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Noção de Culpa [Schuld] nas perspectivas de Nietzsche e Heidegger

The Notion of Guilt [Schuld] in the Perspectives of Nietzsche and Heidegger

Resumo:

Esta pesquisa analisa a noção de culpa [Schuld] nas perspectivas dos filósofos alemães Nietzsche e Heidegger. Observando a importância da investigação sobre a culpa nos escritos de Nietzsche percebemos que a superação da culpa revelou o seu intento de ver surgir uma cultura mais elevada do que a moral. Já na busca ontológica de Heidegger pelo sentido do ser, Schuld é concebida como constituição essencial, como um modo de ser originário do ser-no-mundo. Distante de impetrarmos uma análise comparativa das noções de culpa em tão distintas avaliações filosóficas, nossa pretensão é investigar a relevância de Schuld na perspectiva crítica da Genealogia da moral de Nietzsche e no pensamento ontológico de Ser e tempo de Heidegger.

Palavras-chave:
Nietzsche; Heidegger; moralidade; ontologia; culpa

Abstract:

This research analyzes the notion of guilt [Schuld] from the perspectives of the German philosophers Nietzsche and Heidegger. Observing the importance of investigating guilt in Nietzsche's writings, we realize that overcoming guilt revealed his intention to see the emergence of a higher culture than morality. Already in Heidegger's ontological search for the meaning of being, Schuld is conceived as an essential constitution, as a way of being originating from being-in-the-world. Far from undertaking a comparative analysis of the notions of guilt in such different philosophical evaluations, our intention is to investigate the relevance of Schuld in the critical perspective of Nietzsche's Genealogy of Morals and in the ontological thought of Heidegger's Being and Time.

Keywords:
Nietzsche; Heidegger; Morality; Ontology; Fault

Em 1887 Friedrich Nietzsche apontava: “recorde-se os célebres processos contra as bruxas: os mais perspicazes e humanos juízes não duvidavam da existência de culpa; as ‘bruxas’ mesmas não duvidavam - e no entanto não havia culpa” (GM/GM III 16, KSA 5.375-376). Algumas décadas mais tarde, em 1927, Martin Heidegger considerava: “um ente cujo ser é cuidado não apenas, de fato, carrega uma culpa, como, no fundo de seu ser, é um ser culpado” (ST §58)1 1 Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada. . Em que sentido as concepções sobre a culpa [Schuld] desses dois importantes filósofos alemães se aproximam? Em quais aspectos são antagônicas? Ainda que as abordagens de Nietzsche e Heidegger estejam focadas em pontos bem distintos, nossa pesquisa consiste em analisar a importância da noção de Schuld no âmbito da interpretação filosófica de cada pensador.

Ao observarmos as mais diversas culturas e povos vemos o quanto a crença na culpa moral ou religiosa acha-se enraizada nas comunidades. É comum a convicção de que as ações avaliadas como nocivas ao convívio social ou aquelas que ferem algum preceito religioso, estejam ligadas a sentimentos corrosivos de culpa e por uma necessidade veemente de expiação desse fardo. Além das perspectivas morais e religiosas, muitos filósofos também se debruçaram sobre o tema da culpa e elaboraram teorias sobre a responsabilidade individual sobre as ações.

O modo como Nietzsche avalia a culpa é distinto de todos os filósofos moralistas que o antecederam. A partir de sua perspectiva sobre a vida humana, o filósofo se opõe aos pensamentos tradicionais sobre a liberdade da vontade e sobre a responsabilidade individual. Em sua análise, a culpa nada mais é do que um valor moral histórico criado pelo homem e que precisa ser superado.

Já na investigação ontológica de Heidegger, a culpa é interpretada como estrutura originária do ser-aí. Distante de concepções moralistas, o filósofo contemporâneo observa a culpa a partir da constituição do próprio ser existenciário. Em sua análise, ao sermos lançados no mundo em coexistência com os demais entes e seres, somos chamados pela consciência a assumir uma responsabilidade, uma culpa ou dívida da consciência para a reapropriação de nosso ser mais próprio.

Observando as noções de culpa em tão distintas perspectivas filosóficas, percebemos a relevância e amplitude do tema no contexto dos debates sobre a filosofia moral e ontológica. Nosso propósito não é destacar as diferenças marcantes entre as noções de Schuld, mas indicar a importância dessas noções no âmbito do pensamento filosófico de Nietzsche e Heidegger.

Culpa [Schuld] enquanto valor moral

O antagonismo de Nietzsche aos efeitos nocivos da culpa [Schuld] revela-se central no âmbito de sua crítica à moralidade. Por considerar a vida enquanto vontade de potência, o filósofo alemão combate as perspectivas morais e religiosas sobre a responsabilidade individual do homem. Em sua análise, os organismos são constituídos por forças agindo numa dinâmica ininterrupta de luta por crescimento de potência. Nessa disposição, os impulsos atuam necessariamente. Não há um agente operando racionalmente sobre os impulsos, mas sim o movimento sem termo dos impulsos em luta por expansão de potência. As ações do homem, portanto, ocorrem segundo uma disposição fisiológica e não por uma inclinação moral.

Essa perspectiva sobre a vida distancia-se da tradição moralista, pois pressupõe que o homem seja totalmente inocente por suas ações. Assim como os demais seres da natureza, o homem também age necessariamente, seguindo seus instintos animais. Através da investigação sobre a proveniência da culpa moral, Nietzsche pontua a criação histórica desse valor e desvela os mecanismos coercitivos que prejudicam a fisiologia do homem. Determinado a resgatar a inocência do vir-a-ser, o filósofo indica que o tipo culpado é um tipo de homem que precisa ser superado.

Em sua célebre obra Genealogia da moralNIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: Uma polêmica. 1ª reimp. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (1887), Nietzsche faz ver que a origem da culpa moral está intimamente ligada ao conceito material de dívida: “o grande conceito moral de ‘culpa’ teve origem no conceito muito material de ‘dívida’” (GM/GM II 4, KSA 5.297-298). Importa salientar que o sentido de Schuld na língua alemã comporta duas acepções: culpa e dívida. A associação feita pelo filósofo entre culpa e dívida não diz respeito, contudo, ao mero significado terminológico de Schuld. Essa vinculação refere-se à responsabilização do homem percebida nas primeiras relações contratuais entre credores e devedores.

Nessa relação entre promessa de pagamento e reconhecimento de dívida, o filósofo alemão vê surgir o solo propício em que seria possível o aparecimento e desenvolvimento da culpa moral: “esta é a longa história da origem da responsabilidade” (GM/GM II 2, KSA 5.293-294). A responsabilidade em relação à dívida contratual expressa aspectos da relação feita pelo filósofo entre dívida material e culpa moral. Isso porque a responsabilidade em cumprir uma promessa vincula-se estreitamente ao quanto ela está gravada na memória. Desde as primeiras relações de compra e venda, o castigo àqueles que descumprem uma promessa contratual é aceita e altamente valorizada. Para tornar os homens iguais, confiáveis socialmente, as regras morais e também as leis penais prosperam com aparatos repressores para vencer o esquecimento e fixar a responsabilidade individual na memória.

Uma forma muito antiga de memorização, nesse aspecto, reside na aplicação de diversos tipos de castigos aos infratores dessas promessas: “o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas, por exemplo, cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da dívida” (GM/GM II 5, KSA 5.299-300). Esses castigos impostos aos devedores partiam da ideia de que o dano sofrido pelo credor diante de uma dívida não paga deveria ser compensado com o sofrimento do devedor. Nessa relação de equivalência entre dano e dor é possível observar a importância da responsabilidade individual nas transações sociais.

O filósofo observa que o castigo tem diversas utilidades sociais, entre elas, neutralizar novos danos, inspirar temor, equivaler à dívida. Dentre todas essas finalidades, lhe importa analisar o valor do castigo: “o castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento da culpa, nele se vê o verdadeiro instrumento dessa reação psíquica chamada ‘má consciência’, ‘remorso’” (GM/GM II 14, KSA 5.319-320). O maior êxito do castigo foi despertar o sentimento de culpa, gravar na consciência do homem a sua culpa, o peso da responsabilidade individual sobre as ações.

Analisando o valor da culpa, Nietzsche esclarece que há uma distinção marcante no modo pelo qual os homens fortes e os homens fracos lidam com as suas consciências. Pensa que a consciência da culpa afeta de modo cruel o organismo dos fracos: “o mais forte, nobre, corajoso, em todas as épocas possui o olho mais livre, a consciência melhor” (GM/GM II 11, KSA 5.311). O homem fraco dispõe de uma configuração de impulsos em que o esquecimento, mecanismo garantidor da saúde mental, permanece em suspensão. Assim, todas as coisas que o afetam são gravadas na memória e sentidas com rancor e ódio. Esse homem se adéqua mais facilmente à limitação dos seus instintos. O filósofo observa, contudo, que os impulsos e instintos humanos não cessam sua luta por expansão e, qualquer tentativa de reprimi-los se volta contra o homem como uma doença terrivelmente cruel: “todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro - isto é o que chamo de interiorização do homem” (GM/GM II 16, KSA 5.323). Nesse processo de interiorização a que o homem se submete para viver em sociedade, Nietzsche vê surgir uma grande doença: a interiorização da culpa.

Uma doença muito nociva porque, mesmo obedecendo às limitações morais impostas, os instintos continuam lutando por expansão de potência. Uma vez encarcerados e reprimidos, voltam-se para dentro e passam a operar internamente. Com essa interiorização, os impulsos e instintos selvagens, de crueldade, de hostilidade, se retraem e se voltam contra o próprio homem, pois continuam em busca de exercerem-se. O homem cujos instintos foram domesticados pela coerção moral tem agora esses mesmos instintos selvagens devorando a si mesmo, num processo crescente de autopunição: “esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo” (GM/GM II 17, KSA 5.324-325). Esse mecanismo pressupõe que todos os impulsos agressivos não se extinguiram, apenas foram reprimidos e passaram a atuar contra o próprio homem do ressentimento. Na ótica do filósofo, esse sofrimento voluntário do homem consigo se tornou ainda mais cruel a partir do advento da moral cristã.

Investigando o processo de evolução da consciência de culpa, Nietzsche observa que a culpa vinculada ao sentimento de dívida do devedor com o credor logo tomou outras proporções. Aos poucos o sentimento de dívida passou a ser em relação ao outro, à família, à comunidade, às divindades. Um sentimento tão marcante que a humanidade desenvolveu essa relação de dívida até mesmo com os seus antepassados. Reportando-se aos primórdios das sociedades, o filósofo aponta esse sentimento de dívida e culpa em relação às gerações anteriores: “a convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e realizações dos antepassados - e de que é preciso lhes pagar isso” (GM/GM II 19, KSA 5.327-328). Junto com essa sensação de dívida em relação aos grandes feitos e conquistas de gerações passadas também cresceu a necessidade de pagá-los com ações e sacrifícios compensatórios. Quando essa dívida está vinculada a convicções de realizações divinas que, de algum modo, beneficiaram diretamente a vida do indivíduo, saldar essa dívida se torna algo latente.

Desde as sociedades remotas, há sinais de apego às realizações dos antepassados: “a humanidade recebeu, com a herança das divindades tribais e familiares, também o peso das dívidas ainda não pagas, e o anseio de resgatar-se” (GM/GM II 20, KSA 5.329-330). Segundo o filósofo, essa necessidade de saldar as dívidas com aqueles que fizeram algo por nós cresceu à medida que cresceu também o conceito e o sentimento em relação ao Deus cristão. Se o sentimento de dívida em relação às realizações de gerações e divindades passadas já se manifestava de modo marcante, não é difícil notar o quanto esse sentimento evoluiu a partir da crença em um Deus criador de todas as coisas. O homem desenvolveu um sentimento de dívida em relação a Deus por acreditar dever a sua própria vida à divindade. Diante dessa crença, qualquer sacrifício de reprimir os impulsos seria justificado e oferecido como parte do pagamento da dívida. Do mesmo modo, qualquer ação considerada como uma ofensa a essa divindade deveria ser temida e evitada.

O sentimento de culpa proveniente de uma suposta ofensa a Deus transformou a culpa em um sofrimento profundo: “o sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante milênios [...] O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa” (GM/GM II 20, KSA 5.329-330). À medida que o homem reconhece em Deus a razão de sua existência, sua reverência e sentimento de dívida se intensificam. O sentimento de culpa em relação à divindade é o máximo de culpa possível porque saldar essa dívida se torna uma tarefa quase inatingível. O homem que é tomado pela consciência da culpa em relação a Deus sofre intensamente. Esse auto martírio tem o seu apogeu a partir da instituição do pecado. A transformação da culpa em pecado torna o homem um legítimo sofredor.

O filósofo observa o êxito da moral cristã em manter seus fiéis esperançosos na promessa religiosa da eternidade da vida: “quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ - no nada -, despoja-se a vida do seu centro de gravidade” (AC/AC 43, KSA 6.217-218). Indica que a falta de aceitação do homem a respeito de sua finitude, fortaleceu o trabalho de domesticação do homem, que passou a agir buscando a imortalidade. A crença na eternidade da vida conduz os fiéis a sacrificarem seus instintos animais. Nesse sentido, o sofrimento causado pela interiorização dos instintos servirá como sacrifício para que se alcance tão almejada recompensa.

Transformado através da perspectiva dominante da moral cristã, o sofrimento é avaliado como uma punição necessária àqueles que se reconhecem enquanto culpados. Como um medicamento para os doentes, a moralidade cristã apresenta a salvação para os pecadores por meio da consciência da culpa e da expiação dos erros considerados infrações graves perante Deus. A crença no pecado, portanto, é o grande meio utilizado para manter o homem resistentes aos instintos: “negação da vida, desprezo do corpo, rebaixamento e autoviolação do homem pelo conceito de pecado” (AC/AC 56, KSA 6.239-240). Sentindo-se culpado por qualquer manifestação de seus instintos animais, o homem fiel a esses preceitos buscará evitar ofender a divindade. Com esse mecanismo, o ressentimento toma um novo sentido. Todos os instintos impedidos de descarregar-se para fora consomem o homem internamente com um crescente e constante sentimento de culpa.

A culpa moral se revela com um sentido peculiar a partir da ascensão dos valores cristãos. Esse domínio se estabelece sobre os homens fracos, sobre aqueles que se identificam com os demais sofredores: “todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza” (GM/GM III 18, KSA 5.382-384). Diante dessa enfermidade do organismo, dessa fraqueza, a moralidade propaga a promessa de que esse sofrimento tem um sentido divino, ou seja, somente aos humildes e sofredores caberá uma recompensa eterna2 2 Sobre a pregação cristã de que o homem tem uma dívida eterna em relação a Deus, Nietzsche analisa em seu Zaratustra: “é este o meu desgosto: introduziram, mentindo, prêmio e castigo no fundo das coisas - e, agora, também no fundo de vossas almas, ó virtuosos! [...] Todos os segredos das vossas almas deverão vir à luz; e quando estiverdes deitados ao sol, revolvidos e dilacerados, também a vossa mentira terá deixado a vossa verdade. Porque esta é a vossa verdade: sois demasiado limpos para a sujeira de palavras tais como - ‘vingança’, ‘castigo’, ‘prêmio’, ‘recompensa’. Amais a vossa virtude como a mãe ama o filho; mas quando já se viu qualquer mãe querer ser paga pelo seu amor?” (ZA/ZA, “Dos virtuosos”, KSA 4.120). . O valor da culpa, portanto, ganha proporções divinas.

Na perspectiva da moralidade cristã e de seus seguidores, a culpa é avaliada com alto valor. É vista como um sentimento necessário para que os erros cometidos possam, de alguma forma, ser expiados. Os valores da moral cristã estão vinculados a mandamentos eternos e ao grau de obediência de seus discípulos. Sob a ótica do pecador, a culpa tem um sentido específico de manter a consciência sempre ativa quanto a sua dívida em relação à divindade, de permanecer firme e convicto da necessidade de alcançar a remissão por suas falhas. Na perspectiva de Nietzsche, de modo completamente inverso, a culpa é avaliada como uma doença terrível que afeta a saúde fisiológica do homem. Transformar os instintos humanos em ressentimento, em uma consciência culpada representa, para o filósofo, uma perspectiva hostil à vida em efetividade. Ao considerar a vida enquanto vontade de potência, todas as características do tipo culpado são vistas como sintomas de doença.

Nietzsche faz ver que o organismo humano buscará constantemente o crescimento e expansão das suas forças, e, essa busca é a dinâmica da vida. Nesse mecanismo instintivo, as limitações impostas pela coerção moral representam sofrimento e certa perda de força. É nesse sentido que o tipo de homem culpado será visto como um tipo doentio. A repressão a que o homem com consciência de culpa está submetido afeta a sua condição fisiológica. Os valores apreciados pelo homem culpado são “bons”, portanto, apenas sob a perspectiva avaliadora da moral religiosa. Sob a perspectiva fisiológica, representam morbidez do organismo. Na avaliação do filósofo alemão, a consciência de culpa tornou o homem doente e se propagou feito epidemia entre os povos graças ao apego em um ideal de vida transcendente.

Conduzidos pela perspectiva avaliadora da moral cristã, o homem acredita que o sacrifício de seus instintos poderá expiar a sua culpa e servir como pagamento da sua dívida. É nessa inversão de valores, na transformação de mecanismos morais em instrumentos de salvação, que se encerra a importância histórica das convicções metafísicas. O homem fraco passa a ver um sentido para o seu sofrimento3 3 Ao analisar a crítica de Nietzsche à moral responsável por transformar a culpa em sofrimento, Marton aponta que a moral cristã: “ofereceu um sentido para o sofrimento do homem, agora interpretado como necessário por causa do outro mundo, do além, de Deus, da vida depois da morte ou até mesmo da verdade. Se com essa interpretação o homem acreditou preencher o vazio em que julgava encontrar-se, também viu seu fardo acrescido por um novo sofrimento, ‘mais profundo, mais íntimo, mais corrosivo da vida’: a perspectiva da culpa” (Marton, 1990, p. 85). e avalia a sua fraqueza como “boa”, como característica bem vista à divindade. O filósofo alemão indica, entretanto, que essa condição doentia do homem não deve predominar em todas as culturas. Mesmo reconhecendo a hegemonia histórica de algumas convicções religiosas e crenças metafísicas, aponta para a possibilidade de vermos surgir um homem forte, livre dos ideais transcendentes, um homem de uma cultura mais elevada.

Superar a culpa moral representa, portanto, o resgate da saúde do organismo, uma postura elevada capaz de reconhecer que “a ‘natureza pecaminosa’ do homem não é um fato, mas apenas a interpretação de um fato, ou seja, uma má disposição fisiológica - vista sob uma perspectiva moral-religiosa” (GM/GM III 16, KSA 5.375-376). Esse homem vislumbrado pelo filósofo alemão como o homem do futuro é o homem da grande saúde4 4 No aforismo 382 da Gaia ciência intitulado “A grande saúde”, Nietzsche indica que o homem detentor de uma grande saúde será aquele capaz de se manter forte e distante dos preceitos morais e religiosos em vigência: “nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós, rebentos prematuros de um futuro ainda não provado, nós necessitamos, para um novo fim, também um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as saúdes até agora [...] um espírito que ingenuamente, ou seja, sem o ter querido, e por transbordante abundância e potência, brinca com tudo o que até aqui se chamou santo, bom, intocável, divino”. , um homem forte, capaz de perceber que por trás de toda interpretação moral e religiosa há interesses e perspectivas avaliadoras específicas. Interpretar a culpa como um valor histórico, nocivo à vida, possibilita a superação da doença fisiológica e o resgate da inocência do vir-a-ser.

Culpa [Schuld] enquanto fenômeno do ser-aí

A abordagem de Heidegger sobre a culpa [Schuld]5 5 Ainda que Schuld signifique culpa e dívida na língua alemã, consideramos que “culpa” expresse de maneira mais adequada a noção de Schuld contextualizada por Heidegger em Ser e tempo. O filósofo esclarece que o sentido ontológico de Schuld não se confunde com o uso cotidiano de endividamentos materiais que precisam ser restituídas. Não se limita também ao peso da culpa moral atribuído cotidianamente ao termo. Em nota, a tradutora Márcia de Sá Cavalcante esclarece que privilegia a expressão “débito” por considerá-la com maior espectro semântico do radical. Motivo pelo qual a tradutora opta por débito na maior parte do texto traduzido, alternando-o também com a expressão “culpa”. Considerando o rigor da investigação ontológica heideggeriana, optamos por privilegiar a expressão “culpa”. ultrapassa todas as análises tradicionais que atribuíram ao termo relações exclusivamente morais. Na interpretação ontológica do filósofo, Schuld é apontada como fenômeno originário. Fenômeno que não pode ser determinado pela moralidade, pois é condição de possibilidade da existência, inclusive, da moral. Debruçados sobre o §58 de Ser e tempoHEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 8ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. (1927) vemos que a culpa é concebida como modo de ser do ser-aí [Dasein]6 6 No §35 da obra Introdução à Filosofia (1928-29), Heidegger esclarece que ser-aí nada mais é do que ser-no-mundo: “ser-aí não significa nada senão ser-no-mundo [...] Mundo é o todo da constituição ontológica. Ele não é apenas o todo da natureza, da convivência histórica, do próprio ser-si-mesmo e das coisas de uso. Ao contrário, ele é a totalidade específica da multiplicidade ontológica que é compreendida de maneira uma no ser-com os outros, no ser junto a e no ser-si-mesmo” (HEIDEGGER, 2009, §35). .

Na investigação central da obra, ou seja, na busca ontológica pelo sentido do ser, Heidegger define ser-aí como ente privilegiado, o único ente capaz de questionar-se sobre o seu ser: “o ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu [...] Como um ente deste ser, o ser-aí se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. O ser é o que neste ente está sempre em jogo” (ST7 7 ST - Ser e tempo (1927). §9)8 8 Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 1999, modificada. . Esse ente que nós somos constitui-se de um modo distinto dos demais entes coexistindo na dimensão ôntica. Nosso modo de ser é também ontológico, pois somos os únicos se questionam sobre o ser: “o ser-aí é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele se relaciona e comporta” (ST §12)9 9 Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 1999, modificada. . O ente lançado no mundo e em busca de compreensão sobre a dimensão ontológica de seu ser é denominado pelo filósofo alemão como ser-aí. Se a culpa é caracterizada como um modo de ser do ser-aí, ela é considerada a partir da dimensão ontológica do ser-aí.

Na avaliação de Heidegger, as considerações sobre a culpa enquanto dívida social ou responsabilidade individual perfazem as interpretações cotidianas. A cotidianidade do ser-aí, entretanto, não caracteriza uma conduta específica de culturas primitivas. O filósofo esclarece que o modo de avaliação cotidiano também pode ser observado em culturas desenvolvidas e diferenciadas. Trata-se de um modo de manifestação característico daqueles que se ocupam mais com as experiências coletivas do que com o seu modo de ser próprio.

Ainda que considere a cotidianidade como um modo de ser do ser-aí, Heidegger indica que na investigação fenomenológica sobre a estrutura existencial do ser-aí, a culpa considerada sob um aspecto meramente moral não esclarece nada a respeito do sentido ontológico buscado. Essa falta de clareza, entretanto, não faz com que o filósofo refute esses aspectos morais sentidos cotidianamente. Eles também são analisados no contexto das manifestações fenomenológicas das relações intramundanas10 10 No parágrafo 58 de Ser e tempo, Heidegger esclarece que as interpretações de Schuld com o sentido de “ser responsável por” ou “ter dívida junto a” refletem perspectivas das relações cotidianas que atribuem ao termo acepções estritamente morais. O filósofo denomina essa interpretação como imprópria, no sentido de que estão no âmbito da ocupação no modo de ser-com os outros. Imprópria, no sentido de não estar na dimensão ontológica do ser-aí em busca do seu poder-ser mais próprio. Trata-se de uma interpretação cotidiana, imprópria, mas é, contudo, também um modo de ser do ser-aí. . Mas é a investigação ontológica que esclarecerá o sentido originário da culpa. Esse sentido é analisado a partir de uma perspectiva de ser culpado/devedor [Schuldigsein] originário. A compreensão da culpa enquanto fenômeno do ser-aí pressupõe uma análise sobre a importância da consciência na estrutura ontológica dessa culpa originária.

Ao apresentar as questões que permearam seu percurso investigativo, Heidegger revela que a perspectiva ontológica é um modo possível de interpretação (ST §45). Assim, o sentido atribuído ao termo Schuld em Ser e tempoHEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 8ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. deve ser compreendido como estrutura prévia do modo de ser dos entes analisados pelo filósofo.

Já dissemos que a culpa é entendida como modo de ser do ser-aí. Para que possamos avançar na compreensão de como essa noção se articula com a consciência e qual o papel desta na estrutura ontológica do ser-aí precisamos analisar a constituição fundamental do ser-aí, isto é, a noção de cuidado [Sorge]11 11 No parágrafo 41 de Ser e tempo intitulado O ser do ser-aí como cuidado, Heidegger esclarece que o termo cuidado é por ele utilizado no sentido puramente ontológico-existencial e em nada se aproxima do sentido ôntico de cuidado ou descuido. O filósofo indica o emprego de “cuidado” em sua investigação ontológica: “a totalidade existencial de toda a estrutura ontológica do ser-aí deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser do ser-aí diz preceder a si mesmo por já ser em (no mundo) como ser junto a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cuidado” (ST §41. Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 1999, modificada). : “o clamor da consciência, ou seja, dela mesma, encontra sua possibilidade ontológica no fato de que, no fundo de seu ser, o ser-aí é cuidado” (ST §57)12 12 Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada. . Heidegger denomina cuidado a estrutura ontológica que liga, que reúne todos os existenciais possíveis.

O ser-aí que nós somos busca compreender o modo de ser de sua existência e reconhece a responsabilidade de já ser-no-mundo. Além da característica de já estar lançado no mundo, o ser-aí acha-se em relação e coexistência com os demais entes e seres-aí que os circundam. Em Ser e Tempo, o filósofo alemão atribui vários sentidos ao termo Sorge. Entendido como a estrutura essencial do ser-aí, o cuidado pode ser, numa acepção mais própria do termo, o retorno, a atenção mais própria e ontológica ao ser do ser-aí. O cuidado também expressa a ocupação [Besorgen] com os utensílios manuais e a preocupação [Fürsorge] com os outros seres-aí. Essas duas características existenciais denotam uma estrutura denominada pelo filósofo como de-cadência. O sentido de decadência aqui, não tem uma conotação de algo que se desestruturou, que se decompôs. A de-cadência é um modo estrutural do próprio cuidado. Ao ocupar-se com as coisas do mundo à mão ou se preocupar com os outros, o ser-aí desvia a atenção do cuidado mais próprio com o seu ser. O cuidado, visto como estrutura essencial do ser-aí pode ser entendido como ocupação, como preocupação e também como uma decisão por uma existência que decaia menos de si. Uma existência voltada para si mesma e que não caia tanto ao mundo do impessoal é considerada uma existência mais autêntica, mais próxima de ser-si-mesma.

Na busca do ser-aí por apropriar-se de si mesmo, é a voz da consciência que ecoa, clamando para um retorno a si: “o clamor coloca o ser-aí diante de seu poder-ser” (ST §58). Nesse clamor da consciência, o ser-aí é chamado a assumir o seu poder-ser mais próprio. É na relação ontológica do ser que se projeta para o poder-ser mais próprio que emerge a interpretação heideggeriana da culpa enquanto fenômeno originário. Ao clamor da consciência que chama para que o ser-aí se aproprie de seu ser corresponderia uma escuta que toma conhecimento de ser culpada, de estar em dívida. Não em dívida moral, como já dissemos, mas numa posição de reconhecimento de um projeto ainda inalcançado: “o ouvir legítimo da aclamação equivale a uma compreensão de si em seu poder-ser mais próprio, ou seja, em se projetando para o seu poder-ser e ser culpado mais próprio” (ST §58)13 13 Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada. . Essa proclamação consciente de poder-ser constitui o projeto mais próprio do ser-aí. Trata-se de uma escolha consciente do ser-aí por atender ao chamado de apropriar-se de si mesmo enquanto possibilidade de ser. O clamor da consciência abre-se à possibilidade de poder-ser originário do ser-aí como ser culpado. O filósofo esclarece que essa escolha, esse querer-ter-consciêcia não se constitui em um cultivo voluntário do clamor da consciência, mas numa prontidão para a escuta, para a aclamação. Nesse sentido, atender ao chamado do clamor da consciência corresponde à abertura do ser-aí ao seu poder-ser mais originário. Nessa escolha de si mais própria, inevitavelmente, o ser-aí estará fechado temporariamente para as ocupações e preocupações com os outros.

Heidegger indica que a interpretação ontológica do fenômeno Schuld é condição existencial da possibilidade do bem e do mal enquanto pressupostos morais. A partir da compreensão da consciência de que ela não é fundamento da possibilidade de seu ser, temos abertura para as concepções de falta e privação interpretadas como valores. Enquanto fenômeno ontológico, a falta e a privação do ser-aí lançado no mundo e em perdição no impessoal, são vistas sob aspectos formais. O filósofo considera Schuld como fenômeno originário do ser-aí por considerá-lo como pressuposto do cuidado existencial: “um ente cujo ser é cuidado não apenas, de fato, carrega uma culpa, como, no fundo de seu ser, é um ser culpado” (ST §58)14 14 Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada. . Antes mesmo de qualquer avaliação moral, o ser-aí já carrega em sua estrutura ontológica originária o pressuposto da culpa. Interpretado como um fenômeno do ser-aí, Schuld está diretamente ligado à concepção de cuidado. Seja na de-cadência da ocupação e preocupação com os entes e outros seres-aí ou no âmbito mais próprio do cuidado que se apropria do chamado da consciência para a possiblidade de ser, o ser-aí está estruturado ontologicamente como um ser culpado. Um ser-no-mundo que já se acha, originariamente, disposto em relação com o seu ser, com o mundo e com os outros.

Nessa relação, que Heidegger denomina como cuidado, como ser do ser-aí, Schuld designa uma característica originária do ser-aí que se encontra na responsabilidade de atender ou não ao chamado de seu poder-ser mais próprio. Existindo enquanto cuidado, o ser-aí ocupa-se com utensílios manuais, dá ouvidos ao falatório do impessoal ou pode escutar o clamor da consciência que chama para o retorno ao que se é e ao seu poder-ser mais próprio. A prontidão para escutar o clamor do cuidado requer uma consciência de ser culpado enquanto constituição originária. Essa prontidão pressupõe uma escolha, um esforço alcançado a partir da decisão de recuperar-se da decaída ao impessoal. A culpa como fenômeno do ser-aí, portanto, constitui-se como estrutura originária que se manifesta como uma responsabilidade de reapropriação de si mesmo.

Considerações finais

Apoiados nas distintas concepções sobre a culpa reveladas por Nietzsche e por Heidegger, vemos a importância da consciência em ambas interpretações. Enquanto a crítica à moralidade indica os efeitos nocivos da consciência culpada, a busca ontológica pela estrutura originária do ser culpado aponta a necessidade de escutar o chamado da consciência para que o ser-aí se aproprie de si mesmo.

Heidegger esclarece que o chamado da consciência não ocorre através de discurso, o clamor “não relata nenhum dado ou conteúdo” [ST §57], mas é no silêncio que a voz da consciência fala de culpa. Em silêncio, a consciência conclama o ser-aí a desviar-se da decadência no impessoal e assumir o seu poder ser mais próprio. Na estrutura originária da consciência culpada, o ser-aí reconhece o fato de já ser junto-ao-mundo das ocupações e sua responsabilidade de recuperar o caminho para si mesmo.

Sabemos que Nietzsche não considera a consciência como característica estruturante de um sujeito racional. Para o filósofo alemão, a consciência é apenas um mecanismo fisiológico movendo-se por pulsões. Sua perspectiva revela que as repressões morais dos instintos produzem o homem culpado, doente fisiologicamente. É na superação do sentimento de culpa que o filósofo visualiza a possibilidade de resgate da saúde do homem, da inocência do vir-a-ser: “um novo hábito [...] talvez seja poderoso o bastante para dar à humanidade a força de criar o homem sábio e inocente (consciente da inocência)” (HHI §107). O homem consciente de sua inocência é aquele que assume a total irresponsabilidade sobre as ações, o homem bem logrado que supera os valores antigos e cria valores condizentes com a promoção da saúde fisiológica. Essa configuração é vislumbrada por Nietzsche a partir de uma cultura elevada que poderá surgir a medida em que valores morais, como a culpa, possam ser superados e alternados por novos valores.

As noções de Schuld aqui analisadas revelam aspectos importantes dos pensamentos de Nietzsche e Heidegger. Longe de almejar estabelecer conexões ou comparações prescindíveis, percebemos a relevância filosófica nos atributos da interpretação desse tema nas distintas perspectivas analisadas.

Referências

  • HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia 2ª edição. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo Parte I. 8ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
  • HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo Parte II. 13ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes , 2005.
  • HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit Max Niemeyer Verlag Tübingen, 1967.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
  • NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: maldição ao cristianismo Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.
  • NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência 2ª reimp. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso , 2015.
  • NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: Uma polêmica 1ª reimp. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres Volume 1. 12ª reimp. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso , 2017.
  • 1
    Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada.
  • 2
    Sobre a pregação cristã de que o homem tem uma dívida eterna em relação a Deus, Nietzsche analisa em seu Zaratustra: “é este o meu desgosto: introduziram, mentindo, prêmio e castigo no fundo das coisas - e, agora, também no fundo de vossas almas, ó virtuosos! [...] Todos os segredos das vossas almas deverão vir à luz; e quando estiverdes deitados ao sol, revolvidos e dilacerados, também a vossa mentira terá deixado a vossa verdade. Porque esta é a vossa verdade: sois demasiado limpos para a sujeira de palavras tais como - ‘vingança’, ‘castigo’, ‘prêmio’, ‘recompensa’. Amais a vossa virtude como a mãe ama o filho; mas quando já se viu qualquer mãe querer ser paga pelo seu amor?” (ZA/ZA, “Dos virtuosos”, KSA 4.120).
  • 3
    Ao analisar a crítica de Nietzsche à moral responsável por transformar a culpa em sofrimento, Marton aponta que a moral cristã: “ofereceu um sentido para o sofrimento do homem, agora interpretado como necessário por causa do outro mundo, do além, de Deus, da vida depois da morte ou até mesmo da verdade. Se com essa interpretação o homem acreditou preencher o vazio em que julgava encontrar-se, também viu seu fardo acrescido por um novo sofrimento, ‘mais profundo, mais íntimo, mais corrosivo da vida’: a perspectiva da culpa” (Marton, 1990MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990., p. 85).
  • 4
    No aforismo 382 da Gaia ciência intitulado “A grande saúde”, Nietzsche indica que o homem detentor de uma grande saúde será aquele capaz de se manter forte e distante dos preceitos morais e religiosos em vigência: “nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós, rebentos prematuros de um futuro ainda não provado, nós necessitamos, para um novo fim, também um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as saúdes até agora [...] um espírito que ingenuamente, ou seja, sem o ter querido, e por transbordante abundância e potência, brinca com tudo o que até aqui se chamou santo, bom, intocável, divino”.
  • 5
    Ainda que Schuld signifique culpa e dívida na língua alemã, consideramos que “culpa” expresse de maneira mais adequada a noção de Schuld contextualizada por Heidegger em Ser e tempoHEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 8ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.. O filósofo esclarece que o sentido ontológico de Schuld não se confunde com o uso cotidiano de endividamentos materiais que precisam ser restituídas. Não se limita também ao peso da culpa moral atribuído cotidianamente ao termo. Em nota, a tradutora Márcia de Sá Cavalcante esclarece que privilegia a expressão “débito” por considerá-la com maior espectro semântico do radical. Motivo pelo qual a tradutora opta por débito na maior parte do texto traduzido, alternando-o também com a expressão “culpa”. Considerando o rigor da investigação ontológica heideggeriana, optamos por privilegiar a expressão “culpa”.
  • 6
    No §35 da obra Introdução à Filosofia (1928-29), Heidegger esclarece que ser-aí nada mais é do que ser-no-mundo: “ser-aí não significa nada senão ser-no-mundo [...] Mundo é o todo da constituição ontológica. Ele não é apenas o todo da natureza, da convivência histórica, do próprio ser-si-mesmo e das coisas de uso. Ao contrário, ele é a totalidade específica da multiplicidade ontológica que é compreendida de maneira uma no ser-com os outros, no ser junto a e no ser-si-mesmo” (HEIDEGGER, 2009HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. 2ª edição. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2009., §35).
  • 7
    ST - Ser e tempoHEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte II. 13ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes , 2005. (1927).
  • 8
    Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 1999HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 8ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1999., modificada.
  • 9
    Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 1999HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 8ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1999., modificada.
  • 10
    No parágrafo 58 de Ser e tempoHEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte II. 13ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes , 2005., Heidegger esclarece que as interpretações de Schuld com o sentido de “ser responsável por” ou “ter dívida junto a” refletem perspectivas das relações cotidianas que atribuem ao termo acepções estritamente morais. O filósofo denomina essa interpretação como imprópria, no sentido de que estão no âmbito da ocupação no modo de ser-com os outros. Imprópria, no sentido de não estar na dimensão ontológica do ser-aí em busca do seu poder-ser mais próprio. Trata-se de uma interpretação cotidiana, imprópria, mas é, contudo, também um modo de ser do ser-aí.
  • 11
    No parágrafo 41 de Ser e tempoHEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte II. 13ª edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes , 2005. intitulado O ser do ser-aí como cuidado, Heidegger esclarece que o termo cuidado é por ele utilizado no sentido puramente ontológico-existencial e em nada se aproxima do sentido ôntico de cuidado ou descuido. O filósofo indica o emprego de “cuidado” em sua investigação ontológica: “a totalidade existencial de toda a estrutura ontológica do ser-aí deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser do ser-aí diz preceder a si mesmo por já ser em (no mundo) como ser junto a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cuidado” (ST §41. Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 1999, modificada).
  • 12
    Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada.
  • 13
    Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada.
  • 14
    Tradução conforme Márcia de Sá Cavalcante, 2005, modificada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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