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RASTROS DA VIOLÊNCIA: A TESTEMUNHA

TRACES OF VIOLENCE: THE WITNESS

Resumo

Este texto tem como objetivo discutir a figura da testemunha, a partir da apreensão de seus sentidos nas memórias de experiências de violência, partindo de uma pesquisa sobre a memória da ditadura militar brasileira (1964-1985), da qual emergiram as indagações. Embora a testemunha possa coincidir com a vítima que sofreu diretamente a experiência da violência, essas figuras não se confundem. Na abordagem aqui proposta, a testemunha transcende a experiência da violência, sendo tratada em um registro distinto daquele da ocorrência da violência. A testemunha constitui-se no desenrolar do trabalho da memória a partir da inclusão de quem não estava lá, mas se dispõe a ouvir o relato da dor do outro, colocando a alteridade no centro do processo de elaboração do sofrimento. Nesse sentido, argumenta-se que o trabalho de pesquisa configura um modo de testemunhar.

Palavras-chave:
Testemunha; memória; violência; sofrimento; experiência

Abstract

Having questions that emerged from a research on memories of Brazilian military dictatorship (1964-1985) as starting point, this text aims to discuss the witness figure, apprehending its meanings in memories of violence experiences. Although the witness may coincide with the victim who has directly experienced the violence, these figures are not the same. In the approach here proposed, the witness transcends the experience of violence, being considered in a distinct level from that where violence occurs. The witness is constituted as such in the unfolding of the work of memory by including those who were not there but who are willing to listen to the account of the other’s pain, placing otherness at the center of the process of suffering elaboration. In this sense, the text argues that researching is a way of witnessing.

Keywords:
Witness; memory; violence; suffering; experience

Este texto discute formas de abordar a memória do sofrimento quando associado a experiências de violência, em particular de violência política, tendo uma pesquisa sobre a memória da violência durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) como a referência a partir da qual emergiram as indagações.1 1 Trata-se da pesquisa “Figuras da violência: a vítima, a testemunha”, desenvolvida com recursos do CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa). Atém-se, em particular, à figura da testemunha − embora ela possa coincidir ou ser identificada com a figura da vítima, que sofreu diretamente a experiência da violência, ambas não se confundem. Na abordagem aqui proposta, ela transcende a experiência da violência, de quem a viveu ou a presenciou de alguma maneira, sendo tratada em um registro distinto daquele da ocorrência da violência. A figura da testemunha constitui-se a partir da inclusão de quem não estava lá, mas se dispôs a ouvir o relato da dor do outro, colocando a alteridade no centro do processo de elaboração do sofrimento. A dor expressa-se para um outro, disponível para a escutar, fazendo com que a testemunha se configure numa relação na qual emergem os sentidos dessa experiência e a própria possibilidade de simbolizá-la. O reconhecimento da experiência de violência por parte do outro torna-se, assim, uma condição de possibilidade da elaboração, no plano subjetivo, da violência sofrida. Nos casos de violência política, essa possibilidade está diretamente relacionada ao lugar que os acontecimentos adquirem no plano político da esfera pública.

Em uma perspectiva comparada, o texto traz a discussão a partir de problemas das ciências sociais, da antropologia em particular, situando-a no âmbito da reflexão que acompanhou os processos de memória nos distintos países da América Latina, a partir dos anos 1980, quando esses países enfrentavam a transição de ditaduras militares para governos democráticos.2 2 Essa perspectiva foi definida em função da apresentação original deste texto durante a XII Reunião de Antropologia do Mercosul, em Posadas, Argentina, de 4 a 7/12/2017, na mesa-redonda Dictaduras, activismo en DDHH y respuestas estatales en América Latina. Jelin (2003: 12)Jelin, Elizabeth. (2003). Los derechos humanos y la memoria de la violencia política y la represión: la construcción de un campo nuevo en las ciencias sociales. Cuadernos del IDES, 2, p. 1-27. analisa o surgimento desse campo de preocupações nas ciências sociais latino-americanas, ressaltando as novas questões que acompanharam seu desenvolvimento:

A partir das preocupações políticas com a democracia, dos desenvolvimentos de novos movimentos sociais e de seu olhar para a cotidianidade, do pensamento sobre a cidadania e a construção da subjetividade cidadã, abonado pela prática política de luta dos movimentos de direitos humanos, implantou-se na região um novo marco interpretativo da esfera pública, da relação entre Estado e sociedade, e dos mecanismos e articulações entre o plano das condições materiais, das instituições, da subjetividade e do nível simbólico-cultural.3 3 Tradução minha do texto original: “A partir de las preocupaciones políticas por la democracia, de los desarrollos de los nuevos movimientos sociales y su mirada sobre la cotidianidad, del pensamiento sobre la ciudadanía y la constitución de la subjetividad ciudadana, abonados por la práctica política de lucha de los movimientos de derechos humanos, se ha implantado en la región un nuevo marco interpretativo de la esfera pública, de la relación entre Estado y sociedad, y de los mecanismos y articulaciones entre el plano de las condiciones materiales, las instituciones, la subjetividad y el nivel simbólico-cultural.”

Este texto traz ainda a perspectiva de pesquisadora do caso do Brasil cujo processo de memória tem a particularidade, em relação ao caso da Argentina, por exemplo, de não ter sido marcado pelo uso da via jurídica para o enfrentamento da Justiça em relação aos crimes cometidos durante a ditadura militar, em função das limitações advindas da Lei de Anistia (lei 6.683, de 1979), que incluiu como anistiados também os torturadores, numa suposta conciliação vista pelos protagonistas da luta contra a ditadura como um acordo forçado dentro de uma luta desigual, porque forjada no arbítrio (Cardoso, 2001Cardoso, Irene. (2001). Memória de 68: terror e interdição do passado. In: Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, p. 147-161,; Mezarobba, 2009Mezarobba, Glenda. (2009). Anistia de 1979: o que restou da lei forjada pelo arbítrio? In: Santos, Maria Cecília Macdowell; Teles, Edson & Teles, Janaína (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec/Aderaldo & Rothschild, p. 372-385 (v. 2).; Gagnebin, 2010Gagnebin, Jeanne Marie. (2010). O preço de uma reconciliação extorquida. In: Teles, Edson & Safatle, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, p. 177-186.). Até hoje a questão da responsabilização dos que cometeram os crimes − oficialmente reconhecidos e nomeados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em seu relatório final (Brasil, 2014) − não está socialmente resolvida.4 4 Em um dos momentos da escritura deste texto, veio a público a notícia do aparecimento de um documento da CIA, de 1974, escrito por seu então diretor, William Corby, em que afirma ter o presidente Ernesto Geisel autorizado a continuidade da política de “execução sumária” dos opositores do regime militar feita por seu antecessor, Emílio Garrastazu Médici, reacendendo a polêmica em torno da revisão da Lei de Anistia de 1979 e a questão da não responsabilização dos autores dos crimes de violação dos direitos humanos, oficialmente reconhecidos pelo relatório da CNV (O Estado de São Paulo, 11 maio 2018: A10).

Esse caminho particular dos acontecimentos norteou os rumos da investigação sobre a memória da ditadura, no que se refere tanto às fontes quanto ao próprio objeto da reflexão, direcionando-os para o testemunho dos que viveram a experiência de violência - prisão, tortura ou desaparecimento e morte de familiares − em suas distintas formas de expressão.5 5 Para detalhamento das linhas gerais que caracterizaram o processo de construção da memória da ditadura brasileira, a partir da Lei de Anistia, de 1979, que contribuíram para definir o desenho desta pesquisa, remeto a textos anteriores (Sarti, 2014, 2015a). São testemunhos produzidos em momentos distintos em relação aos acontecimentos e sob formas diversas: livros e textos escritos que começaram a ser publicados durante a ditadura e também relatos ou depoimentos de domínio público veiculados posteriormente. Eles foram o resultado tanto de uma estratégia política, um movimento espontâneo ou uma necessidade interior de dizer quanto de demandas externas, como é o caso dos depoimentos frente às comissões de verdade e outros dispositivos vinculados mais recentemente às políticas de memória.

Cumpre ressaltar que, em qualquer contexto, o testemunho dos que viveram a experiência de violência constitui-se em eixo central para a memória dos acontecimentos. No caso da ditadura brasileira, diante das dificuldades de dizer impostas pela Lei de Anistia, de 1979, que visava ao silenciamento público da violência, inclusive pela tentativa de inviabilizar seu tratamento judicial, os livros, escritos, relatos ou depoimentos constituíram fonte particularmente importante de evidência de que, apesar do silêncio pretendido, se procuravam incansavelmente formas de dizer pelos meios possíveis e acessíveis à sociedade, num processo de busca de reconhecimento, diante de um acerto de contas considerado sem ponto final, que faz do trabalho de memória um campo de acirradas disputas por seu sentido.6 6 O caráter de luta, intrínseco à construção da memória, foi destacado por Jelin (2003: 16), ao afirmar que o cenário das lutas políticas pela memória não é simplesmente uma confrontação entre memória e esquecimento, mas entre distintas memórias. Essa insistente demanda de reconhecimento que se mostra no testemunho dos que sofreram a violência da ditadura militar brasileira (Azevedo, 2018Azevedo, Desirée de Lemos. (2018). Ausências incorporadas: etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. São Paulo: Editora Unifesp.; Ribeiro, 2020Ribeiro, Michelli de Souza. (2020). Descaminhos das escrituras antropológicas da dor. Dissertação de Mestrado. PPGCS/Universidade Federal de São Paulo.), fazendo apelo de diversas formas à presença do outro, amplia o sentido de testemunhar, reconfigurando a testemunha, como argumentado a seguir. Ler os testemunhos significou, no desenrolar da leitura e, a partir dela, na escrita analítica, perceber-se nesse lugar do outro que, de fora, escuta e reconhece, atendendo, ainda que inadvertidamente, a esse apelo. O que busco neste texto é refletir sobre esse sentido não previsto de tornar-se testemunha, que emergiu da pesquisa sobre o sofrimento associado à violência, ao interrogar os que a viveram sobre o sentido dessa experiência, e que me levou a procurar caminhos “bons para pensar” sobre essa figura pouco estudada pelas ciências sociais.

A questão sobre o sentido das experiências de sofrimento que inspirou a reflexão vincula-se à busca de compreender como experiências de violência associadas a esse momento de exceção se incorporam e se inscrevem no curso da existência de quem as viveu, por meio da busca de compreensão das formas de inteligibilidade que constroem para seu sofrimento, supondo que esse processo de inscrição se dá ao longo do tempo. São experiências que permanecem, mas não da maneira como aconteceram no momento de sua ocorrência. Há um movimento, que é o próprio trabalho de incorporação das experiências envolvido na reconstrução da vida, que lhe dá o sentido, implicando o que Das (2020: 116)Das, Veena. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto, rev. téc. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Unifesp. chama de delicado trabalho de criação de si, dentro de sua formulação da reconstrução, após eventos disruptivos, como um processo que envolve inevitavelmente negociações subjetivas entre o indivíduo e as possibilidades do mundo social (Das et al., 2001Das, Veena et al. (eds.). (2001). Remaking a world: violence, social suffering and recovery. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press.).

Continuar a ação política, transmutada em luta por “memória, justiça e verdade” em relação aos acontecimentos ocorridos durante a ditadura, considerados crimes contra os direitos humanos pelo direito internacional, constituiu o pano de fundo sobre o qual se inscreveram as experiências de dor e violência no curso da existência dos que lutaram contra a ditadura e de seus familiares, tornando-se parte de sua forma de habitar o mundo. Foram os movimentos individuais e coletivos, que percorreram caminhos distintos e forçosamente tortuosos, na busca de identificação e localização dos corpos empreendida pelos familiares dos mortos e desaparecidos diante de informações sempre imprecisas e dúbias sobre as circunstâncias das mortes e desaparecimentos com as quais se viram obrigados a conviver (Teles, 2009Teles, Janaína de Almeida. (2009). Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In: Santos, Cecília Macdowell; Teles, Edson & Teles, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec/Aderaldo & Rothschild, p. 151-176 (v. 1).; Azevedo, 2018Azevedo, Desirée de Lemos. (2018). Ausências incorporadas: etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. São Paulo: Editora Unifesp.);7 7 O livro K., de Bernardo Kucinski (2005), sobre a busca de seu pai para localizar a filha desaparecida, é emblemático da angústia dessa busca. na procura da responsabilização pela prática da tortura como política de Estado, nunca alcançada, apesar dos testemunhos que a comprovaram (Oliveira, 2011Oliveira, Luciano. (2011). Ditadura militar, tortura e história: a “vitória simbólica” dos vencidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 26/75, p. 7-25.; Sarti, 2019Sarti, Cynthia. (2019). Enunciações da tortura: memórias da ditadura brasileira. Revista de Antropologia, 62/3, p. 505-529.); enfim, na referida busca agonística do reconhecimento da violência silenciada e encoberta por seus perpetradores, mas afirmada pela memória de quem a sofreu.

Assim alude uma ex-presa política, torturada na prisão, ao sentido da ação política que permite a inscrição da dor da tortura em outro registro:

Você só consegue se livrar do torturador, na medida em que você tem uma ação política, e essa ação política só é possível se você começa a falar sobre o que aconteceu. Enquanto você não falar sobre o que aconteceu, o torturador continua te dominando, porque ele te domina pelo medo, ele te domina pelo sequestro... ele não queria só que você falasse no momento da tortura, ele queria que você calasse para sempre. [...] Enquanto você não retomar a ação política, você não consegue se livrar dele. Você não consegue se curar disso.

[...] A ação política não necessariamente era ação partidária, pelo contrário. Era uma ação de denúncia, uma ação que fizesse que você, na sociedade, tomasse uma posição com relação ao que aconteceu.8 8 Entrevista com Rita Sipahi, realizada pela pesquisadora em 27 jan. 2015, em sua casa em São Paulo. Militante política, ela foi presa em 1971. Sobre sua prisão, ver seu depoimento em Freire, Almada e Ponce (1997: 181-189).

Diante do encobrimento da violência, sem espaço público onde ela pudesse ser dita, em momentos em que se está, portanto, constrangido a calar, a ação política em busca do reconhecimento da violência vivida, na qual se inscreveu o sentido das experiências de dor, revestiu-se de formas distintas, no limite das possibilidades. A escritura, forma de expressão usual e acessível, por sua condição social, aos que lutaram contra a ditadura, tornou-se, em seu apelo ao outro, um modo de agir recorrente na luta pela memória (Ginzburg, 2009Ginzburg, Jaime. (2009). A ditadura militar e a literatura brasileira: tragicidade, sinistro e impasse. In: Santos, Cecília Macdowell; Teles, Edson & Teles, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec/Aderaldo & Rothschild, p. 557-568 (v. 2).).9 9 Sendo o foco deste artigo o sentido de apelo ao outro contido nos testemunhos da violência silenciada, remeto a textos anteriores nos quais analiso esse e outros sentidos dos testemunhos escritos em torno dos acontecimentos durante a ditadura (Sarti, 2014, 2015a, 2015b, 2016a, 2016b, 2019). Salinas Fortes (2012: 115)Salinas Fortes, Luiz Roberto. (2012). Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify., professor de filosofia, assim enuncia o sentido da escritura como combate na construção da memória:

No entanto, eles quase tinham conseguido me quebrar, restando-me agora, como único recurso, como único antídoto e contraveneno, a metralhadora de escrever, o alinhamento das palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como resposta. É, aqui, neste exato momento, que se trava a luta. Cada traço inscrito é um tiro, é um golpe, il n’y a de bombe que le livre, cada linha é lança, gume, faca que penetra na carne dura do inimigo vário.

Na perspectiva aqui delineada, esta pesquisa alinha-se às abordagens antropológicas que postulam as emoções como linguagem, segundo as quais a experiência de sofrimento − como qualquer experiência humana que envolve o corpo e as emoções − estão inscritas em uma ordem simbólica e fazem sentido na relação do sujeito com o mundo social (Lutz & Abu-Lughod, 1990Lutz, Catherine & Abu-Lughod, Lila (orgs.). (1990). Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press.). Se os sentimentos, na acepção de Mauss (1979)Mauss, Marcel. (1979) [1921]. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: Oliveira, Roberto Cardoso de (org.). Mauss. São Paulo: Ática; p. 147-53. (Grandes cientistas sociais, 11), são linguagem, operam no plano da cultura e tornam-se inteligíveis quando expressos mediante formas que estão, de alguma maneira, socialmente instituídas, a questão a sublinhar é que as emoções se tornam inteligíveis mediante sua manifestação sob formas instituídas porque estão referidas ao outro. No caso de experiências de violência, ao sofrimento da experiência vivida, agrega-se o sofrimento de não haver formas de expressão instituídas para a dor. Ao contrário, nesse caso, há a imposição do silêncio, do esquecimento, a recusa da escuta e, assim, a negação da violência, da humilhação e da dor impingidas ao outro. Dessa forma, “O problema que a violência coloca é o da ausência de um lugar de inteligibilidade e escuta para o sofrimento que dela advém, lugar que requer, como condição de sua possibilidade, o reconhecimento social da violência” (Sarti, 2014Sarti, Cynthia. (2014). A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, 20/42, p. 77-105.: 81). O trabalho de reflexão situa-se, então, no ponto dessa tensão implicada na busca de expressar o sofrimento quando associado à violência, nos espaços intersticiais, nas brechas e nas lacunas constitutivas dos testemunhos.

VIOLÊNCIAS NOMEADAS, APESAR DE TUDO

Implicitamente a análise da violência durante a ditadura militar brasileira aqui empreendida traz também o propósito de pensar como o caráter de exceção atribuído a esse momento de violência permite indagar, à maneira clássica de Durkheim (2003)Durkheim, Émile. (2003) [1895]. As regras do método sociológico. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes., o que o extraordinário pode dizer da vida social ordinária, daquilo que fica invisível como normalidade, encarnada em formas de ser e de agir naturalizadas que moldam e afetam inadvertidamente os sujeitos no transcorrer de sua vida cotidiana. Assim, é o próprio caráter de exceção que se interroga. Wieviorka (2007)Wieviorka, Michel. (2007). Violência hoje. Ciência & Saúde Coletiva, 11 (sup.), p. 1147-1153., analisando as mudanças não apenas nas formas da violência, mas nas representações do fenômeno, ressalta que a violência é, cada vez mais, considerada aquilo que afeta existências singulares, pessoais ou coletivas. Foi nessa perspectiva que Das (2020: 21)Das, Veena. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto, rev. téc. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Unifesp. abriu o caminho, tão fecundo, para fazê-la “descer ao ordinário”, questionando “que tipo de trabalho a antropologia faz ao dar contornos ao objeto que temos chamado de violência”. Sua preocupação volta-se, então, para as singularidades, buscando-as na “relação escorregadiça entre o coletivo e o individual, entre o gênero textual e o enredo individual dos casos narrados (Das, 2020Das, Veena. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto, rev. téc. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Unifesp.: 22).10 10 Essa perspectiva, que atenta para as singularidades diante do que é pensado como extraordinário, inspirou a análise de relatos sobre a tortura (Sarti, 2019).

A interrogação acerca de situações consideradas de exceção, ali onde vidas foram afetadas, como na ditadura militar brasileira (1964-1985), ou em qualquer dos episódios de violência que marcaram o século XX (genocídio armênio, campos nazistas, Hiroshima, gulags stalinistas, ditaduras em Portugal, Espanha e na América Latina, massacre dos Tutsis em Ruanda, entre outros), implica, assim, considerar o que Agamben (2008: 20)Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo. chamou de a aporia de Auschwitz: “uma realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais”. Para o autor, essa aporia configura “a própria aporia do conhecimento histórico: a não coincidência entre fatos e verdade, entre constatação e compreensão”. As análises sobre a violência do século XX, que tem na experiência concentracionária e de extermínio nazistas a referência a partir da qual se operou uma inflexão no pensamento da sociedade ocidental sobre si própria,11 11 Essa qualidade referencial fez do testemunho das experiências concentracionárias o marco de uma “literatura de testemunho”, que se estendeu para as outras experiências de violência do século XX e XXI. Ressalto aqui o sentido de uma forma radical de resistência atribuído à literatura de testemunho da experiência concentracionária na leitura de Caterina Koltai (2016: 24), a partir da ideia de que “Essa escrita nasceu de uma proximidade anormal com a morte”. Para a autora, essa literatura “testemunha a existência de uma referência inconsciente de inclusão indestrutível do indivíduo no devir humano”, como se, em situações extremas, cada vida representasse a condição humana em seu conjunto (Koltai, 2016: 27). já assentaram, quase como um lugar-comum, que o sentido do que se passou não está fixado, mantendo-se aberta, portanto, a possibilidade de sua interpretação (Ricoeur, 2007Ricoeur, Paul. (2007). A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora Unicamp .), no terreno das disputas pelo sentido do que ocorreu (Jelin, 2002Jelin, Elizabeth. (2002). Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI., 2003Jelin, Elizabeth. (2003). Los derechos humanos y la memoria de la violencia política y la represión: la construcción de un campo nuevo en las ciencias sociales. Cuadernos del IDES, 2, p. 1-27.) e de como afetou vidas (Das, 2020Das, Veena. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto, rev. téc. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Unifesp.).

Trata-se de pensar esses eventos históricos a partir de uma posição ética que coloca em questão o caráter indizível, impensável ou irrepresentável da violência extrema, essa que envolve uma proximidade singular com a morte, problematizando-se o efeito de distanciamento que a ideia de uma violência extrema produz, quando formulada a partir da suposta incomunicabilidade dessa experiência, como se estivéssemos moralmente a salvo de atos atribuídos a um outro inacessível, fora do registro do humano (Sarti, 2014Sarti, Cynthia. (2014). A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, 20/42, p. 77-105.). Para Didi-Huberman (2012)Didi-Huberman, Georges. (2012). Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa, Brito e João Pedro, Cachopo. Lisboa: KKYM (Coleção Imago)., a negação da possibilidade de representar a violência torna absoluta tanto a noção de irrepresentabilidade quanto a opacidade do horror, ou melhor, o próprio horror, permanecendo, assim, dele prisioneira. Como assinalam Barbosa e Kupermann (2016: 38)Barbosa, Maria Nadeje P. & Kuperman, Daniel. (2016). Quem testemunha pelas testemunhas? Traumatismo e sublimação em Primo Levi. Psicologia USP, 27/1, p. 31-40., em sua análise do testemunho de Primo Levi a respeito de sua experiência concentracionária, “A produção de Levi nos mostra de modo veemente que não é que esses acontecimentos sejam indizíveis, mas que vêm marcados pela rubrica do escândalo e do fora de tempo”. Não se trata, assim, de “uma dimensão do indizível, mas do inaudível”.

No que se refere à reflexão sobre o século XX, Crenzel (2010)Crenzel, Emilio. (2010). Introducción. Memorias y representaciones de los desaparecidos en la Argentina, 1983-2008. In: Los desaparecidos en la Argentina: memorias, representaciones e ideas (1983-2008). Buenos Aires: Biblos, p. 11-23. argumenta que as experiências de violência desse século puseram em questão as categorias políticas e jurídicas do mundo ocidental, desafiaram os marcos da ética e deixaram em suspenso nossos recursos de representação, fazendo com que compreendê-las implique repensar nossas próprias categorias de pensamento. Nesse sentido, o problema desta pesquisa coloca-se na interseção da antropologia com a filosofia, uma vez que a questão em pauta tem uma incontornável dimensão filosófica. Segundo Cardoso de Oliveira (2013: 409)Cardoso de Oliveira, Luís Roberto. (2013). Concretude simbólica e descrição etnográfica (sobre a relação entre antropologia e filosofia). Mana, 19/3, p. 409-435., se o próprio processo de interpretação etnográfica tem necessariamente essa dimensão, o que aproxima e ao mesmo tempo diferencia esses campos do conhecimento é a forma como a antropologia, disciplina que se constituiu na busca de compreensão do outro, postula a inteligibilidade dos fenômenos na tensão entre a empiria e a metafísica, entre o dado e o significado. Haveria, segundo o autor, “uma tensão permanente entre o material colhido no campo e o sentido a ele atribuído”.

Se a violência do século XX colocou, no registro dos direitos humanos, o problema jurídico dos “crimes contra a humanidade”, colocou também questões éticas e metafísicas que, na argumentação de Agamben (2008)Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo., o transcendem. Do ponto de vista antropológico, fez emergir a tensão em torno da conceituação de uma violência que atenta contra a humanidade como uma categoria universal, o que envolve o problema correlato das fronteiras que delimitam o que se considera humano, definidas em concepções duais, tais como sobrevivência e vida, humano e desumano, que se constituem elas próprias em construções discursivas a interrogar.

Problematizando-se qualquer concepção a priori e descontextualizada de violência, a inteligibilidade desse fenômeno inscreve-se em uma ordem de significação que faz dessa experiência algo para além do tolerável. Trata-se, assim, de trabalhar no registro dessa inscrição simbólica, dos limites a partir dos quais a sociedade e nela os indivíduos não toleram o ato, ou o acontecimento, e o nomeiam violência, nomeação que dá à dor a ela associada a possibilidade de um lugar. Interessam, assim, a uma pesquisa antropológica em sua busca de “dar contorno a isso que chamamos de violência” precisamente essas fronteiras a partir das quais se definem socialmente o tolerável e o intolerável, em meio às quais se move o sujeito, com suas possibilidades, em suas permanentes negociações com o mundo social. Isso significa considerar as circunstâncias sociais e políticas da enunciação da violência, os atores em jogo e a situação na qual a violência é enunciada, como argumentado anteriormente (Sarti, 2014Sarti, Cynthia. (2014). A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, 20/42, p. 77-105., 2015aSarti, Cynthia. (2015a). La victime et le témoin durant la dictature militaire au Brésil: une antropologie de la mémoire. Brésil(s), 8, p. 125-146.).12 12 Nessa perspectiva, remeto à análise de Talal Asad (2011) sobre a prática da tortura como um dos paradoxos da sociedade secular moderna, já que um de seus motores principais é justamente o desejo de acabar com as crueldades que as religiões justificaram de diferentes formas. O mais evidente paradoxo, segundo o autor, é o do significado universal e transcultural pressuposto no artigo quinto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 − “Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” −, quando as sensibilidades morais em relação ao que é cruel, (des)humano e degradante variam histórica e culturalmente.

EXPERIÊNCIAS INCORPORADAS

Este trabalho de investigação supõe ainda as formulações da psicanálise segundo as quais as experiências de violência não se apagam, mas permanecem de alguma maneira inelutavelmente, fazendo com que a inquietação em torno da lembrança, em tempos e contextos políticos distintos e sob formas diversas, atravesse e assombre toda experiência de violência (Gagnebin, 2006Gagnebin, Jeanne Marie. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34.).

Seligmann-Silva (2005)Seligmann-Silva, Márcio. (2005). Literatura e trauma: um novo paradigma. In: O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, p. 63-80., ao analisar a relação entre literatura e trauma, argumenta que afirmar o trauma não significa excluir a simbolização, mas apenas apontar seus limites. A experiência do trauma que faz silenciar, lembra o autor, não se apaga, mas permanece. Não tem repouso. Alonso (2006)Alonso, Silvia L. (2006). O tempo que passa e o tempo que não passa. Revista Cult, 101. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/o-tempo-que -passa-e-o-tempo-que-nao-passa/>. Acesso em 21 jun. 2019.
https://revistacult.uol.com.br/home/o-te...
refere-se ao tempo do inconsciente como “o tempo que não passa”, a partir da afirmação de Freud de que a passagem do tempo não tem registro no inconsciente. Segundo a psicanalista, a forma na qual se constroem as lembranças nos mostra isso: “O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um ‘outro tempo’, o tempo da ‘mistura dos tempos’, o tempo do ‘só depois’, o ‘tempo da ressignificação’. Nesse sentido, Barbosa e Kupermann (2016: 33)Barbosa, Maria Nadeje P. & Kuperman, Daniel. (2016). Quem testemunha pelas testemunhas? Traumatismo e sublimação em Primo Levi. Psicologia USP, 27/1, p. 31-40. ressaltam que Primo Levi, “sempre tratava sobre sua experiência no Lager no tempo presente”.

No plano subjetivo, assim, a reconstrução da vida permanece um processo incessantemente trabalhado pela temporalidade, implicando que o passado seja evocado, mas a cada vez em termos diversos, por elos distintos entre presente e passado, segundo os eventos individuais e coletivos do presente, movimentos que são deslocamentos recorrentes e que abrem a possibilidade de permanentes ressignificações da experiência vivida no passado nos termos das questões colocadas pelo momento presente (Sarti, 2016aSarti, Cynthia. (2016b). Narrar a dor: o livro K e outras narrativas. Interseções, 18/2, 307-323.).13 13 Uma das controvertidas questões revisitadas pela temporalidade na memória da ditadura, sem espaço aqui para seu devido tratamento, é a categoria moral de “traição” associada a falar sob tortura. Contrastando com esse enquadramento, remeto ao relato de Salinas Fortes (2012) sobre essa experiência cruciante, pensada fora desse registro moral.

Indaga-se a própria noção de experiência não como atributo individual nem sequer como atributo que possa ser explicado pela referência a seu caráter coletivo. Sabe-se, pressuposto básico de qualquer ciência social, que nenhuma experiência prescinde de seu caráter simultaneamente individual e coletivo, mas o que interessa à investigação sobre o sofrimento associado à violência é o caráter necessariamente relacional da experiência, cujo sentido só pode ser apreendido quando compartilhado.

O caráter relacional da experiência da violência aparece magistralmente no trabalho de Cho (2008)Cho, Grace M. (2008). Haunting the Korean diaspora: shame, secrecy and the forgotten war. Minneapolis: University of Minnesota Press., que analisa, a partir da categoria psicanalítica de trauma intergeracional, o processo pelo qual a violência impetrada pelo exército norte-americano às mulheres coreanas na Guerra da Coreia (1950-1953) permaneceu, em seu silenciamento, como experiência traumática que atingiu a geração seguinte, assombrando-a como fantasmas, e só pôde ser expressa pelas filhas, em outro contexto social e histórico, o da diáspora, quando tornaram visível e nomearam a violência sofrida por suas mães.14 14 No caso da ditadura brasileira, a experiência da violência silenciada que se estende como experiência traumática à geração seguinte pode ser observada, entre outros, no filme 15 filhos, realizado em 1996 por Maria Oliveira e Marta Nehring, ambas filhas de vítimas dos crimes de Estado durante a ditadura, e também no filme Repare bem (Les yeux de Bacuri), dirigido por Maria de Medeiros, em 2012, em coprodução de Brasil, França e Itália, sem deixar de mencionar o caso emblemático da ditadura argentina (1976-1983), no que se refere ao trauma intergeracional decorrente do sequestro das crianças nascidas durante o cativeiro de suas mães.

Em sua crítica ao positivismo de estudos históricos que se baseiam na “evidência” da experiência, seja pela metáfora da visibilidade ou de qualquer outra forma de “transparência”, Scott (1999: 27)Scott, Joan W. (1999). Experiência. In: Silva, Alcione Leite da; Lago, Mara Coelho de Souza & Ramos, Tânia Regina Oliveira. Falas de gênero. Florianópolis: Editora Mulheres, p. 21-55. argumenta que a experiência, tomada como construção discursiva, “torna-se não a origem de nossa explicação, não a evidência autorizada (porque vista ou sentida) que fundamenta o conhecimento, mas sim aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento”.

Nessa perspectiva, interrogam-se não os fatos ocorridos, mas, com base em testemunhos, o que ficou dessa experiência como rastro ou “resto”, na acepção de Agamben (2008)Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo., espaço necessariamente lacunar, no sentido de que a experiência está aquém de seu significado, é algo a ser permanentemente interrogado e interpretado, fazendo da memória da experiência vivida uma questão aberta.

Essa perspectiva de análise apresenta-se como particularmente fértil diante do caráter inacabado e agonístico da memória das experiências de violência, cujo sentido, como argumentado anteriormente, se dá num terreno de disputas, por meio de lutas travadas na arena política que dificilmente se encerram. Quando se resolvem por tréguas ou acordos parciais, estabelecidos em um desequilíbrio de forças, mantém-se a tensão das soluções provisórias e adiadas, como foi o caso da Lei de Anistia, de 1979, no Brasil, precisamente pelo fato de se constituírem em torno de, ou entre, posições quase sempre inconciliáveis, que reproduzem sob outras formas o conflito originário. Como argumenta Jelin (2002: 44)Jelin, Elizabeth. (2002). Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI., “As controvérsias sobre os sentidos do passado iniciam-se com o próprio acontecimento conflitivo”.15 15 Tradução minha do texto original: “Las controversias sobre los sentidos del pasado se inician con el acontecimiento conflictivo mismo”.

A TESTEMUNHA

Analisando os distintos sentidos dos testemunhos depois da Segunda Guerra Mundial, Wieviorka (1998)Wieviorka, Annette. (1998). L’ère du témoin. Paris: Plon. argumenta que o julgamento de Eichmann em Jerusalém estabelece o “advento da testemunha”, como a figura que marca os processos de memória na segunda metade do século XX, aquela que é solicitada a ser ouvida em uma perspectiva judicial, fazendo de seu testemunho um dever. No entanto, não é na perspectiva do “dever de memória” que se interroga, aqui, a testemunha, mas sim situando-a como uma “maneira de entender a relação entre violência e subjetividade”, como se refere Das (2020, p. 116)Das, Veena. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto, rev. téc. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Unifesp. ao ato de testemunhar. Segundo a análise da autora, se a violência assinala a morte do mundo tal como era habitado antes, fornece também um novo modo de voltar a habitá-lo. Voltar não se refere a um retorno, mas a outra possibilidade, em outros termos. São essas formas em que se é levado a habitar o mundo outra vez, apesar de todo o sofrimento, que se questiona, com base nas narrativas das testemunhas. Busca-se, com a autora, alargar o sentido da testemunha “não apenas no sentido de estar no contexto dos acontecimentos, mas também de estar marcada por eles” (Das, 2020Das, Veena. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gambarotto, rev. téc. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Unifesp., p. 111).

Como argumentado, a possibilidade de voltar a habitar o mundo, sob novas formas, no caso dos que viveram a experiência de prisão e tortura durante a ditadura militar brasileira, vinculou-se ao movimento individual ou coletivo de busca do reconhecimento da violência sofrida, que foi se configurando, sem repouso, de maneiras diversas, tanto na ação política, tal como expressa pela ex-presa política citada, e materializada pela ação de ex-prisioneiros junto a familiares dos mortos e desaparecidos como também em iniciativas individuais, igualmente marcadas pela tenacidade. Entre tantos testemunhos, foi assim com o pai de Ana Rosa Kucinski, cuja saga solitária, tortuosa e obstinada em busca de localizar a filha sequestrada, desaparecida e morta durante a ditadura foi narrada em terceira pessoa, por seu filho, Bernardo Kucinski, no já mencionado livro K., cujo título nomeia o protagonista da história.

Há, ainda, em outro registro, os testemunhos que falam da impossibilidade de inscrever a experiência de dor e violência em qualquer ordem de sentido, que permita dar-lhe inteligibilidade e a ela sobreviver por meio de sua ressignificação. Interpreto o testemunho de Salinas Fortes (2012)Salinas Fortes, Luiz Roberto. (2012). Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify., publicado em seu livro inicialmente em 1988, como uma evidência da dificuldade de inscrição da experiência da tortura no curso de sua vida (Sarti, 2019)Sarti, Cynthia. (2019). Enunciações da tortura: memórias da ditadura brasileira. Revista de Antropologia, 62/3, p. 505-529.. Para a psicanalista Maria Auxiliadora Arantes (2013: 387)Arantes, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. (2013). Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo., em sua reflexão sobre a tortura, não se extinguem as lembranças da tortura, como evidenciam os testemunhos. “Muitas vezes retornam, incidem sobre o corpo, materializam-se como adoecimento precoce e intermitente. Escorrem pelas lágrimas, em palavras liquefeitas. E pior, abraçam a morte como último refúgio do apagamento da dor”. Foi o que aconteceu com frei Tito de Alencar Lima, cuja história, segundo a psicanalista, “é definitiva”. Banido do país em 1971, frei Tito suicidou-se na França em 1974, aos 31 anos.16 16 A história de frei Tito, como indica Arantes, encontra-se no Relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Brasil, 2007: 392-393).

Se existe o testemunho é porque algo de indizível precisa ser dito. Agamben (2008)Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo. ressalta, nesse sentido, o paradoxo como constitutivo do testemunho: é a testemunha quem fala, mas, se há o testemunho, isso acontece em função da impossibilidade de dizer diante da violência. Analogamente, referindo-se ao trabalho terapêutico com sobreviventes de campos de extermínio, tortura e violência, Gondar e Antonello (2016: 16)Gondar, Jô & Antonello, Diego Frichs. (2016). O analista como testemunho. Psicologia USP, 27/1, p. 16-23. afirmam o paradoxo que lhe é intrínseco, quando ressaltam a contribuição que suas narrativas trazem à clínica psicanalítica:

A maior delas consiste em reconhecer que a clínica do traumático põe em jogo algo mais do que uma narrativa e sua escuta. [...] não se trata simplesmente de narrar o que aconteceu, mas de fazê-lo ao mesmo tempo em que se admite que o que aconteceu não faz parte do narrável. Sem o reconhecimento desse paradoxo o efeito terapêutico não se dá, ou ocorre de maneira enfraquecida.

Exigência que transcende a escuta clínica e se faz presente também no trabalho da pesquisa nas ciências sociais, de forma a permitir aceder ao sofrimento alheio, com todos os limites inerentes ao acesso ao outro nas relações intersubjetivas. Trata-se de, em qualquer caso, manter e suportar a tensão entre o narrável e o inenarrável frente às condições de escuta, atravessadas pelas circunstâncias.

Agamben refere-se ao paradoxo da testemunha a partir da análise do testemunho de Primo Levi, em Os afogados e os sobreviventes. Segundo Levi (2004)Levi, Primo. (2004) [1986]. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. São Paulo: Paz e Terra., o sobrevivente é aquele que pode testemunhar, já que sobreviveu; no entanto, a testemunha em sua integridade, aquela que “foi ao fundo”, é o “afogado” que não sobreviveu. O testemunho do sobrevivente é, assim, testemunho por delegação. A partir daí, Agamben (2008: 21)Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo. faz uma advertência, no início de sua obra, mais um dos muitos escritos sobre Auschwitz, sobre o sentido que atribui a seu livro. Para o autor,

Na sua forma, ele é, por assim dizer, um comentário perpétuo sobre o testemunho. Não nos pareceu possível fazer outra coisa. Contudo, tendo em vista que, a uma certa altura, nos pareceu evidente que o testemunho continha como sua parte essencial uma lacuna, ou seja, os sobreviventes davam testemunho de algo que não podia ser testemunhado, comentar seu testemunho significou necessariamente interrogar essa lacuna - ou, mais ainda, tentar escutá-la.

Gagnebin (2006)Gagnebin, Jeanne Marie. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34., comentando, a partir de Walter Benjamin, as figuras de narração modernas, indaga sobre o sentido da testemunha analisando também o relato de Primo Levi (1988)Levi, Primo. (1988) [1958]. É isso um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco., nesse caso em É isto um homem?. Refere-se à sua conhecida descrição de um sonho recorrente que o atormentava e assombrava outros também nos campos de concentração: de volta à sua casa, depois de viver nos campos, ele sonha que, quando falava dos horrores vividos, seus ouvintes não o escutavam e iam embora, indiferentes ao relato. A autora chama a atenção para esse personagem do sonho, “aquele que vai embora, na indiferença” (Gagnebin, 2006Gagnebin, Jeanne Marie. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34.: 55). Para ela, esse ouvinte teria a função de restabelecer o espaço simbólico de um terceiro, que permitiria romper o “círculo infernal” do torturador e do torturado. Como argumenta Kehl (2004)Kehl, Maria Rita. (2004). Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo (Clínica Psicanalítica). na mesma linha, o terceiro institui o campo simbólico a partir do qual a narrativa pode se abrir para novas significações.

Gagnebin (2006: 57)Gagnebin, Jeanne Marie. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34. fala, então, a respeito da necessidade de uma ampliação do sentido da testemunha:

testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos [...] a testemunha direta. Testemunha seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.

Esse ouvinte, terceiro elemento, que se constitui em um lugar fora da díade algoz e vítima, possibilita a reinscrição simbólica do sofrimento numa história que transcende o indivíduo violentado. A essa possibilidade parece referir-se o apelo ao outro que subjaz, explícita ou implicitamente, aos testemunhos dos que sofreram a violência da ditadura brasileira analisados, como mencionado no início deste texto. Traduz o sentido da demanda recorrente das “vítimas da ditadura” de que a memória da violência não seja um assunto particular dos que foram diretamente atingidos pela prisão, tortura ou morte ou pelo desaparecimento de familiares, mas uma causa social, que envolve a sociedade brasileira como um todo (Sarti, 2015Sarti, Cynthia. (2015b). Sofrimento e memória: Retrato calado. In: Aguilera, Yanet (org.). Imagem e exílio: cinema e arte na América Latina. São Paulo: Discurso Editorial, p. 39-52.a).

Trata-se da dimensão política do trabalho da memória, “impossível de ser feito na privacidade”, como afirma, novamente em um apelo, Janaína Teles (2009: 159)Teles, Janaína de Almeida. (2009). Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In: Santos, Cecília Macdowell; Teles, Edson & Teles, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec/Aderaldo & Rothschild, p. 151-176 (v. 1)., historiadora, filha de pais presos e torturados durante a ditadura, também presa quando criança junto com seu irmão. O chamamento é explícito: “ele requer o testemunho de um terceiro, o endereçamento à escuta de alguém de ‘fora’” (Teles, 2009Teles, Janaína de Almeida. (2009). Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. In: Santos, Cecília Macdowell; Teles, Edson & Teles, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec/Aderaldo & Rothschild, p. 151-176 (v. 1).: 159). Gondar e Antonello (2016: 18)Gondar, Jô & Antonello, Diego Frichs. (2016). O analista como testemunho. Psicologia USP, 27/1, p. 16-23. argumentam, nesse sentido, que “O apelo ao terceiro - a testemunha - é um apelo a algo ou alguém que estava ausente no momento em que a situação traumática se deu. É o apelo ao cuidado, à salvação, e, consequentemente, à superação do trauma”.

A construção da figura da testemunha envolve, assim, um universo triangular de relações - a tríade a que se refere Simmel (2013)Simmel, Georg. (2013). A tríade. In: Coelho, Maria Claudia P. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, p. 45-74.17 17 Agradeço a Maria Claudia Coelho a referência a esse texto de Simmel para pensar as questões tratadas nesta pesquisa, em debate na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, em João Pessoa, em 2016. -, introduzindo um terceiro elemento em sua própria configuração que transcende a díade da vítima, que estava lá e foi diretamente atingida pelo evento, diante de seu verdugo. Simmel aponta para a configuração das relações sociais não em termos duais, mas a partir da presença não fixa, mas deslocante, de um terceiro elemento constitutivo das relações, que exerce a função de mediador.

Na situação de pesquisa, o pesquisador pode estar no lugar do terceiro elemento dessa tríade, mas desde que se deixe afetar, no sentido que FavretSaada (2005)Favret-Saada, Jeanne. (2005). Ser afetado. Trad. Paula Siqueira. Rev. Tânia Stolze Lima. Cadernos de Campo, 13, p. 155-161. atribui a “ser afetado”, o de um lugar desprovido de intencionalidade, que abre uma comunicação específica, que nada tem a ver com empatia ou identificação, mas com uma forma de compartilhamento que supõe a existência singular de um e do outro, lugar, portanto, de alteridade por excelência.

A forma como o pesquisador é afetado diz respeito à própria configuração da matéria em estudo. Não se trata de um trabalho “sobre” o testemunho, numa relação de exterioridade, mas sim de uma parte que inadvertidamente passa a integrá-lo no desenrolar da pesquisa, pelas próprias características do objeto da reflexão. Pensar e escrever em torno desse “objeto que temos chamado de violência”, no caso da memória da ditadura brasileira, implicou confrontar a busca do reconhecimento de uma violência encoberta e negada de muitas formas, tantas vezes assim expressa pelo testemunho dos que viveram as experiências de prisão e tortura e de morte e desaparecimento de seus familiares, sobre as quais paira uma sombra. Sombra que evoca o indizível dessas experiências, enquanto não houver lugar para dizê-las, que as faz, portanto, inaudíveis. Ler atenta e cuidadosamente os testemunhos escritos, assim, converteu-se em tornar-se testemunha, no lugar mediador do terceiro antes referido, a que fazem apelo os que sofreram a violência, fora da díade vítima-algoz. Desse modo, o paradoxo intrínseco à testemunha, que é quem fala o indizível que, mesmo assim, insiste e precisa ser dito − e escutado −, é o que faz o pesquisador parte constitutiva dessa figura, na dimensão incontornavelmente relacional da pesquisa etnográfica. A testemunha existe porque, para além da relação de violência entre ela e seu verdugo que a silenciou e, por isso mesmo, a constituiu como tal, ela pôde encontrar um lugar onde dizer da dor, e alguém estava lá para escutá-la.

Construir a memória do que chamamos de violência envolve, assim, processos que ultrapassam os acontecimentos a que se refere originalmente, dando-lhes uma continuidade pela evocação das lembranças, mas alterando simultaneamente seu sentido, em função das questões do presente, como já assinalado. Pesquisadores desses processos, neles estamos imersos nesse lugar mediador da testemunha, aquela que se abre para escutar a dor insuportável do outro e, assim, acompanhá-lo - por meio de suas falas, seus silêncios, escritos, ações, movimentos - em sua busca de reinscrever a experiência de violência no curso de sua existência e de poder, ou não, voltar a habitar o mundo, sob novas formas.

  • 1
    Trata-se da pesquisa “Figuras da violência: a vítima, a testemunha”, desenvolvida com recursos do CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa).
  • 2
    Essa perspectiva foi definida em função da apresentação original deste texto durante a XII Reunião de Antropologia do Mercosul, em Posadas, Argentina, de 4 a 7/12/2017, na mesa-redonda Dictaduras, activismo en DDHH y respuestas estatales en América Latina.
  • 3
    Tradução minha do texto original: “A partir de las preocupaciones políticas por la democracia, de los desarrollos de los nuevos movimientos sociales y su mirada sobre la cotidianidad, del pensamiento sobre la ciudadanía y la constitución de la subjetividad ciudadana, abonados por la práctica política de lucha de los movimientos de derechos humanos, se ha implantado en la región un nuevo marco interpretativo de la esfera pública, de la relación entre Estado y sociedad, y de los mecanismos y articulaciones entre el plano de las condiciones materiales, las instituciones, la subjetividad y el nivel simbólico-cultural.”
  • 4
    Em um dos momentos da escritura deste texto, veio a público a notícia do aparecimento de um documento da CIA, de 1974, escrito por seu então diretor, William Corby, em que afirma ter o presidente Ernesto Geisel autorizado a continuidade da política de “execução sumária” dos opositores do regime militar feita por seu antecessor, Emílio Garrastazu Médici, reacendendo a polêmica em torno da revisão da Lei de Anistia de 1979 e a questão da não responsabilização dos autores dos crimes de violação dos direitos humanos, oficialmente reconhecidos pelo relatório da CNV (O Estado de São Paulo, 11 maio 2018: A10).
  • 5
    Para detalhamento das linhas gerais que caracterizaram o processo de construção da memória da ditadura brasileira, a partir da Lei de Anistia, de 1979, que contribuíram para definir o desenho desta pesquisa, remeto a textos anteriores (Sarti, 2014Sarti, Cynthia. (2014). A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, 20/42, p. 77-105., 2015aSarti, Cynthia. (2015a). La victime et le témoin durant la dictature militaire au Brésil: une antropologie de la mémoire. Brésil(s), 8, p. 125-146.).
  • 6
    O caráter de luta, intrínseco à construção da memória, foi destacado por Jelin (2003: 16)Jelin, Elizabeth. (2003). Los derechos humanos y la memoria de la violencia política y la represión: la construcción de un campo nuevo en las ciencias sociales. Cuadernos del IDES, 2, p. 1-27., ao afirmar que o cenário das lutas políticas pela memória não é simplesmente uma confrontação entre memória e esquecimento, mas entre distintas memórias.
  • 7
    O livro K., de Bernardo Kucinski (2005), sobre a busca de seu pai para localizar a filha desaparecida, é emblemático da angústia dessa busca.
  • 8
    Entrevista com Rita Sipahi, realizada pela pesquisadora em 27 jan. 2015, em sua casa em São Paulo. Militante política, ela foi presa em 1971. Sobre sua prisão, ver seu depoimento em Freire, Almada e Ponce (1997: 181-189)Freire, Alípio; Almada, Izaías & Ponce, J.A. de Granville (orgs.). (1997). Tiradentes, um presídio da ditadura: memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione..
  • 9
    Sendo o foco deste artigo o sentido de apelo ao outro contido nos testemunhos da violência silenciada, remeto a textos anteriores nos quais analiso esse e outros sentidos dos testemunhos escritos em torno dos acontecimentos durante a ditadura (Sarti, 2014Sarti, Cynthia. (2014). A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, 20/42, p. 77-105., 2015aSarti, Cynthia. (2015a). La victime et le témoin durant la dictature militaire au Brésil: une antropologie de la mémoire. Brésil(s), 8, p. 125-146., 2015bSarti, Cynthia. (2015b). Sofrimento e memória: Retrato calado. In: Aguilera, Yanet (org.). Imagem e exílio: cinema e arte na América Latina. São Paulo: Discurso Editorial, p. 39-52., 2016aSarti, Cynthia. (2016a). Narrativas, apesar de tudo. In: Aguilera, Yanet & Campos, Marina da Costa (orgs.). Imagem, memória e resistência. São Paulo: Discurso Editorial, p. 125-139., 2016bSarti, Cynthia. (2016b). Narrar a dor: o livro K e outras narrativas. Interseções, 18/2, 307-323., 2019Sarti, Cynthia. (2019). Enunciações da tortura: memórias da ditadura brasileira. Revista de Antropologia, 62/3, p. 505-529.).
  • 10
    Essa perspectiva, que atenta para as singularidades diante do que é pensado como extraordinário, inspirou a análise de relatos sobre a tortura (Sarti, 2019Sarti, Cynthia. (2019). Enunciações da tortura: memórias da ditadura brasileira. Revista de Antropologia, 62/3, p. 505-529.).
  • 11
    Essa qualidade referencial fez do testemunho das experiências concentracionárias o marco de uma “literatura de testemunho”, que se estendeu para as outras experiências de violência do século XX e XXI. Ressalto aqui o sentido de uma forma radical de resistência atribuído à literatura de testemunho da experiência concentracionária na leitura de Caterina Koltai (2016: 24)Koltai, Caterina. (2016). Entre psicanálise e história: o testemunho. Psicologia USP, 27/1, p. 24-30., a partir da ideia de que “Essa escrita nasceu de uma proximidade anormal com a morte”. Para a autora, essa literatura “testemunha a existência de uma referência inconsciente de inclusão indestrutível do indivíduo no devir humano”, como se, em situações extremas, cada vida representasse a condição humana em seu conjunto (Koltai, 2016Koltai, Caterina. (2016). Entre psicanálise e história: o testemunho. Psicologia USP, 27/1, p. 24-30.: 27).
  • 12
    Nessa perspectiva, remeto à análise de Talal Asad (2011)Asad, Talal. (2011). Reflexões sobre crueldade e tortura, trad. de Bruno Reinhardt e Eduardo Dullo. Revista Pensata, 01/01, pp. 164-187. sobre a prática da tortura como um dos paradoxos da sociedade secular moderna, já que um de seus motores principais é justamente o desejo de acabar com as crueldades que as religiões justificaram de diferentes formas. O mais evidente paradoxo, segundo o autor, é o do significado universal e transcultural pressuposto no artigo quinto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 − “Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” −, quando as sensibilidades morais em relação ao que é cruel, (des)humano e degradante variam histórica e culturalmente.
  • 13
    Uma das controvertidas questões revisitadas pela temporalidade na memória da ditadura, sem espaço aqui para seu devido tratamento, é a categoria moral de “traição” associada a falar sob tortura. Contrastando com esse enquadramento, remeto ao relato de Salinas Fortes (2012)Salinas Fortes, Luiz Roberto. (2012). Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify. sobre essa experiência cruciante, pensada fora desse registro moral.
  • 14
    No caso da ditadura brasileira, a experiência da violência silenciada que se estende como experiência traumática à geração seguinte pode ser observada, entre outros, no filme 15 filhos, realizado em 1996 por Maria Oliveira e Marta Nehring, ambas filhas de vítimas dos crimes de Estado durante a ditadura, e também no filme Repare bem (Les yeux de Bacuri), dirigido por Maria de Medeiros, em 2012, em coprodução de Brasil, França e Itália, sem deixar de mencionar o caso emblemático da ditadura argentina (1976-1983), no que se refere ao trauma intergeracional decorrente do sequestro das crianças nascidas durante o cativeiro de suas mães.
  • 15
    Tradução minha do texto original: “Las controversias sobre los sentidos del pasado se inician con el acontecimiento conflictivo mismo”.
  • 16
    A história de frei Tito, como indica Arantes, encontra-se no Relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Brasil, 2007Brasil. (2007). Direito à verdade e à memória. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos.: 392-393).
  • 17
    Agradeço a Maria Claudia Coelho a referência a esse texto de Simmel para pensar as questões tratadas nesta pesquisa, em debate na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, em João Pessoa, em 2016.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo.
  • Alonso, Silvia L. (2006). O tempo que passa e o tempo que não passa. Revista Cult, 101. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/o-tempo-que -passa-e-o-tempo-que-nao-passa/>. Acesso em 21 jun. 2019.
    » https://revistacult.uol.com.br/home/o-tempo-que -passa-e-o-tempo-que-nao-passa/
  • Arantes, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. (2013). Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Asad, Talal. (2011). Reflexões sobre crueldade e tortura, trad. de Bruno Reinhardt e Eduardo Dullo. Revista Pensata, 01/01, pp. 164-187.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2019
  • Revisado
    29 Maio 2020
  • Aceito
    30 Jun 2020
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