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A NAÇÃO FRATURADA: DUALISMO E EXÍLIO EM LAMENTO SERTANEJO

THE FRACTURED NATION: DUALISM AND EXILE IN LAMENTO SERTANJO

Resumo

Este artigo faz uma interpretação da canção Lamento Sertanejo partindo de uma “história do ponto de vista dos vencidos”. Interpretamos a canção em diálogo com as obras Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Nossa hipótese é a de que Lamento Sertanejo expressa a dualidade sertão/cidade, presente nas duas obras, em outra chave interpretativa, apresentando uma visão de país em que esses dois espaços se conectam em uma unidade contraditória. A obra se configura como uma “canção de exílio”. Trazendo o tema do isolamento na cidade grande e da memória, Lamento Sertanejo nos oferece um panorama da nação fraturada pelo processo de modernização conservadora empenhado pela ditadura civil militar nos anos 1970.

Palavras-chave:
Lamento Sertanejo; Dualismo; Memória; Melancolia; Exílio.

Abstract

This article interprets the song Lamento Sertanejo starting from a “history from the vanquished point of view”. We interpret the song in dialogue with the works Os Sertões by Euclides da Cunha, and Grande Sertão: Veredas, by Guimarães Rosa. Our hypothesis is that Lamento Sertanejo expresses the country/city duality in another interpretative key, presenting a vision of a nation where these two spaces are connected in a contradictory unity. Bringing the theme of isolation in the big city and the memory, Lamento Sertanejo offers us a panorama of the nation fractured by the conservative modernization process perpetuated by the civil military dictatorship in the 1970s.

Keywords:
Lamento Sertanejo; Dualism; Memory; Melancholy; Exile

INTRODUÇÃO

A canção no Brasil, como parte da construção de certo retrato da nação, não se reduz à apologia de uma brasilidade hegemônica. Pode-se dizer que ela ganha potência justamente quando consegue captar e ecoar as vozes dos esquecidos pelas narrativas oficiais do país. Assim, se é verdade que a canção brasileira faz parte do repertório de certa comunidade imaginada nacional, a sua reverberação expressa também o coro dos contrários, narrando uma história dos vencidos feita de espasmos e fragmentos. Esse é o caso de Lamento Sertanejo (1975), canção composta por Dominguinhos e Gilberto Gil. Sem revelar, em uma primeira escuta, uma expressão propriamente política, a obra capta um momento de fragmentação e dissenso no Brasil da década de 1970, expressando uma perspectiva da nação fraturada, antagônica à apologia do desenvolvimento e da integração nacional.

A forma da canção tem uma maneira própria de representação da realidade social e pode nos oferecer um conhecimento específico sobre a nação. Uma audição atenta de Lamento Sertanejo permite traçar um retrato do país no qual o paradigma sertão/cidade ganha novo significado na figura do exilado na cidade grande.

Parte-se da interpretação de que a canção expressa a dualidade sertão/cidade a partir do ponto de vista do exilado, configurando-se como uma “canção de exílio”. O tema do exílio serve, na obra, como indício da percepção das relações contraditórias entre sertão/cidade, tradição/modernidade, revelando um país fraturado nos anos 1970.

Lamento Sertanejo foi composta por Dominguinhos como música instrumental e gravada em 1973Dominguinhos. (1973). Tudo Azul. Tropicana, LP. no LP Tudo Azul. Anos mais tarde, Gilberto Gil compôs a letra e gravou a música em seu álbum Refazenda, de 1975Gil, Gilberto. (1975). Refazenda. Warner Music, LP.. A canção apresenta uma narrativa sobre o sertanejo e o processo de migração fortalecido na segunda metade do século XX e pode ser ouvida como parte de uma linhagem das narrativas sobre o exílio e o sertão brasileiro.

Na canção, o tema da dualidade sertão/cidade é narrado em primeira pessoa pela voz do sertanejo. Na perspectiva do narrador, a cidade torna-se um lugar de abandono e desenraizamento, confrontando-se com o sertão como espaço de memória e de pertencimento. O eu lírico sertanejo é representado como um indivíduo melancólico, deslocado de seu ambiente e desgarrado na cidade grande.

Este artigo apresenta três camadas de leitura da canção. Primeiro, traçando um diálogo implícito da canção com as obras Os Sertões, de Euclides da Cunha (1985Cunha, Euclides da. (1985). Os Sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense.), e Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa (1986Rosa, João Guimarães. (1986). Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), busca-se compreender como Lamento Sertanejo estabelece uma visão própria da relação sertão/cidade. Em um segundo momento, a audição atenta da construção harmônica e melódica da obra permite traçar uma memória musical do sertão que se confronta com o ruído da cidade. Por fim, a música pode ser ouvida como uma canção de exílio, revelando as fraturas da nação como comunidade imaginada.

LAMENTO SERTANEJO E AS NARRATIVAS DO SERTÃO

A relação entre literatura e canção é potencialmente rica para a interpretação da sociedade, posto que ambas são formas de reflexões brasileiras e reverberam de diferentes maneiras no tecido social. Embora a forma literária pareça carregar uma reflexão apurada sobre a realidade social, a canção, dada sua forma e capacidade de circulação, é um importante documento estético capaz de sinalizar a cultura do país, tornando-se também uma forma de reflexão (Wisnik, 2001Wisnik, José Miguel. (2001). A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil. In: Matos, Cláudia Neiva de et al. Ao encontro da palavra cantada. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 183-199.).

Nesse sentido, Lamento Sertanejo dá forma musical a um tema recorrente no pensamento social e na literatura brasileira, qual seja, a relação sertão/cidade na formação social do país. Essa relação pode ser melhor elucidada na comparação da canção com duas importantes obras: Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

A análise proposta busca uma comparação a fim de demonstrar como a relação sertão/cidade foi pensada pelos diferentes autores em seu contexto histórico. Com isso, procura-se apontar também para a historicidade dessa relação, representada como dualidade estanque em Euclides da Cunha, ambiguidade reversível em Guimarães Rosa e unidade contraditória em Dominguinhos e Gilberto Gil.

Em 1902, Euclides da Cunha publicava Os Sertões. O livro vingador, como foi designado pelo próprio autor, além de denunciar o massacre operado pela nascente República, apresentava uma face do país ainda pouco conhecida por grande parte dos habitantes da capital. Um Brasil incivilizado, porém autêntico, era narrado pelo escritor, aprofundando uma impressão de afastamento e dualidade entre dois brasis.

O sentimento de dualidade percorre toda a obra de Euclides: a comparação entre o neurastênico litorâneo e o sertanejo isolado; o embate entre o positivismo republicano e o messianismo de Antônio Conselheiro; além do famoso oxímoro Hércules-Quasímodo, usado pelo autor para definir o tipo físico do sertanejo (Galvão, 1972Galvão, Walnice Nogueira. (1972). As formas do falso: Um estudo sobre a ambiguidade em Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Perspectiva.).

A sociologia euclidiana ofereceu uma interpretação poderosa do país, uma representação do confronto entre uma pretensa civilização contra a barbárie, em que o próprio positivismo republicano foi posto à prova. A ideia de descompasso entre um país que se desenvolvia e um que se mantinha à margem ganha força em sua obra, tornando-se matriz interpretativa do país.

Euclides da Cunha se empenhou em explicar e inserir estes “outros brasileiros” sertanejos em uma comunidade imaginada nacional. A partir de uma perspectiva científica e positivista, o engenheiro buscou analisar e inserir essa população em uma temporalidade nacional na recém-criada República brasileira.

Entretanto, Euclides da Cunha não necessariamente enaltece a civilização. A cidade foi percebida pelo engenheiro como o “local dos vícios, da deterioração humana, da valorização do dinheiro e da degradação pela troca da mercadoria” (Galvão, 2009Galvão, Walnice Nogueira. (2009). Euclidiana: Ensaio sobre Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras.: 74). Percebe-se, no autor, a concepção de uma civilização urbana construída mecanicamente pela cópia, em confronto com uma cultura autêntica desenvolvida no isolamento do sertão.

Aliás, esse discurso se vincula à própria construção da modernidade brasileira. A “descoberta” do sertão representou a construção do “outro” pelo olhar do civilizado, projetando nosso modernismo a partir da relação entre a terra e o homem sertanejo, representante de uma cultura autóctone isolada na hinterlândia brasileira.

A imagem do sertanejo como o “outro” do brasileiro citadino serviu como importante ingrediente na construção do sertão como um espaço de penúria, em oposição às riquezas materiais e simbólicas das cidades. Nesse cenário, o sertanejo foi representado como um personagem “isolado, abandonado, doente, nômade, atrasado, resistente a mudanças, despossuído” (Starling, 2008Starling, Heloísa Maria Murgel. (2008). A República e o Sertão. Imaginação literária e republicanismo no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, 82, p. 133- 147. DOI: 10.4000/rccs.626.
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: 137), porém, fonte de redescobrimento de um Brasil profundo.

Essa perspectiva é reelaborada por Guimarães Rosa em Grandes Sertões: Veredas. O romance, publicado em 1956, período em que o desejo da nação foi orientado pelos projetos urbanísticos e pelas tentativas de industrialização, oferece uma contranarrativa das tentativas de integração do modelo desenvolvimentista.

Grande Sertão: Veredas evoca e dá voz aos esquecidos pela ideologia desenvolvimentista. Narra a história de personagens desgarrados, jagunços, órfãos, miseráveis e todos aqueles que não foram incorporados pelo processo de desenvolvimento conservador do país. Há, no romance, um inventário dos fragmentos e resíduos do que foi designado como improdutivo pela República desenvolvimentista (Starling, 2008Starling, Heloísa Maria Murgel. (2008). A República e o Sertão. Imaginação literária e republicanismo no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, 82, p. 133- 147. DOI: 10.4000/rccs.626.
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).

Conforme demonstra o crítico Willi Bolle (1995Bolle, Willi. (1995). Grande sertão: cidades. Revista USP, 24.), o romance questiona a separação canônica sertão/cidade na qual se assentou grande parte da crítica literária. O fazendeiro ex-jagunço Riobaldo apresenta o sertão a um ouvinte urbano, estabelecendo uma nova relação entre o interior e o litoral que marcou Os Sertões. Para o crítico,

Grande Sertão: Veredas é ao mesmo tempo a reescritura e a resposta dialética à obra do grande precursor. Grande Sertão amplifica ainda mais, talvez até com uma conotação parodística, a hipérbole euclidiana, como um recolhimento, marca o contraponto (Bolle, 1995Bolle, Willi. (1995). Grande sertão: cidades. Revista USP, 24.: 94).

Guimarães Rosa dá continuidade à obra de Euclides da Cunha a partir de uma dialética entre as veredas e a universalidade do grande sertão. No romance, o sertão é o mundo, enquanto as veredas expressam o labirinto onde os guerreiros-jagunços traçam seus destinos marcados pela violência e pela magia. O narrador, Riobaldo, é colocado ora no papel do vencido, ora no do vencedor; questiona o poder e a visão vencedora positivista sobre o sertanejo. Não há propriamente uma dualidade estanque, mas uma ambiguidade, em que as coisas são e não são, um espaço reversível de travessia.

Embora nômades, os personagens anseiam pelo assentamento. Seus caminhos são marcados por um ritmo formado pela dialética cidade/estrada. Como demonstra Bolle (1995Bolle, Willi. (1995). Grande sertão: cidades. Revista USP, 24.), a partir da narrativa de Riobaldo,

O desejo de Riobaldo ser absolvido da condenação de errar sem rumo pelo sertão é a projeção da imagem de um lugar onde “todos pudessem se reunir para sofrer e viver juntos, de uma vez”. O desejo de “formar uma cidade da religião”. […] a situação narrativa é marcada por esse movimento dialético entre cidade e estrada: o conforto material de uma pessoa instruída, sedentária, e a inquietude do homem itinerante, para quem a vida é um sofrido caminhar pelo labirinto (Bolle, 1995Bolle, Willi. (1995). Grande sertão: cidades. Revista USP, 24.: 86).

Como é sabido, o sonho de Riobaldo não foi realizado. Ao contrário, o êxodo do campo tornou-se um pesadelo. Expulso da terra pela monocultura, o migrante sertanejo torna-se um errante na cidade grande.

Muito embora o êxodo seja constituinte da história brasileira, houve uma radicalização desse fenômeno, acompanhado por uma intensa exclusão, nos anos 1970. A modernização tecnológica no campo serviu como ingrediente à especulação de terras e concentração fundiária. Esse processo afetou as próprias relações de produção no campo, não só expulsando os trabalhadores rurais, como também coagindo os pequenos proprietários a adotarem um modelo de produção agrícola subjugado aos latifúndios. Segundo George Martine (1991Martine, George. (1991). A trajetória da modernização agrícola: a quem beneficia? Lua Nova , 23.: 10),

Isto provocou um forte êxodo rural (de quase 30 milhões de pessoas entre 1960-80), além de crescente assalariamento da força de trabalho agrícola, muito da qual passou a residir nas cidades. Como resultado dessas transformações, o processo de urbanização brasileiro mostrou uma face qualitativamente diferente na década de 70. Pela primeira vez na história moderna, as áreas rurais tiveram uma redução absoluta de população. O número de cidades cresceu rapidamente, assim como a proporção da população total em algumas macrocidades.

Fruto do desenvolvimento desigual, o êxodo rural foi um dos responsáveis pela criação das grandes cidades, com suas periferias formadas por um imenso exército industrial de reserva. Assim, os sertanejos “improdutivos” do estado desenvolvimentista viriam a se tornar os sujeitos subalternizados das grandes urbes, ou seja, o sertanejo torna-se um exilado na metrópole.

Esse fenômeno do deslocamento e abandono do migrante é retratado de maneira lírica em Lamento Sertanejo. A canção, gravada em 1975 no disco Refazenda, apresenta uma nova perspectiva sobre a dualidade sertão/cidade e expressa esteticamente esse processo de modernização conservadora. É importante salientar que o desenvolvimento da indústria fonográfica desde os anos 1950 oferecia um espaço importante para reflexão de projetos e anseios da nação pela linguagem musical. Esta, como já observado, dada sua natureza mais próxima da oralidade, é capaz de amplificar os debates de temas candentes da realidade social.

A canção principia-se estabelecendo um lugar de origem e de fala do narrador. Para além do espaço geográfico, é importante atentar para a construção do sertão como espaço simbólico, como pode-se observar nos seguintes versos iniciais:

Por ser de lá/ Do sertão, lá do cerrado/ lá do interior do mato/ da caatinga, do roçado (Gil, 1975Gil, Gilberto. (1975). Refazenda. Warner Music, LP.).

A primeira estrofe nos oferece um mapa sentimental da distância na perspectiva do migrante exilado. “Sertão”, “cerrado”, “interior do mato”, “caatinga” e “roçado” são indicativos de espaços ermos no interior do país. Muito embora a canção faça referências ao espaço nordestino, ela também expressa os diversos sertões do país. Afinal, como dizia Riobaldo, “O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga” (Rosa, 1986Rosa, João Guimarães. (1986). Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.: 432).

Segue-se o lamento do sertanejo:

eu quase não saio/ eu quase não tenho amigos/ eu quase que não consigo/ viver na cidade sem ficar contrariado (Gil, 1975Gil, Gilberto. (1975). Refazenda. Warner Music, LP.).

Aqui, o eu-lírico revela sua solidão e desconforto em um espaço de não pertencimento. Prevalece o sentimento de abandono acompanhado pelo desligamento das formas de interação social, desencadeando a melancolia do homem longe de sua terra. A segunda estrofe dá continuidade ao lamento do eu lírico, que opõe a memória do sertão à condição errante na cidade.

Por ser de lá, na certa por isso mesmo/ não gosto de cama mole, não sei comer sem torresmo, eu quase não falo, eu quase não sei de nada, sou como rês desgarrada, nesta multidão boiada caminhando a esmo (Gil, 1975Gil, Gilberto. (1975). Refazenda. Warner Music, LP.).

A memória dos hábitos do sertanejo se confronta com as exigências da vida urbana, um modo de vida que emudece e empobrece a experiência sertaneja. Diferente do sertão de Guimarães Rosa, onde as veredas favorecem a construção de uma experiência e de um imaginário sertanejo, as veredas urbanas impõem o silêncio do desterro.

Uma das características do cantor/narrador é sua afasia: o sertanejo se apresenta como um cantor que quase não fala. O silenciamento é retratado como consequência da dificuldade de se identificar no espaço da metrópole. Essa condição tem um importante paralelo com o romance roseano.

Willi Bolle observa que, em determinada passagem de Grande Sertão: Veredas, os jagunços se perdem em seu trajeto - nesse episódio os nomes das coisas e dos locais também são alienados. Como relata Riobaldo: “viemos por esses lugares que os nomes não se soubessem. A estrada de todos os cotovelos. Sertão - o senhor querendo procurar nunca se encontra… faltava rastro de fala humana. Nós estávamos em fundos” (Rosa, 1986Rosa, João Guimarães. (1986). Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.: 335). No episódio, a língua deixa de ser um mero instrumento de comunicação para retomar sua função arcaica de nomear as coisas, a fim de oferecer orientação aos jagunços (Bolle, 1995Bolle, Willi. (1995). Grande sertão: cidades. Revista USP, 24.).

O poder nomeador da fala adquire aqui a função de orientação e identificação. Ao desbravarem o sertão, os jagunços desbravam a si mesmos - trata-se de um processo de construção imaginativa no sertão. Já o narrador de Lamento Sertanejo, ao contrário dos jagunços roseanos, está perdido nas veredas da cidade grande, perdendo também sua fala e, consequentemente, um poder nomeador sobre si. Afinal, o processo de emudecimento é também uma forma de atrofia das vozes que ressoam a subjetividade do indivíduo, dificultando o processo de reconhecimento do sujeito.

Ao contrário do sertão, onde a perda do caminho abre a possibilidade de reinvenção, a cidade é tomada como um espaço propício ao emudecimento do sujeito. Esse fenômeno de reificação no espaço urbano foi tratado por George Simmel (1973Simmel, George. (1973). A metrópole e a vida mental. In: Velho, Gilberto (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 11-25.) em seu ensaio Metrópole e Vida Mental. A ambiguidade da cidade está no processo de intensificação da diferenciação acompanhado pela anulação da pessoa. Na metrópole, o indivíduo é ao mesmo tempo um ser autônomo e um ninguém. O sertanejo na canção pode ser caracterizado por essa ambiguidade: ao mesmo tempo em que a subjetividade da canção expõe certa individualidade do sujeito, o narrador perdido na multidão é também anulado.

Em suas reflexões sobre o espaço, Simmel (2013Simmel, George. (2013). Sociologia do Espaço. Estudos Avançados, 27/79, p. 55-112. DOI: 10.1590/S0103-40142013000300007.
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) atenta que as condições de vida na cidade moderna afetam os próprios sentidos dos indivíduos. A vida urbana privilegia o visual em detrimento da escuta. Na cidade, os indivíduos se veem, mas não se escutam.

Seguindo essa sociologia dos espaços e dos sentidos observa-se que enquanto o olhar é dinâmico e fugaz, o ato de escutar está intimamente ligado à lembrança e à troca de experiência. Como afirma Simmel (2013Simmel, George. (2013). Sociologia do Espaço. Estudos Avançados, 27/79, p. 55-112. DOI: 10.1590/S0103-40142013000300007.
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: 20), “a lembrança do dito é infinitamente mais rica e sólida, e, na verdade, estabelece por si só a imagem da personalidade como totalmente única e pessoal”.

Assim, na cidade vê-se muito e pouco se ouve, o que estimula muito mais o esquecimento do que a lembrança. A cidade como locus do moderno estabelece uma temporalidade do esquecimento (Waizbort, 2000Waizbort, Leopoldo. (2000). As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34 .).

A relação sertão/cidade na canção é articulada no campo da memória e do esquecimento. Assim, o sertão, enquanto espaço da tradição, é o lugar de uma memória que busca manter a subjetividade do sujeito em meio ao ruído da cidade, propício ao esquecimento.

Partindo da ideia de cidade como espaço de configuração de relações modernas e do apagamento de certas experiências, observa-se que a canção oferece uma nova perspectiva sobre a dualidade sertão/cidade. O sertanejo exilado é uma figura da modernidade, ou seja, o exílio é fruto do progresso. Na canção, a modernidade e a tradição não são estanques, mas formam uma unidade contraditória, ou seja, uma sobreposição entre o tempo do progresso na cidade grande e o tempo da memória sertaneja.

O termo “unidade contraditória”, desenvolvido no pensamento social por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1977Franco, Maria Sylvia. (1977). Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Unesp.), compreende os setores vistos como arcaicos e modernos como parte de um mesmo modo de produção. Assim, aquilo que era interpretado como atrasado (escravidão, patrimonialismo, violência) se revela uma prática capitalista moderna (Botelho, 2013Botelho, André. (2013). Teoria e história na sociologia brasileira: a crítica de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Lua Nova, 90. DOI: 10.1590/S0102-64452013000300012.
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). Ou seja, trata-se de uma interpretação de como modernidade e tradição se sobrepõem nos países na periferia do capitalismo, oferecendo uma potente interpretação para as produções culturais no país.

O termo é uma formulação original da teoria do desenvolvimento desigual e combinado e buscou criticar as teorias da modernização vigentes nos anos 1960/1970 que compreendiam os processos de modernização de maneira linear e etapista. Trata-se de pensar a violência, a exclusão e a pobreza como fenômenos entrelaçados e funcionais ao desenvolvimento capitalista em uma sociedade ainda marcada pela herança escravagista. O emudecimento do sertanejo expressa um processo de subalternização do indivíduo que faz parte da forma como ele é incorporado pela modernização conservadora.

Essa unidade contraditória está também no discurso propriamente musical da canção. Se é verdade que o ruído da cidade moderna propicia um esquecimento, a música seria uma forma de organização sonora da memória sertaneja. Assim, é pela linguagem musical que os compositores retratam a lembrança de uma paisagem agreste e expressam um sentimento melancólico.

A LINGUAGEM MUSICAL DO LAMENTO

Uma análise do discurso musical de Lamento Sertanejo permite observar como os elementos propriamente sonoros dão conta de expressar a relação entre cidade/sertão, modernidade/tradição e esquecimento/memória. A compreensão da organização sonora possibilita uma interpretação geral da canção, demonstrando que a sua força está no entrelaçamento entre letra e arranjos rítmicos, harmônicos e melódicos.

Como já dito, Gilberto Gil compôs a letra de Lamento Sertanejo para o álbum Refazenda dois anos depois de Dominguinhos ter lançado a versão instrumental da música. Além da letra, o compositor também fez mudanças nos arranjos rítmicos originais. A primeira versão é um xote em que prevalece o ritmo sincopado, acompanhado por instrumentos típicos do gênero, como a sanfona, o triângulo e a zabumba. Na versão de Gil, a síncope característica do xote é suprimida; sobressaem o violão, a sanfona e o baixo - que marca um ritmo próximo do blues.

As mudanças na estrutura musical da canção são descritas por Gil da seguinte maneira:

A música já existia em formato instrumental e até havia sido gravada pelo Dominguinhos num andamento rápido; era um xote rápido. Mas quando ele a mostrou para mim, na época em que estava tocando com a Gal, no show ‘Índia’, e começou a colaborar comigo para o disco ‘Refazenda’ (nós tínhamos nos aproximado antes, no Midem, em 73, quando eu passei a cantar o seu ‘Xodó’), ele já a tocou como um lamento, como uma toada lenta, num andamento arrastado que lhe deu um certo tom de entristecimento. Aí, ele me pediu que fizesse uma letra e eu fiz o ‘Lamento Sertanejo’, um título que ele mesmo propôs e com o qual ele a apresentou para mim, apesar de tê-la gravado anteriormente com outro nome, no andamento acelerado que dava a ela um caráter de peça dançante nordestina. O título já veio dele (Rennó, 2003Rennó, Calos. (2003). Gilberto Gil: Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras .: 164).

Pelo relato de Gil fica claro que, embora a primeira gravação tenha sido feita no formato “xote rápido”, já havia uma intenção de Dominguinhos em trabalhar o caráter melancólico da música. O tom entristecido é perceptível na própria construção das frases melódicas, que, além de estarem na escala menor (o que favorece a construção de um ambiente sonoro melancólico), quase sempre terminam em notas mais graves.

A ascensão de graus em uma escala melódica cria um sentimento de expansão no ouvinte que, na canção, é logo interrompido pelo declínio dessa melodia. Esse movimento de “subida” e “declive” nos graus da escala oferece a impressão de exaltação e restrição. Com isso, o compositor cria uma paisagem musical que vai da expansão à reserva, sugerindo um ambiente sonoro de lamento.

Acompanhado desses movimentos ouvem-se períodos de longas durações de determinadas notas. Em seus estudos de semiótica, Luiz Tatit (2003Tatit, Luiz. (2003). Elementos para análise da canção popular. Cadernos de Semiótica Aplicada, 1/2. DOI: 10.21709/casa.v1i2.623 acesso 03/07/2021.
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) chama a atenção para a expressão passional e melancólica na sustentação da duração de determinada nota na melodia:

A configuração de um estado passional de solidão, esperança, frustração, ciúme, decepção, indiferença, etc… ou seja, de um estado interior afetivo, compatibiliza-se com as tensões decorrentes da ampliação da frequência e duração. Como se à tensão psíquica correspondesse uma tensão acústica fisiológica de sustentação de uma vogal pelo intérprete. O prolongamento das durações torna a canção necessariamente mais lenta e adequada à introspecção. Afinal, a valorização das vogais neutraliza parcialmente os estímulos somáticos produzidos pelos ataques das consoantes. O corpo pode permanecer em repouso, apenas com um leve compasso garantido a continuidade musical. Todas as canções românticas possuem características próprias do processo de passionalização (Tatit, 2003Tatit, Luiz. (2003). Elementos para análise da canção popular. Cadernos de Semiótica Aplicada, 1/2. DOI: 10.21709/casa.v1i2.623 acesso 03/07/2021.
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: 9).

Essa passionalização do campo melódico é acompanhada por tensões no campo harmônico. Nos versos: “Lá no interior do mato/da caatinga do roçado” e “Não gosto de cama mole/ Não sei comer sem torresmo” há uma tensão entre melodia e harmonia que cria uma impressão de distanciamento no ouvinte. Enquanto a melodia traça um caminho ascendente (partindo do Sol até o Fá, uma oitava acima) a harmonia apresenta um movimento descendente por meio das inversões nos baixos dos acordes (parte do Sol dominante no acorde Gm até o Mi), reforçando uma ideia de deslocamento. Na segunda frase melódica, o baixo que acompanha a melodia continua declinando, indo do Fá com sétima (F7) ao Si Bemol com sétima aumentada (Bb7M).

Figura 1
Frase melódica/harmônica de Lamento Sertanejo

Levando em consideração que a melodia foi composta antes da letra, podemos afirmar que Gilberto Gil poetizou o sentimento melancólico do distanciamento despertado por essa tensão na peça de Dominguinhos.

Outro importante dado na construção da canção é percebido no encontro entre a estrutura modal e funcional. Orientado pela tradição musical nordestina, Dominguinhos compôs a melodia de Lamento Sertanejo a partir de uma escala modal, porém, a estrutura harmônica utiliza acordes dissonantes com sétimas e quintas aumentadas, típicos das harmonias jazzísticas. É importante atentarmos que o Gm6/E (Sol menor com sexta com baixo em Mi) forma também o acorde Em7 (b5) (Mi meio diminuto). Esse acorde oferece uma tensão harmônica típica tanto do baião quanto do jazz (Santos, 2019Santos, Paulo. (2019). Elementos Composicionais constitutivos de quatro peças de diferentes gêneros ao longo da obra de Dominguinhos . Revista Música, 19/2, p. 99-117, DOI: 10.11606/rm.v19i1.152213.
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).

A sobreposição do modal com a organização tonal da harmonia jazzística expressa uma unidade contraditória entre sertão e cidade. A escala modal aparece atrelada à determinada tradição regional, como observa José Miguel Wisnik (2011Wisnik, José Miguel. (2011). O som e o sentido: Uma outra história da música. São Paulo: Companhia das Letras .: 77):

[…] o mundo modal é em sua grade parte o mundo dessas formações resistentes à mudança e a todo tipo de evolução, mantendo-se na repetição ritual de suas fórmulas e suas escalas recorrentes, o que faz furtar-se ao ritmo progressivo da história, até que o capitalismo o desintegre, modernamente.

O modalismo está na esfera da temporalidade circular vinculada às sociedades não capitalistas. Porém, na canção analisada, a escala nordestina modal sobrepõe-se à harmonia jazzística, criando uma unidade entre melodia e harmonia. Essa unidade pode ser ouvida como um entrelaçamento entre a paisagem sertaneja e a cidade grande.

O próprio Luiz Gonzaga, principal referência de Dominguinhos, afirmava: “Dominguinhos veio com uma técnica muito avançada, com harmonias modernas, coisas que não amarram o público simples. Dominguinhos urbanizou o forró, levou-o para todas as classes, nos grandes centros urbanos, que é onde ele se apresenta” (Dreyfus, 1996Dreyfus, Dominique. (1996) Vida de viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34.: 275). O rei do baião aproxima os arranjos musicais de Dominguinhos às harmonias modernas mais próximas de certa ideia de urbanidade.

Dominguinhos mantém elementos da tradição em um contexto musical caracterizado como moderno. Não se trata de resíduos musicais; o movimento é de mão dupla. O baião/forró se urbaniza na mesma medida em que os gêneros urbanos se conectam às estruturas modais da música sertaneja nordestina, fortalecendo a ideia de uma unidade contraditória entre o moderno e o tradicional na própria forma musical.

A caracterização do sertão nordestino é reforçada ao final da canção gravada no álbum Refazenda, quando Gilberto Gil vocaliza a melodia criando uma espécie de aboio, expressão musical típica dos vaqueiros. Esse é um canto de trabalho, música entoada pelo vaqueiro na condução do gado em suas peregrinações pelo sertão, e serve para agregar a rês. Porém, no contexto da canção, esse aboio pode ser ouvido como expressão de uma subjetividade sertaneja. O canto entoado por Gilberto Gil se aproxima a uma tradição de lamúria típica das músicas nordestinas. As canções de lamento são abundantes em rituais funerários e expressam o lamento pela morte, mas também reforçam certa identidade nordestina. O aboio, nesse caso, se aproxima do luto sertanejo exilado na cidade grande.

Na canção, melodia modal e aboio são signos de um mundo artesanal; acionam outra temporalidade que se choca com o ritmo industrial e o ruído da cidade. A melodia modal expressa uma experiência musical mais próxima às sociedades tradicionais, enquanto o aboio apresenta um tempo da lembrança e melancolia.

Assim, é na construção harmônico-melódica que ecoa a expressão mais nítida do ato de lembrar do sertanejo. Esse tempo da memória sertaneja sobrepõe-se à temporalidade do progresso na cidade grande.

Walter Benjamin (1994Benjamin, Walter. (1994). Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Braziliense.) caracteriza o tempo do progresso como linear, quantitativo, homogêneo e vazio. Para o filósofo, a experiência com o tempo no capitalismo é marcada pela perda da arte de narrar, típica das sociedades tradicionais. Em uma perspectiva benjaminiana, a memória musical do sertanejo é uma forma de retomar a experiência perdida, narrar as ruínas do passado e preencher qualitativamente o tempo vazio e homogêneo do progresso. Com isso, a canção nos oferece uma nova forma de olhar para a própria narrativa da nação, revelando um lamento que pode ser ouvido como um protesto contra a temporalidade homogênea e vazia do progresso.

CANÇÃO DE EXÍLIO: A COMUNIDADE FRATURADA

Lamento Sertanejo é a décima canção do álbum Refazenda (1975). O disco, gravado após o retorno de Gilberto Gil do exílio em Londres, retrata uma nova fase na obra do compositor. Trata-se de um disco manifesto que retrata um Brasil rural. Com isso, Gil buscava retomar as origens de sua produção musical vinculada à ruralidade, bem como à sua infância em Ituaçu, na Bahia. O LP faz um passeio por gêneros vinculados à ruralidade e nordestinidade e foca em arranjos aparentemente simples, dando a impressão da busca pelo primordial.

Refazenda faz parte da chamada “trilogia Re”, sendo seguido por Refavela (1977) e Realce (1979). É importante notar que no segundo álbum da trilogia, Refavela, Gilberto Gil retrata uma paisagem urbana e negra do Brasil, dando seguimento, ainda que de maneira implícita, ao tema da migração brasileira. Assim, Lamento Sertanejo adentra uma intenção geral na obra pós-exílio do compositor, que pode ser definida por um movimento de busca pelas origens musicais em conexão com as transformações advindas dos grandes movimentos migratórios no país.

Seguindo nessa leitura, pode-se adicionar mais uma camada de sentido à obra. A canção pertence à tradição cancioneira que tematizou o exílio, mote recorrente na lírica brasileira e consagrado no romantismo por Gonçalves Dias. Na década de 1970, o tema do exílio foi particularmente explorado no campo da música popular. Diversos compositores, poetas e intelectuais vivenciaram a expatriação no período ditatorial, trazendo suas experiências para suas composições. Canções como Samba de Orly, de Chico Buarque e Toquinho, Bye Bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal, Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, além de Back to Bahia, de Gilberto Gil, e a regravação de Asa Branca por Caetano Veloso são expoentes desse fenômeno.

Tendo como pano de fundo esse contexto histórico, é possível traçar uma afinidade entre a narrativa do retirante retratado na canção e os artistas expulsos do país. O sentimento de exilado é representado pela melancolia do eu-lírico, trazendo um desajuste e fratura do sujeito. Edward Said, intelectual palestino que vivenciou a experiência do exílio, descreve esse sentimento de não pertencimento:

Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E, embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre (Said, 2003Said, Edward. (2003). Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras .: 46).

A fratura entre o homem e sua terra natal ganha novo contorno ao considerar-se que o sertanejo da canção está desterrado em sua pátria. Ao apresentar o homem exilado na cidade, Lamento Sertanejo aponta para uma visão discordante da narrativa oficial de integração imposta pela ditadura.

Uma das principais ideologias do regime militar se baseou na ideia de integração nacional. Durante as décadas de 1960 e 1970, prevaleceu um discurso oficial caracterizado pelo empenho na construção de narrativas em torno das ideias de conciliação de classes, de raças e também de regiões. Uma ideologia que buscou camuflar os conflitos latentes e construir certa ideia de povo e nação. Os cidadãos seriam regionalmente diferentes, mas integrados em torno da nação brasileira - o que afastava de antemão qualquer tentativa de reconhecimento das desigualdades internas no país.

Esse discurso integracionista se emparelhava ao desenvolvimentismo conservador imposto pelo regime militar. O progresso era anunciado como fator de coesão da pátria. Nesse cenário, Lamento Sertanejo apresenta visão discordante da ideia de coesão da comunidade nacional imaginada.

Como bem descreveu Benedict Anderson (2008), as nações se formam como uma comunidade imaginada. Os indivíduos que pertencem a essas comunidades imaginam-se compartilhando os mesmos ideais e destinos. São vínculos anônimos em larga escala que se formulam sincronicamente em um tempo vazio e homogêneo, expressão que Walter Benjamin usa para caracterizar o progresso no capitalismo.

Fruto da imaginação e da criatividade, essa comunidade foi formulada materialmente pela imprensa e pelos romances do século XIX. Porém, preserva-se por meio de diversas mídias e narrativas que enfeixam o discurso nacional, como a canção durante boa parte do século XX no Brasil.

Entretanto, é importante questionarmos: quem imagina a nação? A partir de que falas e grupos essa imaginação é criada e coletivizada? Como demonstra Chatterjee (2004Chatterjee, Partha. (2004). Colonialismo, Modernidade e Política. Salvador: Edufba.), o tempo vazio e homogêneo da nação e do capitalismo é uma utopia. A sociedade real é formada por uma série de temporalidades heterogêneas que não são frutos de uma reminiscência arcaica ou pré-capitalista, mas da própria modernidade (Chatterjee, 2004Chatterjee, Partha. (2004). Colonialismo, Modernidade e Política. Salvador: Edufba.).

Lamento Sertanejo apresenta um narrador exilado e melancólico capaz de expressar a fratura nessa comunidade imaginada. Com isso, a canção se distancia do projeto integracionista do Estado, mas também da imagem épica de povo presente no ideal nacional-popular de parte dos compositores da MPB dos anos 1960. O exilado não representa o povo integrado à nação, ele é a “res desgarrada”, a “manada caminhando a esmo”.

Nessa leitura, pode-se retomar o argumento apresentado na primeira seção deste artigo. O exílio do sertanejo expressa uma unidade contraditória na formação social marcada pelo êxodo e pela violência atrelados aos projetos de desenvolvimento. Interpretar a canção como expressão de uma unidade contraditória nos permite ouvir certos ruídos em nossa comunidade imaginada, afinal, esse tempo vazio e homogêneo da nação carrega também grandes doses de violência e exclusão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme observamos no início deste artigo, Lamento Sertanejo apresenta a relação sertão/cidade presente em grande parte do pensamento social e literário brasileiro. A linguagem científica positivista de Euclides da Cunha se vinculou a um primeiro momento de descoberta do sertão pelo habitante da cidade. Ainda que o engenheiro se identificasse com os canudenses, em sua interpretação a civilização acaba se impondo de maneira violenta ao sertanejo. A comunidade imaginada é criada e imposta pelo discurso científico.

Em Guimarães Rosa há uma mudança no lugar de fala e de escuta: o homem urbano ouve o sertanejo e o sertão é narrado pelo olhar de suas gentes. Há uma história dos vencidos, daqueles que não foram incorporados pelo projeto desenvolvimentista dos anos 1950. Não há propriamente dualidades estanques, mas um mundo ambíguo de criações e reinvenções dos personagens que povoam um sertão místico e universal.

Em Lamento Sertanejo há uma nova configuração na relação entre vencidos e vencedores. A cidade torna-se um espaço distópico, e a utopia do progresso é substituída pela memória melancólica do exílio. Porém, como demonstra Traverso (2018Traverso, Enzo. (2018). Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória. Belo Horizonte: ÂYNÉ.), a melancolia tem lá suas vantagens epistemológicas. Diferente dos vencedores, que possuem uma visão apologética da história, a experiência dos vencidos permite um olhar mais sutil e crítico. E é justamente essa perspectiva da derrota que possibilita ouvir os ruídos de uma nação fraturada.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2021
  • Revisado
    23 Mar 2022
  • Aceito
    27 Abr 2022
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