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O desejo de ocupar e narrar em Notas sobre a fome de Helena Silvestre

The desire to occupy and narrate in notas sobre a fome by Helena Silvestre

El deseo de ocupar y narrar en Notas sobre a fome de Helena Silvestre

Resumo

Notas sobre a fome (2019a), de Helena Silvestre, é uma coletânea de trinta e uma “notas” criativas (verbetes, cartas, poemas e um ensaio) inspiradas em sua experiência como ativista de movimentos por moradia em São Paulo. Silvestre, durante uma crise existencial, declara: “Eu precisava aprender a desejar”. A solução encontrada é continuar contando histórias; escutando as narrativas dos anciões, das crianças e das mulheres nas ocupações; e ouvindo e reinterpretando as teorias dos acadêmicos. Sua perspectiva de como viver em uma comunidade está enraizada em um desejo insaciável de novas estratégias para narrar e habitar a cidade. Em diálogo com a geografia lefebvriana, os estudos feministas e a crítica narrativa, argumentamos que as experiências de Silvestre com abordagens diferentes de contar histórias e de ocupar espaços frisam a importância da busca por novas formas de habitar e desejar comunitariamente em vez de reproduzir uma solução que mantenha o status quo. Consideramos, primeiro, as estratégias de Silvestre para narrar sua solidariedade, depois sua busca por soluções heterogêneas para narrar e ocupar, em seguida a importância das histórias para comunidades e, finalmente, as formas de narrar sobre corpos marginalizados como territórios simultaneamente de desigualdade estrutural e de devaneio.

Palavras-chave:
Helena Silvestre; desejo; moradia; ocupações; narrativa; autoficção

Abstract

Helena Silvestre's Notas sobre a fome (2019a) is a collection of thirty-one creative “notes” (diary entries, letters, poems, and an essay) inspired by her experience as a housing activist in São Paulo, Brazil. During an existential crisis, Silvestre declares that she needs to learn to desire. The solution she finds is to keep telling stories; listening to the stories of children, women, and elderly people in the housing occupations where she lives; and listening to and reinterpreting academics’ theories. Her understanding of living in community is rooted in an insatiable desire for new strategies for narrating and inhabiting the city. In dialogue with Lefebvrian geography, feminist studies, and narrative criticism, we argue that Silvestre's experiments with different approaches to telling stories and occupying space underscore the importance of searching for new ways to inhabit and desire in community, as opposed to settling for solutions that maintain the status quo. This article first considers Silvestre's strategies for narrating her solidarity, then her search for heterogeneous solutions for narrating and occupying urban space, then the importance of storytelling for the creation of community, and finally ways of narrating about marginalized bodies as, simultaneously, sites of structural inequity and of joy.

Keywords:
Helena Silvestre; desire; housing; occupations; hunger; narrative; autofiction

Resumen

Notas sobre a fome (2019a), de Helena Silvestre, es una colección de treinta y un “apuntes” creativos (verbos, cartas, poemas y un ensayo) inspirados en su experiencia como activista en movimientos de vivienda en San Pablo. Silvestre, en plena crisis existencial, declara: “Yo necesitaba aprender a desear”. La solución encontrada es seguir contando historias; escuchando las narrativas de ancianos, niños y mujeres en las ocupaciones; y oír y reinterpretar las teorías de los académicos. Su perspectiva sobre cómo vivir en comunidad tiene sus raíces en un deseo insaciable de nuevas estrategias para narrar y habitar la ciudad. En diálogo con la geografía lefebvriana, los estudios feministas y la crítica narrativa, argumentamos que las experiencias de Silvestre con diferentes enfoques de narración y ocupación de espacios enfatizan la importancia de buscar nuevas formas de habitar y desear comunalmente en lugar de reproducir una solución para mantener el statu quo. Consideramos, en primer lugar, las estrategias de Silvestre para narrar su solidaridad, luego su búsqueda de soluciones heterogéneas para narrar y ocupar, después la importancia de los relatos para las comunidades y, finalmente, las formas de narrar sobre los cuerpos marginados como territorios a la vez de desigualdad estructural y gozo.

Palabras-clave:
Helena Silvestre; deseo; vivienda; ocupaciones; hambre; narrativa; autoficción

“Quando a imaginação é grande, o mundo aumenta, mesmo que o mapa não lhe saiba acomodar” ( Silvestre, 2018bSILVESTRE, Helena (2018b). Do verbo que o amor não presta. São Paulo: Sarau do Binho/Felizs. , p. 86).

INTRODUÇÃO

Em 2019, Helena Silvestre publicou seu segundo livro, Notas sobre a fome, uma coletânea de trinta e uma “notas” (cartas, verbetes, poemas e um ensaio) inspiradas em sua experiência como ativista de movimentos por moradia1 1 O livro foi publicado de forma independente com o apoio da revista Amazonas e do Sarau do Binho. Em 2021, foi relançado pela editora Expressão Popular. . O texto estabelece um emparelhamento entre o crime da fome e o desejo de realizar-se para além da mera sobrevivência, concretizado em uma linguagem estilizada que destaca as possibilidades criativas de expressar emoções e subjetividade2 2 Nós, os dois autores deste texto, não temos conhecimento pessoal da fome. Reconhecemos que nossa própria posição como pesquisadores brancos com financiamento de pesquisa e emprego de período integral em uma universidade influencia nossas perspectivas e visões de mundo. Ademais, Sophia como estadunidense, Gustavo como homem e nós dois como brancos economicamente privilegiados pertencemos a grupos que historicamente tiveram o poder de definir a produção artística estabelecendo cânones e interpretando, classificando e categorizando a arte não hegemônica. Não raro, há até mesmo um processo de usurpação do protagonismo social e político das classes populares e povos num moto-contínuo de invisibilização de gênero, raça, classe, sexualidades e territórios. Embora reconheçamos nossa própria posicionalidade e nossa incapacidade de falar por sujeitos, grupos e classes aos quais não pertencemos, procuramos contestar critérios de valor hegemônicos, especialmente a tendência de ignorar o mérito estético de textos de autores subalternizados. Valorizamos práticas de conhecimento e estéticas que historicamente têm sido silenciadas pela academia e temos um firme compromisso com a solidariedade entre diferentes como princípio político em termos de teoria e método. . A Nota 1 propõe que “A fome é uma praga que os homens fabricaram contra outros homens e mulheres” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 16). A boca aberta na barriga de Mapinguarí, um ser mítico amazônico retratado na capa da primeira edição do livro (ver Figura 1), manifesta a raiva que acompanha a fome fabricada e que mobiliza Silvestre a contar múltiplas histórias sobre esse “genocídio permanente” (Silvestre, 2020aSILVESTRE, Helena (2020a). A pandemia da fome. Land Portal. Disponível em: https://landportal.org/pt/blog-post/2021/02/ensaio-viral-%E2%80%94-pandemia-da-fome. Acesso em: 31 jul. 2022.
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). Na utilização da figura de Mapinguarí, Silvestre dá corpo à experiência compartilhada da fome, transformando, assim, uma problemática abstrata em uma personagem visível, um exemplo da literariedade do texto. Embora parte do Estado brasileiro, figurado exemplarmente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, negue a existência da fome no Brasil contemporâneo, Silvestre mostra com sua habilidade de contadora de histórias que a fome é uma forma de violência contra as populações mais pauperizadas que atravessa a história brasileira3 3 O livro Notas sobre a fome contém três epígrafes: um trecho de Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo) e dois fragmentos de poesia de Solano Trindade (Canto dos Palmares e Tem gente com fome). Ambos os autores, respectivamente nas décadas de 1960 e 1940, expuseram em sua produção artística a problemática da fome e romperam com o silêncio negador desta que é uma das centrais contradições brasileiras, qual seja: uma expressiva produção de alimentos em um país agroexportador que ainda possui dezenas de milhões de pessoas que passam fome cotidianamente. O médico e geógrafo Josué de Castro, uma das pessoas a quem Silvestre agradece como uma referência importante para a escrita do livro, produziu obras importantes (tais como Geografia da fome e Geopolítica da fome) e já denunciava que a fome era (e ainda é) um problema político. Destaca-se que, em 2022, 33 milhões de brasileiros não têm o que comer e mais da metade da população do Brasil (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau (Rede Penssan, 2022). Paira um silêncio sobre a problemática da fome, tanto em termos de um negacionismo da realidade concreta por aqueles que não experimentam uma vida de privação de comida e calam sobre a fome latente quanto pelos que passam fome, já que na perspectiva de uma filosofia popular-periférica, falar sobre um problema atrai mais problemas: “Ninguém que não atravessou a fome poderia compreender completamente um faminto. E aqueles que dela comungam, pouco falam a respeito, porque falar de fome chama mais fome” (Silvestre, 2019a, p. 44). .

Figura 1
A capa da primeira edição de Notas sobre a fome de Helena Silvestre com a imagem de Mapinguarí.

Tal fome interdita o desejo de muitos, um argumento expresso usando epífora, assim estabelecendo a presença da linguagem altamente padronizada no texto, que aumenta sua literariedade: “Muito difícil pensar com fome. Muito difícil desenvolver-se com fome, cantar com fome, amar com fome, desapegar-se, estando com fome” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 17). A violência da realidade capitalista, mediada pelo mundo da mercadoria e pelas profundas raízes coloniais, impede o desejo de Silvestre, ainda mais por conta de sua identidade interseccional como alguém “pobre, preto, favelíndio, afroindígena assalariado” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 85). A fome funciona no texto como um tropo que significa ora a fome de muitos brasileiros no presente, ora a fome atravessada por Silvestre na juventude, ora a fome metafórica (no sentido de desejo) de Silvestre. Insatisfeita com os desejos enlatados que as campanhas publicitárias vendem como ilusões individualistas, que os movimentos supostamente radicais, mas sexistas e racistas, instituem como universalizantes e a sociedade burocrática de consumo dirigido nos impõe goela abaixo, Silvestre procura novas formas de viver, desejar e narrar.

A escolha de Silvestre pela diversidade de gêneros discursivos expressa literariamente seu compromisso com saídas diversas para se expressar. Dez notas são explicitamente rotuladas como cartas nunca entregues a seus interlocutores. Oito dessas cartas recontam sonhos de Silvestre. Outra nota é categorizada como um ensaio, e seis são poemas, um dos quais é escrito em espanhol. As notas restantes podem ser interpretadas como verbetes de diário, que variam entre fabulações, histórias autobiográficas e comentários políticos. O livro é divido em duas partes, mas nenhum elemento óbvio as distingue, exceto talvez que a primeira expresse mais a militância de Silvestre em ocupações, de modo que as notas fazem mais sentido quando percorridas na ordem em que aparecem no livro; e a segunda envolva primordialmente experiências que aconteceram fora das ocupações, com notas que podem ser lidas em ordem aleatória. Um apêndice, a décima terceira nota, é sobre o deslumbramento de Silvestre ao ver Notas sobre a fome impresso, uma brincadeira metanarrativa em que ela prevê o futuro próximo. A heterogeneidade das notas amplifica a sensação de inquietude produzida pelo texto.

Em Notas sobre a fome, Silvestre (2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 17) descreve o texto como um “diário, uma coleção de fatos e pensamentos” e, empregando o termo de Serge Doubrovsky cunhado em 1977, declara que “tudo é autoficção” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 20). O texto dialoga com a definição de Philippe Vilain (2011)VILAIN, Philippe (2011). Autofiction. Tradução de Jeanine Herman. In: GILLET, Villa (org.). The Novelist's Lexicon: writers on the words that define their work. Nova York: Columbia University Press. p. 5-7. de autoficção por ser narrada na primeira pessoa por alguém com o mesmo nome da autora ao mesmo tempo que anuncia sua “entrada na ficção” (Vilain, 2011VILAIN, Philippe (2011). Autofiction. Tradução de Jeanine Herman. In: GILLET, Villa (org.). The Novelist's Lexicon: writers on the words that define their work. Nova York: Columbia University Press. p. 5-7., p. 5). A autoficção articula duas formas de narrativa em tensão: autobiografia e ficção, e essa característica instável é paralela à recusa da autora por uma moradia fixa (fruto da segregação socioespacial que impõe às classes populares a negação do direito à moradia e a mobilidade permanente) ou uma ideologia política cristalizada na inventividade e criatividade das estratégias populares de resistência e luta em movimento. Todavia, o texto não estabelece totalmente “o pacto autobiográfico” formulado por Philippe Lejeune (1989)LEJEUNE, Philippe (1989). The Autobiographical Pact. In: LEJEUNE, P. On Autobiography (ed. Paul John Eakin). Tradução de Katherine Leary. Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 3-30., porque na ficha catalográfica da primeira edição o livro foi incluído entre os “Contos brasileiros”. Ademais, a própria escritora descreve-o como não “estritamente autobiográfico” (Silvestre, 2020cSILVESTRE, Helena (2020c). Guilhotina #53 - Helena Silvestre. Guilhotina Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://www.spreaker.com/user/central3/guilhotina-54-helena-silvestre. Acesso em: 31 jul. 2022.
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). Em uma nota, ela inventa uma aranha falante. Em outra, milhares de crianças escravizadas e abayomis ocupam seu útero. Além dessas fabulações, Silvestre (2020cSILVESTRE, Helena (2020c). Guilhotina #53 - Helena Silvestre. Guilhotina Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://www.spreaker.com/user/central3/guilhotina-54-helena-silvestre. Acesso em: 31 jul. 2022.
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) retrata histórias partilhadas em comunidade ou coletadas desde o chão das ocupações urbanas na periferia da metrópole de São Paulo e da vida cotidiana da quebrada4 4 Há notas que revelam experiências em outros contextos metropolitanos, tais como Rio de Janeiro (Nota 4), Salvador (Nota 6), São Luís (Nota 22) e em espaço-tempo não definido em diálogos que ocorrem na cidade, nas matas e no campo com povos indígenas, quilombolas e camponeses. . Fundindo poesia e prosa, fatos e fantasia, o livro foge de rótulos evidentes. Em suas palavras: “Em um espaço caótico e desgraçado, eu vejo e narro o que vivo e vejo viver, mas além de narrar o que é lascado, precarizado, empobrecido, eu também posso narrar o que eu posso viver e as coisas lindas que poderíamos viver como comunidade” (Silvestre, 2021bSILVESTRE, Helena (2021b). Vozes do cuidado #04. CineBecos. Direção de Rogério Pixote. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yOpbruKz-X4. Acesso em: 12 ago. 2022.
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). Pensando na preocupação de Silvestre com as contradições da realidade e da possibilidade de mediação da experiência individual e coletiva, ela figura no livro como a narradora, a protagonista, a porta-voz dos famintos, a autora e a contadora de histórias.

Embora o texto não seja nem linear, nem cronológico, nem estritamente ficcional, possui os elementos básicos de uma narrativa propostos por J. Hillis Miller (1995MILLER, J. Hillis (1995). Narrative. In: LENTRICCHIA, Frank; McLAUGHLIN, Thomas (org.). Critical Terms for Literary Study. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press. p. 66-79., p. 75): uma situação inicial, uma transformação dessa situação, uma revelação feita possível pela transformação, personagens e linguagem padronizada. A Nota 2 apresenta a situação inicial: Silvestre experimenta uma crise existencial em que “nada fazia sentido” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 21) e ela “não sabia desejar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 22). As histórias contadas nas notas ajudam a narradora a desejar, e o texto repete a palavra desejo e seus derivados mais de quarenta vezes. A revelação é que Silvestre — inquieta e insaciável — sempre vai procurar novas histórias e novas formas de morar comunitariamente, no imperativo da apropriação do espaço para além da normatização proprietária.

Entretanto, voltando à estrutura da narrativa proposta por Miller (1995)MILLER, J. Hillis (1995). Narrative. In: LENTRICCHIA, Frank; McLAUGHLIN, Thomas (org.). Critical Terms for Literary Study. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press. p. 66-79., também seria possível afirmar que a situação inicial do texto é a fome atual no Brasil, descrita na Nota 1. Por ser um texto fragmentado sem um enredo unificador, o livro transfere para o leitor o trabalho de criar sentido, assim gerando o que Roland Barthes (1974BARTHES, Roland (1974). S/Z: An Essay. Tradução de Richard Miller. Nova York: Hill and Wang., p. 4) designa como um texto “scriptible”, que exige participação ativa do leitor para preencher as lacunas. Por esses motivos, concebemos o texto como obra de autoficção, com uma narradora caraterizada por seu desassossego5 5 Silvestre constrói-se como alguém caraterizada por seu desassossego (físico, político, intelectual e amoroso), como se vê nas seguintes citações: “minha vida de cigana” (Silvestre, 2019a, p. 55); “eu ouvia desconfiadamente sobre quase tudo” (Silvestre, 2019a, p. 67); “casada e divorciada por pelo menos três vezes” (Silvestre, 2019a, p. 91); “No me pidas para quedar” (Silvestre, 2019a, p. 120) e “Eu queria seguir me movendo” (Silvestre, 2019a, p. 132). e com linguagem densamente estilizada, que expressa as emoções e subjetividade dessa narradora, a qual não se distingue da autora.

Em Notas sobre a fome, Silvestre durante a crise existencial declara: “Eu precisava aprender a desejar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 22). A solução encontrada é continuar contando histórias; escutando as narrativas dos anciões, das crianças e das mulheres nas ocupações; e de continuar ouvindo e reinterpretando as teorias dos acadêmicos. Ao refletir sobre o motivo de a humanidade sempre precisar de mais histórias (em vez de se saciar com as histórias aprendidas na juventude), Miller (1995MILLER, J. Hillis (1995). Narrative. In: LENTRICCHIA, Frank; McLAUGHLIN, Thomas (org.). Critical Terms for Literary Study. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press. p. 66-79., p. 72) afirma, “nenhuma história cumpre perfeitamente, de uma vez por todas, suas funções de ordenar e confirmar. E assim precisamos de outra história, e depois outra, e ainda outra, sem nunca chegar ao fim de nossa necessidade de histórias ou sem nunca saciar a fome que elas devem saciar”6 6 Tradução nossa. . Silvestre enfatiza que sua noção de habitar uma comunidade está enraizada em um desejo insaciável por mais histórias e por novos lugares. Em diálogo com a geografia lefebvriana, os estudos feministas e a crítica narrativa, argumentamos que, em Notas sobre a fome, as experiências de Silvestre com abordagens diferentes de contar histórias e de ocupar espaços frisam a importância da busca por novas formas de habitar e desejar comunitariamente em vez de reproduzir uma solução que mantenha o status quo. Nesse sentido, a primeira parte deste artigo foca nas estratégias de Silvestre de narrar sua solidariedade perante a crise da fome fabricada. A segunda parte trata da busca por soluções heterogêneas de narrar e ocupar o espaço urbano. A terceira centra-se na importância de escutar e contar histórias na criação de uma comunidade. A última parte é sobre as formas de narrar o papel do corpo marginalizado como o território da desigualdade estrutural, mas também o criador de devaneio, especialmente nas ocupações.

SOLIDARIEDADE PARA ALÉM DA FOME

Notas sobre a fome enfatiza a solidariedade de Silvestre por meio do foco na origem e na generosidade de pessoas marginalizadas e a linguagem estilizada que frisa as reações emocionais desencadeadas pelo amparo e pelo cuidado. A própria fome e a fome de outros catalisaram a conscientização política e a solidariedade de Silvestre, que influenciam sua forma de contar histórias. Em uma das narrativas mais marcantes, Nota 26, Silvestre (2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 118) expõe uma história pessoal para refletir sobre a vulnerabilidade das “crianças da fome” e sobre as emoções que essa violência suscitou em sua trajetória. Ela insiste em detalhar e se aproximar da origem da pessoa, nesse caso o menino de cinco anos, Matheus, que conheceu ao ajudar com as crianças em uma ocupação de cerca de cem famílias:

Ele era filho da Lôra, uma jovem mulher destroçada pela pobreza, pelo machismo e pela falta de tudo. Alcoólatra, comungava do álcool para dar de beber a tudo que a ausência criava em seu espírito de mulher sozinha, que cata no lixo as sobras que lhe permitiam realizar-se como mãe provedora de alimento a quem ainda não se pode alimentar só (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 115)7 7 A forma sensível de narrar a situação da mãe e do filho provoca raiva pela fome socialmente fabricada. Raiva que aparece também em outros momentos do livro, na privação da escolha dos alimentos que se deseja e não se pode acessar pela falta de dinheiro — “o ódio com que alimento minhas lombrigas silenciadas as deixou vivas e sempre selvagens” (Silvestre, 2019a, p. 38) — e na melancolia da morte que chega antes da terra, da alimentação digna e da justiça socioespacial — “triste então é essa vida, tão adiada, tão sonhada de justiça e de pão, que nunca chega, e, aliás, a morte quase sempre chega primeiro. No barro que dá de comer aos mortos, a fome não existe mais” (Silvestre, 2019a, p. 127). .

Amin Maalouf (2000)MAALOUF, Amin (2000). In the Name of Identity: violence and the need to belong. Tradução de Barbara Bray. Nova York: Penguin., referindo-se às consequências das palavras e das generalizações, argumenta que a maneira como olhamos para as outras pessoas muitas vezes as aprisiona em essencializações estreitas, “e é também a maneira como olhamos para elas que pode libertá-las” (Maalouf, 2000MAALOUF, Amin (2000). In the Name of Identity: violence and the need to belong. Tradução de Barbara Bray. Nova York: Penguin., p. 22)8 8 Tradução nossa. . Richa Nagar (2014)NAGAR, Richa (2014). Muddying the waters: coauthoring feminisms across scholarship and activism. Urbana-Champaign: University of Illinois Press. assevera que, ao se reconhecer toda teorização como exercício narrativo, então também é possível que a violência epistêmica dos paradigmas e das estruturas existentes possa ser resistida “contando histórias de forma diferente” (Nagar, 2014NAGAR, Richa (2014). Muddying the waters: coauthoring feminisms across scholarship and activism. Urbana-Champaign: University of Illinois Press., p. 161). Em Notas sobre a fome, Silvestre, com sua forma muitas vezes inesperada de contar, livra várias personagens — especialmente os “condenados da terra” que batalham “para saciar a própria fome” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 146) — da perspectiva de culpa individual ou moralizante por seu atual estado e confronta a violência epistêmica das estruturas e narrativas existentes que reproduzem a desigualdade e negam a existência da fome no Brasil.

Quando Silvestre, que nessa altura tinha vinte anos, está cuidando de Matheus em seu apartamento e ele fica com febre, ela narra aquele sofrimento como resultado de uma vida de fome. Desesperada e sem dinheiro para um táxi, ela carrega o menino nos braços e vai a pé ao hospital no meio da noite. Nesse contexto de medo, as trabalhadoras do sexo da vizinhança mostram solidariedade, chamando os santos que ajudam na cura de enfermidades:

As travestis que trabalhavam na rua em que eu morava se aproximaram e me perguntaram se eu estava bem. Desabando no choro lhes contei em um segundo que iria levar o menino ao médico e elas me disseram que eu fosse com Deus e com São Cosme e Damião (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 116-117).

Silvestre começa a rezar, e o estilo da nota, antes lógico e linear, transforma-se. A partir desse momento, ela emprega anáforas, que lembram uma oração e enfatizam a intensidade das emoções experimentadas (medo, raiva, amor, responsabilidade e alívio) perante essa situação pontual e diante da fome em geral: “Na pobreza a vida é, por vezes, um milagre que não se pode explicar. Na pobreza a vida é, por vezes, um desejo que não se pode explicar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 117); “É que a fome gasta os corpos, a fome gasta os músculos, a fome gasta aquilo que outros corpos têm de reserva” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 117); “Difícil viver com fome, difícil crescer com fome, difícil pensar com fome” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 118); “Sempre peço ao universo que as crianças da fome tenham por perto jovens adultos e travestis para protegê-las. Sempre peço que a fome se acabe e que um dia não tenhamos mais de rezar pelas crianças da fome” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 118).

Tal linguagem estilizada sublinha as várias escalas do desejo Silvestre: o desejo imediato de ver Matheus recuperado e o desejo mais amplo de aliviar os pobres “da brutalidade a que estamos submetidos todos os dias” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 119). Enquanto as estruturas sociais falham e demonstram a vida cotidiana da segregação (o menino vive com fome e espera horas para ser atendido no hospital), Silvestre — com sua forma de contar sobre si mesma e o outro — enfatiza a solidariedade, o afeto e a generosidade de outras pessoas vulneráveis que veem e respondem às crises muitas vezes invisibilizadas.

UMA VIDA SEM TETO E SEU AVESSO

Ao empregar diversos gêneros discursivos, Notas sobre a fome enfatiza a necessidade de histórias heterogêneas mais que a necessidade de manter um gênero discursivo tradicionalmente coerente. Assim, Silvestre estabelece um paralelo entre seu desejo insaciável de experimentar diversos tipos de narrativa e seu desejo orgânico por ocupar o espaço, experimentando comunidades e dialogando com o povo. Com esses desejos, ela demonstra aversão à manutenção inquestionável da reprodução social das relações de produção:

Cheguei a questionar o trabalho, o estado, a propriedade, a heteronormatização, o racismo, a subalternização do arranjo vital das plantas e outros animais, a concentração de riquezas, o excesso de tecnologia, o desenvolvimento, o progresso e a noção cumulativa de tempo ocidental, que se acha (se propõe a) caminhar do marco zero ao futuro (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 70-71).

Ela questiona a produção do espaço urbano contemporâneo, tomado como realidade imutável, permeado por interdições ao livre circular entre os lugares, pela colonização do tempo capturado pelo trabalho alienado e pela segregação socioespacial. Silvestre já participou de dezenas de ocupações e já militou em muitos movimentos e, no livro, compartilha esse desejo por novos desafios e soluções heterogêneas e de transformação revolucionária, pois “é preciso se revolucionar e revolucionar a maneira com que intervimos na vida” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 102; 2020cSILVESTRE, Helena (2020c). Guilhotina #53 - Helena Silvestre. Guilhotina Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://www.spreaker.com/user/central3/guilhotina-54-helena-silvestre. Acesso em: 31 jul. 2022.
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). Ela reconhece a “essência desestabilizadora que carrego e que deseja realizar-se” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 82) e de que “ouvia desconfiadamente” variadas proposições políticas e teóricas (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 67).

Tanto a necessidade de Silvestre de desafiar o status quo da moradia quanto a contagem de histórias derivam de sua consciência de classe. Na experiência de Silvestre (2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 94), “a primeira atrocidade que me punha em relação de pertencimento orgânico era a atrocidade da sociedade de classes”, que a leva a perceber que “os pobres sabem que são muitos e sabem também que é esse nosso escudo e nossa arma” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 25). Até na indicação ao Prêmio Jabuti, na categoria Crônicas, ela enfatiza que a publicação do livro foi uma façanha coletiva:

Agradeço um tão grande reconhecimento, como é o da indicação para o prêmio Jabuti, muito mesmo, é importante para mim, importante para nós. Mas também gosto de lembrar sempre que nós existimos mesmo quando dizem que não e que produzimos epistemologias mesmo quando não nos escutam. Gosto sempre de lembrar que há, entre-mundos, sábios que não escrevem. […] Este é talvez o reconhecimento que mais alimenta o meu peito, reconhecimento que sustenta a minha palavra: o da comunidade que suporta meu peso no mundo caduco, apesar dele (Silvestre, 2020dSILVESTRE, Helena (2020d). Sobre o prêmio Jabuti 2020. TXAI Editora Popular. Disponível em: https://txaieditora.com/sobre-premio-jabuti-2020/. Acesso em: 12 ago. 2022.
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).

Há um desejo no livro de que a história da fome possa ser contada não apenas por acadêmicos e tecnocratas abastados, homens e brancos que descrevem a privação do planeta-fome à distância, mas também por pessoas que sentiram o vazio na barriga da razão e “na pele” (Silvestre, 2020cSILVESTRE, Helena (2020c). Guilhotina #53 - Helena Silvestre. Guilhotina Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://www.spreaker.com/user/central3/guilhotina-54-helena-silvestre. Acesso em: 31 jul. 2022.
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).

O livro não é apenas heterogêneo em seus gêneros discursivos, mas também em seus interlocutores. Silvestre escreve cartas não entregues à Dona Francisquinha, à filósofa belga Isabelle Stengers e ao “feminismo branco”. A estratégia de redigir cartas nunca entregues a destinatários específicos enfatiza que o processo criativo de aprendizagem de Silvestre envolve imaginar-se em diálogos heterogêneos. Em sua carta não entregue a Stengers, Silvestre reconcebe a cosmopolítica, expandindo-a de maneira que incorpore a “experiência através de tempo e espaço” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 63). Silvestre demonstra que a teoria precisa ser reescrita (a história precisa ser recontada) para que ela compreenda melhor a si mesma e sua relação com as comunidades das quais participa. O verdadeiro destinatário das cartas é ela mesma, que cria histórias que a ajudam a dar sentido à vida e às tramas de lutas realizadas.

A cosmopolítica de Silvestre atravessa, desde uma perspectiva periférica, as proposições de Stengers e envolve a prática socioespacial das ocupações, a recusa ao silêncio negador universalizante e a autonomia como autoemancipação anticapitalista, feminista e antirracista. O posicionamento radical de Silvestre realiza-se como práxis de recusa cosmopolítica, um “modo de ser e viver que organicamente se nega a participar da engrenagem” mesmo quando a negação se estabelece por dentro dos meandros do sistema (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 73). Silvestre tem formação marxista não dogmática e heterodoxa, relevada, por exemplo, nas epístolas endereçadas a Karl Marx (Silvestre, 2018aSILVESTRE, Helena (2018a). As ilusões no progresso, as ilusões na democracia burguesa e as mulheres iludidas. Cadernos Cemarx, Campinas, SP, n. 11, p. 89–104.) e a Rosa Luxemburgo (Silvestre, 2019bSILVESTRE, Helena (2019b). Rosa Vermelha: a revolução como furacão de amor e liberdade. Revista Amazonas, n. 24. Disponível em: https://www.revistaamazonas.com/2019/01/24/rosa-vermelha-a-revolucao-como-furacao-de-liberdade-e-amor/. Acesso em: 17 ago. 2022.
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) e no poema dedicado a Vladimir Maiakovski (Silvestre, 2018bSILVESTRE, Helena (2018b). Do verbo que o amor não presta. São Paulo: Sarau do Binho/Felizs.). O marxismo da autora questiona o universalismo unívoco do economicismo e da ideologia do progresso de uma posição encarnada e corporificada de classe já que, em seus termos, “não posso desprender-me deste lugar de classe, porque ele me habita mesmo que eu não o quisesse ou fugisse de habitá-lo” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 73). Silvestre medeia sua interpretação do comunismo, um “comunismo selvagem” em sua formulação provocativa, com perspectivas teóricas diversas, articulando teoria crítica com o pós-estruturalismo e etnografia com literatura em uma mirada situada no tempo e no espaço. As ocupações de terra são lugares de realização de uma práxis de “inúmeras dissidências que passam invisíveis ao olho ocidental globalizante” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 69) e são territórios que, pela necessidade objetiva do habitar, mobilizam uma presença ativa e solidária no lugar. Em Notas sobre a fome, Silvestre encontra-se com a noção de recusa cosmopolítica formulada por Stengers e redige uma carta não entregue à filósofa, revelando sua “busca de dissonâncias” associada a um “lugar de classe” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 72). A cosmopolítica é um chão fértil de possibilidades para Silvestre, pois mobiliza a compreensão de que o “arranjo humano ocidental capitalista é subalternizador e extrativista” não apenas da humanidade-em-si, mas também de animais e da natureza que são desprezados em diversas perspectivas anticapitalistas (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 74-75). As cosmovisões afro-indígenas e sua radicalidade de recusa do desenvolvimento, do tempo linear e da tutela são articuladas às críticas e às narrativas de pretensão universal e também pós-modernas. Nas linhas da carta, desvela-se que a recusa cosmopolítica é potencialmente transformadora quando parte daqueles que foram alijados ou integrados precariamente à estrutura social moderna. A radical recusa de Notas sobre a fome é a narrativa anticapitalista que nega o capital (ocidental e moderno).

Ao contar a história da fome e da desigualdade nas cidades brasileiras de tantas maneiras diferentes, Silvestre traz a problemática à luz de diferentes ângulos teóricos que envolvem a geografia lefebvriana. Analisa o espaço urbano como uma condição central:

  • para a reprodução das relações sociais capitalistas de produção na vida cotidiana — “o dia inteiro aquele sol dos diabos, o dia inteiro vendendo no farol praquela branca de merda fechar o vidro achando que eu ia roubar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 31);

  • concretização da ideologia de fragmentação do uso do solo urbano no projeto de urbanismo moderno — “as pessoinhas falavam de cinema, política, teoria crítica, e sabe-se lá mais o quê. Bem bonitinho-decadente… O catador de latinhas arrastava sua carroça e o ônibus atrás” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 110);

  • condição, meio e produto da segregação — “Do lado errado / da rua, / nunca tem comida. / Do lado esperto / da rua, / Sempre tem polícia / E a abundância / Ronda a fome / Como uma mosca / De padaria” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 106).

O espaço urbano como mercadoria, negócio e condição da acumulação capitalista em Notas sobre a fome parece prolongar a proposição lefebvriana de que “o espaço não é mais simplesmente o meio indiferente, a soma dos lugares onde a mais valia se forma, se realiza e se distribui. Ele se torna produto do trabalho social, isto é, objeto muito geral da produção e, por conseguinte, da formação da mais valia” (Lefebvre, 2008LEFEBVRE, Henri (2008). A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 140). Ou seja, as atrocidades da sociedade de classe e a fome revelam-se na produção desigual do espaço urbano.

A heterogeneidade das histórias mostra que o processo de apropriação privada do espaço passa também pela interseccionalidade do corpo. Não é apenas a condição de classe de Silvestre que informa seu desejo revolucionário. Ela é de “um gênero oprimido, de um país colonizado, fruto do estupro da civilização ocidental”, “despojada de terras” e “atravessada por genocídios e massacres de toda sorte na reposição do processo de acumulação primitiva, que não é primitiva” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 82). As proposições de Notas sobre a fome dialogam com a declaração da Coletiva Combahee River (2019)COLETIVA COMBAHEE RIVER (2019). Manifesto da Coletiva Combahee River. Tradução de Stefânia Pereira e Letícia Gomes. Coletiva Plural, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 197-207. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159864
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de que as situações reais de classe das pessoas não são realizadas por uma posicionalidade social genérica de trabalhadoras sem raça e sem gênero, mas sim que as opressões são significantes e determinantes na vida laboral, social e econômica.

Contra a homogeneização do capitalismo, ela encontra nas ocupações soluções especializadas e heterogêneas que valorizam a produção da vida das mulheres pobres, periféricas, indígenas e negras. A privação do urbano vivida como interdição ao direito à cidade (uma vida sem teto) ressignifica-se para a transformação feminista em “uma atuação política que privilegia na práxis a organização da luta pela emancipação das mulheres” (Silvestre, 2018aSILVESTRE, Helena (2018a). As ilusões no progresso, as ilusões na democracia burguesa e as mulheres iludidas. Cadernos Cemarx, Campinas, SP, n. 11, p. 89–104., p. 90). A perspectiva de Silvestre conversa com as reflexões de Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flavio; LIMA Márcia (org.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Schwarcz/Zahar. p. 126-136. de que a participação de mulheres afro-americanas e ameríndias — que sofrem por uma discriminação tripla (classe-raça-gênero) — nos movimentos sociais é maior onde, “preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, procuram se organizar coletivamente” (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flavio; LIMA Márcia (org.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Schwarcz/Zahar. p. 126-136., p. 133). O lugar é central para a reprodução da vida e da luta feminista, classista e antirracista pelo espaço. Silvestre argumenta que, na ocupação, o protagonismo feminino ganha mais força:

O espaço comunal das ocupações borra as fronteiras entre o público e o privado: a terra não pertence a quem a ocupa; a casa é a própria terra, a ocupação como um todo e os limites da família nuclear se dispersam momentaneamente nas relações comunitárias, como família extensa (com todas as suas contradições). Essa aparente imprecisão parece facilitar a auto-organização das mulheres e permite que elas se sintam mais seguras em intervir em questões cotidianas, simultaneamente questões domésticas e comunitárias (Silvestre, 2020bSILVESTRE, Helena (2020b). From point zero to the future: struggles over housing and notes for a feminist grammar of organization. Tradução de Liz Mason-Deese. The South Atlantic Quarterly, v. 119, n. 3, p. 646-654., p. 651).

Assim, a ocupação cria oportunidades para o protagonismo feminino que Silvestre deseja, mas a luta constante contra forças machistas e autoritárias persiste. Na Nota 3, ela descobre que um “homem de braço desenhado” entrou na ocupação e “dizia que me procurava para me matar e que, se em dez dias as mil pessoas que ali estávamos não partissem, ele daria cabo de mim” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 23). Esse acontecimento é uma situação limite que desencadeia a transcrição de oito sonhos para Dona Francisquinha e organiza boa parte das notas da Parte I do livro. Ao deixar ambígua a identidade desse homem, Silvestre cria paralelos entre centenas de anos de mulheres latino-americanas “ligadas pela catástrofe comum de expulsão [eviction]” e atingidas pela violência de homens que sentiam que tinham o direito de controlar os corpos e territórios delas (Silvestre, 2020bSILVESTRE, Helena (2020b). From point zero to the future: struggles over housing and notes for a feminist grammar of organization. Tradução de Liz Mason-Deese. The South Atlantic Quarterly, v. 119, n. 3, p. 646-654., p. 648). Essa ambiguidade ajuda-a, em seu papel de contadora de histórias, a ligar o presente e o passado.

ESCUTAR E CONTAR HISTÓRIAS

Ao contar a história dessa ameaça, Silvestre mostra que está aprendendo a desejar em razão da força comunitária da ocupação, do poder da própria narração e do acerto de contas com seu passado9 9 A ameaça de despejo e de expulsão do espaço ocupado adquire o sentido de “caráter destrutivo” em um prisma benjaminiano. A possibilidade da destruição estabelece caminhos por toda parte, mas para se criar espaço diante de muros, cercas e barreiras, expressões concretas da propriedade privada do solo urbano e da terra, há de se cercar “continuamente de pessoas, de testemunhas de sua eficácia” e de criar espaço livre (Benjamin, 1986, p. 188). Em uma assembleia da ocupação Silvestre declara: “Se nos ameaçam para que saiamos, agora mais ainda é que vamos ficar e fincamos aqui raízes que nem o medo arrancará da terra” (Silvestre, 2019a, p. 25, grifos do original). . Em vez de frisar seu próprio temor ou o dano psicológico e físico que tal ameaça porta, Silvestre foca nas histórias de sua juventude e nos saberes e trajetórias dos habitantes da ocupação que lhe dão força. A moradora da ocupação Dona Francisquinha ganha protagonismo como um exemplo dos “sábios dos bairros e favelas” que, ao contrário de “sábios das universidades”, valorizam e querem entender “a história que levou uma pessoa até o ponto de contato em que a conheceram” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 23). Há nessa atitude uma convicção de que a experiência é fonte de sabedoria, a história do outro tem valor e os aspectos heterogêneos dos sujeitos fortalecem uma comunidade (Collins, 2000COLLINS, Patricia Hill (2000). Black Feminist Thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Nova York: Routledge., p. 257-60). Dona Francisquinha, ao intuir as aflições de Silvestre, prevê que ela terá sete sonhos durante uma semana que vão relatar “histórias que já viveu em sua vida” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 29, grifos do original). A narradora deve escrever esses sonhos, porque, segundo Dona Francisquinha, para que ela possa melhorar do rebuliço dos guerreiros “precisa me contar de onde você vem” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 29, grifos do original). Essa prescrição fornece à narradora a coragem de contar seu passado, algo que será de suma importância, porque ela “habitava dois mundos ao mesmo tempo” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 37) e “parecia uma pessoa inventada. Ninguém tocava minha origem e, quando contada, ela nunca parecia fazer sentido, tão miserável era a história e tão robusta de coragem eu me mostrava” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 24). Para sentir-se completa, ela precisava que sua liderança e sua posição social não silenciassem a miséria de sua infância e a fome que rodeava (e ainda rodeia) a sua vida e as daqueles que sentem o “vão que cresce sob a pele que cobre as costelas à vista” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 18). Assim, Dona Francisquinha cria espaço para a narradora Silvestre enfrentar suas memórias e traumas por meio do ato de contar histórias.

Mesmo sem compartilhar todas as crenças de Dona Francisquinha, a narradora entende que sonhar, lembrar, escrever e aprender as tradições ancestrais têm fortes propriedades curativas. A princípio, a narradora “não acreditava em todas aquelas crendices” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 29), mas depois de começar a ter os sonhos preditos ela reconhece que “Dona Francisquinha era tão sábia que não houve espaço para que eu pudesse duvidar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 60). Como é característica da autoficção, não importa se esse detalhe é ficcional ou verdadeiro; de todo modo, tem importância na narrativa porque enriquece o desenvolvimento das personagens e de sua relação (Schmitt, 2010SCHMITT, Arnaud (2010). Making the case for self-narration against autofiction. Auto/Biography Studies, Carrollton, v. 25, n. 1, p. 122-137. https://doi.org/10.1080/08989575.2010.10815365
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, p. 128-9). A narradora mostra um respeito profundo pelo conhecimento favelíndio (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 41), mas não entendia totalmente os efeitos que os relatos de seus sete sonhos, escritos entre as Notas 4 e 10, teriam em sua trajetória de vida (“não era muito fácil porque se tratava exatamente de remexer nas sombras, e a menina em mim sentia medo do escuro”) e “racionalidade comunitária” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 54). Mesmo assim, ela segue as instruções da anciã-benzedeira que influencia o caminho e a estrutura narrativa do texto.

Depois da ameaça de morte, Silvestre conta que Zé Neto, “sentado à porta do barraco”, serviu de “guardião do meu sono” e “não haveria mesmo um guardião mais dedicado que ele” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 27). Zé Neto é um sujeito que muitos teriam descartado como um alcoólatra inútil que passa “quase a madrugada toda […] com sua garrafa de cachaça” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 23). No entanto, a narradora compreende seu alcoolismo e seu desassossego como socialmente produzidos pela violência da urbanização capitalista, aquela que produz o dano e o sofrimento cotidiano da falta ou da precariedade da moradia (a negação da habitação pela propriedade privada do solo), de uma vida de múltiplos riscos (a desigualdade do planejamento urbano mediado pelo Estado e pelo mercado) e de um cotidiano de interdição ao direito à cidade (Sampaio, 2015SAMPAIO, Renata (2015). A violência do processo de urbanização. In: CARLOS, Ana Fani (org.). Crise urbana. São Paulo: Contexto. p. 55-84.; Carlos; Prieto, 2021CARLOS, Ana Fani; PRIETO, Gustavo (2021). San Pablo: neoliberalismo y reproducción espacial. Punto Sur, Buenos Aires, n. 4, p. 72-98. https://doi.org/10.34096/ps.n4.10403
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). Vastos contingentes populacionais, especialmente moradores da periferia, das favelas e de ocupações, são sujeitos às urgências da privação do urbano: lidar com enchentes, deslizamentos, muito trânsito, baixos salários, pouca comida, falta de água, hospitais precários e toda sorte de alienação do trabalho. Ao retratar Zé Neto, ela segue a tendência dos “sábios dos bairros e favelas” de saber a história de cada um, na perspectiva de que “só pode compreender a vida do mundo, quem conhece a vida dos bairros” (Silvestre, 2018bSILVESTRE, Helena (2018b). Do verbo que o amor não presta. São Paulo: Sarau do Binho/Felizs., p. 86):

Ele tinha muitos filhos e uma companheira, mas um morro veio abaixo durante um temporal e esmagou a todos eles. O Zé Neto, que estava no trabalho foi avisado do que estava acontecendo e trabalhou com os bombeiros em busca do que nunca mais encontrou: família, acolhida e sossego. Desde então ele bebia, porque a tristeza dentro dele não matava a sede nunca, e ele também parou de cantar (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 23-24).

Assim, a narradora frisa a privação das classes populares forçadas a morar em encostas de morros, em “barrancos onde só os engenheiros da fome podem construir” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 41), “na margem do córrego” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 126) e em casas com infraestrutura precária — “quentes demais no verão, e frias demais no inverno” (Silvestre, 2018bSILVESTRE, Helena (2018b). Do verbo que o amor não presta. São Paulo: Sarau do Binho/Felizs., p. 85) — e suscetíveis às “queimadas, inundações e secas produzidas pela ganância incansável do sistema capitalista, patriarcal e colonizador” (Silvestre, 2021aSILVESTRE, Helena (2021a). Alianças antissistema: varrer as ruínas e adiar o fim dos mundos. In: KRENAK, Ailton; SILVESTRE, Helena; SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos no mesmo mundo. Belo Horizonte: Autêntica. p. 39-61., p. 43).

Silvestre salienta a potência e a humanidade de cada ser sem julgar um indivíduo por forças sociais violentas fora de seu controle. A perspectiva etnográfica do livro explicita-se: Silvestre realiza um exercício de alteridade radical em que, ao entender o outro da perspectiva de suas dores, conflitos, sonhos, filosofias e projetos, descobre contraditoriamente a si mesma e sua comunidade compartilhada. A forma da narração contraria a tendência conservadora de responsabilizar os próprios indivíduos por sua condição de pobreza como se suas características individuais atomizadas, e não as injustiças socioespaciais, explicassem essa realidade (Gowan, 2010GOWAN, Teresa (2010). Hobos, hustlers, and backsliders: homeless in San Francisco. Mineápolis: University of Minnesota Press., p. 262).

A narradora desafia um cotidiano normatizado propondo outras relações entre a mulher e a casa que possibilitam novas/outras oportunidades para conviver e trocar histórias. Ela rejeita o sonho capitalista da casa própria, realizado como propriedade privada individual e destituído de uma relação comunitária, desejando, ao contrário, uma moradia coletiva mediada pela ação política de ocupar, vivida como prática socioespacial de resistência. A casa no capitalismo tem seu sentido reduzido e degradou-se em mercadoria. O ato de habitar reduziu-se ao habitat. Habitar é muito mais amplo que o habitat. O habitat é a funcionalidade de morar em dado fragmento do espaço, um ato localizacional mediado pela propriedade privada. Habitar é o espaço da apropriação, da realização da humanidade em todas as suas potencialidades coletivas (Lefebvre, 1965LEFEBVRE, Henri (1965). Préface. In: RAYMOND, H.; HAUMONT, N.; DEZÈS, M. G.; HAUMONT A. (org.). L'habitat pavillonnaire. Paris: Centre de Recherche de l'Urbanisme. p. 3-25.; Pádua, 2019COLETIVA COMBAHEE RIVER (2019). Manifesto da Coletiva Combahee River. Tradução de Stefânia Pereira e Letícia Gomes. Coletiva Plural, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 197-207. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159864
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).

A noção de coletivo da narradora inclui um desejo de ouvir e ser ouvida: “descobri cedo uma necessidade essencial de comunidade” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 63, grifo do original) que, na vida adulta, tomou a forma de militar “intensamente em ocupações de terra urbana” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 69). A comunidade, instituída nas ocupações, apresenta um sentido de uso e apropriação do espaço na busca de realização plena do habitar e da totalidade da humanidade nos atos concretos da vida. O bairro e o espaço público, quando compartilhados entre os moradores, são carregados de referências concretas e vividas (Pádua, 2019COLETIVA COMBAHEE RIVER (2019). Manifesto da Coletiva Combahee River. Tradução de Stefânia Pereira e Letícia Gomes. Coletiva Plural, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 197-207. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159864
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) que subvertem a dominação normativa. Para além da privação, das ameaças de remoção e da fome que ronda as ocupações, há também a utopia, a solidariedade orgânica, o trabalho coletivo e o lúdico: “a gente brinca com as crianças e anda descalços na terra, a gente fuma cachimbo e anda no meio do mato” e “a gente descasca mil quilos de legumes ganhados na xepa da feira e faz a mágica do caldeirão que alimenta os batalhões que dividem o dia em fazer banheiros coletivos ou em marcha pelas cidades a dizer para os governos que não morreremos calados” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 28).

Apesar de ser um texto híbrido que mescla biografia e ficção, Notas sobre a fome segue o conceito de Julián Fuks (2019)FUKS, Julián (2019). Fichamento: Julián Fuks. Entrevistado por Paula Carvalho. Quatro Cinco U. Disponível em: www.quatrocincoum.com.br. Acesso em: 6 mar. 2023. de “literatura ocupada” que “não quer se esquivar do presente, não quer se esquivar da política, não quer esquecer tudo o que nos assola. Uma literatura que se faz rua, praça, prédio, escola, e que deixa que reverberem em suas páginas as muitas vozes que gritam pela cidade” (Fuks, 2019FUKS, Julián (2019). Fichamento: Julián Fuks. Entrevistado por Paula Carvalho. Quatro Cinco U. Disponível em: www.quatrocincoum.com.br. Acesso em: 6 mar. 2023.). Ao longo do livro, as histórias que Silvestre conta e como ela as conta sublinham a coletividade que ela deseja e a potência de cada ser humano.

O CORPO NARRADO COMO TERRITÓRIO DA DESIGUALDADE E CRIAÇÃO DE DEVANEIO

Na forma de contar sua própria história e as histórias de outras pessoas que passam fome, Silvestre propõe o duplo papel do corpo como território da desigualdade estrutural e da criação de devaneio. Ela descreve o corpo-fardo como ponto de partida: “Minha condição de classe, de não-possuidora de absolutamente nada além de mim mesma, carregando, até mesmo, essa única propriedade como o fardo que se tem de preservar e nutrir contra toda guerra e escassez, fabricadas pelo progresso do qual somos vítimas” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 71). O corpo é uma “carne histórica” em que o “trabalho invisível”, “não pago” e “saqueado” das mulheres, negras e indígenas medeia a indissociabilidade entre patriarcado, capitalismo, colonialismo e racismo (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 97). Tal análise vincula-se com Angela Davis (2011)DAVIS, Angela (2011). As mulheres negras na construção de uma nova utopia. Conferência realizada na I Jornada Cultural Lélia Gonzales. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/. Acesso em: 19 ago. 2022.
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, na perspectiva de que as intersecções entre raça, classe e gênero (e também etnia, povos, sexualidade e territórios) são categorias que existem em relações que são mútuas e outras que são cruzadas e de que “ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras” (Davis, 2011DAVIS, Angela (2011). As mulheres negras na construção de uma nova utopia. Conferência realizada na I Jornada Cultural Lélia Gonzales. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/. Acesso em: 19 ago. 2022.
https://www.geledes.org.br/as-mulheres-n...
).

Em um poema escrito em espanhol — uma escolha que chama a atenção para a solidariedade com lutas feministas pelo território da América Latina hispanofalante —, Silvestre afirma que seu corpo “es mi territorio” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 124). Cherríe Moraga (1993)MORAGA, Cherríe (1993). Queer Aztlán: the re-formation of Chicano tribe. In: MORAGA, Cherríe. The last generation. Boston: South End Press. p. 145-174., refletindo sobre o legado das formas pelas quais os colonizadores europeus exploraram e expropriaram os corpos e as terras dos colonizados, propõe que “a terra continua sendo o terreno comum para todas as ações radicais […]. Para mulheres, lésbicas e homens gays, terra é aquela massa física chamada nossos corpos” (Moraga, 1993, p. 173). Edward Soja (1996)SOJA, Edward W. (1996). Thirdspace: Journeys to Los Angeles and Other Real-and-Imagined Places. Hoboken: Blackwell. enuncia que, para grupos subalternos, o corpo transforma-se em “um microcosmo afetivo para todas as outras espacialidades” (Soja, 1996, p. 112). Ana Fani Carlos (2014)CARLOS, Ana Fani (2014). O poder do corpo no espaço público: o urbano como privação e o direito à cidade. GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 472-486. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2014.89588
https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892....
enfatiza que o corpo tem uma função de mediação social. Da presença do corpo no espaço público, evidencia-se o sentido coletivo de habitar a cidade. O modo como os corpos transitam nos espaços-tempo de realização da vida cotidiana é permeado por acessos normatizados e diferenciados. Os corpos são submetidos à coação da propriedade privada do solo urbano, o que traz em seu âmago aquilo que tem a potência de negar essa situação (Carlos, 2014). Ou seja, o corpo é simultaneamente individual, forma primeira de apropriação do mundo, e coletivo, visto que está imerso na dialética subordinação ao mundo da mercadoria, na racialização das classes sociais e na lógica binária de gênero e subversão, em potência, desses termos.

Silvestre adiciona a fome a essas teorizações sobre a relação entre corpo e território vendo no crime da fome uma das engrenagens de interdição aos desejos coletivos e radicais. É uma conexão que ela articula por meio da “raiva que a fome abre na boca que tem bem no meio da barriga do mapinguarí” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 40). Verónica Gago (2020)GAGO, Verónica (2020). A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Tradução de Igor Peres. São Paulo: Elefante. explicita a ideia-força de corpo-território, conceito político que revela como “a exploração dos territórios comuns e comunitários (urbanos, suburbanos, camponeses e indígenas) implica violentar o corpo de cada um e o corpo coletivo por meio da espoliação” (Gago, 2020, p. 107). Os corpos famintos, debilitados, oprimidos e pauperizados são sínteses da desigualdade socioespacial e materializam-se de forma explícita nas periferias urbanas e nas ocupações.

A narradora de Notas sobre a fome concebe o corpo do subalterno como território concreto dos danos da comida industrializada, pouco nutritiva, feita mais para o lucro dos patrões das empresas e dos grandes proprietários de terra do que para o bem-estar do povo. Com ironia, ela faz a pergunta para o balconista de uma lanchonete e provoca o leitor: “O que tem aí pra alguém que está com fome? E que não dê muito dinheiro ao seu patrão…” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 110). Como forma de combater esse envenenamento dos corpos e o lucro desmedido para os que transformam alimentos em mercadorias, ela dedica-se à agricultura, especialmente à agroecologia, e ao questionamento da concentração fundiária que atravessa o campo e a cidade. A narradora argumenta que “a agroecologia poderia figurar como certo horizonte — não futuro, mas passado — de como a vida pode se arranjar sem injustiça, exploração, opressão e subalternização de nenhuma forma de vida, humana e não humana” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 133). É necessário que haja acesso à comida nutritiva e sem veneno, um desejo impedido pelas prioridades das corporações que dominam o sistema agroalimentar. Articuladamente, a narradora deseja acesso à terra onde se possa plantar, trabalhar e viver, perspectiva bloqueada pela aliança entre terra e capital que domina o país (Prieto, 2017). Ela então questiona: “O que fazer neste país onde a terra está super concentrada? Onde o colonialismo marcou com ferro quente a divisão racial entre classes? O que fazer se a propriedade privada bloqueia a reconexão com a terra para manter nossos braços acorrentados à moenda do desenvolvimento?” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 134).

Nessa mesma nota, ela questiona como “um homem, evidentemente da universidade” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 133) conta sua própria história em uma reunião sobre agroecologia em que a dúzia de pessoas presentes se apresentou “falando da sua contradição” com o assunto (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 132). Esse homem apenas informou seu nome e que “o que me traz aqui é que gosto de plantar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 133). No entanto, a narradora, interiormente refletindo sobre a posição de classe e o capital cultural do universitário, critica a minibiografia apresentada e a recusa de falar de sua contradição constitutiva com a agroecologia:

Em sua condição ele não pode apenas negar-se a participar, não pode apenas recusar seu prêmio no jogo meritocrático do capital. É essencial que o faça, é apaixonante que o faça, porque ao fazê-lo se recusa a apropriar este sentimento transformando-o em mais uma pecinha do saber ocidental encaixotado (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 133-4).

Assim, a narradora reflete sobre o poder da narração de si mesmo para transformar o status quo ou para mantê-lo, clamando pela necessidade de narrativas menos esquemáticas.

Além de sua preocupação com o corpo faminto, Silvestre também mostra, no conteúdo e estilo do texto, que o corpo necessita e procura oportunidades lúdicas e criativas de cantar, tocar, dançar e escrever. Essas atividades artísticas fazem parte do descobrimento da amplitude do desejo de Silvestre. Ela diverte-se dançando, tocando e cantando nas ocupações. tatiana nascimento (2018)10 10 O texto originalmente publicado coloca o nome da autora com letra minúscula. , referindo-se às escritoras negras e LGBTQI+, afirma um “direito ao devaneio” que também se nota, embora o contexto seja outro, em Notas sobre a fome: “Assim como temos muito contra o que resistir pra sobreviver a partir da força, temos muito de fartura, abundância, sabedoria, devaneio, conexão ancestral que nos permite (bem) viver a partir da graça” (nascimento, 2018, p. 16). A criatividade do texto de Silvestre anuncia esse direito ao devaneio — muitas vezes descoberto na comunidade da ocupação —, enquanto simultaneamente mostra o dever de denunciar. Audre Lorde (2019LORDE, Audre (2019). Uses of the Erotic. In: BROWN, Adrienne Maree (org.). Pleasure activism: the politics of feeling good. Chico: AK Press. p. 27-35., p. 33) declara que

ao começarmos [as mulheres] a reconhecer nossos sentimentos mais profundos, desistimos de nos satisfazer com o sofrimento, a autonegação e com o embotamento que muitas vezes parece ser sua única alternativa a isso em nossa sociedade. Nossos atos contra a opressão se tornam íntegros, motivados e empoderados desde dentro.

No estilo de Lorde (2019)LORDE, Audre (2019). Uses of the Erotic. In: BROWN, Adrienne Maree (org.). Pleasure activism: the politics of feeling good. Chico: AK Press. p. 27-35., a narradora de Notas sobre a fome procura satisfação nos arranjos alternativos das ocupações: “Esse conhecimento profundo e insubstituível de minha capacidade de alegria vem exigir de toda a minha vida que seja vivida dentro do conhecimento de que tal satisfação é possível, e não tem que ser chamado de casamento, nem deus, nem vida após a morte” (Lorde, 2019, p. 31). Silvestre raramente faz referência a seus casamentos ou ao desejo sexual11 11 E quando concretiza narrativamente esse desejo sexual são sujeitos sociais inesperados: um camponês arrancador de mandioca, “o mais esquisito foi exatamente o que pinçou meu olho […], se eu fosse mata, acho que ele comia” (Silvestre, 2019a, p. 50-51) e um padre militante que conheceu “fechando as avenidas / de São Luis” e na “vista de alcântara / lembrava o cheiro do pecado / Capital” (Silvestre, 2019a, p. 108). . Assim, abre espaço para pensar em outros arranjos domésticos não hegemônicos e outras formas de desejo menos esperadas na literatura para elaborar sua capacidade de alegria e transformação socioespacial fora dos padrões estabelecidos. Outros textos escritos nos últimos anos por mulheres brasileiras — como Carol Bensimon, tatiana nascimento, Nanda Fer Pimenta, Cristiane Sobral, Piera Schneider, Kika Sena e Katiana Souto — sublinham a diversidade de desejos corporais para além de normas eurocêntricas, cis, hetero e monogâmicas, mas Notas sobre a fome preocupa-se, ao contrário, com o desejo coletivo, uma ocupação coletiva do desejo, que também foge dessas mesmas normas (Beal, 2021). A elaboração criativa de um desejo não normativo expõe a opressão por meio da celebração, assim mantendo a política da denúncia, mas com o júbilo do devaneio.

CONCLUSÃO

No que se refere à narração, a constante movimentação da narradora inquieta — que se mobiliza de uma moradia a outra, de uma nota a outra, de um gênero discursivo a outro, de uma reunião a outra e de uma contradição a outra — reflete sua tendência de nunca estar satisfeita com a vida tal como estabelecida de antemão. Sempre procura novas histórias e novos interlocutores. A presença de vários interlocutores aos quais cartas específicas são direcionadas (Dona Francisquinha, Isabelle Stengers e o feminismo branco) nega a possibilidade de imaginar o que Umberto Eco (2004)ECO, Umberto (2004). Six walks in the fictional woods. 8. ed. Cambridge: Harvard University Press. nomeia “um leitor modelo” no singular. Enquanto muitos romances apresentam uma história das perspectivas de vários narradores para enfatizar a subjetividade, a narradora de Notas sobre a fome escreve para vários interlocutores imaginários para enfatizar a subjetividade e a posicionalidade.

Essa problematização de como expressar a subjetividade na narração lembra os elos entre o desejo, a narrativa e a terra delineados em Torto arado, o romance de Itamar Vieira Junior de 2018. Nesse romance, uma fala do patriarca Zeca Chapéu Grande sintetiza como o texto une espaço, subalternidade e desejo ocupado por sujeitos prenhes de história: “para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho nela” (Vieira Junior, 2018, p. 196). A frase pode ser interpretada de múltiplas formas. Caso a família do Zeca Chapéu Grande — descendente de escravizados africanos e que mora em um latifúndio no Brasil em meados do século XX — não cultivasse a terra do fazendeiro branco, perderia a possibilidade de morar e plantar nela, arriscando assim morrer. A terra que eles ocupam não pode ser herdada nem vendida; nesse sentido, sem trabalho, a terra não tem nenhum valor para eles. Também, sem o trabalho camponês, a terra não é produtiva. A produtividade do solo depende de trabalhadores explorados. Todos os membros da família do Zeca Chapéu Grande se identificam fortemente com a terra que cultivam e que os sustenta, mas tomam posições divergentes perante o risco de lutar pelos documentos da terra que habitam há anos, mas que não possuem legalmente. Para os camponeses, a terra é trabalho e possibilidade de reprodução da vida; para os latifundiários, ela é um negócio e condição para sua reprodução econômica. Essa tensão é central para a narrativa contada por três perspectivas diferentes.

Um século separa a temporalidade da enunciação de Zeca Chapéu Grande e as reflexões da narradora de Notas sobre a fome. No entanto, a fome, a exploração e os conflitos fundiários continuam. Os dois textos frisam que a luta pela terra é uma luta pela vida. Se a narradora de Notas sobre a fome traduzisse a frase de Zeca Chapéu Grande para sua realidade nas ocupações, arriscamos que seria “para gente como a gente a terra só tem valor se ninguém passa fome nela”. A narradora não estará satisfeita até a fome acabar, não apenas a fome dela, mas a fome de todos. É um desejo coletivo, revolucionário, solidário e corpóreo articulado por intermédio de histórias. Em um texto de 2021, Silvestre elabora a relação entre “comunidades urbanas empobrecidas” (Silvestre, 2021aSILVESTRE, Helena (2021a). Alianças antissistema: varrer as ruínas e adiar o fim dos mundos. In: KRENAK, Ailton; SILVESTRE, Helena; SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos no mesmo mundo. Belo Horizonte: Autêntica. p. 39-61., p. 58) e a terra, que poderia ser um resumo das lutas das personagens de Torto arado ou de Notas sobre a fome: “Somos os condenados da terra, desterrados e sem-terra, descobrindo lentamente de onde viemos e aquilo que já pudemos alcançar um dia, quando pudemos pertencer a alguma terra, a algum lugar” (Silvestre, 2021aSILVESTRE, Helena (2021a). Alianças antissistema: varrer as ruínas e adiar o fim dos mundos. In: KRENAK, Ailton; SILVESTRE, Helena; SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos no mesmo mundo. Belo Horizonte: Autêntica. p. 39-61., p. 53). Essa descoberta requer a recontagem e o compartilhamento de histórias do passado. A publicação desses dois livros e sua recepção favorável indicam a urgência de narrar as relações entre terra, desejo, fome e direitos de formas inovadoras e criativas que reconheçam o trabalho já feito e o que está por vir para a realização de uma sociedade justa e radicalmente transformada. Ademais, Vieira e Silvestre — com a inclusão de múltiplos narradores no primeiro caso e de múltiplos interlocutores e gêneros discursivos no segundo — evocam o problema da narração e a necessidade contínua para novas histórias.

  • 1
    O livro foi publicado de forma independente com o apoio da revista Amazonas e do Sarau do Binho. Em 2021, foi relançado pela editora Expressão Popular.
  • 2
    Nós, os dois autores deste texto, não temos conhecimento pessoal da fome. Reconhecemos que nossa própria posição como pesquisadores brancos com financiamento de pesquisa e emprego de período integral em uma universidade influencia nossas perspectivas e visões de mundo. Ademais, Sophia como estadunidense, Gustavo como homem e nós dois como brancos economicamente privilegiados pertencemos a grupos que historicamente tiveram o poder de definir a produção artística estabelecendo cânones e interpretando, classificando e categorizando a arte não hegemônica. Não raro, há até mesmo um processo de usurpação do protagonismo social e político das classes populares e povos num moto-contínuo de invisibilização de gênero, raça, classe, sexualidades e territórios. Embora reconheçamos nossa própria posicionalidade e nossa incapacidade de falar por sujeitos, grupos e classes aos quais não pertencemos, procuramos contestar critérios de valor hegemônicos, especialmente a tendência de ignorar o mérito estético de textos de autores subalternizados. Valorizamos práticas de conhecimento e estéticas que historicamente têm sido silenciadas pela academia e temos um firme compromisso com a solidariedade entre diferentes como princípio político em termos de teoria e método.
  • 3
    O livro Notas sobre a fome contém três epígrafes: um trecho de Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo) e dois fragmentos de poesia de Solano Trindade (Canto dos Palmares e Tem gente com fome). Ambos os autores, respectivamente nas décadas de 1960 e 1940, expuseram em sua produção artística a problemática da fome e romperam com o silêncio negador desta que é uma das centrais contradições brasileiras, qual seja: uma expressiva produção de alimentos em um país agroexportador que ainda possui dezenas de milhões de pessoas que passam fome cotidianamente. O médico e geógrafo Josué de Castro, uma das pessoas a quem Silvestre agradece como uma referência importante para a escrita do livro, produziu obras importantes (tais como Geografia da fome e Geopolítica da fome) e já denunciava que a fome era (e ainda é) um problema político. Destaca-se que, em 2022, 33 milhões de brasileiros não têm o que comer e mais da metade da população do Brasil (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau (Rede Penssan, 2022). Paira um silêncio sobre a problemática da fome, tanto em termos de um negacionismo da realidade concreta por aqueles que não experimentam uma vida de privação de comida e calam sobre a fome latente quanto pelos que passam fome, já que na perspectiva de uma filosofia popular-periférica, falar sobre um problema atrai mais problemas: “Ninguém que não atravessou a fome poderia compreender completamente um faminto. E aqueles que dela comungam, pouco falam a respeito, porque falar de fome chama mais fome” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 44).
  • 4
    Há notas que revelam experiências em outros contextos metropolitanos, tais como Rio de Janeiro (Nota 4), Salvador (Nota 6), São Luís (Nota 22) e em espaço-tempo não definido em diálogos que ocorrem na cidade, nas matas e no campo com povos indígenas, quilombolas e camponeses.
  • 5
    Silvestre constrói-se como alguém caraterizada por seu desassossego (físico, político, intelectual e amoroso), como se vê nas seguintes citações: “minha vida de cigana” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 55); “eu ouvia desconfiadamente sobre quase tudo” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 67); “casada e divorciada por pelo menos três vezes” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 91); “No me pidas para quedar” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 120) e “Eu queria seguir me movendo” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 132).
  • 6
    Tradução nossa.
  • 7
    A forma sensível de narrar a situação da mãe e do filho provoca raiva pela fome socialmente fabricada. Raiva que aparece também em outros momentos do livro, na privação da escolha dos alimentos que se deseja e não se pode acessar pela falta de dinheiro — “o ódio com que alimento minhas lombrigas silenciadas as deixou vivas e sempre selvagens” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 38) — e na melancolia da morte que chega antes da terra, da alimentação digna e da justiça socioespacial — “triste então é essa vida, tão adiada, tão sonhada de justiça e de pão, que nunca chega, e, aliás, a morte quase sempre chega primeiro. No barro que dá de comer aos mortos, a fome não existe mais” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 127).
  • 8
    Tradução nossa.
  • 9
    A ameaça de despejo e de expulsão do espaço ocupado adquire o sentido de “caráter destrutivo” em um prisma benjaminiano. A possibilidade da destruição estabelece caminhos por toda parte, mas para se criar espaço diante de muros, cercas e barreiras, expressões concretas da propriedade privada do solo urbano e da terra, há de se cercar “continuamente de pessoas, de testemunhas de sua eficácia” e de criar espaço livre (Benjamin, 1986, p. 188). Em uma assembleia da ocupação Silvestre declara: “Se nos ameaçam para que saiamos, agora mais ainda é que vamos ficar e fincamos aqui raízes que nem o medo arrancará da terra” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 25, grifos do original).
  • 10
    O texto originalmente publicado coloca o nome da autora com letra minúscula.
  • 11
    E quando concretiza narrativamente esse desejo sexual são sujeitos sociais inesperados: um camponês arrancador de mandioca, “o mais esquisito foi exatamente o que pinçou meu olho […], se eu fosse mata, acho que ele comia” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 50-51) e um padre militante que conheceu “fechando as avenidas / de São Luis” e na “vista de alcântara / lembrava o cheiro do pecado / Capital” (Silvestre, 2019aSILVESTRE, Helena (2019a). Notas sobre a fome. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial., p. 108).

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Editoras: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2022
  • Aceito
    12 Abr 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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