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EU INDIVIDUALIZADO E DESTRADICIONALIZAÇÃO DE GÊNERO: DISCUTINDO INDIVIDUALIZAÇÃO NA EXPERIÊNCIA DE MULHERES NEGRAS EM SITUAÇÃO DE POBREZA* * Agradecemos aos pareceristas anônimos que permitiram o aperfeiçoamento do artigo. Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná (FA) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento desta pesquisa.

THE INDIVIDUALIZED SELF AND GENDER DETRADITIONALIZATION: DISCUSSING INDIVIDUALIZATION IN THE EXPERIENCE OF BLACK WOMEN IN POVERTY

Resumo

A individualização ganhou importância na Sociologia contemporânea como expressão de mudanças vivenciadas em países com Estado de Bem-Estar Social consolidado. Essa questão colocou em evidência transformações nas relações geracionais e de gênero. No contexto brasileiro, ela foi recepcionada com desconfiança quanto à sua validade para a compreensão das experiências de mulheres das camadas populares. Este trabalho questiona a tese de que a individualização seria uma suposta exclusividade das classes médias, o que, portanto, pressuporia uma determinação econômica para a explicação do fenômeno. Com base em pesquisa qualitativa, de amostragem intencional, com uso da dupla hermenêutica fundada na teoria de Anthony Giddens, construímos uma descrição densa de narrativas de duas mulheres negras e pobres, moradoras de Salvador, a fim de analisar quatro assuntos centrais para a individualização feminina: escolaridade, trabalho, conjugalidade e reprodução. Nossas análises demonstram que mesmo diante de ambiguidades entre a individualidade e as desigualdades estruturais e culturais do país, a individualização, sendo um processo estrutural, apresenta-se entre mulheres negras e pobres brasileiras.

Palavras-chave:
Descrição densa; Geração; Interseccionalidade; Família; Salvador

Abstract

Individualization has gained importance in contemporary sociology as an expression of changes experienced in countries with a consolidated Welfare State. This issue evinced changes in gender and generation relationships. In the Brazilian context, it was received with suspicion of its validity for understanding women’s experiences from the lower classes. This study questions the thesis that individualization would supposedly be unique to the middle classes, which would presuppose an economic determination to explain the phenomenon. Based on a qualitative research with a purposive sampling and using the double hermeneutics based on the theory of Anthony Giddens, we built a dense description based on the narratives of two Black and poor women who resided in Salvador to analyze this phenomenon based on four issues that are central to female individualization: schooling, paid work, conjugality, and reproduction. Our analyses show that, even in the face of ambiguities between individuality and the structural and cultural inequalities in Brazil, individualization, being a structural process, is present among Black and poor women in Brazil.

Keywords:
Thick description; Generation; Intersectionalities; Family; Salvador

Individualização é um tema clássico da sociologia que tem recebido diferentes abordagens, como o funcionalismo, o estruturalismo, a sociologia sistêmica, a sociologia compreensiva e as teorias da agência, o que ilustra parte das controvérsias acadêmicas e políticas a respeito dele. Essas diferentes abordagens formulam explicações diversas sobre a relação entre indivíduo e sociedade e compreendem distintamente o fenômeno da individualização. Abordagens estruturalistas tendem a negar a existência da individualização ou a delimitá-la como fenômeno exclusivo das classes médias urbanas de sociedades capitalistas. Perspectivas agênticas, por outro lado, identificam a individualização como resultado de contextos e processos contraditórios que envolvem, por exemplo, reflexividade, autonomia, diversificação dos papéis sociais, ampliação dos direitos das mulheres e dos jovens, redução da proteção social e ampliação de responsabilidades individuais. Buscando a articulação entre esses dois campos, assumimos que as condições e os contextos materiais, simbólicos e culturais em que os sujeitos estão inseridos afetam as condutas individuais no delineamento das trajetórias de vida. Gênero, classe, raça, geração e localização espacial são fatores que se intersectam na configuração dessas condições.

O objetivo central orientador deste trabalho é o questionamento da tese de que a individualização seria uma suposta exclusividade das classes médias, o que, portanto, pressupõe uma determinação econômica para a explicação do fenômeno. Com base em uma descrição densa, tributária da dupla hermenêutica (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes.), construída a partir de narrativas de duas mulheres negras e pobres, exploramos o seguinte problema: como mulheres brasileiras negras e pobres constroem um eu individualizado a partir da destradicionalização dos papéis e das relações de gênero e como esses processos são marcados em relação à escolaridade, ao trabalho, à conjugalidade e à reprodução feminina? Tomando essas dimensões como constitutivas da individualização, argumentamos que mesmo diante de ambiguidades entre a individualidade e as desigualdades estruturais e culturais do país, a individualização, sendo um processo estrutural, pode ser identificada na trajetória de mulheres negras e pobres brasileiras.

Além desta introdução e das considerações finais, este artigo apresenta três seções. Na primeira, apresentamos informações metodológicas sobre a pesquisa. Na segunda, desenvolvemos nossa compreensão teórica sobre individualização e como esse conceito analítico pode iluminar nossa investigação. Na seção seguinte, exploramos as narrativas das duas entrevistadas e enfatizamos os exemplos de processos de individualização que atravessam suas trajetórias. Nas considerações finais, sustentamos nosso argumento de que a individualização, sendo estrutural e institucionalizada, é também processo social observável entre mulheres negras pobres, moradoras de centros urbanos no Brasil.

NOSSAS ESCOLHAS METODOLÓGICAS E OS SUJEITOS DA PESQUISA

De acordo com Anthony Giddens (2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes.), interpretar a realidade social não é uma exclusividade das ciências sociais; ela é também interpretada pelos próprios agentes. Desse modo, o senso comum dispõe de quadros analíticos que servem de referência para explicações sociológicas sem que a sociologia se limite a ele. Trata-se de uma teoria que reivindica uma via intermediária que não invalida o conhecimento do senso comum e nem o converte em uma sociologia espontânea (Peters, 2014Peters, Gabriel. (2014). Anthony Giddens entre a hermenêutica e a crítica: o status do conhecimento de senso comum na teoria da estruturação. Plural, XXI/2, p. 168-194. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.97218 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). Em termos de trabalho empírico, neste artigo operacionalizamos essa perspectiva teórico-metodológica com o uso da descrição densa, assumindo que existem duas hermenêuticas, o senso comum e o conhecimento sociológico, que se diferem e se combinam, sem pretender rupturas ou substituições. A descrição densa consiste no trabalho sociológico de apresentar uma trajetória considerando as grades explicativas usadas pelas próprias agentes, participantes da pesquisa, e, de modo articulado, tecer as conexões entre as explicações produzidas por elas e as explicações produzidas pelas cientistas sociais, construindo, portanto, a dupla hermenêutica (Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes.). Ela se difere da descrição simples por pretender uma forma de explicação sociológica.

A descrição densa, enquanto método de análise, pode ser usada eficazmente em combinação com a técnica de entrevista narrativa. Uwe Flick (2009bFlick, Uwe. (2009b). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.) vê a narrativa como um tipo específico de discurso ou modo de comunicação que conta uma história ou um relato. As narrativas, em sua visão, são caracterizadas por uma sequência de eventos ou experiências que são encadeados, interpretados e conectados pela narradora, entrevistada. Essa interpretação e conexão de eventos dá sentido e significado à história. Flick (2009bFlick, Uwe. (2009b). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.) defende o uso da entrevista narrativa na pesquisa social como uma ferramenta fundamental para acessar as experiências vividas e as percepções dos participantes de forma aprofundada. Ele propõe que essa técnica permite aos pesquisadores coletarem dados mais ricos e detalhados, ao mesmo tempo em que proporciona aos participantes a liberdade de expressar suas histórias e interpretações de eventos de maneira autenticamente pessoal e significativa. Através da entrevista narrativa, Flick (2009bFlick, Uwe. (2009b). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.) acredita que os pesquisadores podem explorar a construção social da realidade, examinando como os indivíduos interpretam e dão sentido às suas experiências. Essa abordagem qualitativa oferece uma visão alternativa e mais aprofundada da experiência humana em comparação com os métodos quantitativos tradicionais.

Sobre a qualidade da pesquisa qualitativa, Uwe Flick (2009cFlick, Uwe. (2009c). Qualidade na pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed.) propõe e defende um rigoroso padrão de qualidade, argumentando que isso é vital para obter resultados válidos e confiáveis. Em vez de julgar a qualidade com base em critérios quantitativos, Flick sugere que as e os pesquisadores devam se concentrar em fatores como a adequação do método de pesquisa ao objetivo do estudo, a profundidade e riqueza dos dados coletados e a relevância e utilidade dos resultados. Ele também destaca a importância da triangulação - utilizando múltiplos métodos, teorias e perspectivas - para melhorar a confiabilidade e validade dos estudos qualitativos. Tratar da qualidade da pesquisa qualitativa também diz respeito a considerar e explicitar marcadores de diferença e desigualdades em todas as etapas da pesquisa, desde o desenho até a análise, bem como incorporar elementos subjetivos, como emoções e significados produzidos pelos sujeitos de pesquisa, como potenciais dados sociológicos. Como dissemos em outra oportunidade, é explicitar o que pesquisas sociais de cunho positivista tendem a ocultar (Mariano et al., 2022Mariano, Silvana Aparecida et al. (2022). Metodologia e ética feministas em pesquisa social com mulheres em situação de pobreza. Revista Pesquisa Qualitativa, X/24, p. 192-212.).

Assim como o método da descrição densa não exige extensos materiais empíricos para a construção de uma explicação sociológica sobre determinado fenômeno social, a visão de Flick sobre qualidade da pesquisa qualitativa afasta as exigências baseadas em critérios quantitativos, justificando a validade de estudos baseados em poucos casos.

Nessa perspectiva, o artigo se ocupa de analisar as trajetórias de duas mulheres negras, moradoras da cidade de Salvador e beneficiárias da política de assistência social, Karen e Raimunda (nomes fictícios), selecionadas mediante amostragem intencional. A amostragem intencional é uma alternativa para investigações que tratam de temas pouco explorados ou para o aprofundamento de conceitos pouco desenvolvidos (Flick, 2009bFlick, Uwe. (2009b). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.). Flick (2009bFlick, Uwe. (2009b). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.) discutiu os desafios no processo de amostragem em pesquisas qualitativas e inclusive tratou das divergências sobre a própria adequação do termo para esse tipo de pesquisa, embora continue admitindo o uso do termo. Para Flick (2009aFlick, Uwe. (2009a). Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed.), a amostragem intencional é um mecanismo para construir um conjunto de casos deliberadamente selecionados com o objetivo de estudar determinado fenômeno de forma mais instrutiva. Os casos que selecionamos, integram o conjunto de 99 entrevistas, realizadas no ano de 2018, pelo projeto de pesquisa “Gênero e Interseccionalidades na questão do desenvolvimento: os desafios do Programa Bolsa Família para a quebra do ciclo intergeracional da pobreza”.

Aplicamos a intencionalidade na amostragem dos casos para selecionar duas entrevistas que nos permitissem tratar dos temas apontados pela literatura como relevantes para a nossa questão de pesquisa. Com a intenção de delimitar a investigação à análise contextual, o primeiro passo foi selecionar casos com semelhanças substanciais. O segundo foi selecionar entrevistas que foram realizadas pelas próprias autoras, sendo uma de cada autora, já que originalmente se trata de pesquisa coletiva. Como resultado, chegamos às entrevistas de Karen e Raimunda. Mulheres que em comum têm a situação racial, de classe e renda e de local de moradia; mulheres negras e pobres vivendo em periferias de Salvador, ocupadas no trabalho informal como vendedoras autônomas. Em ambas as situações, elas eram as principais responsáveis pelo rendimento familiar e pelo cuidado com a casa e com os membros da família. Por outro lado, trata-se de trajetórias distintas em termos de pertencimento a grupos etários, escolaridade, conjugalidade e reprodução. Raimunda, com 61 anos e sem escolaridade, teve cinco filhos e vivia na mesma união desde os 14 anos de idade até a ocasião da entrevista. Karen, com 27 anos de idade e ensino superior incompleto, tinha um filho, que morava com ela, além do seu namorado atual, sua segunda união.

Os casos também foram selecionados em virtude da qualidade das narrativas. Isso se justifica porque nem toda entrevista oferece uma narrativa, ou, ainda, nem sempre a participante da pesquisa apresenta o engajamento necessário para manter o foco na entrevista e construir uma narrativa. Ainda que as entrevistas fossem individuais e em salas privativas, por vezes as participantes se sentiam pressionadas pelo tempo, temorosas quanto a eventuais implicações para seu benefício assistencial ou até mesmo tímidas diante da situação incomum de uma entrevista. Nessas situações, nem sempre a entrevista foi efetivamente narrativa, convertendo-se, por vezes, em entrevistas semiestruturadas, quando as participantes ofereciam respostas lacônicas, sem aprofundamento. Em uma pesquisa coletiva, com diversas pesquisadoras, esse risco tende a aumentar. Uma narrativa de boa qualidade, portanto, foi obtida em entrevistas nas quais as informantes elaboravam um modo de contar-nos sua história, com sua própria lógica e sequência, articulando diversos elementos e oferecendo-nos certos detalhes. Essa qualidade da narrativa não se confunde com competências como a escolaridade, de modo que Raimunda é uma mulher de baixa escolaridade (apenas um ano de escolarização) e Karen é uma mulher com ensino superior incompleto. As narrativas de Karen e de Raimunda possibilitam à análise sociológica explorar tanto aspectos que são estruturantes nas experiências das mulheres nesses contextos como as variações entre as trajetórias.

A delimitação a dois casos se deve à escolha pela descrição densa das narrativas, o que requer que consideremos a própria narrativa como forma de conhecimento e que a tomemos articuladamente com o conhecimento sociológico (Flick, 2009aFlick, Uwe. (2009a). Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed.; Giddens, 2009Giddens, Anthony. (2009). A constituição da sociedade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes.). As diversidades e as semelhanças entre Karen e Raimunda oferecem condição favorável para o exame de como suas escolhas foram condicionadas e construídas em relação a temas sensíveis para a autonomia e a individualização femininas. Nessa perspectiva, é possível proceder à descrição densa mesmo quando o material empírico é construído com entrevistas de curta duração, como são os casos de Karen e Raimunda, porque, mesmo em narrativas relativamente breves, os agentes podem organizar suas visões de mundo e apresentar suas práticas sociais.

Ao empregar a técnica de entrevista narrativa, com base nas orientações de Flick (2009bFlick, Uwe. (2009b). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.), a entrevista se iniciava com uma pergunta gerativa que estimulava a entrevistada a contar sua trajetória de vida, destacando os momentos e os personagens que julgava ser mais relevantes, e prosseguia com um tópico guia, com temas previamente elencados e que poderiam não ter sido suficientemente explorados na primeira pergunta. As participantes discorreram sobre suas trajetórias de vida, relações familiares, práticas de sexualidade e reprodução, experiências escolares, experiências no mundo do trabalho, cuidado e trabalho doméstico, entre outros tópicos. A entrevista com Karen teve duração de aproximadamente 45 minutos, e com Raimunda, de aproximadamente 35 minutos.

INDIVIDUALIZAÇÃO E AUTONOMIA DAS MULHERES

Elizabeth Jelin (2004Jelin, Elizabeth. (2004). Pan y afectos: la transformacipon de las famílias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.) e Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.) tomam individualização1 1 Para nossos objetivos neste artigo, dispensamos as diferenciações conceituais e teóricas entre “individualização” e “individuação”. , ou individuação, como conceito analítico para tratar de processos sociais que têm ampliado os espaços de escolha, de vontade, de liberdade e de responsabilidade de cada pessoa. É esse o sentido que orienta nosso argumento neste artigo. Esse processo, que foi institucionalizado, entrelaça-se com transformações culturais, econômicas e sociais que afetam as dinâmicas familiares, entre outras. As relações geracionais e as relações de gênero também sofrem mudanças, sendo jovens e mulheres os principais agentes com reclamos por reconhecimento da individualidade. Acrescente-se, ainda, que esses processos são fortemente influenciados pela condição de classe social e de raça. Portanto, a individualização é objeto propício para uma análise que considere as variabilidades de gênero, de classe, de raça e de geração segundo uma abordagem interseccional. Nesse sentido, as experiências das mulheres negras revelam a potencialidade de compreender, sociologicamente, múltiplas dimensões de diferenciação e hierarquização que atravessam as relações estabelecidas em nossas sociedades. Patricia Hill Collins (2016Collins, Patricia Hill. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, XXXI/1, p. 99-127. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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: 100) tem defendido que a visão privilegiada das mulheres negras em relação “ao self, à família e à sociedade” permite uma análise aprofundada dos mecanismos que produzem e reproduzem as desigualdades sociais.

Alguns dos traços característicos da individualização, segundo Beck e Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.), são a desintegração de padrões tradicionais e a consequente reelaboração dos papéis de gênero, especialmente daqueles desempenhados por mulheres na família, como os relativos aos cuidados, à sexualidade e à reprodução. Conforme Beck (1999Beck, Ulrich (org.). (1999). Hijos de la libertad. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.), essas transformações envolvem demandas por uma nova redistribuição de responsabilidades e de poder, o que apresenta rebatimentos distintos para homens e mulheres, assim como para diferentes grupos de mulheres, como observam os estudos sobre desigualdades interseccionadas (Mariano & Macêdo, 2015Mariano, Silvana Aparecida & Macêdo, Márcia dos Santos. (2015). Desigualdades e interseccionalidades: deslindando a complexa trama das hierarquias e agenciamentos. Mediações, XX/2, p. 11-26. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.5433/2176-6665.2015v20n2p11 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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; Mariano & Souza, 2015Mariano, Silvana Aparecida & Souza, Márcio Ferreira. (2015). Conciliação e tensões entre trabalho e família para mulheres titulares do Programa Bolsa Família. Revista Brasileira de Ciência Política, XVIII, p. 147-177. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-335220151806 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). A divisão sexual de responsabilidades, com a atribuição quase exclusiva às mulheres das tarefas de cuidados, explica, em grande medida, a razão pela qual esses efeitos rebatem distintamente nas vivências de homens e de mulheres e, entre as mulheres, diversamente entre negras e não negras, pobres e não pobres (Souza & Mariano, 2018Souza, Márcio Ferreira & Mariano, Silvana. (2018). Percepções de cuidado e práticas de gênero das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família a partir de um recorte geracional: mudanças e permanências. Mediações - Revista de Ciências Sociais, XXIII/3, p. 164-194. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n3p164 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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).

No Brasil, os estudos centrados nas tensões em torno da individualização nas relações familiares desenvolveram-se, majoritariamente, sobre as famílias das classes média e alta. As famílias das camadas populares, por sua vez, foram abordadas através de pesquisas com ênfase produtivista, voltadas mais para o problema da “sobrevivência” e menos da “convivência”. Posteriormente, alguns trabalhos voltaram-se para os sistemas simbólicos e os aspectos culturais que orientam famílias de classes populares e suas extensas redes de parentesco, apontando para um tipo de pobreza expressa por “valores tradicionais” (Fonseca, 2000Fonseca, Claudia. (2000). Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.; Sarti, 2011Sarti, Cynthia. (2011). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 7. ed. São Paulo: Cortez.). Segundo Márcia Couto (2005Couto, Márcia Thereza. (2005). Estudos de famílias populares urbanas e a articulação com gênero. Revista ANTHROPOLÓGICAS, XVI/1, p. 197-216.), no entanto, a literatura carece de pesquisas que tratem das transformações na vida familiar nos contextos de pobreza e que considerem, para além dos valores tradicionais, as aspirações de cunho individualista e moderno. Sem desconsiderar as condições próprias da pobreza, caracterizada por privações de diversas ordens, “há que conceber, ao menos, a interface entre o moderno e o tradicional, que aspirações de mudança e novas expectativas de vida permeiam o universo prático e simbólico dos sujeitos” (Couto, 2005Couto, Márcia Thereza. (2005). Estudos de famílias populares urbanas e a articulação com gênero. Revista ANTHROPOLÓGICAS, XVI/1, p. 197-216.: 212). Este trabalho pretende contribuir para o preenchimento dessa lacuna.

Pesquisas sobre as atitudes e as opiniões da população brasileira sobre os papéis de gênero e a divisão das tarefas domésticas, como a de Felícia Picanço et al. (2021Picanço, Felícia et al. (2021). Papéis de gênero e divisão das tarefas domésticas segundo gênero e cor no Brasil: outros olhares sobre as desigualdades. Revista Brasileira de Estudos de População, XXVIII, p. 1-31. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0177 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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), encontraram, entre nós, ambiguidades nas tendências quanto às mudanças e persistências de padrões tradicionais de gênero segundo gênero e cor. De um lado, ocorrem mudanças em temas como trabalho feminino pago, divisão das atividades domésticas entre os cônjuges e participação dos homens nos cuidados com os filhos. Nesses temas, a pesquisa captou a presença de valores indicativos de relações de gênero mais igualitárias. Por outro lado, persiste o entendimento de que a casa e a maternidade são centrais para a vida das mulheres. Em relação às percepções dos papéis de gênero, as mulheres brancas, especialmente as mais escolarizadas, apresentam percepções mais igualitárias. No entanto, para as mulheres, brancas ou negras, fatores como mais idade, mais filhos e ter um cônjuge afetavam negativamente as percepções sobre os papéis de gênero (Picanço et al., 2021Picanço, Felícia et al. (2021). Papéis de gênero e divisão das tarefas domésticas segundo gênero e cor no Brasil: outros olhares sobre as desigualdades. Revista Brasileira de Estudos de População, XXVIII, p. 1-31. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0177 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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).

No que se refere às investigações sobre individualização entre mulheres em situação de pobreza, os estudos divergem. Cynthia Sarti (2011Sarti, Cynthia. (2011). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 7. ed. São Paulo: Cortez.), em pesquisa com as camadas populares de São Paulo, nos anos 1990, destacou as tentativas de manutenção da lógica da família nuclear e dos tradicionais papéis de homem provedor e de mulher cuidadora entre aquela população. Contudo, a autora alertava para o fato de que, apesar da forte lógica moral, a situação de pobreza a que essas famílias estavam expostas afetava diretamente esses planos, por exemplo, quando se referia à lógica do provedor masculino, posta em xeque pelas dificuldades que os homens dessas camadas encontram no mercado de trabalho. Os trabalhos de Cláudia Fonseca (2000Fonseca, Claudia. (2000). Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) também revelam a força dos aspectos simbólicos e morais na manutenção da família em comunidades pobres de Porto Alegre, nos anos 1980. Segundo a autora, observava-se, entre os sujeitos da pesquisa, uma ordem simbólica que, assim como nos trabalhos de Sarti, reforçava valores tradicionais entre mulheres e homens que vivenciavam a situação de pobreza.

Em direção relativamente diversa, Cecília Sardenberg (2012Sardenberg, Cecília M. B. (2012). Práticas sexuais, contracepção e aborto provocado entre mulheres das camadas populares de Salvador. Estudos de Sociologia, XVII/32, p. 65-84.), em pesquisa quantitativa realizada na primeira década dos anos 2000 com mulheres de uma região periférica de Salvador, Bahia, procurou analisar os processos de empoderamento das mulheres através das gerações a partir de práticas sexuais, contraceptivas e aborto provocado. Sua pesquisa demonstrou, nesse tema, aproximação de valores e de práticas das mulheres jovens desse grupo às mulheres das camadas médias das pesquisas nacionais. Entre as mulheres mais idosas, os dados apresentaram valores mais tradicionais sobre a sexualidade feminina. Esses resultados apontam mudanças intergeracionais que carregam consigo uma ambiguidade. Por um lado, há maior liberdade sexual para essas mulheres da periferia de Salvador; por outro, surgem novos imperativos, como a obrigatoriedade do orgasmo feminino (Sardenberg, 2012Sardenberg, Cecília M. B. (2012). Práticas sexuais, contracepção e aborto provocado entre mulheres das camadas populares de Salvador. Estudos de Sociologia, XVII/32, p. 65-84.). Apesar da ambiguidade, estaríamos diante de uma forma de “destradicionalização” dos valores, costumes e práticas nas relações de gênero entre as camadas populares, especialmente entre mulheres mais jovens e escolarizadas.

Os achados da pesquisa conduzida por Cecilia McCallum e Vania Bustamante (2012McCallum, Cecelia & Bustamante, Vania. (2012). Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia. Etnográfica, XVI/2, p. 221-246. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.4000/etnografica.1476 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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) em um bairro popular de Salvador mostram avanços nos estudos sobre individualização entre as camadas mais pobres. A partir de uma etnografia sobre o cotidiano vivenciado por um casal, as autoras afirmam que “as pessoas de baixa renda conseguem se individuar através das relações conjugais, ao constituir um espaço simbólico para si mesmas, o cônjuge e os filhos” (McCallum & Bustamante, 2012McCallum, Cecelia & Bustamante, Vania. (2012). Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia. Etnográfica, XVI/2, p. 221-246. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.4000/etnografica.1476 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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: 230). No entanto, o “processo de individuação depende da ajuda dos parentes e está carregado de tensões” (McCallum & Bustamante, 2012McCallum, Cecelia & Bustamante, Vania. (2012). Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia. Etnográfica, XVI/2, p. 221-246. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.4000/etnografica.1476 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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: 230). Ainda segundo as autoras, esse processo é fortemente demarcado pelos papéis de gênero, que se reforçam, de um lado, na constituição de uma nova casa material ou simbólica, de outro, no fortalecimento das relações de parentesco com as famílias de origem e de casamento.

Cabe, ainda, mencionar uma face importante do processo de individualização: a sua relação com a proteção social. Indivíduo, família e proteção social são categorias analíticas sempre em fluxo e que se entrecruzam, o que resulta no fato de que a individualização é mais observada nos países desenvolvidos e com sistemas de proteção social, enquanto, nos países pobres e em desenvolvimento, se observaria mais a atomização. A individualização exige segurança, enquanto a atomização se caracteriza pela insegurança. A diferença entre um tipo de processo e outro se explica, em parte, pela precariedade ou inexistência de sistema de proteção social (Beck & Beck-Gernsheim, 2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.).

Ao considerar essa distinção elaborada por Beck e Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.) e a precariedade da proteção social brasileira, diríamos, inicialmente, que encontramos aqui o fenômeno da atomização, no qual os indivíduos são lançados à sorte e, individualmente, devem dar respostas a problemas estruturais. Contudo, se a qualidade da proteção social é um fator decisivo nesse processo, também o é o que os autores chamam de destradicionalização - o que, no Ocidente, envolveu predominantemente mudanças nas relações de gênero, com consequências nas dinâmicas familiares, no cuidado e no mundo do trabalho. Na medida em que a destradicionalização dos papéis e das relações de gênero é uma das faces da individualização, entendemos ser correta a aplicação do conceito de individualização mesmo na presença de sistema de proteção social precário ou praticamente inexistente. Nesse aspecto, reputamos que a distinção elaborada por Beck e Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.) entre individualização e atomização exagera o peso atribuído ao Estado de Bem-Estar Social, e isso resulta em análises mais institucionalistas do que desejamos produzir. Diferentemente dessa abordagem, queremos enfatizar, no conceito analítico de individualização, os processos de construção do eu individualizado.

Outro aspecto relevante para explicar o processo de individualização, segundo Beck e Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.), são alterações sociodemográficas que estão significativamente relacionadas às mudanças na composição e nas relações familiares, atravessadas principalmente por marcadores de gênero e de geração. O Brasil também experimentou essas mudanças. Desde a década de 1940, a expectativa de vida se estendeu, enquanto a descendência encolheu. Segundo Maria Coleta Oliveira et al. (2015Oliveira, Maria Coleta et al. (2015). Cinquenta anos de relações de gênero e geração no Brasil: mudanças e permanências. In: Arretche, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; CEM, p. 309-333.), desde a década de 1930 observava-se uma tendência de queda da fecundidade, mas ainda limitada a uma pequena elite urbana. Essa tendência se alterou a partir de 1968, quando se observou uma queda acentuada em todo o território nacional - que coincide com a introdução das pílulas anticoncepcionais -, e atingiu na década de 1990 a marca média de menos de 2,8 filhos por mulher.

Esse processo não aconteceu de maneira linear. Mulheres com maior escolaridade e presença no mercado de trabalho apresentam tendência mais forte à redução do número de filhos. Contudo, ainda que esses fatores tenham se mostrado relevantes, é a variável renda a que apresentou os maiores hiatos. Em 1970, a taxa de fecundidade entre os 40% da população com menor rendimento era de 9,1, enquanto entre os 20% com maior rendimento era de 2,2; em 2010, essas taxas passaram para 3,0 e 1,2, respectivamente (Oliveira et al., 2015Oliveira, Maria Coleta et al. (2015). Cinquenta anos de relações de gênero e geração no Brasil: mudanças e permanências. In: Arretche, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; CEM, p. 309-333.). Apesar da diminuição das desigualdades entre os grupos, no início da década de 2000 ainda persistia um pequeno grupo de mulheres que mantinha um padrão mais elevado de fecundidade, de em média mais de quatro filhos. Esse perfil soma baixos níveis de escolaridade (até três anos de estudo) com baixa renda (até meio salário-mínimo per capita). Esse é o caso de Raimunda, nossa entrevistada, que teve cinco filhos até os 22 anos de idade.

As mudanças nos padrões conjugais também são características do processo de individualização. A partir da década de 1980, ficou mais evidente um padrão de diminuição de nupcialidade legal, do aumento das uniões consensuais e das rupturas conjugais, como notamos na comparação entre Raimunda (que vivia a mesma união há 47 anos) e Karen (que vivenciou ruptura conjugal após 7 anos de união). Apesar do aumento das separações e divórcios, não parece haver um enfraquecimento das instituições familiares, mas uma incorporação das rupturas como possibilidade legítima de conjugalidade, como destacam Oliveira et al. (2015Oliveira, Maria Coleta et al. (2015). Cinquenta anos de relações de gênero e geração no Brasil: mudanças e permanências. In: Arretche, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; CEM, p. 309-333.). Nesse mesmo sentido, observamos mudanças na formação e na dinâmica das famílias brasileiras. O arranjo casal com filhos deixou de representar a maioria da população, passando de 67%, em 1970, para 48,3%, em 2010. A categoria monoparental com parentes foi a que mais cresceu nesse mesmo período, saltando de 2,4% para 8,1%. Na década de 2010, outros arranjos também ganharam expressão se comparados com os anos anteriores, por exemplo, mãe e filhos, com 9%, e domicílios uniparentais, com 4,3% (Oliveira et al., 2015Oliveira, Maria Coleta et al. (2015). Cinquenta anos de relações de gênero e geração no Brasil: mudanças e permanências. In: Arretche, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; CEM, p. 309-333.).

O gender gap educacional teve alterações significativas nos últimos cinquenta anos no Brasil. Da impossibilidade de frequentar espaços educacionais à liderança das taxas de escolarização, as mulheres brasileiras caminharam velozmente no processo de aumento da escolarização, como revelam os exemplos de Raimunda e Karen. Na análise agregada, as mulheres ultrapassaram os anos de escolaridade dos homens ainda em 1990, contudo, dados desagregados mostram como as mulheres mais jovens já apresentavam taxas de escolaridade média mais elevadas desde 1970 (Beltrão & Alves, 2009Beltrão, Kaizô Iwakami & Alves, José Eustáquio Diniz. (2009). A reversão do hiato de gênero na educação brasileira no século XX. Cadernos de Pesquisa, 39, p. 125-156.). De modo correlato à queda de fecundidade e ao aumento da escolaridade das mulheres, ocorreu o aumento da participação feminina na composição da População Economicamente Ativa (PEA). Em 1960, a taxa de atividade dos homens que compunham a PEA era de 0,77, em comparação com 0,16 das mulheres. Passados cinquenta anos, a incorporação das mulheres mais do que triplicou e atingiu 0,52, enquanto a masculina recuou para 0,70 (Guimarães et al., 2016Guimarães, Nadya Araujo et al. (2016). Mercantilização no feminino: a visibilidade do trabalho das mulheres no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, XXXI/90, p. 17-38. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.17666/319017-38/2016 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). A despeito das persistentes desigualdades ocupacionais e de remuneração entre homens e mulheres no mundo do trabalho, importa observar o aumento de mulheres dispostas ao trabalho remunerado, indicativo de destradicionalização do papel feminino.

Assim, para nossa análise, ganham relevo, como componentes do processo de individualização no Ocidente, o desenvolvimento histórico da sexualidade e das formas de conjugalidade e a expansão da escolaridade e do trabalho assalariado individual (Jelin, 2004Jelin, Elizabeth. (2004). Pan y afectos: la transformacipon de las famílias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.). Esses quatros componentes têm peso relevante para o reconhecimento da existência das mulheres como indivíduos dotados de vontades, interesses, desejos e responsabilidade pessoais. Onde esse processo aconteceu ou acontece, surge uma nova concepção de indivíduo que impacta diretamente a família patriarcal.

Na próxima seção, refletimos sobre experiências de mulheres negras e pobres em vista dos processos de construção desse “eu individualizado”.

INDIVIDUALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS E POBRES EM SALVADOR

Salvador ocupa a posição de terceiro maior município do Brasil em tamanho populacional, com aproximadamente 2,9 milhões de pessoas (IBGE, 2020aIBGE. (2020a). IBGE Cidades: Salvador. Disponível em <Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/pesquisa/10070/64506?localidade1=0&ano=2020 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). O peso do passado escravista e a concentração de riqueza levaram Salvador a um processo de desenvolvimento atravessado por múltiplas desigualdades. As inúmeras ocupações que expandiram a malha urbana da cidade resultaram nas periferias empobrecidas, traço característico desse processo de desenvolvimento. Em Salvador, as condições de raça e de classe se misturam visivelmente nos territórios. Quanto mais longe da região central e litorânea, mais negros/as e mais pobres encontramos (Carvalho & Barreto, 2007Carvalho, Inaiá Maria Moreira de & Barreto, Vanda Sá. (2007). Segregação residencial, condição social e raça em Salvador. Cadernos Metrópole, XVIII, p. 251-273.).

Segundo os dados da PNAD Contínua 2020, 80,6% da população se declarava preta ou parda em Salvador (IBGE, 2020aIBGE. (2020a). IBGE Cidades: Salvador. Disponível em <Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/pesquisa/10070/64506?localidade1=0&ano=2020 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). A capital é caracterizada também pelos altos índices de desocupação e informalidade. Ainda segundo a PNAD Contínua 2020/1º tri, a taxa de desocupação era de 17,7%, a maior entre as capitais de estados no país (IBGE, 2020bIBGE. (2020b). Pnad Contínua painel. Disponível em <Disponível em https://painel.ibge.gov.br/pnadc/ >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). No que diz respeito à informalidade, os dados são referentes ao estado, mas dão dimensão do fenômeno. Na Bahia, a exemplo de Raimunda e Karen, 51,3% da população ocupada estavam na informalidade, segundo a PNAD Contínua 2020/3º tri, em comparação com 38,4% da média nacional (IBGE, 2020cIBGE. (2020c). PNAD Contínua Trimestral: desocupação cresce em 10 das 27 UFs no 3° trimestre de 2020. IBGE Notícias. Disponível em <Disponível em http://bit.ly/3PX7wMf >. Acesso em 21 jul. 2022.
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). Nesse mesmo ano, 14,9% da população do estado era beneficiária do Bolsa Família, aproximadamente o dobro da média nacional (IBGE, 2020aIBGE. (2020a). IBGE Cidades: Salvador. Disponível em <Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/pesquisa/10070/64506?localidade1=0&ano=2020 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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).

A compreensão das experiências de mulheres em contextos periféricos de Salvador é facilitada com o recurso da interseccionalidade como categoria analítica. De acordo com Kimberlé Crenshaw (2002Crenshaw, Kimberlé. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativo ao gênero. Revista Estudos Feministas, X/1, p. 171-188. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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: 173), a “discriminação interseccional” envolve tanto os “aspectos de gênero da discriminação racial” quanto os “aspectos raciais da discriminação de gênero”. A discriminação interseccional envolve, ainda, a necessidade de compreender os processos de empobrecimento de certos grupos sociais, o que demanda uma análise sociológica estrutural e cultural, simultaneamente. Conforme Maria Cristina Bayón (2013Bayón, María Cristina. (2013). Hacia una sociología de la pobreza: la relevancia de las dimensiones culturales. Estudios Sociológicos, XXXI/91, p. 87-112.), os estudos sobre as dimensões culturais da pobreza contribuem para oferecer maior abertura à heterogeneidade de experiências, significados e respostas possíveis frente a constrangimentos estruturais semelhantes.

Com esse contexto em vista, passamos à descrição densa das trajetórias de Raimunda e Karen.

Trajetória de Raimunda: destaques à conjugalidade e à reprodução

Raimunda, a participante mais velha, com 61 anos de idade, viveu parte de sua infância com os pais e os 11 irmãos no interior da Bahia e frequentou a escola por apenas um ano. Com o falecimento do pai, as dificuldades aumentaram, e Raimunda se mudou para Salvador para morar com uma irmã que já residia na cidade. No momento da entrevista, ela morava com seu marido, com quem era casada há mais de 40 anos e com quem teve seus filhos. Como relatou, ela passou a morar com ele aos 14 anos de idade, depois que lhe contou o que ela chamou de sua “situação”. A situação à qual se referia foi um estupro que sofreu assim que chegou a Salvador pelo proprietário da casa onde morava com a irmã. Sobre sua trajetória, ela resumiu: “na verdade, eu nem sei como foi que eu comecei minha vida, minha filha. Eu não tive tempo de pensar, de... de desejar alguma coisa, entendeu? Foi acontecendo!”. Nesse momento da entrevista, ela relatou que, aos 22 anos de idade e com cinco filhos, decidiu fazer a laqueadura contra a vontade do marido: “aí eu estrangulei as trompas, contra meu marido e tudo, eu estrangulei”.

O relato de Raimunda transita de uma trajetória de objetificação, como mulher, na ausência de escolhas, a um momento chave em que ela confronta os poderes do marido. O estupro vivido aos 14 anos de idade exemplifica o grau de sua impotência, o que é ainda acentuado com a inferência que fazemos sobre a impunidade ao estuprador. Vinda de uma cidade pequena para a capital, Raimunda foi objeto desses poderes, um homem urbano de classe social superior. Após essa violência, Raimunda encontrou proteção no casamento. “Na verdade, eu nem sei como foi que eu comecei minha vida, minha filha. Eu não tive tempo de pensar, de... de desejar alguma coisa, entendeu? Foi acontecendo!”. Assim ela registra os constrangimentos às escolhas próprias. Não teve tempo nem de desejar. Portanto, seu casamento, apesar da duração de quase 50 anos, por força das circunstâncias e sem relação com o mito do amor romântico, revelas as ambuiguidades do processo de individualização entre as mulheres das camadas mais empobrecidas, como apontam McCallum e Bustamante (2012McCallum, Cecelia & Bustamante, Vania. (2012). Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia. Etnográfica, XVI/2, p. 221-246. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.4000/etnografica.1476 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). Mas estar assim subjugada não define toda a trajetória de Raimunda. Aos 22 anos de idade e com 5 filhos, ela apresenta um ponto de inflexão: “aí eu estrangulei as trompas, contra meu marido e tudo, eu estrangulei”.

O desenvolvimento histórico da sexualidade é um dos elementos cruciais para a individualização, especialmente para as mulheres (Giddens, 1993Giddens, Anthony. (1993). A transformação da intimidade sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora Unesp.; Jelin, 2004Jelin, Elizabeth. (2004). Pan y afectos: la transformacipon de las famílias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.). A possibilidade de exercer poder sobre a própria sexualidade e a separação entre sexo e procriação estão entre as principais demandas das mulheres ocidentais por individualização, especialmente a partir do século XX. O breve histórico das experiências de Raimunda sobre sua sexualidade coloca em relevo esse tema. Conforme pesquisa de Sardenberg (2012Sardenberg, Cecília M. B. (2012). Práticas sexuais, contracepção e aborto provocado entre mulheres das camadas populares de Salvador. Estudos de Sociologia, XVII/32, p. 65-84.) nesse mesmo contexto da periferia de Salvador, mulheres do grupo geracional de Raimunda dispõem de menos liberdade sexual. O estupro (“o proprietário da casa que a gente morava me deu bebida e me estuprou”), a rotinização da vida cotidiana (“Eu não tive tempo de pensar, de... de desejar alguma coisa; (...) Foi acontecendo!”) e a escolha pela esterilização (“aí eu estrangulei as trompas, contra meu marido e tudo, eu estrangulei”) caracterizam uma trajetória de constrições, de limitações, mas também a capacidade de decidir, e quanto a um terreno primordial para sua individualização.

O estupro sofrido na adolescência por Raimunda é uma experiência típica das relações raciais e de gênero na sociedade brasileira e que retrocede às tradições aqui introduzidas pela colonização e escravização da população negra. Conforme Sueli Carneiro (2003Carneiro, Sueli. (2003). Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Ashoka Empreendimentos Sociais; Takano Cidadania (orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano, p. 49-58.), a violência sexual colonial cometida por homens brancos contra mulheres negras e indígenas está na origem da nossa identidade nacional. Ela acimenta as hierarquias de gênero e raça e fundamenta o mito da democracia racial, negando o papel de protagonismo à mulher negra na formação da cultura nacional, erotizando e romantizando processos de violência.

Portanto, se o controle masculino historicamente exercido sobre os corpos femininos é tópico de recusa por parte dos movimentos feministas e fundamenta suas reivindicações por liberdade sexual para as mulheres, o tema é potencializado quando observado a partir do entrelaçamento de gênero e raça. Para as mulheres negras, são acentuadas as barreiras históricas, estruturais e culturais para sua integridade sexual. A “violação colonial” é reencenada contra mulheres negras cotidianamente neste país, que se “modernizou” modernizando as desigualdades, conservando atualmente os pilares da colonização.

Se o estupro e o que denominamos de rotinização da vida cotidiana colocam Raimunda na situação de “objeto”, sua decisão de não ter mais filhos demarca sua manifestação de uma escolha, uma vontade pessoal (“contra meu marido e tudo”). Embora não tenhamos mais detalhes sobre esses fatos, podemos deduzir que “contra meu marido e tudo” são indicativos de que a oposição contra a vontade de Raimunda não provinha apenas do marido. Nesse contexto, “e tudo” pode estar indicando coerções que provêm, por exemplo, do seu meio social, da sua comunidade religiosa e, inclusive, dos serviços de saúde, pois, afinal, tratava-se uma jovem de 22 anos buscando pela esterilização no final de 1970, um período de muitas restrições para esse direito às mulheres no Brasil. No relato de Raimunda, ela decreta sua decisão nos seguintes termos: “chega, pra mim chega, quem tá parindo é eu não é você não, rapaz”. Para as mulheres, a decisão de não mais ter filhos pode ser libertadora em pelo menos dois aspectos importantes: elas podem viver sua sexualidade sem o risco da gravidez e abre-se a perspectiva de findar o período do ciclo familiar com a dedicação delas aos cuidados das crianças. Portanto, buscar controle sobre a quantidade de filhos representa, para as mulheres, uma importante decisão que afeta suas responsabilidades como cuidadoras.

A trajetória de Raimunda é semelhante à de outras mulheres de sua classe, raça e geração no Brasil. O casamento precoce e a quantidade de filhos eram experiências comumente vivenciadas por outras mulheres de sua geração que combinavam baixa escolaridade e baixa renda (Oliveira et al., 2015Oliveira, Maria Coleta et al. (2015). Cinquenta anos de relações de gênero e geração no Brasil: mudanças e permanências. In: Arretche, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; CEM, p. 309-333.). Por um lado, a vida de Raimunda parece ser o desencadear de uma trajetória sem desejos e vontades (“eu não tive tempo de pensar, de... de desejar alguma coisa”). Por outro, a decisão de não ter mais filhos envolvia uma busca por mudança de vida, ainda que continuasse casada e cuidando dos filhos que já tinha. Essa escolha evidencia também a inexistência de oposição entre individualizar-se (decidir algo por sua vontade) e manter-se engajada nas relações interdependentes de cuidado.

Voltando à infância de Raimunda, encontramos traços reveladores de certas práticas sociais das camadas populares que desenham a trajetória, especialmente, das meninas nesses grupos. Segundo Raimunda, após a morte de seu pai, sua família se viu em mais dificuldades e, por isso, os 12 irmãos foram “espalhados”: “naquela época, os pais que não tinham condições saíam espalhando né, dava um, dava outro, pra terminar de criar”. Foi assim que Raimunda saiu de sua cidade natal e, aos 12 anos de idade, foi para Salvador com uma irmã mais velha que já trabalhava lá: “Minha irmã trabalhava aqui em Salvador e trouxe a gente pra cá, alugou uma casa, colocou a gente aí trabalhando de doméstica”. Esse movimento de sair de uma cidade do interior e deslocar-se para a capital, ocupando-se no trabalho doméstico, muitas vezes no final da infância ou entrada na adolescência, é uma história comum relatada pelas mulheres de nossa pesquisa, especialmente as mais velhas. Algumas meninas ou mulheres jovens vivenciam esse tipo de experiência como um ganho de maior liberdade, fora dos controles familiares e da vida em uma cidade pequena (Mariano et al., no preloMariano, Silvana Aparecida et al. (no prelo). Em busca de si: construindo agência e autonomia feminina em contextos de pobreza. Interações (Campo Grande).). Para Raimunda, contudo, seu relato registra a perda sentida com a ruptura dos laços familiares.

Ainda assim, ela resume sua história de vida enfatizando sua capacidade de agir: “Sempre dei a volta por cima, soube minhas consequências, eu levanto, eu ergo a cabeça e vou em frente, porque é sempre em frente que a gente tem que andar”.

Nas classes populares urbanas, comumente há expectativas familiares de que as filhas, desde pequenas, contribuam com o trabalho doméstico e de que filhas e filhos, às vezes na infância, outras vezes na adolescência, contribuam para a composição do orçamento doméstico por meio de trabalho pagos (Jelin, 2004Jelin, Elizabeth. (2004). Pan y afectos: la transformacipon de las famílias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.; Sarti, 2011Sarti, Cynthia. (2011). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 7. ed. São Paulo: Cortez.), assim como foi a história de Raimunda. Além das expectativas familiares, porém, a obtenção de renda própria é um dos elementos constitutivos da autonomia feminina e, por meio dela, abrem-se outras possibilidades de realização de suas vontades, logo, de certo tipo de individualização.

Raimunda, que começou a trabalhar aos 12 anos, relatou experiências como doméstica, babá e faxineira, atividades que tipicamente entrelaçam a experiência de raça, gênero e classe no Brasil. Embora tivesse apresentado certo embaraço ao declarar sua cor no início da entrevista, Raimunda não teve dificuldades em usar critérios raciais ao demarcar as fronteiras entre ela e suas antigas patroas: “eu só trabalho mesmo é na casa dessas brancas”. O trabalho doméstico remunerado, seja como mensalista ou diarista, é historicamente uma atividade exercida por mulheres negras e pobres e, ainda atualmente, representa cerca de 18,6% da ocupação que mais emprega mulheres negras, segundo os dados da PNAD Contínua 2018 (Pinheiro et al., 2019Pinheiro, Luana Simões et al. (2019). Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. Brasília: Ipea. Texto para discussão 2528.).

Considerando que os direitos das empregadas domésticas só foram amplamente reconhecidos em 2017, é provável que Raimunda tenha trabalhado boa parte da sua vida sem proteção social trabalhista. Não por isso, ela deixa de falar das possibilidades de autonomia financeira e pessoal que o trabalho representa na sua trajetória. Raimunda relatou as vantagens que observa no trabalho autônomo e informal que realiza como vendedora de salgados na praia e, esporadicamente, nas festas de carnaval. O trabalho é descrito positivamente por Raimunda e representa um espaço importante na construção de sua autonomia e individualidade: “Eu gosto do que eu faço. Trabalho de noite, de manhã vou dormir, tomo meu banhozinho, visto minha roupinha e boto minhas coisas na minha sacola. Quando eu vejo, estou com meu dinheirinho na minha mão”. As mulheres negras e pobres sempre trabalharam no Brasil, no entanto, falas como a de Raimunda expressam significados do trabalho além da dimensão econômica, reforçando seu valor na construção do “fazer-se indivíduo”.

Trajetória de Karen: escolaridade, trabalho e cuidado

Karen, uma mulher pertencente a um grupo mais jovem que Raimunda, tinha 27 anos de idade quando nos concedeu a entrevista. Consonante com os ganhos educacionais vivenciados por sua geração, Karen cursou administração bancária por um tempo, mas não concluiu o curso de nível superior. A bolsa em uma instituição privada veio através de um estágio no Banco do Brasil. A escolaridade é uma importante variável de destradicionalização de gênero (Jelin, 2004Jelin, Elizabeth. (2004). Pan y afectos: la transformacipon de las famílias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.) porque ela está fortemente associada a valores de igualdade de gênero (Picanço et al., 2021Picanço, Felícia et al. (2021). Papéis de gênero e divisão das tarefas domésticas segundo gênero e cor no Brasil: outros olhares sobre as desigualdades. Revista Brasileira de Estudos de População, XXVIII, p. 1-31. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0177 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). A adoção ou elaboração desses valores, contudo, é processual, e Karen demonstra como vivenciou essas mudanças na medida em que reflete sobre sua própria trajetória nas experiências conjugais.

As experiências conjugais de Karen são reveladoras de como a individualização é um processo inacabado e tenso, não só no plano social, mas também individual. Ela faz a autoavaliação de seu próprio processo pessoal e de como ela teria conseguido transitar de uma relação de submissão para uma relação igualitária:

Eu acho que a minha experiência com o primeiro companheiro, pelo fato de ter casado com ele [com] 17 anos, eu fui muito submissa. Eu era nova, então, eu não saía, me comportava do jeito que ele queria, vestia do jeito que ele queria, ouvia as músicas que ele queria. Então, acho que foi um relacionamento que eu fui muito submissa. Acho que, no fundo, não foi um relacionamento. Eu me sentia oprimida por ele. Eu tinha que fazer da forma que ele queria, do jeito que ele queria, sempre como ele queria. Meu gosto, a minha vontade, nunca foi uma opção, uma prioridade e já nesse segundo relacionamento não, é já uma pessoa madura, já tenho 27 anos...

A inexistência de individualização manifestava-se, para Karen, durante a primeira união, na ausência de decisões, como os ambientes que frequentava, as roupas que vestia e as músicas que ouvia. Essas são situações típicas de relações desiguais de gênero e que Karen sentia como “submissão” e “opressão”. Assim, ela sintetiza sua impotência: “Meu gosto, a minha vontade, nunca foi uma opção”. Essa união foi dissolvida por Karen após sete anos de casamento em virtude de “traição” por parte do marido (“acho que não existe um amor de verdade... que, [se] você se importa com a pessoa, jamais procura outras pessoas na rua, você tem sua esposa em casa, então, não aceito”). Como definimos anteriormente, individualização envolve a ampliação dos espaços de definição de escolha, vontade, liberdade e responsabilidade pessoais. Karen interpreta que vivenciou ampliação nesses terrenos.

Nas últimas décadas no Brasil, especialmente após a lei do divórcio, de 1977, essa ampliação converge com mudanças nos padrões de conjugalidade e de arranjos familiares, notadamente entre as novas gerações. Por exemplo, de 2004 a 2014, a taxa de divórcio no país cresceu mais de 160% (IBGE, 2014IBGE. (2014). Estatísticas do registro civil (41. ed.). Rio de Janeiro: IBGE.), e diferentes estudos indicam que a maioria das separações conjugais acontecem a pedido da mulher2 2 Ver, por exemplo, Bessas (2021). , a exemplo da história de Karen. Separações conjugais, por seu turno, não representam desvalorização do casamento. Conforme Débora Cano et al. (2009Cano, Débora Staub et al. (2009). As transições familiares do divórcio ao recasamento no contexto brasileiro. Psicologia: reflexão e crítica, XXII, p. 214-222.: 215), o que se alinha à história de Karen, “as pessoas se divorciam porque esperam mais de seus casamentos, iniciando, então, uma busca por novas relações e, se possível, outro casamento”.

No momento da pesquisa, Karen morava com seu filho, de 4 anos, e seu namorado, de 26 anos, com quem dividia o trabalho de vendedora autônoma de sapatos, bolsas e relógios. Ela era a responsável pelo negócio e pela casa. Esse arranjo familiar corresponde às chamadas famílias reconstituídas, formadas por casal com pelo menos um filho não comum, que é uma das novidades das últimas décadas, na esteira de mudanças nos padrões das relações de gênero (Cano et al., 2009Cano, Débora Staub et al. (2009). As transições familiares do divórcio ao recasamento no contexto brasileiro. Psicologia: reflexão e crítica, XXII, p. 214-222.).

Se Karen, por um lado, falou de ganhos de individualização em sua trajetória, por outro também expôs ambiguidades, como as vivenciadas em relação à maternidade. Ela, que associou fortemente o trabalho pago à sua autonomia, abandonou sua fonte de renda e a faculdade para se dedicar ao cuidado do único filho. Sua explicação para essa decisão foram as necessidades atípicas do filho, após gestação, parto e pós-parto com sérias complicações. A maternidade é um tema controverso nos feminismos pelo menos desde a década e 1960. Algumas visões, classificadas por Lucila Scavone (2001Scavone, Lucila. (2001). Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface-comunicação, saúde, educação, V/8, p. 47-59.) como feminismo igualitário, a encaram como fonte da opressão feminina, enquanto o feminismo diferencialista a considera como um poder feminino insubstituível. O que percebemos da narrativa de Karen é que essa experiência é vivida por ela como uma forma de doação ao outro, mas também como uma forma de interação, de intersubjetividade e interdependência, pois ela indica tanto o peso da responsabilidade, do sacrífico como também certo tipo de satisfação afetiva e emocional com esse cuidado e sua expectativa de reciprocidade com o filho.

Na etapa introdutória de sua narrativa da entrevista, Karen assim abriu o tema: “minha história dá uma novela bonita”. Após narrar sua história de separação e reencontro (ainda virtual naquele momento) com a mãe, o primeiro tema que ela trouxe à cena foi o trabalho:

minha experiência com o trabalho, comecei a trabalhar nova, com 9 anos, sempre gostei de trabalhar porque eu não gosto de depender de ninguém, nem de pai, de mãe, de namorado, de marido; eu sempre gosto de ter o meu, porque eu tendo o meu posso dizer que eu quero desse jeito; vou comprar desse jeito; porque o dinheiro é meu; vou pra tal lugar porque... então, acho que é um poder, que o trabalho traz um poder pra mim. Acho que pra qualquer mulher. Você trabalhando, você tem o seu, você pode dizer “eu quero assim, desse jeito, eu vou fazer dessa forma”.

A ambiguidade novamente caracteriza essas histórias. De um lado estão a marca do trabalho infantil e como ele se manifesta nas experiências de meninas negras, típicos casos de entrelaçamento entre raça, gênero e classe, pois, em uma sociedade racista, a concepção de fragilidade infantil não é socialmente encarada como atributo de meninas negras. Elas são socialmente conduzidas mais cedo para a adultização. Assim, esse ato de assumir responsabilidades mais cedo é expressão desse sistema de desigualdades que racializa e empobrece as mulheres negras.

Todavia, Karen interpretou sua experiência de trabalho, iniciada ainda na infância, como ganho de poder, como possibilidade de realizar escolhas pessoais, suas vontades e sua liberdade: “eu tendo o meu [dinheiro] posso dizer que eu quero desse jeito; vou comprar desse jeito; porque o dinheiro é meu; vou pra tal lugar”. Para Karen, o trabalho não é interpretado como exploração, mas a partir de um significado que aprofunda os processos de individualização e subjetivação das atividades remuneradas, que, segundo Machado da Silva (2002Machado da Silva, Luiz Antônio (2002). Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho). Caderno CRH, XV/37, p. 81-109. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.18603 >. Acesso em 21 jul. 2023.
https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.1860...
), corresponde a uma dimensão cultural do trabalho contemporâneo, caracterizado pelo par “empregabilidade/empreendedorismo”. A tese de Beck e Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.) sobre ascensão da ideologia do “faça você mesma” para explicar os processos de individualização se revela também uma explicação útil para o modo como o trabalho aparece nas narrativas das participantes da pesquisa. No entanto, é preciso dar destaque aos limites envolvidos nessas formas de trabalho precário, incerto e inseguro, desprovidos de direitos e de proteção social.

Para Karen, o trabalho possibilitou a continuidade dos estudos. A partir de um programa de inserção de jovens no mercado de trabalho, ela foi premiada pelo seu desempenho com uma bolsa em uma instituição de ensino superior privada, que vinculava os estudos ao trabalho remunerado em um banco. Desde a década de 1990 e, de forma mais intensificada, a partir dos anos 2000, o Brasil viveu uma expansão da demanda e da oferta no ensino superior. De um lado, como resultado da ampliação da oferta do ensino básico, havia um crescente número de jovens com ensino médio completo, em sua maioria negros e pobres, e de outro lado encontravam-se em expansão o ensino superior público e privado e os programas sociais de incentivo ao ingresso de grupos marginalizados (Picanço, 2016Picanço, Felícia. (2016). Juventude e acesso ao ensino superior: novo hiato de gênero? In: Itaboraí, Nathalie Reis & Ricoldi, Arlene Martinez (orgs.). Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil? Implicações demográficas e questões sociais. Belo Horizonte: ABEP, p. 117-132.). A partir dos dados da Pnad/IBGE de 1993 e de 2012, Felícia Picanço (2016Picanço, Felícia. (2016). Juventude e acesso ao ensino superior: novo hiato de gênero? In: Itaboraí, Nathalie Reis & Ricoldi, Arlene Martinez (orgs.). Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil? Implicações demográficas e questões sociais. Belo Horizonte: ABEP, p. 117-132.) demonstra como esse processo resultou na diminuição de determinadas desigualdades, ainda que alguns hiatos permaneçam. Entre os jovens de 18 a 29 anos de idade, o grupo formado por mulheres brancas continua a liderar a participação no ensino superior brasileiro, mas foram as jovens negras o grupo que mais tirou proveito da expansão do ensino superior, especialmente entre as mais pobres, como no caso de Karen. A expansão da escolaridade e o trabalho assalariado individual são elementos constitutivos da individualização, mesmo nas classes populares (Jelin, 2004Jelin, Elizabeth. (2004). Pan y afectos: la transformacipon de las famílias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.).

Enquanto Raimunda, de uma geração mais velha e com pouca escolaridade, teve condições limitadas de decidir sobre os cinco filhos que teve (“eu não tive tempo de pensar, de, de desejar alguma coisa, entendeu? Foi acontecendo!”), Karen, de uma geração jovem e mais escolarizada, falou de sua decisão sobre o momento de ser mãe: “Eu tinha 22 anos, já tinha 5 anos de relacionamento com ele [o primeiro marido] e nunca tinha engravidado. Aí eu sentei com ele e disse ‘chegou o momento de ser mãe, eu quero ser mãe, eu quero ampliar minha família’”. Até o momento da pesquisa, ela mantinha a decisão de ter filho único:

Até teria vontade [de ter mais filho], mas a situação financeira não tem como ter mais filhos. Não tem, eu não vejo. Eu penso, eu até penso se um dia a situação financeira melhorar e eu puder ter outro filho, pra meu filho não se sentir só; eu penso, eu penso na minha velhice como vai ser difícil pra meu filho (...) sozinho; como vai ser difícil pra ele segurar a barra de cuidar da mãe só. Porque, você tendo um irmão, você pode dividir a tarefa, o outro leva no médico o outro trabalha. E ele sozinho? Por outro lado, é muito complicado, o papel de ser pai e mãe é muito complicado, porque eu sou o pai e a mãe de um homem... então, eu acho, que talvez eu não tenha o domínio de ter outra criança hoje, em ter a cabeça de criar, de me dedicar total aos dois, porque minha vida é muito corrida.

Nessa narrativa, Karen reflete e pondera seus interesses e necessidades pessoais, de um lado, e, de outro, os receios com as responsabilidades que seu filho possa vir a enfrentar no futuro, especialmente diante de sua velhice. Nesse cômputo, ainda prevalece a decisão de preservar sua qualidade de vida e de sua família, na fase atual. Essa decisão se contrapõe à interpretação que relaciona o controle da sexualidade e da reprodução a valores das classes médias e altas e coloca em dúvida o planejamento reprodutivo entre as camadas populares. Em seus estudos nos anos 1980, Luiz Fernando Dias Duarte (1984Duarte, Luiz Fernando Dias. (1984). Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade em classes trabalhadoras urbanas. In: Anais do Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 4. Campinas: Abep.) já chamava a atenção para o modo como as pesquisas no Brasil hierarquizam a sexualidade e a reprodução através de um recorte de classe que resultava em dicotomias como dominantes/dominados, modernos/arcaicos.

A história de Karen exprime o que François de Singly (2000Singly, François de. (2000). O nascimento do “indivíduo individualizado” e seus efeitos na vida conjugal e familiar. In: Peixoto, Clarice Ehlers et al. (orgs.). Família e individualização. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 13-20.) toma como um exemplo de afirmação do “eu individualizado” e que produz mudanças nas relações conjugais e familiares. Karen representa uma variação do modelo tradicional de mulher dona de casa, isto é, quando a mulher se realizava “de uma forma mediada, através do sucesso do marido e dos filhos, para o qual ela contribui na sombra” (Singly, 2000Singly, François de. (2000). O nascimento do “indivíduo individualizado” e seus efeitos na vida conjugal e familiar. In: Peixoto, Clarice Ehlers et al. (orgs.). Família e individualização. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 13-20.: 16). Ainda conforme Singly (2000Singly, François de. (2000). O nascimento do “indivíduo individualizado” e seus efeitos na vida conjugal e familiar. In: Peixoto, Clarice Ehlers et al. (orgs.). Família e individualização. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 13-20.: 16), “a mulher quer poder conciliar, ao mesmo tempo, a atenção aos outros, ao companheiro e aos filhos, e o cuidado de si, sua vida conjugal, parental e pessoal”. Nessa construção de seu eu individualizado, Karen decidiu o momento de ser mãe, decidiu o fim da união com o primeiro marido e o engajamento em uma nova união com seu atual companheiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, olhamos para as narrativas de duas mulheres negras e pobres, vivendo nas periferias de Salvador, na Bahia, pertencentes a grupos de idade distintos. A construção dessas duas trajetórias teve como finalidade contribuir analiticamente para preencher a lacuna de estudos com mulheres em situação de pobreza que as considerem como agentes reflexivas, condição essa envolvida no processo de “construção do eu”, logo, da individualização. Quando enfatizamos as dimensões da sexualidade, conjugalidade, escolaridade e trabalho assalariado como aspectos a partir dos quais podemos apreender processos de individualização, pretendemos evitar as tradições de estudos que, conforme Couto (2005Couto, Márcia Thereza. (2005). Estudos de famílias populares urbanas e a articulação com gênero. Revista ANTHROPOLÓGICAS, XVI/1, p. 197-216.), estabelecem um tipo de encruzilhada teórica para os estudos sobre famílias no Brasil, baseada no binômio abordagens econômico-produtivistas para famílias pobres e abordagens subjetivistas para famílias de camadas médias.

As trajetórias de Raimunda e de Karen exibem caminhos traçados entre imposições e escolhas. Elas expressam destinos compartilhados por mulheres negras e pobres no Brasil, mas também as estratégias acionadas, no planejamento ou na improvisação, por essas mulheres. A relação entre estruturas de oportunidades e escolhas, ainda que seja um tema relevante, tem sido pouco recorrente nos estudos com mulheres negras, como constata Collins (2016Collins, Patricia Hill. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, XXXI/1, p. 99-127. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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). Em concordância com essa autora, entendemos que estudos que exploram a dimensão cultural das trajetórias das mulheres negras colaboram para desvendar as tramas entre opressões, consciência e ativismos dos sujeitos (Collins, 2016Collins, Patricia Hill. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, XXXI/1, p. 99-127. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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).

Na tese de Sarti (2011Sarti, Cynthia. (2011). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 7. ed. São Paulo: Cortez.), o indivíduo emerge nas famílias pobres em uma relação de dependência, e não de individualização, isto é, os projetos coletivos se sobrepõem aos individuais. Pesquisas mais recentes, como a de McCallum e Bustamante (2012McCallum, Cecelia & Bustamante, Vania. (2012). Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia. Etnográfica, XVI/2, p. 221-246. Disponível em <Disponível em http://dx.doi.org/10.4000/etnografica.1476 >. Acesso em 21 jul. 2023.
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), argumentam que a individuação é representada na constituição de uma nova casa, processo fundamental na autonomia das famílias pobres que, por sua vez, é constituído entre tensões com os parentes - o que revela uma relação de tensão entre os projetos coletivo e individuais. Todavia, para as participantes desta pesquisa, os projetos coletivos e individuais se entrelaçam. Por exemplo, Karen, que, em determinado momento, abandonou o trabalho para cuidar do filho, argumenta que, apesar das vantagens em poder cuidar integralmente do seu filho, principalmente na primeira infância em que a criança demanda mais atenção, há perdas relevantes na dimensão individual. Como ela mesma narrou: “Quando a gente casa, a gente acaba sendo esposa e mãe, mãe do filho, mãe do marido (...). Eu perdi muita coisa, deixei muita coisa pra trás para me dedicar à família, pra me dedicar a meu filho. Por um lado, eu me arrependo, por outro não”. Esse lado associado ao arrependimento é revelador de sua valorização da individualidade.

A experiência dessas mulheres é reveladora de como a individualização se expressa concomitantemente aos projetos coletivos familiares, bem como em meio aos contextos de desigualdades e proteção social que vivenciam. Os aspectos mais abrangentes da individualização podem ser mais ou menos favoráveis para a atuação agêntica dessas mulheres, sendo a cobertura das políticas sociais um mecanismo importante para a constituição desse cenário. Exemplo positivo disso foi o que aconteceu com Karen, que foi beneficiada por um contexto de expansão do ensino superior no Brasil. Por outro lado, Raimunda, que trabalhou boa parte da sua vida no serviço doméstico remunerado, não acessou os benefícios da proteção trabalhista, visto que esse direito só foi conquistado em 2013. Essas questões alertam para a necessidade de políticas sociais que sirvam como impulso para os processos de individualização, especialmente de mulheres.

As experiências de Karen e de Raimunda, para além da dimensão de classe, são, ainda, racializadas e generificadas. Suas oportunidades escolares, a participação precária no trabalho como ambulantes, certas experiências de dominação masculina na forma de violências e opressões, como estupro e traições, são reveladoras das constrições sociais com as quais elas lidaram. Considerando as ambiguidades sociológicas da individualização, o peso dessas constrições coexiste nessas trajetórias com um trabalho intersubjetivo de “construção do eu”. E é por essa faceta que essas trajetórias tratam também de destradicionalizações que ficam mais evidentes, para ambas as informantes, no campo da reprodução, em conexão com a conjugalidade. Na trajetória de Raimunda, essa conexão é percebida quando ela chamou para si o poder de decisão sobre sua esterilização, mesmo na presença do marido. Para Karen, o nexo se construiu de duas formas: em seu protagonismo na decisão sobre quando e quantos filhos ter e na decisão de se separar do primeiro companheiro, mesmo com um filho pequeno. Ainda para Karen, somam-se também ganhos relativos à escolaridade, ainda que esses ganhos, dada a estrutura racista das dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro, não sejam convertidos em ascensão em termos de emprego. Mesmo quanto ao trabalho pago, terreno tão desfavorável a essas duas mulheres, elas não o vivenciam exclusivamente como opressão e exploração, mas também como meio de autonomia econômica frente aos homens, na medida em que assim elas dispõem de sua própria renda. Logo, temas como sexualidade, trabalho e relações amorosas parecem aproximar essas trajetórias de experiências outrora atribuídas especificamente a mulheres de camadas médias. Podemos estar diante do que Beck e Beck-Gernsheim (2003Beck, Ulrich & Beck-Gernsheim, Elisabeth. (2003). La individualización: el individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós Ibérica.) chamam de “espiral individualizatória”, o que parece atingir também as trajetórias das mulheres das camadas mais populares no Brasil, expressa pelo engajamento agêntico que revela processos de individualização em trajetórias e estratégias, ainda que em sobreposição e tensão com desigualdades estruturais e culturais que conformam a experiência de mulheres negras e pobres nas periferias urbanas deste país.

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    » https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n3p164
  • 1
    Para nossos objetivos neste artigo, dispensamos as diferenciações conceituais e teóricas entre “individualização” e “individuação”.
  • 2
    Ver, por exemplo, Bessas (2021Bessas, Alex. (2021, 6 de dezembro). Mulheres têm a iniciativa do divórcio em cerca de 70% dos casos. O Tempo. Disponível em <Disponível em https://www.otempo.com.br/interessa/mulheres-tem-a-iniciativa-do-divorcio-em-cerca-de-70-dos-casos-1.2579354 >. Acesso em 21 jul. 2023.
    https://www.otempo.com.br/interessa/mulh...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2021
  • Revisado
    29 Ago 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
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