filme Janela 43 teve como locação um apartamento do 43º andar do Edifício Mirante do Vale, no centro da cidade de São Paulo. Segundo o Grupo, “[...] o filme nos convida a acompanhar o Grua em uma jornada íntima e vertiginosa do seu reencontro presencial, após um ano de isolamento e interações virtuais”20 20 JANELA 43 do GRUA Gentlemen de Rua em temporada virtual até sábado!. Disponível em: https://tr-tr.Facebook.com/corporastreado/videos/877655886150645/. Acesso em: 1 mar. 2023. . A realização de Janela 43 (Figura 5) resultou num experimento em que o audiovisual foi a linguagem-meio que caracterizou a experiência coletiva do encontro e da dança.

Figura 5
Grua Mirante - Filme (1).

Creditar o surgimento de Janela 43 ao protagonismo que os meios audiovisuais adquiriram no período pandêmico não faria jus à longa relação estabelecida entre o Grua e a linguagem cinematográfica, avalizada pela tradição histórica das interações entre dança, performance e audiovisual. Ainda assim, talvez possamos creditar à crise pandêmica a aceleração da exploração de novas possibilidades de um caminho que já vinha sendo posto pelo Grupo.

A princípio, Janela 43 era um projeto que, com o patrocínio da Lei Aldir Blanc, seria realizado em dez dias e geraria seis transmissões ao vivo. Com o agravamento da pandemia, o grupo desistiu desse formato e resolveu criar um filme em plano sequência. Roberto Alencar, responsável inicial pelo roteiro, propôs que uma dramaturgia ligada à historicidade do espaço fosse criada. Assim, ele dá voz ao edifício Mirante do Valle e estabelece esse aspecto como ponto de partida do roteiro. Depois disso, Willy Helm se junta a Alencar e avançam na estruturação do roteiro. As estratégias de criação de Janela 43 foram direcionadas pelas dificuldades estabelecidas pela situação da crise pandêmica.

Tais características de Janela 43, em que todo processo é redirecionado e se dá de uma forma completamente diferente da pretendida originalmente, encontra ressonância na noção de brecha de Morin (2011MORIN, Edgar. O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes organização. Tradução de Juremir Machado da Silva. 6. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011., p. 33), em que desvios inovadores se manifestam diante da efervescência cultural de determinado contexto histórico, geográfico e social. Em princípio, talvez soe contraditório pensar em efervescência cultural relacionada a um âmbito pandêmico que restringiu toda a interação das artes presenciais ao ciberespaço. No entanto, foi exatamente esse ambiente o responsável pela ebulição que propiciou a abertura de brechas pelos processos de criação e que, ainda, foi potencializado pelas interações de todos os integrantes do grupo. Salles discorre sobre esses aspectos dos grupos, potencialmente multiplicadores das possibilidades de interação:

As redes dos processos ganham mais complexidade quando se pensa em cada um dos membros do grupo imersos e sobredeterminados por sua cultura [...]. Atores, diretores, iluminadores etc. interagem com o seu entorno, alimentando-se e trocando informações e, ao mesmo tempo, o projeto teatral ou cinematográfico em curso, um sistema aberto, age como detonador de uma multiplicidade de interconexões com a cultura interagindo com os outros membros dos grupos. Os campos de possibilidade se ampliam e começa a surgir a necessidade de se fazer escolhas, a partir do modo de trabalho e dos critérios da equipe (Salles, 2017SALLES, Cecília Almeida. Processos de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017., p. 125).

Nesse entendimento, houve um sentido crescente de apropriação da linguagem do vídeo pelo Grupo, intensificado a partir da imposição do distanciamento social e que, também, foi multiplicado pelas experiências de cada um de seus integrantes frente àquele contexto crítico. Desse modo, escolhas foram feitas pelos grueiros com o estabelecimento de novos critérios baseadas nos modos de criação possíveis naquele momento. Esses aspectos, que já haviam se apresentado na experiência do Sesc Avenida Paulista, adensam-se em Janela 43. A apropriação do audiovisual como linguagem trabalhada coletivamente, pelo Grua, ficou mais evidente a partir da análise das características de organização da versão inicial do roteiro de Janela 43, de autoria de Alencar e Helm, que apresentou apontamentos mais detalhados e codificados das cenas (Figura 6), indicações mais claras acerca do posicionamento e das ações dos performers e dos movimentos de câmera e da captação de imagens.

Figura 6
Imagem do documento Roteiro: Imagens e ações a partir da colaboração criativa coletiva.

As notações podem ser vistas da seguinte forma: os itens ou tópicos em preto (estações cênicas) são os momentos propostos para ordenar a sequência dos acontecimentos. O desenvolvimento de cada um deles, em vermelho, são sugestões do olhar de Beto e Willy a partir do material trazido e levantado por todos; os destaques em verde são os momentos onde supomos poder haver falas e intervenções verbais22 22 Em documento PROPOSTA INICIAL DE ROTEIRO PARA O GRUA MIRANTES (NOME PROVISÓRIO). .

As características da organização do roteiro indicam que produzir o filme é, per si, a finalidade coletiva da experiência. Além desse aspecto, Janela 43 foi o primeiro experimento audiovisual do Grupo a se abrir à total interferência do coletivo na sua criação. Alencar e Helm exprimiram suas expectativas nesse sentido, ao propor essa versão do roteiro: “Esperamos que isso nos ajude a objetivar e formatar o que virá a ser esse filme, numa construção verdadeiramente coletiva e cheia de novas possibilidades. Temos o desejo, a liberdade e a oportunidade de ousar e fazer diferente do nosso modo habitual”23 23 Em documento PROPOSTA INICIAL DE ROTEIRO PARA O GRUA MIRANTES (NOME PROVISÓRIO). .

Houve a proposta de instalação de uma dinâmica de criação colaborativa, prática desenvolvida, no Brasil, por uma grande diversidade de grupos, descrita por Antônio Araújo (2006ARAÚJO, Antonio. O processo colaborativo no Teatro da Vertigem. Sala Preta, São Paulo, v. 6, p. 127-133, 2006. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57302. Acesso em: 1 mar. 2023.
https://www.revistas.usp.br/salapreta/ar...
, p. 127-133) em artigo sobre o Teatro da Vertigem. Segundo o autor, a proposição colaborativa apresenta dinâmicas de trabalho horizontalizadas, mas que preveem hierarquias. Nesse cenário, o performer, em Janela 43, atua a partir de ações organizadas pelos roteiristas de acordo com a escuta das experiências de cada artista do grupo em seus cotidianos pandêmicos particulares.

Segundo Alencar, perguntou-se a cada grueiro o que ele gostaria de trazer para essa experiência do Grupo. Essa ação coletiva de feitura do roteiro desembocará na criação das situações, movimentos e ações que constituirão imagens de grande potência para o filme (Figura 7), como a de um dançarino/performer servindo um ceviche, passando roupa ou, ainda, a apresentação de desenhos feitos pelo filho de um dos grueiros.

Figura 7
Grua Mirante - Filme (2).

Jorge serve a comida: Jê desenvolve a ação da janela enquanto Jorge traz as porções (ceviche, brusqueta, carpaccio?) para cada um; esse momento traz um clima mais calmo e melancólico, onde a ação de comer é atravessada por intervenções de escrita na janela, interagindo ou não com a fala do Je, que pode tbm fazer provocações e conduzir o ‘jogo’24 24 Em documento PROPOSTA INICIAL DE ROTEIRO PARA O GRUA MIRANTES (NOME PROVISÓRIO). .

Janela 43 é um trabalho em que a individualidade dos dançarinos se escancara. Esse processo de individualização começa no experimento do Sesc e se reflete, inclusive, nos figurinos que, se ainda mantêm a estrutura geral e formal do terno preto, desconstroem-se cada vez mais na entrada do texto como possibilidade expressiva. Se no experimento do Sesc os trajetos e estados dos corpos tentavam, em certos sentidos, aproximações com a experiência presencial, em Janela 43 isso não se fez necessário. Em Corpos de Passagem, produzido para o Sesc Avenida Paulista, assim como em Janela 43, a câmera dança com os corpos, segue seus trajetos, assume-se como corpo-câmera. No entanto, o trabalho apresentado no Sesc intermediava ao vivo as relações com o espectador online e havia simultaneidade nas experiências comunicativas artistas-espectadores, se bem que diferentes. Em Janela 43, a câmera captava as imagens já num sentido cinematográfico que originará o filme. Para o espectador, a experiência não se dará ao vivo, mas a partir da disponibilização do trabalho nas redes (online) e salas de cinema. É uma experiência temporal ligada à produção cinematográfica, audiovisual, mais distante da tradição presencial da dança e da performance, pois não há simultaneidade nas experiências artistas-espectadores.

A paisagem é uma das protagonistas nas imagens de Janela 43. A relação entre os corpos, as paisagens e o olhar é uma recorrência nas interações do Grupo com os espaços que transborda para o audiovisual, gerando imagens memoráveis, como a dos grueiros caminhando num banco de areia do rio São Francisco, em Grua Navegantes: uma rota de afetos (Figura 8), a dos performers observando os prédios iluminados através das vidraças do Sesc Avenida Paulista em Corpos de Passagem, apresentado no #EmCasaComSesc (Figura 9), ou das ruas de Paris (Figura 10) ou de Londres, do Grua - Projeto Europa. Janela 43 explicita a relação com a paisagem - real e metafórica - nas perguntas que alimentam o trabalho: “Como não deixar o corpo e a vontade esmorecerem diante de um horizonte com vista para o caos? Como inventar sentidos para continuar dançando diante da limitação provocada pelos acontecimentos recentes?”26 26 JANELA 43 do GRUA Gentlemen de Rua em temporada virtual até sábado!. Disponível em: https://tr-tr.Facebook.com/corporastreado/videos/877655886150645/. Acesso em: 1 mar. 2023. .

Figura 8
Grua Navegantes: uma rota de afetos - Filme, 2017.

Figura 9
Corpos de Passagem - Sesc em Casa, 2020.

Figura 10
GRUA Corpos de Passagem Projeto Europa - Paris, 2011.

No filme Janela 43, essas perguntas materializam-se nas imagens dos corpos em interação com a paisagem extensa e caótica do horizonte da cidade e, também, com a paisagem desenhada pela crise pandêmica. Preservados aspectos importantes dos processos da dança e da performance, a dinâmica de Janela 43 é fortemente audiovisual. A paisagem, como coisa ligada à ordem do olhar, do ver, do enxergar, do mirar, suscitou no Grupo associações com o nome do edifício Mirante do Valle, em que se realizaram a intervenção e a gravação, e os diversos desdobramentos da ação de mirar o mundo do 43º andar de um edifício aberto ao horizonte-paisagem vertiginoso da cidade. Desse modo, imerso no projeto do Grupo, Alencar criou o seguinte texto:

Gentlemen que miram

Miram o Vale

Miram o céu, o chão e o solo por baixo do chão.

Miram toda a artificialidade que se apresenta do lado fora da janela do 43 andar.

Miram sobretudo as vidas que fazem mover todo este concreto armado.

Miram a Vida animal, vegetal e mineral.

Da janela pra dentro

Miram os outros mirantes, miram o espaço físico e miram pra dentro do próprio corpo. Todos os órgãos e memórias são mirados.

Miram não só com os olhos, mas com todos os sentidos.

Corpos mirantes.

MIRAR. Que significados podem ser atribuídos a este verbo?

Mirar pode ser olhar com foco.

Apontar um alvo.

A precisão do acerto.

A mira.

Mirar significa também olhar uma paisagem inteira de uma só vez.

Quanto mais alto é o mirante mais elementos podem entrar no campo visual de quem mira.

O lugar onde a ação acontece é no Edifício Mirante do Vale.

Um arranha céu que foi erguido há mais de 50 anos, aos pés de um Vale com nome indígena, no nervo urbano de São Paulo, e que carrega o status de ser o maior prédio de uma das maiores metrópoles do mundo.

Visto do alto do Mirante o chão do Vale é um buraco fundo.

O texto desvenda como se davam, no momento de criação do filme, as relações do Grupo com seus processos. Os desdobramentos dos trajetos da paisagem, que sobrepõem desde características geográficas e cenográficas às imagens internas de grande força simbólica e poética, agem na direção de ampliar os significados das miradas que se estabelecem “da janela pra dentro” e da janela para fora, pois, “mirar significa também olhar uma paisagem inteira de uma só vez”.

São qualidades que apontam a importância do olhar nos processos do Grupo: no momento em que o processo de Janela 43 se dá, o sentido da visão se assume como protagonista da ação. Se antes os verbos “passar” e “comunicar” e os substantivos “lugar” e “corpo” operavam como as chaves mestras para o trabalho Corpos de Passagem, apresentado pelo Grua Gentlemen de Rua no Dança #EmCasaComSesc29 29 Em documento GRUA - Gentlemen de Rua em Corpos de Passagem no palco do Sesc Avenida Paulista. , em Janela 43 o verbo “mirar” surge e assume lugar de absoluto destaque.

Considerações finais

As crises, sejam elas sanitárias, ambientais, climáticas, sociais, culturais, religiosas etc., locais ou mundiais, são fenômenos que, ao impactar a sociedade e a cultura de modo significativo, geram reações da arte e da ciência, que, assim, podem conceber modos de enfrentá-las. Nesse sentido, é muito claro que as reações dos artistas à crise pandêmica fomentaram experiências criativas que os auxiliaram a resistir e atravessar aquele momento, em que os artistas do corpo se questionavam sobre como lidar com as imposições postas pela crise e, daí, surgiram experimentações importantes, especialmente em relação aos cruzamentos com o audiovisual e a utilização do ciberespaço.

Se a crise pandêmica modificou e destruiu, também estimulou e reinventou processos comunicativos, criativos e, ainda, as interações sociais. Mesmo que as artes performativas, por motivos óbvios, tenham sido profundamente atingidas, os seus processos sobreviveram, resistiram e abriram-se a outras possibilidades de criação. Naquele momento, em todos os processos e arquivos do Grua, a crise estava presente, definindo escolhas, trazendo perguntas e apontando possibilidades, impossibilidades, impondo a necessidade do surgimento de novos modos de ação. Está claro que esses novos modos não reverberaram somente o momento pandêmico, pois falavam de algo maior, mais profundo, carregavam em si a possibilidade de reinvenção, resistência, sobrevivência.

Uma das características da arte contemporânea é a liberdade de interagir, assimilar e reinventar linguagens, instalando outros processos comunicativos. Desse modo há no contemporâneo, incontestavelmente, inúmeros trabalhos que se dão a partir de interações entre as linguagens artísticas e o uso de tecnologias de imagem. No entanto, pensar os trajetos de criação do Grua Gentlemen de Rua, durante esse período, a partir dos documentos gerados no seu fazer artístico, além de colocar em relevo a atitude assertiva e colaborativa do Grupo na procura de soluções para o desenvolvimento de seus processos de criação, revela como as interações entre as tecnologias de imagem e as artes performativas podem gerar trabalhos singulares e relevantes.

Ao investigar outros parâmetros comunicativos entre seus integrantes e o espectador, o Grupo aprofunda a sua relação entre o audiovisual e o ciberespaço, que ultrapassa qualquer sentido de solução para a crise, afirmando essa interação como um novo modo de produção, que estabelece um outro âmbito de criação. Um novo ambiente que acontece na fricção entre a elaboração das imagens e a materialização da obra. A sua dança/performance, então, assume os meios tecnológicos digitais como formativos da imagem, sistema reconstrutor ou desconstrutor do real, inserido na dinâmica de concepção coreográfica - um novo e importante meio de criação que, continuamente, desdobra-se em novas perspectivas de reinvenção e resistência.

O Grua, desse modo, produz experiências que indicam outras possibilidades comunicativas e artísticas para as artes performativas, apresentando novos modos de ver, estar, ser, existir dos corpos, diversificando e ampliando os modos de interação com os artistas, colaboradores e espectadores.

Notas

  • 1
    Este artigo é um recorte da tese Crise e Criação: interações entre as artes do corpo e o audiovisual na experimentação contemporânea (Dias, 2022DIAS, Wagner Miranda. Crise e Criação: interações entre as artes do corpo e o audiovisual na experimentação contemporânea. 2022. Orientadora: Cecilia Almeida Salles. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022.).
  • 2
    A origem etimológica da palavra “crise” se localiza na Grécia antiga. Segundo Bauman e Bordoni (2016BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016., p. 9), origina-se “Da palavra grega κρίσις, ‘juízo’, ‘resultado de um juízo’, ‘ponto crítico’, ‘seleção’, ‘decisão’ (segundo Tulcídedes), mas também ‘contenda’ ou ‘disputa’ - (segundo Platão), um padrão, do qual derivam critério, ‘base para julgar’, mas também ‘habilidade de discernir’, e crítico, ‘próprio para julgar’, ‘crucial’, ‘decisivo’, bem como pertinente a arte de julgar”. O conceito de crise, para os autores, forma-se nas esferas médicas, em que é usada até hoje, pela necessidade de tomadas de decisões em contextos de extrema urgência. Quando uma doença se estabelece no paciente, um ponto de incerteza se instala, seu corpo é tomado por algo estranho, alienígena a esse sistema.
  • 3
    Este artigo é elaborado a partir da reflexão sobre documentos de processo de criação disponibilizados nas redes e cedidos pelo Grupo aos autores.
  • 4
    Disponível em: https://grua.gr/#Fotos. Acesso em: 02 ago. 2022.
  • 5
    Segundo Oliveira e Santos (2021OLIVEIRA, José Lucas dos Santos; SANTOS, Joel Silva. Ecologia Urbana: histórico, definições e abordagens interdisciplinares. Acta Brasiliensis, Campina Grande, v. 5, n. 3, p. 116-122, 2021. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ActaBra/index.php/actabra/article/view/549. Acesso em: 1 mar. 2023.
    http://revistas.ufcg.edu.br/ActaBra/inde...
    , p. 116), “A Ecologia Urbana foi criada em 1920 pela Escola de Chicago, emergindo da necessidade de se compreender as dinâmicas de funcionamento das cidades, abordando alterações antrópicas em áreas urbanas e sua interação com os ecossistemas naturais e o ambiente construído. As pesquisas em Ecologia Urbana podem ser estritamente biológicas (Ecologia na Cidade), ou possuir enfoque interdisciplinar com a interação das ciências naturais e sociais (Ecologia da Cidade)”.
  • 6
    Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA.
  • 7
    Disponível em https://grua.gr/#Fotos. Acesso em: 02 ago. 2022.
  • 8
    Este artigo é elaborado a partir da reflexão sobre documentos de processo de criação disponibilizados nas redes e cedidos pelo grupo aos autores.
  • 9
    Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA.
  • 10
    Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA.
  • 11
    Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA.
  • 12
    Em documento Projeto Grua Pesquisa, apresentado para o Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, 28ª edição.
  • 13
    Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA.
  • 14
    GRUA - Gentlemen de Rua em ‘Corpos de Passagem’ no palco do Sesc Avenida Paulista. Disponível em: https://www.Youtube.com/watch?v=HLG68HWWJ3M&t=4s. Acesso em: 1 mar. 2023.
  • 15
    Em documento CORPOS DE PASSAGEM - uma proposta GRUA.
  • 16
    A Cia. Livre, com sede na cidade de São Paulo, trabalha coletivamente desde 1999, desenvolvendo uma práxis teatral cujo cerne reside na criação de processos de estudo, pesquisa e criação abertos ao público, o que resulta na participação ativa dos espectadores nos seus espetáculos.
  • 17
    Entrevista dada aos autores em 2021.
  • 18
  • 19
    Ao observar a relação entre câmera e fotógrafo como dinâmica produtora, manipuladora e armazenadora de símbolos, inserida no contexto cultural pósindustrial, Flusser (2009FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2009., p. 23) afirma que o que caracteriza o aparelho fotográfico é o “estar programado”, pois “[...] as superfícies simbólicas que produz estão, de alguma forma, inscritas previamente (‘programadas’, ‘pré-escritas’) por aqueles que o produziram. As fotografias são realizações de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O número de potencialidades é grande, mas limitado: é a soma de todas as fotografáveis por este aparelho. A cada fotografia realizada, diminui o número de potencialidades, aumentando o número de realizações: o programa vai se esgotando e o universo fotográfico vai se realizando. O fotógrafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da realização do universo fotográfico. Já que o programa é muito ‘rico’, o fotógrafo manipula o aparelho, apalpa-o, olha para dentro e através dele, a fim de descobrir sempre novas potencialidades”.
  • 20
    JANELA 43 do GRUA Gentlemen de Rua em temporada virtual até sábado!. Disponível em: https://tr-tr.Facebook.com/corporastreado/videos/877655886150645/. Acesso em: 1 mar. 2023.
  • 21
    Disponível em https://grua.gr/#Fotos. Acesso em: 02 ago. 2022.
  • 22
    Em documento PROPOSTA INICIAL DE ROTEIRO PARA O GRUA MIRANTES (NOME PROVISÓRIO).
  • 23
    Em documento PROPOSTA INICIAL DE ROTEIRO PARA O GRUA MIRANTES (NOME PROVISÓRIO).
  • 24
    Em documento PROPOSTA INICIAL DE ROTEIRO PARA O GRUA MIRANTES (NOME PROVISÓRIO).
  • 25
    Disponível em https://grua.gr/#Fotos. Acesso em: 02 ago. 2022.
  • 26
    JANELA 43 do GRUA Gentlemen de Rua em temporada virtual até sábado!. Disponível em: https://tr-tr.Facebook.com/corporastreado/videos/877655886150645/. Acesso em: 1 mar. 2023.
  • 27
    Disponível em https://grua.gr/#Fotos. Acesso em: 02 ago. 2022.
  • 28
    Disponível em https://grua.gr/#Fotos. Acesso em: 02 ago. 2022.
  • 29
    Em documento GRUA - Gentlemen de Rua em Corpos de Passagem no palco do Sesc Avenida Paulista.
  • Editor responsável: Gilberto Icle

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2022
  • Aceito
    07 Mar 2023
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