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Memórias que urgem nossa (re)existência: Eu sou macuxi e outras histórias de Julie Dorrico

Memories that urge our (r)existence: Eu sou macuxi e outras histórias, by Julie Dorrico

Memorias que urgen nuestra (r)existencia: Eu sou macuxi e outras histórias de Julie Dorrico

Resumo

Este ensaio examina o livro Eu sou macuxi e outras histórias de Julie Dorrico como uma auto-história de sobrevivência inserida nos atuais estudos literários dos povos originários que crescem a partir dos anos 1980 e 1990, propiciados pela resistência indígena que confronta o poder do Estado brasileiro, mais assiduamente desde os anos 1970. A ficção de Dorrico é também considerada no âmbito tanto da produção da forte tradição intelectual e filosófica indígena atual, progressivamente mais visível, presente e empoderada, como também de seus próprios artigos como pesquisadora e doutora em teoria literária. O ensaio mostra que a narrativa poética de seu livro toca em questões político-culturais ligadas aos campos de produção cultural e literário brasileiros, bem como demonstra afinidade com metodologias teóricas das pesquisas indígenas no território americano como um todo. Mostra que o trabalho intelectual de Dorrico é indissociável da prática de resistência política e, portanto, cultural e socialmente vital para todos os povos originários americanos.

Palavras-chave:
macuxi; literatura indígena; intelectualidade indígena; política cultural indígena

Abstract

This essay examines the book Eu sou macuxi e outras histórias by Julie Dorrico as self-history of survival inserted into current literary studies of indigenous peoples which grew between the 1980s and 1990s, allowed by the indigenous resistance that confronted the power of the Brazilian State, more assiduously since the 1970s. Dorrico's fiction is also considered within the scope of both the production of strong current indigenous intellectual and philosophical traditions, progressively more visible, present, and empowered, as well as her own articles as a researcher and Ph.D. in literary theory. The essay shows that the poetic narrative of her book touches on political-cultural issues linked to the fields of Brazilian cultural and literary production, as well as demonstrates affinity with theoretical methodologies of indigenous research in the American territory as a whole. It shows that Dorrico's intellectual work is inseparable from the practice of political resistance and, therefore, culturally and socially vital for all American native peoples.

Keywords:
Macuxi; indigenous literature; indigenous intelligentsia; indigenous cultural politics

Resumen

Este ensayo examina el libro Eu sou macuxi e outras histórias de Julie Dorrico como auto-historia de sobrevivencia insertado en los estudios literarios actuales de indígenas que crecen a partir de las décadas de 1980 y 1990, propiciadas por la resistencia indígena que enfrenta el poder del Estado brasileño, más asiduamente desde la década de 1970. La ficción de Dorrico también se considera dentro del alcance tanto de la producción de fuertes tradiciones intelectuales y filosóficas indígenas actuales, cada vez más visibles, prΔesentes y empoderadas, como de sus propios artículos como investigadora y doctora en teoría literaria. El ensayo muestra que la narrativa poética de su libro toca cuestiones político-culturales vinculadas a los campos de la producción cultural y literaria brasileña, además de demostrar afinidad con metodologías teóricas de investigación indígena en el conjunto del territorio americano. Muestra que la obra intelectual de Dorrico es inseparable de la práctica de la resistencia política y, por tanto, cultural y socialmente vital para todos los pueblos originarios americanos.

Palabras clave:
Macuxi; literatura indígena; intelectualidad indígena; política cultural indígena

“Mulheres! … A criação é o nosso poder: Escreva, dance, componha, plante, ame, ore, estude, pinte, cozinhe, capine, palestre, espiritualize-se, defenda a Terra, cuide-se, cuide dos animais, crianças, velhos e velhas, acaricie o mundo, beije as cicatrizes do mundo, cultive relações, cultive os amigos, cultive a família, enfim, seja…” (Eliane Potiguara).

Este é um ensaio sobre uma jovem mulher e sua obra, ambas extraordinárias. Inspirado pela reflexão “O caminho de volta”, que introduz o livro de Julie Dorrico, Eu sou macuxi e outras histórias1 1 Doravante, Eu sou macuxi. , o título do ensaio ressalta conceitos essenciais da filosofia de Daniel Munduruku, bem como da escrita de sua auto-história2 2 O termo “auto-história” é de Graça Graúna (2013, p. 54). ao encontro de seu povo. Os conceitos de memória, ancestralidade e origem são como a nossa avó que nos legou sobre uma nova paisagem sua herança material e imaterial. “[F]rutos da memória” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 9), em impulso de redemoinho em seu redor, ativamos nosso conhecimento quando nos esvaziamos para abrir possibilidades: “o caminho de esvaziar-se para ser preenchida pela memória e pelo pertencimento” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 10). E a “roda da existência” impelida pela ancestralidade, sendo ao mesmo tempo origem, não deixa que nos alojemos confortáveis “num canto quadrado do pensamento cartesiano” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 9-10). Daí a ocupação dinâmica da existência, que “provoca a sermos” de resistência e (re)existência que o título propõe (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 9).

CAMINHOS DE IDA

Os que ficam sabem que vão junto, no sangue do parente, na pele, na consciência, no cotidiano da história e da memória do parente… (Graúna, 2013GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições.).

Julie Stefane Dorrico Peres é macuxi, pesquisadora na área da literatura indígena contemporânea, doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e articulista na página ECOA, plataforma da UOL, cujo conteúdo “por um mundo melhor” se inspira no programa de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU). Ao lado das também indígenas Moara Tupinambá e Paolla Vilela (Puri), Dorrico é administradora do coletivo @leiamulheresindígenas no Instagram, que com a parceria do SESC Ipiranga se materializou nos dez episódios da WebSérie “Leia Autoras Indígenas”, transmitida pelo YouTube entre setembro e novembro de 2021. A perspectiva dessa série, como observa Dorrico, segue o preceito de Daniel Munduruku, segundo o qual a literatura indígena não se resume ao livro impresso, mas engloba todo o conhecimento e memória ancestral expressos na oralidade e cultura material dos povos originários. Dorrico organizou a primeira Mostra de Literatura Indígena no Museu do Índio (Universidade Federal de Uberlândia — UFU). É poeta e conquistou o primeiro lugar no concurso Tamoios/Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil — FNLIJ/UKA de Novos Escritores Indígenas em 2019.

Dorrico nasceu em Guajará-Mirim, Rondônia, filha de mãe macuxi da Guiana Inglesa e pai Quéchua, migrante garimpeiro, do Peru. Viveu parte de sua infância em família no distrito Abunã de Porto Velho, Rondônia, tendo sido alfabetizada pelo pai desde muito cedo. Ainda menina, mudou-se para o distrito de Bonfim em Roraima para morar com a bisavó macuxi (Giácomo, 2020). Na série “Minha História”, no YouTube, parte do projeto Ação Cultural da Biblioteca Mário de Andrade, Dorrico relata que desde os sete anos de idade se interessava por leituras variadas do cotidiano, de histórias em quadrinhos da Turma da Mônica de Maurício de Souza aos livros de bolso da Editora Nova Cultural, Coleção Sabrina, romances de banca de jornal, populares nos anos 1980. Na escola, ressalta que uma de suas memórias literárias marcantes, mas triste, foi a leitura de O guarani (1857) de José de Alencar. Sobre sua etnia, nesse mesmo vídeo, Dorrico relata que, sem a consciência de identidade no âmbito familiar e políticas de inclusão em sua carreira escolar, seu crescimento foi pontuado por referências depreciativas sobre seu indigenismo. No período do doutorado, entre sua pesquisa sobre a produção literária nativa e interações constrangedoras com alguns colegas e principalmente quando começou a frequentar palestras e conhecer Daniel Munduruku, Kaká Werá Jecupé e Eliane Potiguara em 2017, havia chegado o momento de se descobrir indígena. Sua mãe lhe confirmara que seu pai, avô de Dorrico, falava macuxi, crescera numa comunidade macuxi, ainda que àquela altura vivesse na cidade. Assim foi que entendeu sua “referência de povo”, segundo suas palavras. Em minha entrevista recente com a autora, ela esclareceu essa questão:

O que me levou a compreender-me indígena e macuxi foi um sentimento de pertencimento e cumplicidade com uma história, memórias e cultura antiga que já vivia em mim. O corpo e o modo de vida creio foram sutilezas que nunca me deixaram esquecer quem eu era, ainda que não compreendesse a identidade indígena… Nasci em 04/08/1990. Mas mensuro meu tempo de existência pelo tempo de existência do meu povo, ou seja, com mais de séculos (Dorrico).

Dorrico tem sido uma escritora prolífica e uma ativista digital que publica sua pesquisa, ensaios e organiza volumes em parcerias acadêmicas e jornalísticas desde 2012, na área da agência política indígena, especialmente nos campos da literatura e da teoria literária. Um texto paradigmático quanto à sua perspectiva teórica nos estudos da literatura dos povos originários, também fundante de sua ficção, é possivelmente aquele intitulado “Alteridade Indígena: Voz-Práxis Via Literatura em A Queda do Céu: Palavras de Um Xamã Yanomami”. Nesse artigo, Dorrico (2017)DORRICO, J. (2017). Alteridade Indígena: Voz-Práxis Via Literatura em A Queda do Céu: Palavras de Um Xamã Yanomami. Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 59-72. https://doi.org/10.36592/opiniaofilosofica.v8i1.730
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enfatiza a politização do “outro” (constituído à sombra do “homem universal” proposto pelo pensamento europeu colonialista), o que ela demonstra com a filosofia nativa que Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015)KOPENAWA, D.; ALBERT, B. (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras. constroem no relato A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, leitura imprescindível no século XXI.

Completou seu doutorado no primeiro semestre de 2021 com a tese intitulada A literatura indígena contemporânea no Brasil: a autoria individual e a poética do eu-nós. Menciona no resumo da tese que seu trabalho se embasa nos conceitos da obra de proeminentes pensadores indígenas3 3 Em entrevista por email, Dorrico informou que sua tese está indisponível no momento pois a autora prepara sua publicação em livro. . O “eu-nós” do título de sua tese se refere ao que Dorrico destaca também em seu artigo já mencionado: tanto a narrativa, como a subjetividade indígena que transparece nos diversos tipos de escrita, são indissociáveis da visão de si como parte do todo que é seu povo. Isso resulta numa conjunção não consciente entre o agente político da “voz-práxis” e o coletivo que é o alvo da práxis na autoetnografia de Kopenawa da qual trata: “a união do singular e do plural, mas é também o reconhecimento de ambas” (Dorrico, 2017DORRICO, J. (2017). Alteridade Indígena: Voz-Práxis Via Literatura em A Queda do Céu: Palavras de Um Xamã Yanomami. Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 59-72. https://doi.org/10.36592/opiniaofilosofica.v8i1.730
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, p. 68).

VEREDAS

Caminhos, paradas e surgimentos: são esses alguns dos marcos fundamentais das poéticas ameríndias. Responsável por produzir seus contornos conceituais, estéticos e rituais, a tríade é ainda mal compreendida para além dos círculos antropológicos. Não que se trata propriamente de uma novidade: ao longo de sua obra, Claude Lévi-Strauss já havia apontado para sua centralidade no pensamento narrativo indígena, ao associar a presença dos deslocamentos e viagens à relação entre contínuo e discreto (Pedro Cesarino).

A autobiografia indígena, na qual nativos narram sua história a um não nativo que a escreve, muitas vezes intermediados por um intérprete, dispõe de uma antiga tradição na América do Norte desde o século XVIII. No início do século XX, antropólogos na área da Cultura e Psicologia, também chamada Antropologia Psicológica, passaram a praticar o método “história de vida” como uma forma de acessar os valores e os tipos de personalidades contidos numa comunidade. Dois nomes importantes dessa escola antropológica, que perscruta a relação entre personalidade e cultura, são Ruth Benedict (1887–1948) e Margaret Mead (1901–1978). Parte dessa geração, Paul Radin (1883–1959) foi um dos pioneiros na coleta da narração e publicação da assim chamada autobiografia nativa. Este antropólogo viveu entre os Winnebago, povo da família linguística Siouan, que habitava a região das grandes planícies entre as montanhas rochosas e o rio Mississippi nos Estados Unidos. Depois de muitas tentativas, conseguiu entrevistar o filho mais novo da família Blow Snake. Em 1926 publicou Crashing Thunder: The Autobiography of an American Indian, um marco na vertente antropológica história de vida, como ressalta o eminente antropólogo Edward Sapir (1927), em sua resenha de 1927, onde já se nota uma certa censura: “O mérito peculiar deste livro […] é que ele permite que o índio americano fale por si mesmo. O comentário que o Dr. Radin tem a fazer limita-se a uma introdução que pouco acrescenta à narrativa e talvez fosse melhor omitir” (Sapir, 1927, p. 303).

Em For Those Who Come After, décadas depois da publicação daquela autobiografia e já num ambiente acadêmico em que as leituras “politicamente corretas” revisavam a história dos vencedores em todos os seus ângulos, o especialista em literatura indígena Arnold Krupat, ao comentar a indiferença dos estudos literários quanto a autobiografias como a de Radin, ressalta que, embora elas tenham sido publicadas como documentos etnográficos, nada mais eram do que livros escritos por “brancos”, ou seja, não poderiam ser consideradas autobiografias indígenas (Krupat, 1985KRUPAT, A. (1985). For Those Who Come After: A Study of Native American Autobiography. Berkeley: California University Press. Disponível em: http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft987009fp/. Acesso em: 10 jan. 2023.
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, p. 28). Sobre Crashing Thunder de Radin, especificamente, Krupat é implacável. Entre outras questões, Krupat enfoca a parte em que o protagonista da autobiografia é descrito como um verdadeiro bon vivant hipersexualizado, citando passagens da introdução de Radin:

Em 1926, o índio “real” e “representativo” do cientista tornou-se alguém cujas “aventuras e tribulações… pareciam trazer todas as marcas do progresso de um verdadeiro libertino” (CT, p. x). Se Radin em “Crashing Thunder” teve sucesso em seu projeto científico de nos dar um índio real, ele certamente não pode ter nos dado um índio representativo— a menos que o Winnebago típico deva ser visto como um “libertino”. Mas [na verdade] é apenas a “influência externa” de Radin que nos encoraja nessa visão de “Crashing Thunder” (Krupat, 1985KRUPAT, A. (1985). For Those Who Come After: A Study of Native American Autobiography. Berkeley: California University Press. Disponível em: http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft987009fp/. Acesso em: 10 jan. 2023.
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, p. 92)4 4 Todas as traduções de textos não disponíveis em português são de minha responsabilidade. .

A crítica mordaz é legítima, pois a “autobiografia” continuava a objetificar e julgar a cultura nativa segundo valores ocidentais; continuava a projetar preconceito e sensacionalismo no modo de vida de outros grupos étnicos, como fez o Romantismo literário, por exemplo. Há também no Brasil paralelos quanto a releituras como esta — ressaltem-se as críticas sobre a escola indianista do século XIX e a antropologia social de Gilberto Freyre5 5 Sobre o “indianismo”, ver a observação de Graça Graúna (2013, p. 21) sobre como difere de “indigenismo” na asserção de Carlos Paladines em 1988: “lo indígena deja de ser tema de antropólogos, etnólogos, de algunos cientistas sociales o de pintores, novelistas y escultores (‘indigenismo’) para passar a ser assumido por los mismos indígenas (‘indianismo’)”. Dorrico também elabora essa discussão baseada no trabalho de Francisco Javier Romero (Dorrico, 2018). — contra imposições de critérios eurocêntricos. Em sua resenha sobre a segunda antologia de autobiografias organizada por Krupat, publicada em 1994, Susan B. Brill reitera esse movimento crítico: “essas ‘autobiografias’ servem como sinais que refletem as forças fundamentais que por quinhentos anos vêm corroendo e alterando as línguas, culturas, tradições, terras, histórias e vidas da América indígena (Brill, 1996BRILL, S. B. (1996). Native American Autobiography: An Anthology. Biography, v. 19, n. 3, p. 308-312. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/23539769. Acesso em: 30 jun. 2023.
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, p. 309).

Em seu estudo Autobiografia e sujeito histórico indígena, o antropólogo Oscar Calavia Sáez (2006)SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195. recorda a onda da antropologia cultural e sua produção de autobiografias indígenas e observa que, depois desse boom, o interesse pelo gênero diminuiu6 6 Para uma discussão detalhada sobre a transformação da antropologia quanto ao gênero história de vida, ver o texto de Juliana Salles (2021). . Volta nos anos 2000 com a voga dos Estudos Culturais (Sáez, 2006SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195., p. 181) e certamente com o interesse político dos indígenas em contar suas próprias histórias, dada a sua longa e mortífera luta com o Estado brasileiro por delimitação e homologação de seus territórios reais e simbólicos. Sáez (2006)SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195. recorda nota, contudo, que as narrativas autobiográficas solicitadas aos indígenas, então, têm como modelo a literatura ocidental confessional, que não faz parte das tradições orais/memoriais indígenas, muito menos a noção ocidental de subjetividade individual. Mediante o problema da autoria, autenticidade e precisão etnográfica e ética, Sáez (2006)SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195. compreende que não é possível simplesmente transcrever o que se ouve quando se trata das narrativas nativas materializadas em livro: “A escrita de autobiografias indígenas não equivale à recitação de uma lição aprendida, mas a uma tradução” (Sáez, 2006SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195., p. 184).

Mas a tendência “autobiografia e etnopolítica”, mencionada por Sáez (2006SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195., p. 190), é de fato uma verdadeira virada de conscientização nativa que começa a se organizar dos anos 1970 em diante. Rigoberta Menchú, do grupo K'iche da etnia Maya na Guatemala, protestou quanto ao massacre de seu povo nos anos 1980. Me llamo Rigoberta Manchú, i así mi nasció la consciência, escrito com a antropóloga Elizabeth Burgos-Debray, foi um marco no gênero e trouxe visibilidade global para a precariedade da condição indígena na América Latina, não importa que posteriormente detalhes de seu relato tenham sido questionados.

Algo a se ressaltar veementemente sobre essas autobiografias, se comparadas ao mesmo gênero na América do Norte, segundo Sáez (2006)SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195., é que as norte-americanas demonstram a civilização eficaz da educação nos moldes civilizados da escrita do nativo, que “vira branco”. Entre os latino-americanos o processo vai na contramão: são “autobiografias que tratam de virar índio” (Sáez, 2006SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195., p. 192, grifo do original). Isso é o que James Clifford (2013CLIFFORD, J. (2013). Returns: Becoming Indigenous in the Twenty-First Century. Cambridge: Harvard University Press, 2013., p. 15-16) aponta em Returns, título muito apropriado neste contexto, no qual o autor compara a reemergência indígena com o movimento Negritude dos anos 1950 e sugere o termo “Indigenitude”. Os movimentos indígenas são uma reação contra séculos de extermínio que culminam com os planos de austeridade neoliberais atingindo populações desprovidas de condições básicas de existência. Não se estranha que esses protestos também sejam incitados pelas ideias pós-modernas sobre o fim de narrativas exclusivas sobre a modernidade, o progresso e a individualidade ocidentais. Diante do capitalismo global, porém, antes que se suspeite da capacidade de alternativas dentro do sistema que a tudo parece cooptar e reverter em transações financeiro-mercantis, Clifford (2013CLIFFORD, J. (2013). Returns: Becoming Indigenous in the Twenty-First Century. Cambridge: Harvard University Press, 2013., p. 30) alerta para possibilidades radicais de “articulações contingentes ou tendências contraditórias” bem como para as diferenças e “contracorrentes” criadas pelo próprio sistema que aparenta ser um monolito.

Nessas brechas se movimentam as lideranças indígenas e afrodescendentes. Sobre a escrita indígena no Brasil, Graça Graúna (2013)GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições. se opõe àqueles que afirmam que a questão da supressão da voz e do lugar indígenas na sociedade já esteja superada se comparada ao que foi no passado colonial. Observa que em pleno século XXI, no Brasil, a literatura nativa é repudiada, “da mesma forma como a situação dos seus escritores e escritoras continua sendo desrespeitada. A situação não é diferente em relação aos escritores negros e afrodescendentes. Essa questão ainda não se livrou do prisma etnocentrista” (Graúna, 2013GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições., p. 20) e privilegia o ponto de vista eurocêntrico, como se sabe. Em Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, Graúna (2013)GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições. compila os casos de sub-representação do nativo na história e na literatura brasileiras, bem como destaca sua resistência. Graúna (2013)GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições. conecta a literatura ameríndia à auto-história, na qual os autores buscam “testemunhar a sua vivência e transmitir de memória as histórias contadas pelos mais velhos” (Graúna, 2013GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições., p. 23). Visam também a vislumbrar uma vivência alternativa e viabilizar sua existência. Fundamental para possibilidades outras, a literatura mostra-se como um veículo privilegiado de “formação de novas formas de identidade ligadas ao re-contar o passado através da memória e à afirmação da diferença” (Graúna, 2013GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições., p. 56).

A auto-história de sobrevivência e resistência de Dorrico constitui-se como um marco extraordinário, portanto. Em sua tese e em sua biografia ela reconhece o impacto teórico da cosmovisão dos parentes Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Edson Kayapó, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Kaká Werá, Jaider Esbell, Márcia Wayna Kambeba, entre outros. E ela faz parte dessa intelectualidade nativa, que cresce e se consolida, inspiradora e politicamente eficaz.

Em seu livro Eu sou macuxi, está inegavelmente implícita a ideia de sua história como parte da história de uma comunidade — que aliás não se resume ao ser macuxi. Mas, ao relativizar essa história diante de outras, para além do método antropológico “autoetnonográfico” (Kopenawa e Albert, 2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras., p. 43)7 7 Assim Bruce Albert se refere ao relato de Davi Kopenawa. , também confere à sua narrativa uma dimensão poético-ficcional além da auto-história. Nesse sentido, o livro de Dorrico, ao fazer o “caminho de volta”, como descreve Munduruku no prefácio, ou seja, ao se inserir no processo de “virar índia”, como acima mencionado por Sáez (2006)SÁEZ, O. C. (2006). Autobiografia e sujeito histórico indígena. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 76, p. 79-195., demonstra autonomia narrativa. A escrita de Dorrico é política, portanto, e se refere à dominação sobre os povos originários. Ao lado de outras, as literaturas e a pesquisas nativas tomam seu lugar de fala:

Os povos indígenas aprenderam a dominar as ferramentas do “branco” para poder nela expressar suas reivindicações, alteridade, identidade, estéticas, epistemologias e saberes específicos inerentes a eles. Com a escrita e, cada vez mais, a utilização de mídias, lideranças e intelectuais indígenas falam, escrevem e se manifestam em favor da defesa dos variados povos existentes no Brasil. A literatura tornou-se, desse modo, uma voz-práxis para que suas vozes sejam escutadas, para que de alguma forma eles possam ter acesso aos direitos que lhe foram tirados (Dorrico, 2017DORRICO, J. (2017). Alteridade Indígena: Voz-Práxis Via Literatura em A Queda do Céu: Palavras de Um Xamã Yanomami. Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 59-72. https://doi.org/10.36592/opiniaofilosofica.v8i1.730
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, p. 66).

CAMINHOS DE VOLTA

Muitas vezes vi que era diferente aos olhos dos “outros” e tive que mudar e modelar muito a minha postura, minha maneira de ser, porque agia com certa ingenuidade diante deles e das coisas que ouvia… (Darlene Taukane).

Bela e poeticamente escrita, a narrativa Eu sou macuxi é dividida em dez histórias e apresenta um glossário no final. Esta análise destaca, primeiramente, a reivindicação de Makunaima como macuxi — o criador macuxi intitula três partes significativas da narrativa e, ademais, é citado em quase todas as histórias. Em seguida, sendo Dorrico, além de poeta, pesquisadora, aponto as coincidências (que não são meras coincidências) que ela compartilha por meio de seu texto com paradigmas de pesquisa ameríndia nas Américas.

A primeira história, intitulada “Eu sou macuxi filha de Makunaima” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 15-22), testa nossas referências teóricas sobre o que seja decolonialidade se baseadas no movimento modernista paulistano de 1922. Tal abertura da narrativa poderia sugerir que a narradora fosse promover uma inclusão feminista à prole do herói sem nenhum caráter. Mas não. Claro que está trazendo Makunaima8 8 Makunaima, Makunaíma, Macunaíma, Macunaimã são as diferentes grafias que Dorrico lista em seu glossário (Dorrico, 2019, p. 106). Em seu texto A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea (Dorrico, 2022), a autora nos informa que há mais grafias para o nome do criador macuxi: Makunaimî e Makunaimã, sendo este último o preferido por causa do final “mã”: “Porque Makunaimã é como Roraimã, grande. O que termina com ‘mã’ é grande, Makunaimã” (Taurepang et al., 2019, p. 26). de volta para os macuxi, povo habitante do Território Indígena Raposa Serra do Sol9 9 O reconhecimento do território macuxi passou por um longo processo desde 1993, com a identificação por parte da então Fundação Nacional do Índio (FUNAI) — hoje denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas —, à delimitação do território pelo governo Fernando Henrique Cardoso e, finalmente, à homologação em 2005 no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Este é um dos maiores territórios indígenas e se localiza em torno do Monte Roraima (Santilli, 2004). .

Nessa parte, a narradora se declara “filha de Makunaima que criou minha avó” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 17). Aquele tom de brincadeira inconsequente de Mario de Andrade para configurar o atrevimento do seu Macunaíma, na narrativa de Dorrico, tem outro sentido. Enquanto maneja a linguagem poética com imagens e conceitos surpreendentes, como conto que canta a oralidade e temporalidade ameríndias, também ironiza as circunstâncias de sua aparição, a da avó e a de sua mãe: esta falaria inglês para ter a vida “mais fácil”— o inglês domina o mundo; a avó fala uma outra língua, nem a da filha, nem a da neta — o macuxi de Makunaima. Para a narradora sobra o português, que ela na verdade “não quis não” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 21). Desse modo alude tanto à sua situação colonizada, como à da mãe. E decide criar a própria língua — “inglexi e o macuxês”—ao mesmo tempo anunciando que vai ler, reler e reescrever o mundo ao seu redor. Porque também se declara descendente de Insikiran, um dos filhos de Makunaima, que dá nome ao Núcleo Insikiran de Ensino Superior Indígena na Universidade Federal de Roraima, é pertinente supor que se refere a si própria como uma das descendentes de Makunaima formadas na academia (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 21-25).

Em “Damurida”, nome do caldo típico macuxi, de peixe, pimentas murupi, olho de peixe e tucupi, feito em uma panela de barro que deve ser confeccionada por indígenas10 10 Lídia Raposo, residente de Boa Vista, Roraima, pertencente ao povo macuxi, é uma artesã que fabrica utensílios de barro e principalmente a panela onde deve ser feita a Damurida, pelas mãos de indígenas. Neste vídeo ela fala sobre a receita e o processo envolvidos na preparação do prato: https://www.youtube.com/watch?v=Zb3z9gv41JY. , a narradora remete aos sabores e cores da infância. Após se apresentar na história anterior, refere-se à cosmogonia macuxi enquanto anuncia sua lealdade amorosa e política à sua ancestral anciã, transmissora da sabedora indígena: “Quando Makunaima criou a vó,/ Ele colocou em seu coração a alma da pimenta […] ela viveu mais de cem anos./ Minha luta é honrar a luta da avó” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 27-28). Makunaima é apresentado como o criador do povo Macuxi e de seu território, Raposa Serra do Sol (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 33)11 11 Esta região abriga dois grandes grupos étnicos da língua karíb: os pemon e os kapon. Os macuxi pertencem aos pemons, tanto quanto os arekuna, tamarakoto e os taurepang (Andrello, 2004). , na história “Makunaima e os manos deuses” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 32-40). A narradora cita o fato de que todos os parentes (tabajara, krenak, tukano, guarani, entre outros) têm sua própria cosmogonia e, portanto, seus próprios criadores. A irmandade ou parentesco a que alude nesse título se deve ao fato de que tanto os Pemon (a quem os Macuxi pertencem) como os Kapon se consideram descendentes comuns dos irmãos criadores Makunaima e Enxikirang, filhos do sol, Wei (Santilli, 2004). Nos tempos antigos, Piatai Datai criou o mundo e os seres, Makunaima também criou o filho mais novo, o branco, como diz a narradora: ele “não gostou de ser amarelo. Desejou ser branco pra ser diferente … — Decidi que não sou ‘nós’” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 35). O branco é denominado “povo da mercadoria” e descrito como egoísta e insaciável: “nem achou bonita a paisagem, pensou logo em fazer da árvore uma mesa; do rio água mineral em garrafinha; e no monte pensou em fazer um parque de diversão, onde iria vender saúva como suvenir”— e todas essas invenções permeadas pelo “sangue indígena” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 36-38). Nesta história também menciona o filho de Omama, o “xamã vizinho Davi Kopenawa” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 37). Em seu livro A queda do céu, já mencionado, o xamã Yanomami explica a ganância do colonizador como uma incapacidade de sonhar e identifica seu ímpeto destrutivo ao desejar as “hastes” que sustentam o equilíbrio ambiental. Como explica a narradora, segundo Kopenawa e Albert (2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras., p. 37), estas “são preciosas aos olhos dos filhos dos povos originários porque sustentam o céu; para os não indígenas, porque elas brilham e delas podem ser feitas joias e comércios”.

Ademais, a narradora reitera que a colonização silenciou a tragédia que abateu aos indígenas: “Cartas, diários, ofícios, leis e livros contam essa história./ Estão nas linhas invisíveis,/ nas sombras das folhas,/ no silêncio dos parágrafos” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 38). Mais adiante, porém, a narradora declara: “não gostamos dessa lição”, referindo-se à implícita catequese e tentativa de eliminação, pois por outro lado, aprecia as lições dos ancestrais que transmitem o saber, como a avó, e a história dos deuses. Demonstrando a resiliência indígena, menciona os macuxi e seus manos que se levantam contra a contínua devastação do modo de vida nativo, citando os nomes de alguns ativistas entre todos aqueles que compõem a resistência:

Os xamãs já tinham profetizado que um dia ia surgir a Rádio Yandê. / A literatura indígena brasileira contemporânea de Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, Márcia Kambeba, Auritha Tabajara, Cristino Wapichana, Graça Graúna, Sylamy Katy, Tiago Hakiy, Yaguarê Yamã e muitos outros mais, / As artes plásticas de Denilson Baniwa, Jaider Esbell, Gustavo Caboco, Daiara Tukano, Yacunã Tuxá e muitos outros mais (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 40).

Em “Contos de minha avó” vemos a “mulher anciã, ancestral” cantando e contando histórias “na língua de Makunaima” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 47). Nesses Pantonkon12 12 Defensor das artes orais e dos povos da região do Monte Roraima, Fiorotti (2018, p. 102) apresenta os três tipos de oralidade entre os macuxi “panton (plural pantonkon), … o taren (plural tarenkon), palavras encantadas de cura; e o eren (plural erenkon), cantos indígenas”. Fiorotti (2018, p. 101) explica que panton é a palavra para história, como informou uma entrevistada local: “isso que você chama de mito, fábula, é a nossa história”. As histórias passadas pelos ancestrais são a história do povo macuxi. da avó, é narrada a criação da agricultura nativa, provinda do encantamento de um homem por uma sereia, sua vida sob as águas quando ela o seduziu e enfim sua fuga e volta “ao povo da terra, e é por isso que hoje sabemos cultivar, sabemos como são as estações para o plantio…” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 36-37). Como observam Fiorotti e Mandagará (2018)FIOROTTI, D. A.; MANDAGARÁ, P. (2018). Contemporaneidades ameríndias: diante da voz e da letra. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 53, p. 13-21. https://doi.org/10.1590/2316-4018531
https://doi.org/10.1590/2316-4018531...
, Panton é o termo para o conceito de história entre os macuxi, que não distinguem lendas de contos de folclore ou mito; mais interessante ainda, como informam, é que Panton muda com o tempo: “o presente se transforma, criam-se novos passados e novos espaços. Nada menos primitivo que este trabalho de reinvenção constante — estamos longe de ideias de autenticidade parada no tempo” (Fiorotti e Mandagará, 2018FIOROTTI, D. A. (2018). Teren, eren e panton: poetnicidade oral Macuxi. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 53, p. 101-127. https://doi.org/10.1590/2316-4018534
https://doi.org/10.1590/2316-4018534...
, p. 15).

Reafirmando essa vivência flexível, há a tradição da indistinta parentela indígena. Em “Não há fronteiras para o pertencimento”, a narradora afirma a ligação irrestrita com o ser indígena, com vários outros povos, pela “cor do urucum e do jenipapo em suas peles/ Sinto orgulho do pertencimento que sempre exala em seus cabelos!/ Em suas sombras toca o tambor: Eu sou! Eu sou! Eu sou!/ Indígena eu sou!” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 60). A memória—tanto a coletiva, como a que está nas visões e histórias ancestrais da avó, quanto a dos sabores, das cores e dos cheiros, através das quais a narradora se conecta com sua herança; a memória traça esse caminho de ser. O processo de pertença e volta da narradora é similar ao que se depreende do termo Sankofa (“volte e resgate”), palavra Twi do grupo étnico ganense Akan advinda do provérbio “Se wo were fi na wosankofa a yenky” (“Não é errado voltar para reaver o que você esqueceu ou deixou para trás”). O ensinamento é que olhemos para o passado enquanto avançamos ao futuro. Creio que essa noção complementa o conceito de temporalidade indígena, do modo como em Vozes de mulheres ameríndias nas literaturas brasileira e quebequense, Rita Olivieri-Godet (2020)OLIVIERI-GODET, R. (2020). Vozes de mulheres ameríndias nas literaturas brasileira e quebequense. Rio de Janeiro: Edições Makunaima. nota uma temporalidade alternativa, diversa, não linear nas narrativas que analisou nas tradições indígenas de contos e cantos:

Essas escritoras tiram proveito de sua situação liminar: enraizada em sua herança ancestral e, ao mesmo tempo, aberta às formas artísticas da contemporaneidade imediata […] enfatiza as questões atinentes à relação da escritura com a práxis, com a memória, com o espaço e com o processo de reconstrução pessoal (Olivieri-Godet, 2020OLIVIERI-GODET, R. (2020). Vozes de mulheres ameríndias nas literaturas brasileira e quebequense. Rio de Janeiro: Edições Makunaima., p. 12).

Em “As bananeiras do meu quintal”, a narradora quando criança corre com o irmão entre “gentes-árvores”, “amigas umas das outras” e compartilha seu espaço com os animais que vagueiam na mata; brinca e aproveita o colo da mãe, “como agora corro no chão da minha memória… as gentes são tudo aquilo que conversam com o seu coração” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 67, 73). A presença das ancestrais mulheres, a vó, que de fato é sua bisavó, e a mãe são as referências marcantes que perduraram na vida da narradora. Quanto ao pai, a convivência foi curta: “Durante nove anos,/ eu tive o afeto de meu pai./ Mas ele enlouqueceu,/ como todo homem do ouro/ que não escapa da maldição…” Assim o descreve na história intitulada “O homem do ouro”, ou seja, o garimpeiro Quéchua que queria enriquecer, identificado com o povo da mercadoria, que ignora a paisagem e a transforma em valor de troca. Assim empobrece a terra por onde passa:

Quando a draga queen aportava no barracão, íamos buscar papai… Enquanto meu pai ficava cada vez mais rico / mais o rio-gente morria … mais gentes-árvore, gentes-peixe, gentes-barranco, gentes-gente morriam com ele. / Até que um dia foi meu pai que morreu / primeiro, de tristeza; / depois, da vida mesmo (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., 77).

Toda essa referência aos seres ao redor do povo como gente demonstra uma integração do humano com a vida em torno de si. Nesse sentido é interessante notar que o nome Pemon, que é a etnia da qual fazem parte os Macuxi, como já foi dito, significa “pessoa” ou “gente” e inclui todo o ambiente nativo onde humanos e natureza se cultivam mutuamente. Em “A castanheira”, a narradora está numa cidade onde os parentes Karitiana vendem seus artefatos. Ela precisa retirar dinheiro de um banco para pagar pelo artesanato que escolheu, feito “pelas mãos daqueles sobreviventes” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 82). A orientação que lhe é dada para chegar ao local é que tome a rua logo após a castanheira. Esta história é escrita como se a representar a estrutura de uma árvore que vai de uma página a outra na posição horizontal. Constrangida com o fato de que a castanheira não era para si uma presença como era para os locais, a narradora se pergunta: “Quando foi que deixei de perceber as gentes-floresta?” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 83).

A bisa, que viveu até cem anos ou mais, conta a penúltima história que sua cuidadora Ada traduz para a bisneta. “O feitiço” é sobre um caso que aconteceu em sua família. Num ambiente aconchegante, em meio ao mistério das “gentes-fumaça” que vinham do fogão à lenha, aos goles de chá de erva cidreira, a narradora, a cuidadora e a “velha matriarca” se preparam (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 87). Esta história fala sobre a morte da filha da bisa, avó da narradora. Um homem se apaixonou pela mãe de sua mãe que já era casada e o repeliu: “ficou tão ressentido que recorreu à prática da feitiçaria …) desejou que a mulher adoecesse” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 89). Para explicar como o feitiço é aplicado, a narradora recorre a conceitos da cosmologia e do xamanismo macuxi: o xamã ou pajé é conselheiro do cacique e do grupo e também o médico do povo, pois tem acesso ao mundo espiritual. O universo macuxi se divide em três planos: o terrestre, onde estamos, se localiza entre o superior e o subterrâneo; neste vivem seres semelhantes aos humanos, mas aos quais eles não têm acesso. O plano intermediário dos humanos contém também os Oma:kon (habitam as serras e são antissociais) e os Makoi (estão nas águas e são os mais perigosos). Como esclarece Santilli (2004):

Quando os Omá:kon e Makoi aprisionam uma alma humana (Stekaton), a vítima adoece e acaba morrendo. Somente os xamãs (Piatzán) podem fazer face à predação exercida pelo Omá:kon e Makoi, pois possuem a faculdade de vê-los e dispõem de armas sobrenaturais para neutralizá-los. Com efeito, a ação terapêutica de um xamã — já que as doenças são evidência de agressões à alma causadas por essas duas classes de seres — consiste basicamente no resgate da alma aprisionada, impedida de retornar ao corpo e que, em uma sessão xamanística, os cantos descrevem à medida que essa ação se desenrola.

Foi isso o que aconteceu com a avó da narradora, ou seja, os Omá:kon tornaram cativa sua Stekaton:

Não sabemos onde está a alma da vó, se ficou presa com os omá:kon, ou se descansa em paz. Sem xamãs corremos o risco de não sabermos para onde vão nossos ancestrais […]/ A mãe se despediu da vó com um beijo na cabeça. A cabeça era o único lugar que o feitiço não tinha chegado. Os cabelos macuxi tem a força de Makunaima. […] por isso é preciso sempre cantar e dançar pra mandar pra longe os espíritos ruins (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 93-95).

“O encontro com Makunaima” é a história que fecha a narrativa. No cozimento da Damorida, a narradora pensou que os antepassados já pudessem se comunicar com ela, mas percebeu que apenas sete anos depois da preparação do caldo iria se encontrar com Makunaima em sonho e entender que todos esses contos e cantos são sua história com seu povo (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 25): “Quando Makunaima me encontrou/ eu estava no estéril asfalto da vida./ … Eu sou pimenta/ panela de barro/ cobra/ damorida/ onça/ olho puxado/ cabelo preto/ cor amarela./ Eu finalmente posso dizer, com ternura, que sou macuxi” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 100-101).

NÓS, POVOS INDÍGENAS DO MUNDO, REUNIDOS NESTE CANTO DE NOSSA MÃE TERRA…

porque somos a cultura da terra e do céu,

somos descendentes antigos e somos milhões,

e embora todo o nosso universo possa ser devastado,

nosso povo vai viver

por mais tempo do que até mesmo o reino da morte.

(Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo, 1975)13 13 Declaração Solene: Conselho Mundial de Povos Indígenas Reserva, Tseshaht em Port Alberni, British Columbia1975. Fonte: Douglas E. Sanders, “The Formation of World Council of Indigenous Peoples,” Documento IWGA n. 29, 1977. Esta declaração foi acordada pelos delegados da primeira conferência internacional dos Povos Indígenas em Port Alberni, British Columbia, em 1975, que levou ao Conselho Mundial dos Povos Indígenas (WCIP). http://www.indigenouspeople.net/declare.htm .

Em A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea, Dorrico (2022)DORRICO, J. (2022). A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 14, p. 112-131. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/revista-do-centro-de-pesquisa-e-formacao-no-14-dossie-diversos-22/. Acesso em: 10 jan. 2023.
https://www.sescsp.org.br/revista-do-cen...
afirma que a obra de Mário de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, “se apropriou de nomes, espiritualidades, enredos e estruturas indígenas para afirmar uma identidade nacional brasileira, desprezando os povos dos quais as emprestava” (Dorrico, 2022DORRICO, J. (2022). A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 14, p. 112-131. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/revista-do-centro-de-pesquisa-e-formacao-no-14-dossie-diversos-22/. Acesso em: 10 jan. 2023.
https://www.sescsp.org.br/revista-do-cen...
, p. 124, grifo do original). Por isso, seu livro poético começa com a declaração que afirma sua etnia macuxi como filha de Makunaima. Em Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples, Linda Tuhiwai Smith (1999)SMITH, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Dunedin: Otago University Press., sob o ponto de vista do colonizado, também se levantou contra a noção eurocêntrica de que pesquisa e conhecimento são privilégios ocidentais; de que outros povos são apenas objeto de investigação, mas não detentores de técnicas, artes ou agentes cientes de si mesmos e de suas práticas; que formam, reúnem e organizam informações a respeito da realidade e dos acontecimentos:

Irrita-nos que os pesquisadores e intelectuais ocidentais possam supor saber tudo o que é possível saber sobre nós, com base em seus breves encontros com alguns de nós. Espanta-nos que o ocidente possa desejar, extrair e reivindicar a propriedade de nossas formas de conhecimento, nossas imagens, as coisas que criamos e produzimos e, ao mesmo tempo, rejeitar as pessoas que criaram e desenvolveram essas ideias e procuram negar-lhes novas oportunidades de serem criadores de sua própria cultura e de suas próprias nações. Nos irrita quando práticas ligadas ao século passado e aos séculos anteriores ainda são empregadas para negar a validade da reivindicação dos povos indígenas à existência, à terra e ao território, ao direito à autodeterminação, à sobrevivência de nossas línguas e formas de conhecimento cultural, aos nossos recursos naturais e sistemas de vida dentro de nossos ambientes (Smith, 1999SMITH, L. T. (1999). Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Dunedin: Otago University Press., p. 1).

Dorrico (2022)DORRICO, J. (2022). A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 14, p. 112-131. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/revista-do-centro-de-pesquisa-e-formacao-no-14-dossie-diversos-22/. Acesso em: 10 jan. 2023.
https://www.sescsp.org.br/revista-do-cen...
também acusa tal espoliação que vem do senso de uma licença especial aparentemente disponível ao ocidental que promove uma real gentrificação étnica, geográfica, espiritual e epistemológica dos povos originários, cujo resultado é a “racialização, monocultura, apropriação de saberes ancestrais” (Dorrico, 2022DORRICO, J. (2022). A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 14, p. 112-131. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/revista-do-centro-de-pesquisa-e-formacao-no-14-dossie-diversos-22/. Acesso em: 10 jan. 2023.
https://www.sescsp.org.br/revista-do-cen...
, p. 124).

Com sua usual finesse, Ailton Krenak calibra essa autoconcedida vantagem do ocidental quando diz que escrita e leitura são apenas técnicas que podem ser aprendidas, como outras quaisquer; “não é uma virtude maior do que andar, nadar, subir em árvores, correr, caçar, fazer um balaio, um arco, uma flecha ou uma canoa” (Krenak e Cohn, 2015KRENAK, A. A. L.; COHN, S. (2015). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue., p. 86). Mas conferir uma prioridade inigualável a essas técnicas, segundo Krenak e Cohn (2015)KRENAK, A. A. L.; COHN, S. (2015). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue., alija populações cujas tradições não estão no papel e, portanto, não puderam ou podem participar dos pactos sociais. E mostra sua exata medida: “quando aceitei aprender a ler e escrever, encarei a alfabetização como quem compra um peixe que tem espinha. Tirei as espinhas e escolhi o que eu queria” (Krenak e Cohn, 2015KRENAK, A. A. L.; COHN, S. (2015). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue., p. 86).

Os temas contidos na narrativa de Dorrico, tanto quanto essa certeza no olhar de Krenak, tocam nos pontos que um outro teórico indígena, Shawn Wilson (2001)WILSON, S. (2001). What is indigenous research methodology? Canadian Journal of Native Education, Edmonton, v. 25, n. 2, p. 175-179. da etnia Opaskwayak Cree do Canadá, comenta em seu artigo “What is indigenous research methodology?”. Wilson (2001)WILSON, S. (2001). What is indigenous research methodology? Canadian Journal of Native Education, Edmonton, v. 25, n. 2, p. 175-179. afirma, para além de uma mera perspectiva indígena, a necessidade de se adotar um “paradigma indígena” nos estudos indígenas. Propõe os quatro elementos que devem constituí-lo: uma ontologia — o que é o real no mundo; uma epistemologia — o processo de aquisição de conhecimento; uma metodologia — como se usa o conhecimento; e uma axiologia — um posicionamento ético (Wilson, 2001WILSON, S. (2001). What is indigenous research methodology? Canadian Journal of Native Education, Edmonton, v. 25, n. 2, p. 175-179., p. 176).

Os Pantonkon de Dorrico expressam esses paradigmas. Falam sobre a reivindicação de pertencimento macuxi; através da sabedoria anciã da avó, tratam da memória ancestral de saberes, cores e sabores— modos de compreender e fazer (epistemologia). Expõem sua cosmologia e cosmogonia advindas de Makunaima e a estrutura do universo — que configura o que é o real para o povo Macuxi (ontologia). Reafirmam o parentesco com ameríndios de etnia variada, condenam o povo da mercadoria que destrói a terra e assim enfatizam o direito à vida das gentes-pimenta, gentes-barro, gentes-floresta e outras gentes mais (axiologia).

A metodologia é de resistência e re(existência) “porque é certo que meu mundo — o mundo — precisa ser criado todos os dias” (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 21).

  • 1
    Doravante, Eu sou macuxi.
  • 2
    O termo “auto-história” é de Graça Graúna (2013GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições., p. 54).
  • 3
    Em entrevista por email, Dorrico informou que sua tese está indisponível no momento pois a autora prepara sua publicação em livro.
  • 4
    Todas as traduções de textos não disponíveis em português são de minha responsabilidade.
  • 5
    Sobre o “indianismo”, ver a observação de Graça Graúna (2013GRAÚNA, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Maza Edições., p. 21) sobre como difere de “indigenismo” na asserção de Carlos Paladines em 1988: “lo indígena deja de ser tema de antropólogos, etnólogos, de algunos cientistas sociales o de pintores, novelistas y escultores (‘indigenismo’) para passar a ser assumido por los mismos indígenas (‘indianismo’)”. Dorrico também elabora essa discussão baseada no trabalho de Francisco Javier Romero (Dorrico, 2018DORRICO, J. (2018). Vozes da literatura indígena brasileira contemporânea: do registro etnográfico à criação literária. In: DORRICO, J.; DENNER, L. F.; CORREIA, H. H. S.; DENNER, F. (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Fi. p. 227-255.).
  • 6
    Para uma discussão detalhada sobre a transformação da antropologia quanto ao gênero história de vida, ver o texto de Juliana Salles (2021)SALLES, J. (2021). O relato de vida indígena e outros (sub)gêneros literários em A queda do céu: palavras de um Xamã Yanomami, Meu nome é Rigoberta Menchu e assim nasceu minha consciência e Bobbi Lee: Indian rebel struggles of a Native Canadian Woman. Ilha do Desterro, Florianópolis, v. 74, n 2, p. 231-250. https://doi.org/10.5007/2175-8026.2021.e78659
    https://doi.org/10.5007/2175-8026.2021.e...
    .
  • 7
    Assim Bruce Albert se refere ao relato de Davi Kopenawa.
  • 8
    Makunaima, Makunaíma, Macunaíma, Macunaimã são as diferentes grafias que Dorrico lista em seu glossário (Dorrico, 2019DORRICO, J. (2019). Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras., p. 106). Em seu texto A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea (Dorrico, 2022DORRICO, J. (2022). A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 14, p. 112-131. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/revista-do-centro-de-pesquisa-e-formacao-no-14-dossie-diversos-22/. Acesso em: 10 jan. 2023.
    https://www.sescsp.org.br/revista-do-cen...
    ), a autora nos informa que há mais grafias para o nome do criador macuxi: Makunaimî e Makunaimã, sendo este último o preferido por causa do final “mã”: “Porque Makunaimã é como Roraimã, grande. O que termina com ‘mã’ é grande, Makunaimã” (Taurepang et al., 2019TAUREPANG; MACUXI; WAPICHANA; ARIEL, M.; ANDRADE, M.; GOLDEMBERG, D.; KOCH-GRÜNBERG, T.; RENNÓ, I. (2019). Makunaimã: o mito através do tempo. São Paulo: Elefante., p. 26).
  • 9
    O reconhecimento do território macuxi passou por um longo processo desde 1993, com a identificação por parte da então Fundação Nacional do Índio (FUNAI) — hoje denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas —, à delimitação do território pelo governo Fernando Henrique Cardoso e, finalmente, à homologação em 2005 no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Este é um dos maiores territórios indígenas e se localiza em torno do Monte Roraima (Santilli, 2004).
  • 10
    Lídia Raposo, residente de Boa Vista, Roraima, pertencente ao povo macuxi, é uma artesã que fabrica utensílios de barro e principalmente a panela onde deve ser feita a Damurida, pelas mãos de indígenas. Neste vídeo ela fala sobre a receita e o processo envolvidos na preparação do prato: https://www.youtube.com/watch?v=Zb3z9gv41JY.
  • 11
    Esta região abriga dois grandes grupos étnicos da língua karíb: os pemon e os kapon. Os macuxi pertencem aos pemons, tanto quanto os arekuna, tamarakoto e os taurepang (Andrello, 2004ANDRELLO, G. L. (2004). Tauperang (verbete). Povos Indígenas no Brasil. Instituto Socioambiental Povos indígenas em Roraima. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Taurepang. Acesso em: 10 jan. 2023.
    https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:T...
    ).
  • 12
    Defensor das artes orais e dos povos da região do Monte Roraima, Fiorotti (2018FIOROTTI, D. A. (2018). Teren, eren e panton: poetnicidade oral Macuxi. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 53, p. 101-127. https://doi.org/10.1590/2316-4018534
    https://doi.org/10.1590/2316-4018534...
    , p. 102) apresenta os três tipos de oralidade entre os macuxi “panton (plural pantonkon), … o taren (plural tarenkon), palavras encantadas de cura; e o eren (plural erenkon), cantos indígenas”. Fiorotti (2018FIOROTTI, D. A. (2018). Teren, eren e panton: poetnicidade oral Macuxi. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 53, p. 101-127. https://doi.org/10.1590/2316-4018534
    https://doi.org/10.1590/2316-4018534...
    , p. 101) explica que panton é a palavra para história, como informou uma entrevistada local: “isso que você chama de mito, fábula, é a nossa história”. As histórias passadas pelos ancestrais são a história do povo macuxi.
  • 13
    Declaração Solene: Conselho Mundial de Povos Indígenas Reserva, Tseshaht em Port Alberni, British Columbia1975. Fonte: Douglas E. Sanders, “The Formation of World Council of Indigenous Peoples,” Documento IWGA n. 29, 1977. Esta declaração foi acordada pelos delegados da primeira conferência internacional dos Povos Indígenas em Port Alberni, British Columbia, em 1975, que levou ao Conselho Mundial dos Povos Indígenas (WCIP). http://www.indigenouspeople.net/declare.htm

Referências

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Editoras: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2023
  • Aceito
    12 Abr 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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