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Crescer consumindo na periferia: um olhar sobre o consumo em No país da infância, de Cris Lira

Growing up as a consumer in the periphery: a look at consumption in Cris Lira's No país da infância

Crecer consumiendo en la periferia: una mirada sobre el consumo en No país da infância, de Cris Lira

Resumo

Neste artigo, que tem como foco uma análise da representação do consumo na periferia no livro de contos No país da infância (2019), da escritora brasileira Cris Lira, argumento que, por meio de uma perspectiva cotidiana, no sentido lefebvriano, que vê o cotidiano como algo “humilde e sólido”, as histórias de Lira refletem e ao mesmo tempo constroem experiências e narrativas afetivas e críticas do que significa/significou crescer na periferia brasileira nos anos 1980 e 90 diante das pressões da sociedade de consumo. Demonstro que Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.), ao imaginar os usos de várias mercadorias, identifica o que Hans Ulrich Gumbrecht (2006GUMBRECHT, Hans Ulrich (2006). Aesthetic experience in everyday worlds: reclaiming an unredeemed utopian motif. New Literary History, v. 37, n. 2, p. 299-318.) chama de “crises”, ou seja, pequenas interrupções do cotidiano que a experiência estética com bens de consumo pode produzir. Nessa perspectiva, No país da infância tece uma crítica esperançosa do cotidiano da sociedade de consumo, alinhando-se a autores como Marcus Vinícius Faustini (2009FAUSTINI, Marcus Vinícius (2009). Guia afetivo da periferia. Rio de Janeiro: Aeroplano.) em sua representação da periferia, conforme demonstro em outro trabalho (Bezerra, 2022Bezerra, Lígia (2022). Everyday consumption in twenty-first-century Brazilian fiction. West Lafayette: Purdue University Press.).

Palavras-chave:
cotidiano; consumo; periferia

Abstract

In this article, which focuses on the representation of consumption in the periphery in the short story collection No país da infância (2019), by Brazilian writer Cris Lira, I argue that, through an approach to everyday life, in Henri Lefébrvre's sense, which frames the everyday as that which is “humble and solid,” Lira's stories reflect and at the same time create affective and critical experiences of what it means to grow up in the Brazilian periphery in the 1980s and 1990s in the face of the pressures of consumer culture. I argue that Lira, by imagining the uses of several commodities, identifies what Hans Ulrich Gumbrecht (2006GUMBRECHT, Hans Ulrich (2006). Aesthetic experience in everyday worlds: reclaiming an unredeemed utopian motif. New Literary History, v. 37, n. 2, p. 299-318.) calls “crises,” that is, small interruptions of everyday life (302) that the aesthetic experience with commodities is capable of producing. From this perspective, No país da infância makes a hopeful critique of consumer society, aligning itself with writers such as Marcus Vinícius Faustini (2009FAUSTINI, Marcus Vinícius (2009). Guia afetivo da periferia. Rio de Janeiro: Aeroplano.) in their representation of the periphery, as I argue elsewhere (Bezerra, 2022Bezerra, Lígia (2022). Everyday consumption in twenty-first-century Brazilian fiction. West Lafayette: Purdue University Press.).

Keywords:
everyday life; consumption; periphery

Resumen

En este artículo, el cual hace un análisis de la representación del consumo en la periferia en el libro de cuentos No país da infância (2019), de la escritora brasileña Cris Lira, argumento que, por medio de una perspectiva cotidiana, en el sentido lefebvriano, que define lo cotidiano como algo “humilde y sólido”, las historias de Lira reflejan e al mismo tiempo construyen experiencias y narrativas afectivas y críticas de lo que significa/significó crecer en la periferia brasileña en los años 1980 y 1990 frente a las presiones de la sociedad de consumo. Argumento que Lira, al imaginar los usos de varias marcancías, identifica lo que Hans Ulrich Gumbrecht (2006GUMBRECHT, Hans Ulrich (2006). Aesthetic experience in everyday worlds: reclaiming an unredeemed utopian motif. New Literary History, v. 37, n. 2, p. 299-318.) llama de “crisis”, o sea, pequeñas interrupciones de lo cotidiano (302) que la experiencia estética con productos puede producir. A partir de esa perspectiva, No país da infância teje una crítica de esperanza de lo cotidiano en la sociedad de consumo, semejante a autores como Marcus Vinícius Faustini (2009FAUSTINI, Marcus Vinícius (2009). Guia afetivo da periferia. Rio de Janeiro: Aeroplano.) en su representación de la periferia, conforme argumento en otro trabajo (Bezerra, 2022Bezerra, Lígia (2022). Everyday consumption in twenty-first-century Brazilian fiction. West Lafayette: Purdue University Press.).

Palabras clave:
cotidiano; consumo; periferia

INTRODUÇÃO

Em seu livro Everyday life in the modern world (1971), Henri Lefebvre (2005LEFEBVRE, Henri (2005). Everyday life in the modern world. Tradução de Sacha Rabinovitch. Nova York: Harper & Row.) define o cotidiano como

what is humble and solid, what is taken for granted and that of which all the parts follow each other in such a regular, unvarying succession that those concerned have no call to question their sequence; thus it is undated and (apparently) insignificant; though it occupies and preoccupies it is practically untellable, and it is the ethics underlying routine and the aesthetics of familiar settings1 1 “Aquilo que é humilde e sólido, o que tomamos como dado e aquilo do qual todas as partes seguem uma a outra em uma sequência tão regular e invariável que aqueles que o experimentam não encontram motivos para questionar tal sequência. Assim sendo, [o cotidiano] é algo não datado e (aparentemente) insignificante; embora ele ocupe e seja motivo de preocupação, é praticamente indescritível e constitui a ética que está na base da rotina e a estética dos contextos familiares” (minha tradução). (Lefebvre, 2005LEFEBVRE, Henri (2005). Everyday life in the modern world. Tradução de Sacha Rabinovitch. Nova York: Harper & Row., p. 24).

Assim sendo, embora banal e aparentemente não importante, o cotidiano é o que nos oferece estabilidade e nos norteia. Em sua repetição, ele pode ser alienante, mas é também o que nos dá sustento para exercer nossas funções diárias. Seu potencial alienante, no entanto, não é totalizante, permitindo assim brechas para que, a cada repetição, a novidade também se torne possível, como afirma o próprio Lefebvre (2005LEFEBVRE, Henri (2005). Everyday life in the modern world. Tradução de Sacha Rabinovitch. Nova York: Harper & Row., p. 340).

Neste artigo, que tem como foco uma análise da representação do consumo na periferia no livro de contos No país da infância (2019), da escritora brasileira Cris Lira, argumento que, por meio de uma perspectiva cotidiana, no sentido lefebvriano, que vê o cotidiano como algo “humilde e sólido”, as histórias da autora refletem e ao mesmo tempo constroem experiências e narrativas afetivas e críticas do que significa/significou crescer na periferia brasileira nos anos 1980 e 90 diante das pressões da sociedade de consumo. Demonstro que Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.), para usar as palavras do antropólogo Daniel Miller (1998MILLER, Daniel (1998). A theory of shopping. Ithaca: Cornell University Press., p. 141), “strive[s] to follow relationships through their expression in everyday worlds”2 2 “Esforça-se para compreender relações por meio de suas expressões no cotidiano” (minha tradução). , representando o consumo como um “act of love”, ou “ato de amor” (Miller, 1998MILLER, Daniel (1998). A theory of shopping. Ithaca: Cornell University Press., p. 155).

Em outras palavras, ao adquirir e consumir produtos, as personagens de Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) cultivam relações interpessoais, apontando para o fato de que, como defendem Mary Douglas e Baron Isherwood (2004DOUGLAS, Mary; ISHEROOD, Baron (2004). The world of goods. Londres: Routledge., p. xxiii), o consumo é uma atividade social e, como tal, é afetado por códigos que não necessariamente o reduzem à manipulação e à irracionalidade. Como ressalta Miller (1998MILLER, Daniel (1998). A theory of shopping. Ithaca: Cornell University Press., p. 141), “shopping is not about possessions per se, nor is it to be about identity per se. It is about obtaining goods or imagining the possession and use of goods”3 3 “Comprar não é sobre os bens em si, nem é sobre identidade em si. É sobre adquirir bens ou imaginar possuir e usar esses bens” (minha tradução). . Ao imaginar esses usos, Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) identifica o que Hans Ulrich Gumbrecht (2006GUMBRECHT, Hans Ulrich (2006). Aesthetic experience in everyday worlds: reclaiming an unredeemed utopian motif. New Literary History, v. 37, n. 2, p. 299-318., p. 302) chama de “crises”, ou seja, pequenas interrupções do cotidiano que a experiência estética com bens de consumo pode produzir. Nessa perspectiva, No país da infância tece uma crítica esperançosa do cotidiano da sociedade de consumo, alinhando-se a autores como Marcus Vinícius Faustini (2009FAUSTINI, Marcus Vinícius (2009). Guia afetivo da periferia. Rio de Janeiro: Aeroplano.) em sua representação da periferia, conforme demonstro em outro trabalho (Bezerra, 2022Bezerra, Lígia (2022). Everyday consumption in twenty-first-century Brazilian fiction. West Lafayette: Purdue University Press.).

As histórias de No país da infância se passam em São Paulo e se confundem com as experiências da própria autora. Como Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.), suas personagens pertencem à classe trabalhadora e crescem na periferia do Brasil dos anos 1980 e 90. Lançado em 2019, o livro de contos com tons de crônica é um dos volumes da Coleção I do Mulherio das Letras, um coletivo idealizado pela escritora brasileira Maria Valéria Rezende em 2017 que ganhou força e impulso internacional promovendo o trabalho de escritoras em face das restritas oportunidades de publicação de vozes femininas na literatura.

Lira tem participado do coletivo desde o início, publicando em diversas coletâneas do Mulherio (Mil e uma Histórias, 2020). Comprometida com o apoio ao trabalho de escritoras, além de conduzir sua pesquisa acadêmica sobre esse trabalho, ela criou em 2019 o canal do YouTube “Vamos ler o Mulherio”, dedicado à leitura de textos de mulheres que têm participado das publicações do Mulherio das Letras (Mil e uma Histórias, 2020). Em entrevista ao canal do YouTube Mil e uma histórias, concedida em junho de 2020, Lira afirma a importância de se ouvir, na literatura brasileira, as histórias de mulheres que não são comumente narradas. Sobre o tema, a autora indaga: “Mas quem vai narrar a operária? Quem é que vai narrar essa empregada doméstica? Quem é que vai narrar aquela história daquele ponto de vista?” (Mil e uma Histórias, 2020, 20m59s-21m7s).

Uma leitura de No país da infância torna evidente que neste livro Lira coloca em prática esse chamado de construção dessas narrativas, focando-se nas dores e delícias de uma infância e adolescência no capitalismo quando se é da periferia. Em outra entrevista, Lira ressalta a importância do cotidiano e do consumo em seu livro aqui analisado. Ela define a estrutura do livro como uma coleção de “pequenos episódios da vida cotidiana” e cita o consumo de certos produtos, como uma tubaína ou um tênis Nike, como episódios importantes que marcam personagens que entendem que “consumir é pertencer” (Poeta Paulo Dutra ComVida, 2023POETA PAULO DUTRA COMVIDA. Episódio 26: Literatura e café. Vídeo. 1 hora, 44 min e 12 s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cj2dSFXyO0Y. Acesso em: 15 jan. 2023.
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, 13:28-14:15).

CONSUMO COMO PERTENCIMENTO, PRAZER E VIOLÊNCIA

A ideia de pertencimento é explorada por Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) em “Desejos”, que conta a história de uma adolescente em São Paulo realizando o sonho de comprar um tênis Nike ao conseguir o seu primeiro emprego. O conto passa-se nos anos 1990, denunciados pela referência à unidade real de valor (URV), unidade de conversão da segunda etapa do Plano Real, arquitetado por um grupo de economistas durante o período em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi ministro da Fazenda.

O Plano Real foi responsável por proporcionar o controle da inflação, que chegou a 2.700% em 1993 (Moraes, 2023MORAES, Maria Fernanda. Plano real, 20 anos: moeda trouxe novo ciclo de desenvolvimento econômico. UoL. Disponível em: https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/plano-real-20-anos-moeda-trouxe-novo-ciclo-de-desenvolvimento-economico.htm. Acesso em: 6 abr. 2023.
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). No início dos anos 1990, a protagonista tinha “13 anos e uma calça legging florida” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 68), uma identidade, portanto, marcada desde as primeiras linhas do conto pelo consumo e tecida em um contexto descrito como uma “época em que um sonho era feito de camisetas verdadeiras da Pakalolo” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., 68). A importância não só de consumir marcas, mas de consumir marcas boas e mercadorias originais, denuncia a natureza relacional do consumo, pois, como apontam as antropólogas Lúcia Scalco e Rosana Pinheiro-Machado (2010SCALCO, Lúcia Mury; PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2010). Os sentidos do real e do falso: consumo popular na perspectiva etnográfica. Revista de Antropologia, v. 53, n. 1, p. 321-359. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
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) em seu estudo sobre o consumo das classes populares, “o ato da compra [está] situado entre o individual e o social, ou seja, [trata-se de] uma ação relacional, cuja escolha está diretamente vinculada a uma rede afetiva singular” (Scalco e Pinheiro-Machado, 2010SCALCO, Lúcia Mury; PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2010). Os sentidos do real e do falso: consumo popular na perspectiva etnográfica. Revista de Antropologia, v. 53, n. 1, p. 321-359. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
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, p. 324). Para a narradora, ter uma camisa original da Pakalolo conferiria certo status no seu círculo afetivo.

Embora não pudesse possuir uma camisa verdadeira da marca — a sua era falsificada, comprada na feira —, a protagonista não hesita em gastar o primeiro salário do emprego de recepcionista em uma de seis prestações de um par de tênis Nike. A mercadoria em questão, conquistada com muito sacrifício, tem tal significado afetivo para a narradora que ela descreve a experiência de sentir os tênis nas mãos pela primeira vez como “se tivesse chegado o dia de um encontro há muito marcado. Aquele aconchego de senti-lo” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., 70). De tão especial, a narradora confessa às vezes nem querer calçar o tênis, por receio de “castigá-lo”.

Sua relação com o objeto desejado revela que, como apontam Scalco e Pinheiro-Machado (2010SCALCO, Lúcia Mury; PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2010). Os sentidos do real e do falso: consumo popular na perspectiva etnográfica. Revista de Antropologia, v. 53, n. 1, p. 321-359. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
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), quando se trata do consumo da classe trabalhadora, “‘[c]oisas boas de verdade’ são obtidas por meio de esforços e proporcionam a possibilidade de manipular a imaginação de classe. Em meio a uma sociedade que discrimina pela renda e pela cor, o sentido de ‘coisa boa’ certamente é mais importante para uns do que para outros” (Scalco e Pinheiro-Machado, 2010SCALCO, Lúcia Mury; PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2010). Os sentidos do real e do falso: consumo popular na perspectiva etnográfica. Revista de Antropologia, v. 53, n. 1, p. 321-359. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
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, p. 353). O nível de importância do tênis Nike para a narradora está diretamente ligado ao desejo de pertencimento a uma juventude que toma o objeto em questão como um símbolo de relevância, em um corpo social no qual o consumo forma parte importante da construção da identidade individual. Em outras palavras, possuir um tênis Nike para uma jovem de 13 anos nos anos 1990 significa ser vista como alguém que tem valor nessa sociedade.

O esforço de gastar todo o salário por seis meses em um único objeto não consiste, assim, em algo irracional. Pelo contrário, ele responde à lógica de uma sociedade na qual para pertencer é necessário consumir. É também dessa posição de sujeito consumidor que vem a reação de ódio da narradora ao perder em um assalto o objeto que acaba de ter conquistado. O assalto, por sua vez, sinaliza a importância simbólica do tênis de marca na sociedade de consumo, objeto desejado e de valor tal que merece entrar no circuito de consumo ao redor do crime, seja para ser consumido por quem se apropria dele durante o assalto, seja para ser vendido por um preço mais acessível a outros consumidores que talvez disponham de recursos ainda mais limitados que os da narradora.

O consumo aparece nos contos de Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) também atrelado ao afeto e ao prazer, particularmente no que diz respeito à comida. No conto que dá nome ao livro, a narradora comenta nostalgicamente sobre a comida preparada pela mãe em domingos ansiosamente esperados, macarrão e carne moída, desfrutados juntamente com um produto industrializado consumido em dias especiais, uma tubaína de tutti-frutti dividida entre as crianças. Tal consumo é experimentado em clima de festa e comunidade:

A casa estava sempre cheia, com um monte de criançada, e a gente brincava de amarelinha e pulava corda na área, que era boa demais para correr porque era lisa, lisa, a gente caía e se acabava de rir.

Os pais e os tios, porque alguém era sempre um deles, jogavam sueca na mesa feita pelo meu pai com restos de madeira encontrados pelas ruas, e tomavam cerveja que a gente bebericava escondido e achava ruim que só. As mães e as tias se aglomeravam na cozinha entre panelas e burburinhos, conversas que eu morria de vontade de ouvir, mas ninguém deixava (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 47).

Tal qual ilustra essa passagem, há muito afeto envolvido no consumo de produtos que remetem a memórias positivas atreladas a relações familiares. Como em “Desejos”, há em certo sentido aqui também a ideia de pertencimento, mas manifestada por meio do consumo de forma um tanto diferente, pois consumir não aparece como uma entrada necessária para ser aceito em um grupo, e sim como um mediador de laços comunitários, algo portanto muito distante da ideia de egoísmo e competição à qual comumente se associa o consumo.

Dessa forma, a narrativa sugere que, na repetição do dia a dia, a comida aparece como uma dessas oportunidades de mudança da qual fala Lefebvre (2005LEFEBVRE, Henri (2005). Everyday life in the modern world. Tradução de Sacha Rabinovitch. Nova York: Harper & Row.). Por outro lado, essa interrupção da rotina de trabalho cria outra rotina, não só positiva, como desejada. Nessa perspectiva, produtos industrializados como o refrigerante ou a cerveja, embora nocivos à saúde, adquirem um sentido para além do mero consumo alienado. Como parte de um cotidiano “humilde e sólido”, esses e outros produtos alimentícios servem para organizar os sentidos, ancorar memórias e criar ou estreitar laços afetivos.

No conto “Três mulheres choram subindo uma ladeira”, o consumo de comida aparece novamente associado à afetividade e a relações familiares, embora dessa vez atrelado à dura experiência do não poder consumir. Nesse conto, a voz narrativa rememora as idas ao supermercado com os pais, as quais ela compara a uma visita à Disneylândia: “Há inúmeras possibilidades. Talvez se ganhe um Ploc. Quem sabe até um chocolate Surpresa. Se ficar quietinha e segurar a minha irmã, é possível que mamãe nos dê uma bala Soft” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 60). Os doces funcionam, então, como objetos de desejo e também de luxo, por causa da sua escassez, uma vez que ficam reservados para as idas ao supermercado. Com essas visitas, a narradora também desenvolve o sentido de agir estrategicamente, passando a entender, por exemplo, que é mais fácil conseguir convencer a mãe do que o pai a comprar uma guloseima para ela e a irmã. Aqui, novamente os produtos industrializados, estes de marcas específicas, em alguns casos com nomes em inglês (Surpresa, Soft, Ploc), ganham um sentido para além da mera alienação, interrompendo o cotidiano com momentos especiais dignos de ficar na memória infantil.

Em uma dessas idas ao supermercado, contudo, a narradora descobre que há limites também para o quanto ela pode manipular a mãe, e esse limite é marcado pela falta de dinheiro. No episódio foco do conto, a narradora tenta convencer a mãe a comprar um doce de amendoim, colocando-o no carrinho de compras sem que ela o veja. Quando a mãe nota o doce, pede à filha que o coloque de volta na prateleira. A menina, porém, decide abrir o doce para pelo menos “sentir o cheiro do doce na língua” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 64) antes de colocá-lo de volta na prateleira. O gerente da loja percebe o que a menina fez e exige que a mãe pague pelo doce. Sem dinheiro para tanto, a mãe vê-se obrigada a deixar um dos itens de necessidade básica para trás, o arroz, para poder arcar com a despesa. No retorno para casa, as três choram em consequência do acontecido, e a menina é castigada pela mãe, que não coloca arroz no seu prato durante o jantar.

Esse episódio condensa várias formas de se relacionar com mercadorias: o prazer do consumo, a afetividade da memória, a experiência estética de contemplar os produtos arranjados nas prateleiras, o aprendizado de como se relacionar com os pais por meio do consumo, bem como a dureza da realidade de se crescer no mundo capitalista quando se vive na periferia e se tem o seu desejo de consumir negado. Apesar de não representado como algo alienante, o cotidiano aqui aparece como algo que pode também ser bastante cruel, uma crueldade diretamente ligada à desigualdade social provocada pelo capitalismo. Assim como o consumo pode ser fonte de prazer e afeto, como nos exemplos anteriores, ele pode também ser fonte de dor e opressão.

Dessa forma, os contos de Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.), embora relativizem a negatividade do consumo, não romantizam a pobreza. Pelo contrário, denunciam as injustiças sociais por trás das relações capitalistas em um país em que pessoas como a mãe da protagonista, para poder pagar por um bem de consumo considerado não essencial, necessita desfazer-se de outro que, sim, é considerado essencial. Como consequência, vê-se como o prazer do consumo nem sempre é possível para a classe trabalhadora, num episódio que se torna ainda mais cruel por se tratar de uma criança a pessoa que está consumindo.

A dureza desse contexto socioeconômico é o foco de “Menino chorão”, no qual a voz narrativa conta a história do pai, um dos muitos nordestinos forçados a migrar para São Paulo em busca de emprego. A história do pai é traduzida em termos do não poder consumir, revelando-lhe o status do que Zygmunt Bauman (2007BAUMAN, Zygmunt (2007). Consuming Life. Cambridge: Polity Press.) chama de consumidor fracassado, o qual o autor define como “people with no market value; they are the uncommoditized men and women, and their failure to obtain the status of proper commodity coincides with (indeed, stems from) their failure to engage in a fully fledged consumer activity”4 4 “Pessoas sem valor de mercado; elas são os homens e mulheres não comodificáveis, e o seu fracasso em obter o status de mercadoria apropriada coincide com (de fato, vem do) seu fracasso de se engajar em uma atividade consumidora de pleno direito” (minha tradução). (Bauman, 2007BAUMAN, Zygmunt (2007). Consuming Life. Cambridge: Polity Press., p. 124).

Da causa da partida — a falta de condição da família de alimentar tantos filhos — ao alcoolismo e ao sonho de ganhar na Tele Sena, que o acompanha 50 anos depois de ter deixado a terra natal, a personagem é condenada a uma vida de dificuldades econômicas que levam à sua exclusão social e que se estendem à sua família. O mundo do consumo permeia o cotidiano desse pai, que, analfabeto, reconhecia poucas palavras, entre as quais marcas como Omo, Brahma e Belmont. Nas lembranças da filha, a juventude do pai está guardada em termos de objetos de consumo: “[O] óculos à John Lennon, a calça boca de sino” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 57). Seu futuro é embalado pelos sonhos de poder um dia comprar uma “casinha… com uma varanda, os cajueiros em flor, as manhãs em busca de rolinhas e o cheiro de café e cuscuz quente invadindo a cozinha” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., 58). Esse sonho lhe é prometido pela cultura de consumo, por meio da televisão na qual acompanha o sorteio da Tele Sena, no entanto a narradora sinaliza a distância entre sonho e realidade, remetendo seus leitores à célebre personagem de Graciliano Ramos Baleia, com a qual compara o pai, em seu “mundo cheio de preás” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., 59).

Juntando duas épocas distintas, mas de semelhantes história e geografia, a autora sugere a reprodução e perpetuação desses consumidores fracassados no tecido social brasileiro. Desfaz-se, assim, a ideia de mérito, um mito do capitalismo segundo o qual todos têm a oportunidade de, com seu próprio esforço, alcançar uma vida próspera (McNamee, 2018MCNAMEE, Stephen J. (2018). The meritocracy myth. Nova York: Rowan and Littlefield., p. 243). O que se vê no caso do protagonista de “Menino chorão” é a transferência de pobreza entre gerações e a quase impossibilidade de se tornar bem-sucedido quando se vem de uma origem econômica tão precária. Como vimos, resta ao protagonista apenas esperar pela sorte5 5 A sorte é um dos fatores não meritocráticos que de fato influenciam no sucesso financeiro de indivíduos (McNamee, 2018, p. 244). de ganhar na Tele Sena.

A figura do pai retorna em “Uma aprendizagem”, no qual Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) conta a história de uma personagem de 10 anos que, como a última linha do conto resume, descobre como “aprendizagens capitalistas magoam” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 37). Também de uma família de classe trabalhadora e sofrendo a opressão da figura paterna, descrita como rei no conto em questão, a personagem revela o machismo que predomina na casa cheia de mulheres, a “rainha gasta” e suas “princesas”, no fato de que o rei não as permite trabalhar. A dura lição aprendida pela protagonista vem de mais uma interação social mediada por uma mercadoria; nesse caso, um brilho labial da marca Avon em formato de morango vendido por uma colega de escola que ajudava a mãe, a qual era vendedora do catálogo da Avon. Por não ter como pagar o produto que havia pedido, a protagonista sofre humilhações da colega, que a chama de pobretona e lança “a pergunta-canivete”: “Por que a sua mãe não vai trabalhar pra dar comida pra você sua esfomeada?” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 37). Aqui o objeto que veicula prazer ao ser consumido perde o seu encanto e se transforma no “brilho apagado e já amargo” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 36). Assim sendo, a autora demonstra mais uma vez a plena consciência de que o significado social do consumo tem várias facetas: ele oferece prazer, comunhão, realização, mas também exclusão e sofrimento.

Além dos contos já analisados, voltamo-nos agora a três outros que trazem a temática da violência contra animais não humanos por meio do consumo, tema bastante relevante para discussões correntes sobre as consequências negativas do consumo para o meio ambiente como um todo. Esses contos são “Ritual de finados”, “Segredos” e “Do Natal”. Em cada um deles, vê-se nas entrelinhas um paralelo entre a violência praticada contra as crianças, de um lado, e os animais servidos na mesa, de outro, revelando a hipocrisia do mundo dos adultos e desvelando os males capitalistas, no contexto do livro, como uma série de relatos do cotidiano da periferia.

A exploração de humanos e outros animais está na base da formação do capitalismo e toma proporções alarmantes com o capitalismo neoliberal. Traçando um histórico da relação entre humanos e outros animais, David Nibert (2002NIBERT, David Alan (2002). Animal rights/human rights: entanglements of oppression and liberation. Oxford: Rowman & Littlefield., p. 143) nota que a opressão sistemática de humanos e outros animais não existia até a formação de uma sociedade agrícola cerca de 10 mil anos atrás. Desde então, sistemas de opressão têm se desenvolvido com base na exploração de humanos e outros animais, numa rede de relações cruéis que se estende desde o uso de cavalos em guerras que serviram para escravizar humanos, invadir terras que passaram a ser usadas para criar mais opressão, dizimar populações pela disseminação de doenças zoonóticas e destruir o meio ambiente. Dessa forma, todo o colonialismo e o nascimento e a expansão do capitalismo têm como base uma complexa rede de opressão:

The profits obtained from such crimes of economic dominations as land expropriation, worker exploitation and the enslavement and brutal killing of millions of animals, spawned even more businesses which, in turn, both facilitated and capitalised on oppressive practices. Ranchers, land speculators, railroad companies, railroad holding-yard operations, corn and other grain producers, commission agents (who managed the sale of animals) packing house buyers, market news services, trans-Atlantic shipping firms, commercial retail operations, marketing firms and advertising, legal and banking services all were among the ventures that formed an early version of what Barbara Noske has termed the ‘animal-industrial complex’6 6 “Os lucros obtidos de crimes de dominação econômica tais como expropriação de terra, exploração do trabalhador e a escravidão e o assassinato brutal de milhões de animais repercutiram em ainda mais negócios que, por sua vez, tanto facilitaram como capitalizaram práticas opressoras. Rancheiros, especuladores de terras, companhias férreas, a operação de pátios ferroviários, produtores de milho e outros grãos, agentes comissionados (os quais administraram a venda de animais), instalações de embalagem e processamento, serviços de mercado, companhias transatlânticas de remessas, operações comerciais de varejo, empresas de marketing e propaganda, serviços legais e bancários, todos estão entre empreendimentos que formaram uma versão inicial do que Barbara Noske chama de ‘complexo industrial de animais’” (minha tradução). (Nibert, 2002NIBERT, David Alan (2002). Animal rights/human rights: entanglements of oppression and liberation. Oxford: Rowman & Littlefield., p. 145-146).

As histórias de Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) falam, ainda que indiretamente, dessa violência capitalista que se estende em redes intrincadas na vida cotidiana. “Ritual de finados” tem como foco os hábitos cultivados pelos vizinhos, parentes e amigos quando alguém morre e, especificamente, o ritual seguido pela mãe da protagonista de fazer com que as crianças, ao chegar de uma ida forçada a um velório e logo depois a um enterro, tirem os sapatos, as roupas e tomem um banho coletivo para evitar trazer para dentro de casa a terra do cemitério. Descrevendo a atitude da mãe com relação às crianças com verbos e expressões como “gritar”, “mandar”, “minha mãe vermelha” — por perceber que a filha ainda tem terra nas unhas na hora da janta —, a narradora comunica a violência sofrida pelas crianças com as imposições dos adultos. Dos gritos à “pisa” que a narradora leva por não ter lavado as unhas direito, trata-se de uma violência que ignora outra, mais sutil, com a qual a narradora enfaticamente marca o fim do conto: “Os animais mortos que com[iam]” postos na mesa (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 18).

Crianças, assim como pessoas com deficiência e outros grupos minoritariamente representados, tendem a ser percebidas como inferiores e, como tais, não se admira que a violência contra esses grupos seja, desde certas perspectivas, aceita e justificável. No caso particular de crianças, o movimento pela educação respeitosa, que tem se espalhado nas redes sociais, tem questionado essa violência. A pedagoga e educadora parental Maya Eigenmann, a qual conta com mais de um milhão de seguidores em sua conta do Instagram, cita trecho do seu livro A raiva não educa. A calma educa (2022), no qual nota: “Bater em adulto é crime, bater em mulheres é crime, maltratar idoso é crime. Bater em crianças até é crime, mas não é condenado pela sociedade” (Eigenmann, 2022EIGENMANN, Maya (2022). Instagram: @maya_eigenmann. Disponível em https://www.instagram.com/p/ClhaUlFJ1J0/?igshid=YmMyMTA2M2Y=. Acesso em: 15 jan. 2023.
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).

Atos de violência contra crianças e animais aparecem também em “Segredos”. Nesse conto, a protagonista narra uma das vezes em que teve de enfrentar uma refeição em que a mãe serviu fígado. Ao sentir o cheiro de fígado cozinhando, a protagonista sente tamanha ansiedade por não suportar comer esse substituto de carne tão comum em casas de baixa renda que acaba quebrando um copo de vidro e acidentalmente cortando-se com os cacos. A mãe reage com certa truculência, como descreve a narradora: “Me levantou do chão por uma orelha enquanto berrava que eu mesma, mesminha, ia arrumar a zona” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 26). Em resposta à pergunta da filha sobre se a mãe estava preparando fígado para o almoço, esta diz, em tom de vilã de contos de fadas, na percepção da narradora: “Você vai ver” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 27). Criar esse suspense funciona, para a filha, como uma forma de maltratá-la, escalando uma ansiedade revelada ao longo do conto pela repetição da onomatopeia “tum-tum-tum” para referir-se aos batimentos cardíacos da narradora. A violência para com o animal que é ali consumido se revela, por sua vez, na escolha lexical para referir-se à comida em questão. Usando palavras e expressões como “a morta”, “o horror temperado” e “a pequena comedora de bichos” — esta última expressão para referir-se à irmã —, a narradora chama a atenção para o fato de que o que está sendo servido ali não é uma comida, mas um animal sacrificado, um pedaço de morte e seu horror.

O último conto da obra em questão, “Do Natal”, centra-se, como indica o título, nas memórias da narradora em torno do Natal. Particularmente, narra-se o Natal em que o avô da narradora falece, o qual é cercado de violências cotidianas: a do capitalismo “ditando que tínhamos que ter árvore de Natal e ir aos shoppings” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 38); a da mãe, quase arrancando a orelha da filha depois que esta quebra uma bolinha de enfeite da árvore de Natal da casa do avô, numa ação que a narradora descreve, em discurso indireto livre, como “um completo desajuste da minha parte, demônio, praga, malcriada, merecia levar uma surra; mais apertos em outras partes do corpo” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 39-40). A presença da morte em tempo de celebração do nascimento de Cristo se estende ao longo dos anos, com a possibilidade de, graças ao Plano Real nos anos 1990, utilizado no conto como marcador de tempo, poder comprar um peru de Natal para a ceia da família. O peru, como no caso do fígado, é descrito como uma entidade morta, “o pássaro grande e morto [que] reinava soberano na mesa” (Lira, 2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas., p. 41). De maneira ambígua, o pássaro morto pode ser entendido também como uma alusão ao avô, que apesar da ausência continua a reinar na casa, ou mesmo pode remeter-se à própria morte deste, cujo peso se renova a cada Natal. De todo modo, violência e exploração de animais, humanos ou não, seja por meio de punições, seja por dificuldades financeiras marcadas no conto pela menção ao que a família pode ou não comprar, seja pelo sacrifício de animais em nome de celebrações humanas antes capitalistas do que espirituais, são os temas centrais desse conto.

Os três contos em questão, portanto, criam paralelos entre a exploração humana dos animais e de outros humanos ao descrever pratos servidos à mesa de uma família de baixa renda de forma a conectar a carne servida à morte e as refeições a condutas violentas. Tais condutas violentas, por sua parte, podem ser compreendidas como uma das muitas consequências da brutalidade do capitalismo neoliberal, na medida em que devem ser entendidas como produto de um contexto de opressão no qual as personagens têm de enfrentar dificuldades socioeconômicas diárias. Das humilhações na escola às limitações financeiras na hora das compras da semana, as personagens sofrem constantemente a violência capitalista da desigualdade social, a qual acaba sendo reproduzida em muitas de suas ações até mesmo, pode-se dizer, como válvula de escape.

Desse modo, como demonstra Nibert (2002NIBERT, David Alan (2002). Animal rights/human rights: entanglements of oppression and liberation. Oxford: Rowman & Littlefield.), as repercussões da violência do capitalismo que têm suas bases na exploração de animais pelo ser humano vão muito além do consumo, espalhando-se de formas inesperadamente conectadas em várias esferas da vida social. Os contos de Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.), como vimos, revelam essas conexões por intermédio de narrativas que se ocupam das mais cotidianas e (aparentemente) banais experiências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, as histórias de No país da infância oferecem um olhar sobre o cotidiano do crescer na periferia brasileira nos anos 1980 e 90 da perspectiva do consumo em uma época na qual o país atravessava uma profunda crise econômica ao mesmo tempo que os meios de comunicação de massa vendiam sonhos em forma de mercadorias. Essas mercadorias estão presentes no cotidiano das personagens de Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) como mediadoras de relações interpessoais tanto de maneira negativa como positiva. Ao mesmo tempo que há prazer e afeto nesse consumo, há também exclusão e sofrimento.

A perspectiva adulta da narradora oscila entre o reconhecer tanto a injustiça social quanto um passado nostálgico, ambos traduzidos em termos de experiências de consumo que criam relações entre a narradora e suas personagens. Há na experiência de narrar o consumo as crises das quais fala Gumbrecht (2006GUMBRECHT, Hans Ulrich (2006). Aesthetic experience in everyday worlds: reclaiming an unredeemed utopian motif. New Literary History, v. 37, n. 2, p. 299-318., p. 301): “Multiple modalities of aesthetic experience [that] permeate our everyday worlds today (without becoming a part of or identical with the everyday)”7 7 “Múltiplas modalidades de experiência estética que permeiam o nosso mundo cotidiano hoje (sem tornar-se parte de ou idêntico ao cotidiano)” (minha tradução). . A cada experiência, há repetição e também oportunidades de mudança, aprendizado e prazer, nem total agência, nem total alienação, e sim múltiplas formas de experimentar o consumo. Tal representação do consumo das classes populares, portanto, enfatiza que, como apontam Scalco e Pinheiro-Machado (2010SCALCO, Lúcia Mury; PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2010). Os sentidos do real e do falso: consumo popular na perspectiva etnográfica. Revista de Antropologia, v. 53, n. 1, p. 321-359. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
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, p. 353), é preciso “entender as estratégias e as táticas adotadas no ato do consumo, as quais cruzam uma infinidade de variáveis, que levam em consideração desde o interesse e o benefício próprio até o amor, o altruísmo e a solidariedade familiar”.

Assim sendo, em No país da infância, Cris Lira (2019LIRA, Cris (2019). No país da infância. Belo Horizonte: Venas Abiertas.) faz uma contribuição essencial à literatura brasileira contemporânea: narrar o cotidiano, humilde e sólido, de personagens que ainda ocupam poucas páginas da produção literária no país, especialmente quando se fala de suas experiências enquanto consumidores conforme uma perspectiva não preconceituosa, ou seja, uma perspectiva que não condena as escolhas dessa classe com relação ao que comprar e que evita simplesmente pressupor que essas experiências sejam puramente alienantes.

  • 1
    “Aquilo que é humilde e sólido, o que tomamos como dado e aquilo do qual todas as partes seguem uma a outra em uma sequência tão regular e invariável que aqueles que o experimentam não encontram motivos para questionar tal sequência. Assim sendo, [o cotidiano] é algo não datado e (aparentemente) insignificante; embora ele ocupe e seja motivo de preocupação, é praticamente indescritível e constitui a ética que está na base da rotina e a estética dos contextos familiares” (minha tradução).
  • 2
    “Esforça-se para compreender relações por meio de suas expressões no cotidiano” (minha tradução).
  • 3
    “Comprar não é sobre os bens em si, nem é sobre identidade em si. É sobre adquirir bens ou imaginar possuir e usar esses bens” (minha tradução).
  • 4
    “Pessoas sem valor de mercado; elas são os homens e mulheres não comodificáveis, e o seu fracasso em obter o status de mercadoria apropriada coincide com (de fato, vem do) seu fracasso de se engajar em uma atividade consumidora de pleno direito” (minha tradução).
  • 5
    A sorte é um dos fatores não meritocráticos que de fato influenciam no sucesso financeiro de indivíduos (McNamee, 2018MCNAMEE, Stephen J. (2018). The meritocracy myth. Nova York: Rowan and Littlefield., p. 244).
  • 6
    “Os lucros obtidos de crimes de dominação econômica tais como expropriação de terra, exploração do trabalhador e a escravidão e o assassinato brutal de milhões de animais repercutiram em ainda mais negócios que, por sua vez, tanto facilitaram como capitalizaram práticas opressoras. Rancheiros, especuladores de terras, companhias férreas, a operação de pátios ferroviários, produtores de milho e outros grãos, agentes comissionados (os quais administraram a venda de animais), instalações de embalagem e processamento, serviços de mercado, companhias transatlânticas de remessas, operações comerciais de varejo, empresas de marketing e propaganda, serviços legais e bancários, todos estão entre empreendimentos que formaram uma versão inicial do que Barbara Noske chama de ‘complexo industrial de animais’” (minha tradução).
  • 7
    “Múltiplas modalidades de experiência estética que permeiam o nosso mundo cotidiano hoje (sem tornar-se parte de ou idêntico ao cotidiano)” (minha tradução).

REFERÊNCIAS

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  • FAUSTINI, Marcus Vinícius (2009). Guia afetivo da periferia Rio de Janeiro: Aeroplano.
  • GUMBRECHT, Hans Ulrich (2006). Aesthetic experience in everyday worlds: reclaiming an unredeemed utopian motif. New Literary History, v. 37, n. 2, p. 299-318.
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  • MCNAMEE, Stephen J. (2018). The meritocracy myth Nova York: Rowan and Littlefield.
  • MIL E UMA HISTÓRIAS. Mulheres na literatura: entrevista com Cris Lira por Luciana Marinho Albrecht. Vídeo. 26 min e 17 s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3zDZ2NHJ3po Acesso em: 15 jan. 2023.
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  • MILLER, Daniel (1998). A theory of shopping Ithaca: Cornell University Press.
  • MORAES, Maria Fernanda. Plano real, 20 anos: moeda trouxe novo ciclo de desenvolvimento econômico. UoL Disponível em: https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/plano-real-20-anos-moeda-trouxe-novo-ciclo-de-desenvolvimento-economico.htm Acesso em: 6 abr. 2023.
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  • NIBERT, David Alan (2002). Animal rights/human rights: entanglements of oppression and liberation. Oxford: Rowman & Littlefield.
  • POETA PAULO DUTRA COMVIDA. Episódio 26: Literatura e café. Vídeo. 1 hora, 44 min e 12 s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cj2dSFXyO0Y Acesso em: 15 jan. 2023.
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  • SCALCO, Lúcia Mury; PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2010). Os sentidos do real e do falso: consumo popular na perspectiva etnográfica. Revista de Antropologia, v. 53, n. 1, p. 321-359. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
    » https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100009
Editoras: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2022
  • Aceito
    24 Mar 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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