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São Paulo nos anos 2000: segregação urbana e mobilidade social em termos de renda e escolaridade

São Paulo in the 2000s: urban segregation and social mobility in terms of income and education

Resumo

Ao fazer uma análise comparativa da segregação residencial entre 2000 e 2010 em São Paulo, com base em grupos de renda e escolaridade, este artigo busca contribuir para a interpretação do impacto que os processos recentes de mobilidade social tiveram no tecido urbano brasileiro. O intuito é analisar a segregação em cinco dimensões: uniformidade, exposição, concentração, centralização e agrupamento. Para isso, utiliza-se como metodologia de análise tanto índices globais quanto análises tipológicas georreferenciadas. Além de apontar mudanças em regiões específicas do território urbano, salienta-se, como conclusões mais gerais, a permanência de uma segregação relativamente alta das elites nas regiões oeste e sul do centro expandido da capital e um expressivo aumento da heterogeneidade social nas periferias, explicado em grande medida pelo aumento da renda e da escolaridade nessas regiões.

Palavras-chave:
segregação urbana; São Paulo; renda; escolaridade; mobilidade social

Abstract

Through a comparative analysis of residential segregation in São Paulo between 2000 and 2010, this article aims to contribute to the understanding of urban impacts within recent processes of social mobility have occurred in Brazil. The purpose is to analyze urban segregation in five dimensions: uniformity, exposure, concentration, centralization and clustering. Thus, the method of analysis will be both global indexes and typological georeferenced analyzes. Besides indicating changes in specific areas of the urban territory, we will highlight amongst the more general conclusions, the permanency of a relatively high level of segregation of upper classes in the west and south zones of the “expanded center” of São Paulo, and a significant rise in social heterogeneity in peripheral areas, mainly explained by the increases in the income and education of poor people living in these areas.

Keywords:
urban segregation; São Paulo; income; education level; social mobility

Introdução

Desde o início do século passado, a partir dos estudos pioneiros da Escola de Chicago, o tema da segregação urbana, seus padrões, suas causas e consequências têm sido objeto de importantes reflexões por parte de sociólogos, urbanistas e formuladores de política públicas. No Brasil, esses estudos passaram a ganhar força a partir da década de 1970, tanto por meio de estudos qualitativos e focados em determinadas regiões da cidade, quanto com pesquisas quantitativas que buscam trazer uma análise mais geral da segregação na metrópole como um todo.

Com foco na região metropolitana de São Paulo, onde atualmente vivem mais de 21 milhões de pessoas, o objetivo deste artigo é apresentar um desenho geral de como a maior metrópole do Brasil se encontra segregada e como esse processo evoluiu ao longo da década de 2000 com relação, principalmente, aos grupos de renda, mas também levando em conta o nível educacional da população.

A escolha da análise por grupos de renda e escolaridade se deve, primeiramente, ao fato de esses serem critérios menos utilizados pela literatura que aborda a temática da segregação urbana, que tende a privilegiar grupos sócio-ocupacionais. Contudo, para nossas escolhas metodológicas, é ainda mais relevante o fato de os dados de renda e escolaridade apresentarem uma variação relativamente mais expressiva no período em questão quando comparados com mudanças nos grupos ocupacionais, como demonstrarei mais adiante.1 1 Apesar de os indicadores de rendimento poderem ter um caráter relativamente efêmero, uma vez que a renda familiar pode aumentar ou diminuir rapidamente em determinadas conjunturas, os indicadores educacionais tendem a ser um elemento gerador de relativa estabilidade no processo de mobilidade social.

Além disso, este trabalho também busca contribuir para o debate ao combinar análises a partir de índices globais em múltiplas dimensões com análises geográficas tipológicas. Assim, pretende-se trazer novos elementos aos estudos de segregação urbana em São Paulo de modo a complementar e a contrapor aqueles já existentes.

Este artigo terá quatro partes além desta introdução e de uma parte reservada às considerações finais. A seção seguinte tratará do conceito de segregação residencial, abordando a importância do tema para estudos sociológicos e urbanos. Além disso, será feito um breve levantamento bibliográfico a respeito de como a segregação residencial de São Paulo tem sido interpretada, a fim de encontrar lacunas e hipóteses a serem estudadas.

Logo depois, abordarei as escolhas metodológicas utilizadas nas análises que serão empreendidas. Procurarei defender a escolha dos critérios de renda e escolaridade demonstrando as importantes alterações que ocorreram no Brasil nessas dimensões na década passada.

Em seguida, com base nos dados do Censo, tratarei das principais formas de medir a segregação, analisando suas dimensões e apresentando o quadro com os principais índices a fim de compreender em que nível se encontra atualmente a segregação residencial em São Paulo.

Todavia, ciente de que a apresentação de índices é condição necessária mas insuficiente para compreendermos o real quadro e as nuances da segregação residencial em São Paulo, farei, na penúltima seção deste texto, uma análise mais pormenorizada a partir da construção de mapas que nos permitirão visualizar geograficamente como essa relação entre grupos sociais se apresenta. Por fim, dedicarei algumas linhas para tecer considerações finais e apontar questões para reflexão e investigações futuras.

Segregação: conceito e padrões em São Paulo

Grosso modo, pode-se definir a segregação residencial como “o grau em que dois ou mais grupos vivem separadamente um do outro, em diferentes partes do ambiente urbano” (MESSEY; DENTON, 1988MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988., p. 282). Em outras palavras, trata-se de “um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole” (VILAÇA, 2000, p. 142). Desse modo, uma questão fundamental que envolve o tema da segregação é o fato de ela ser um fenômeno relacional,2 2 Mesmo o Brasil tendo historicamente um nível de segregação menor do que os Estados Unidos, onde o conceito foi desenvolvido, isso não significa que o conceito não possa ser aplicado por aqui, uma vez que se trata de entendê-lo de forma relativa dentro de cada contexto específico. isto é, “só existe segregação de um grupo quando outro grupo se segrega ou é segregado” (TORRES, 2005TORRES, H. Medindo a segregação. MARQUES, E.; TORRES, H. (orgs.). São Paulo: segregação pobreza e desigualdades sociais. São Paulo, Editora Senac, 2005., p. 83). Além disso, trata-se de um processo de caráter histórico, uma vez que, como ressalta Villaça (2000), a segregação urbana deve ser entendida como uma tendência que pode passar por alterações ao longo do tempo e não como algo estático e imutável.

A distribuição desigual dos grupos sociais no espaço urbano implica fundamentalmente em formas diversas de experimentação desse espaço e, mais do que isso, em desigualdades em termos de aproveitamento da estrutura de oportunidades oferecida pela sociedade. É preciso, porém, fugir do equívoco de pensar a segregação como mero reflexo das desigualdades sociais (SABATINI, CÁCERES; CERDA, 2001SABATINI, F.; CÁCERES, G.; CERDA, J. Segregación residencial en las principales ciudades chilenas: Tendencias de las tres últimas décadas y posibles cursos de acción. Revista eure, v. XXVIII, n. 82, p. 21-42, dez. 2001. ), uma vez que, para além dos processos estruturais em torno do desenvolvimento econômico e social característico dos países latino-americanos, existem dinâmicas urbanas próprias que explicam a lógica do desenvolvimento das cidades. Dessa forma, Sabatini (2006SABATINI, F. La segregación social del espacio en las ciudades de América Latina. Banco Interamericano de Desarrollo, 2006. ) aponta que, mais do que relacionada à desigualdade, a segregação está intimamente ligada aos processos de distinção social, assinalando seu caráter eminentemente sociológico no qual o aspecto espacial deve estar subordinado ao social.3 3 Sabatini, Cáceres e Cerda (2001) apontam, ainda, para a importância de análises subjetivas em torno da segregação residencial a fim de compreender aspectos como a percepção que os moradores têm da segregação que experimentam e do papel desse processo na formação de grupos e identidades. Esse importante aspecto, contudo, não será alvo deste texto, diante de sua limitação de escopo.

Nesse sentido, Maricato (2003MARICATO, E. Metrópole, legislação e desigualdade. Estudos Avançados, Vol. 17, No 48, 2003., p. 152) aponta que “a segregação urbana ou ambiental é uma das faces mais importantes da desigualdade social e parte promotora da mesma”, uma vez que, à dificuldade de acesso aos serviços e à infraestrutura urbana, somam-se menos oportunidades de emprego e de profissionalização e maior exposição à violência e à discriminação racial, limitação do capital social e dificuldades de acesso aos direitos de cidadania (RODRIGUEZ; ARRIAGADA, 2004RODRÍGUEZ, J.; ARRIAGADA, C. Segregación residencial en la ciudad latinoamericana. Revista eure, v. XXXIX, n. 89, p. 5-24, maio 2004. ). Em outras palavras, segregação residencial e desigualdade socioeconômica, embora processos distintos, atuam de forma combinada, reforçando-se mutuamente.

Em suma, a segregação residencial pode ser entendida como um fenômeno que resulta de um processo histórico de separação entre grupos sociais distintos - definidos por critérios de renda, classe social, raça, local de nascimento, entre outros - no espaço urbano. Por consequência, determinadas regiões da cidade tendem a se tornar mais homogêneas internamente, reduzindo as possibilidades de interação entre sujeitos de grupos diferentes e potencializando processos de desigualdade e discriminação social.

Feito esse brevíssimo levantamento a respeito do conceito de segregação residencial de suas principais consequências, passarei a analisar como a literatura especializada tem tratado a intensidade e as características da segregação residencial em São Paulo.

Torres (2005TORRES, H. Medindo a segregação. MARQUES, E.; TORRES, H. (orgs.). São Paulo: segregação pobreza e desigualdades sociais. São Paulo, Editora Senac, 2005.) busca combinar diferentes critérios para analisar a evolução da segregação residencial na metrópole paulista. Por um lado, a partir de categorias de renda, o autor aponta que a segregação é alta entre os grupos que ocupam os extremos da distribuição e aumentou entre 1991 e 2000. Por outro lado, ao utilizar critérios de raça e escolaridade, os resultados apresentam uma segregação relativamente mais baixa e estável, demonstrando a centralidade do componente socioeconômico para a segregação em São Paulo.

Complementarmente, França (2010FRANÇA, D. Raça, classe e segregação residencial no município de São Paulo. Dissertação de mestrado, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010. e 2013FRANÇA, D. Segregação residencial por raça e classe social na região metropolitana de São Paulo (2000-2010). 37º Encontro Anual da ANPOCS. 2013, Águas de Lindoia. Águas de Lindoia: ANPOCS, 2013.) combina critérios de renda e raça a fim de demonstrar que o grau de segregação entre grupos raciais, apesar de baixo entre os mais pobres, tende a aumentar conforme a renda se eleva. Segundo o autor, os negros, mesmo quando possuem renda relativamente mais alta, tendem a permanecer nas áreas pobres e periféricas da cidade. Assim, haveria uma grande mistura racial nessas regiões, enquanto que, nos espaços mais elitizados, haveria uma grande prevalência de brancos.

As análises de Torres e França trazem importantes elementos para que se compreenda a intensidade da segregação em São Paulo e apontam para a importância dos critérios socioeconômicos no contexto brasileiro. É preciso, porém, que se indague a respeito do padrão geográfico dessa segregação a fim de compreender quais áreas da cidade são mais ou menos segregadas e como isso tem mudado historicamente.

Vê-se com recorrência análises que apontam a estrutura geral da segregação residencial de São Paulo como sendo “radial e concêntrica”, isto é, formada por círculos que progressivamente acomodariam a população de acordo com sua situação socioeconômica de tal forma que os serviços, as oportunidades e os grupos sociais mais favorecidos ficariam situados no centro da metrópole e gradientes de crescente esvaziamento e precariedade avançariam na direção das periferias.

Esse padrão centro-periferia de segregação é caracterizado pelas grandes distâncias físicas entre os diferentes grupos sociais. Assim, enquanto ricos vivem na região central, próximos dos principais postos de trabalho e serviços urbanos, os pobres são progressivamente alojados nas precárias e distantes periferias (CALDEIRA, 2000CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução: Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo. Ed. 34; Edusp, 2000.).

Buscando aprofundar as características desse padrão, Pasternak; Bogus (1998PASTERNAK, S.; BOGUS, L. A cidade dos anéis. Cadernos LAP 28. São Paulo, nov.-dez, 1998. e 2003PASTERNAK, S.; BOGUS, L. Continuidades e Descontinuidades na Cidade dos Anéis. Encontro Transdisciplinar População e Espaço. Campinas: ABEP, 2003. Campinas: ABEP, 2003.) propõem um modelo de divisão da cidade de São Paulo em cinco anéis, com base em diferenciais na estrutura etária de grupos de distritos. Para as autoras, o padrão de desenvolvimento de São Paulo, caracterizado pela autoconstrução de moradias nas periferias, uma concepção urbanística rodoviarista e radioconcêntrica advinda do Plano de Avenidas de Prestes Maia e do alto preço de aluguéis e terrenos nas áreas já urbanizadas, teria forçado a ocupação de territórios cada vez mais distantes, em áreas muitas vezes sem infraestrutura.

As autoras demonstram haver uma grande concentração da chamada “elite dirigente” e de profissionais de nível superior no anel interior, enquanto os “trabalhadores de sobrevivência” residiriam preferencialmente no anel periférico. Além disso, na periferia estariam situados os piores indicadores domiciliares e de acesso à infraestrutura e bens de consumo.

Ao analisar a distribuição de grupos profissionais, Préteceille e Cardoso (2008PRÉTECEILLE, E.; CARDOSO, A. Rio de Janeiro y São Paulo: cidades duales? Comparación con Paris. Ciudad y Territorio. Estudios territoriales XLI, no. 158(40), pp. 617-640, 2008.) chegam a uma conclusão semelhante. Segundo os autores, os grupos de profissionais de nível superior “estão organizados em círculos concêntricos que partem do centro da cidade de São Paulo e se estendem em todas direções antes de começar a mesclar-se com outros grupos” (PRÉTECEILLE; CARDOSO 2008PRÉTECEILLE, E.; CARDOSO, A. Rio de Janeiro y São Paulo: cidades duales? Comparación con Paris. Ciudad y Territorio. Estudios territoriales XLI, no. 158(40), pp. 617-640, 2008., p. 14)4 4 É importante salientar, contudo, que os autores não estão debatendo diretamente com a tese da “cidade dos anéis”, mas com a ideia de que as cidades no capitalismo globalizado estariam se tornando “duais”, conforme tese defendida por Sassen (1991). .

Outros autores têm destacado a crescente heterogeneidade do território metropolitano, em especial nas periferias. Essa tendência é também apresentada em artigo posterior de Pasternak e Bougus, que detectam mudanças no perfil da cidade de São Paulo a partir de análises dos dados do Censo de 2000. Segundo as autoras, apesar de se manter, grosso modo, “o sistema de distâncias dos grupos sociais”, não se trata de uma relação totalmente homogênea, uma vez que “no interior dos espaços superiores vão existir territórios populares. E nos populares podem ser encontradas pessoas mais abonadas”. Dessa forma, é possível notar uma heterogeneidade social bastante grande e crescente na periferia, com as camadas médias “residindo cada vez mais nos anéis exterior e periférico” (PASTERNAK; BOGUS, 2005PASTERNAK, S.; BOGUS, L. Continuidades e descontinuidades na cidade dos anéis. XI Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Salvador: ANPUR, 2005. Salvador: ANPUR, 2005., p.22).

Cumpre, portanto, levantarmos as primeiras questões que deverão ser objeto de análise no decorrer deste texto: em que medida é possível, a partir dos dados mais atuais de que dispomos (Censo de 2010), definir São Paulo como uma cidade caracterizada por um padrão de segregação radial e concêntrico? Estariam algumas regiões da cidade se tornando mais heterogêneas socialmente?

Além disso, novos padrões de segregação podem estar surgindo, como argumenta Caldeira (2000CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução: Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo. Ed. 34; Edusp, 2000.). Segundo a autora, a partir dos anos 1980, teria se iniciado um padrão de segregação urbana marcado fundamentalmente por “enclaves fortificados”: grandes condomínios fechados, com fortes esquemas de segurança privada, situados muitas vezes em regiões mais afastadas da região central. Esse padrão, que estaria se sobrepondo ao padrão centro-periferia das décadas anteriores, teria como característica fundamental a separação entre ricos e pobres não mais por grandes distâncias, mas por muros e tecnologias de segurança, mantendo o nível de interação entre grupos sociais distintos relativamente baixo, mesmo quando habitam regiões vizinhas. A autora, no entanto, não traz dados quantitativos que corroborem sua hipótese a respeito da mudança nos padrões de segregação em São Paulo, demonstrando apenas possíveis tendências para esse processo que carecem de investigações mais amplas para que sejam comprovadas.

Em linha semelhante, Sabatini, Cáceres e Cerda (2001SABATINI, F.; CÁCERES, G.; CERDA, J. Segregación residencial en las principales ciudades chilenas: Tendencias de las tres últimas décadas y posibles cursos de acción. Revista eure, v. XXVIII, n. 82, p. 21-42, dez. 2001. ) e Sabatini (2006SABATINI, F. La segregación social del espacio en las ciudades de América Latina. Banco Interamericano de Desarrollo, 2006. e 2013SABATINI, F. La segregación social del espacio en las ciudades de América Latina. Banco Interamericano de Desarrollo, 2006. ) afirmam que estaria ocorrendo uma ruptura do padrão de segregação que marcou as cidades latino-americanas. Segundo os autores, a principal mudança seria na escala geográfica da segregação - que estaria diminuindo em grande escala e sendo ampliada em pequena escala. Desse modo, ao invés de grandes áreas homogêneas, separadas por grandes distâncias, como no padrão centro-periferia, estaria se tornando mais comum a existência de pequenos bairros homogêneos dispostos alternadamente no espaço urbano.

A principal consequência desse processo estaria na intensificação dos problemas nas regiões da cidade habitadas pelos mais pobres, de forma semelhante com o que ocorre nos processos de guetificação em países como os Estados Unidos. Por consequência, a segregação estaria se tornando mais “maligna”, ou seja, com efeitos mais perversos sobre a pobreza urbana (SABATINI, CÁCERES; CERDA, 2001SABATINI, F.; CÁCERES, G.; CERDA, J. Segregación residencial en las principales ciudades chilenas: Tendencias de las tres últimas décadas y posibles cursos de acción. Revista eure, v. XXVIII, n. 82, p. 21-42, dez. 2001. ). Assim, o novo padrão de segregação que estaria aflorando traria, por um lado, uma entronização do “efeito gueto” em muitos bairros populares e, por outro, uma redução na escala de segregação residencial refletida em uma abundância de muros e fragmentos espaciais (SABATINI, 2013SABATINI, F. La segregación social del espacio en las ciudades de América Latina. Banco Interamericano de Desarrollo, 2006. ).

Sabatini e os demais autores parecem transpor de forma apressada suas conclusões baseadas no estudo de cidades chilenas para as cidades da América Latina de maneira geral. De toda forma, ao chamar atenção para a mudança de escala na segregação residencial, eles levantam questões pertinentes a respeito da importância da autossegregação dos ricos nos chamados enclaves fortificados, em linha com as conclusões de Caldeira, e na possível intensificação dos problemas sociais entre os mais pobres a partir do que chamam de “efeito gueto”. Cumpre questionar, portanto, em que medida esses processos seriam aplicáveis ao caso aqui em questão.

De volta à a realidade paulistana, Eduardo Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014., p. 687) produziu, mais recentemente, uma análise em relação aos grupos profissionais na qual compara os resultados do censo de 2000 e de 2010. O autor mostra, primeiramente, que os índices de segregação entre essas categorias são perfeitamente ordenados entre as classes, isto é, “os índices aumentam para as classes superiores e diminuem para as classes inferiores”. Na visão do autor, “os dados sugerem de forma bastante eloquente que quanto maior a distância social entre classes, maior a segregação.” A estrutura da segregação em São Paulo, portanto, seria “fortemente hierárquica socialmente, em um claro sentido de evitação social”, uma vez que as classes superiores seriam as mais segregadas (MARQUES, 2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014., p. 690).

Além disso, os dados de 2010 mostram que “as classes superiores se tornaram ainda mais predominantes nos espaços superiores” mas os espaços inferiores que “tendem a ser os mais periféricos, portanto, se tornam mais heterogêneos.” (MARQUES, 2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014., p. 698). Há, então, um ponto importante a ser explorado a partir da contraposição dessas perspectivas. Enquanto, para Marques, estaria havendo uma intensificação na segregação dos ricos, especialmente nas regiões mais centrais da cidade, e as periferias estariam se tornando mais diversas, para outros autores, o aumento da heterogeneidade seria mais generalizado e a segregação estaria se intensificando em uma escala menor5 5 Os dados disponíveis no Brasil não nos permitem analisar a mudança na escala da segregação de forma mais apropriada, uma vez que temos acesso apenas aos dados abertos das áreas de ponderação e não dos setores censitários. Procuro contornar, em parte, essa dificuldade analisando outras dimensões da segregação residencial. .

Dessa forma, partindo do que foi apresentado até aqui, é possível resumir as hipóteses e questões que pretendo investigar nos seguintes pontos: 1) até que ponto ainda é possível caracterizar a estrutura de segregação residencial de São Paulo como radial e concêntrica? 2) É possível afirmar que os “enclaves fortificados” têm se generalizado em São Paulo a ponto de caracterizarem um novo padrão de segregação ou seriam apenas fenômenos pontuais sem maiores impactos na distribuição geográfica dos grupos sociais na metrópole paulista? 3) Existe de fato um padrão de “evitação social” por parte das camadas mais elevadas da sociedade paulistana em relação aos demais extratos sociais que estaria transformando grandes áreas em espaços cada vez mais exclusivos das elites? 4) Todos os espaços da metrópole paulistana estariam se tornando mais heterogêneos ou apenas áreas específicas? 5) É possível dizer que estamos passando por um processo de intensificação na segregação dos mais pobres, mesmo que em uma escala menor, com a formação de “guetos” de pobreza na metrópole paulista? 6) Como a segregação evoluiu ao longo da década de 2000 na região metropolitana de São Paulo em suas diferentes dimensões?

Escolhas metodológicas

A escolha das categorias sociais a partir das quais se indaga sobre o maior ou menor grau de segregação de umas em relação às outras é fundamental para as conclusões a que se chega. Trata-se de um problema metodológico, mas também teórico, uma vez que é preciso levar em conta os princípios pertinentes de análise da estrutura social urbana (PRÉTECEILLE, 2004PRÉTECEILLE, E. A construção social da segregação urbana: convergências e divergências. Espaço e Debates 24, pp.11-23, 2004.).

Os estudos de Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014. e 2015aMARQUES, E. Os espaços sociais da metrópole nos 2000. MARQUES, E. (org.) A metrópole de São Paulo no século XXI: espaços, heterogeneidades e desigualdades . São Paulo: Editora Unesp , 2015a.) são de grande relevância para o entendimento do processo de segregação urbana que ocorre em São Paulo atualmente. Contudo, ao focar apenas nas categorias sócio-ocupacionais, os resultados trazidos pelo autor podem não demonstrar com clareza todas as nuances advindas das mudanças na sociedade brasileira na última década, em especial no que se refere à ampliação das oportunidades educacionais e à redução da desigualdade em termos de renda.

A opção metodológica que Marques faz ao analisar a segregação de acordo com as categorias sócio-ocupacionais é pertinente para diversos fins que o próprio autor demonstra em seus textos, uma vez que categorias profissionais tendem a ter grande correlação com outros indicadores como renda e escolaridade. Contudo, o processo de mobilidade social que ocorreu no Brasil ao longo da última década é dotado de características bastante peculiares que merecem um exame mais aprofundado.

Ao longo dos anos 2000, poucas foram as alterações apresentadas no que se refere à estrutura sócio-ocupacional do país, conforme demonstram Scalon e Salata (2012SCALON, C.; SALATA, A. Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica.Soc. estado. vol.27, n.2, pp.387-407, 2012.). Entretanto, os autores observam que quase todas as classes apresentaram aumento nos seus rendimentos no período analisado, com destaque para aquelas localizadas na metade inferior da estrutura social. Além disso, Souza e Carvalhaes (2014SOUZA, P. H.; CARVALHAES, F. Estrutura de Classes, Educação e Queda da Desigualdade de Renda (2002-2011). Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 57, n. 1, 2014.) apontam um significativo aumento, em termos educacionais, da força de trabalho nesse período, em especial para os menos escolarizados, o que acabou por reduzir os retornos salariais para os profissionais mais qualificados.

Esses mesmos dados estão, em alguma medida, refletidos na região metropolitana de São Paulo. As tabelas 2 e 3 abaixo mostram como os grupos de renda e de escolaridade sofreram mudanças mais expressivas entre 2000 e 2010 - as alterações na composição dos grupos passam de 6% no quesito renda e de 12% em termos de escolaridade - do que os grupos sócio-profissionais (tabela 4) - chegando no máximo a 3,6%6 6 Esses dados dizem respeito ao percentual de pessoas que migraram de uma camada social para outra no período analisado. .

No que se refere à renda, dividi os grupos em oito categorias, seguindo estudo coordenado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) do governo federal que delimita as faixas de renda da população brasileira de acordo com o grau de vulnerabilidade das famílias, “definido como sendo a probabilidade de retorno (ou permanência, se a pessoa já era pobre) à condição de pobreza em algum momento dos próximos cinco anos”. Esse será o critério usado no cálculo dos índices de segregação na próxima seção. A tabela 1 abaixo apresenta a divisão das classes7 7 Não pretendo entrar aqui no debate a respeito do critério mais adequado para divisão de classes sociais e que foi motivo de intensos debates nos últimos anos no Brasil. O uso que faço do termo “classe” faz referência apenas a grupos ou categorias a partir das quais se divide a sociedade para fins de análise. a partir dos valores de corte da renda familiar per capita nos momentos de medição dos Censos de 2000 e 2010 e o valor atualizado para junho de 20178 8 Os valores foram deflacionados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial de inflação no Brasil. Para as análises geográficas, reagruparei as categorias de renda em três grandes grupos: renda baixa, renda média e renda alta, como demonstrado na tabela 2, abaixo. .

Tabela 1:
Divisão de classes por critério de renda

Paralelamente, adicionarei o item escolaridade, classificando as pessoas em quatro grupos: 1 - Ensino fundamental incompleto (0 a 7 anos de estudo); 2 - Ensino fundamental completo e médio incompleto (8 a 10 anos de estudo); 3 - Ensino médio completo e superior incompleto (11 a 14 anos de estudo); 4 - Ensino superior completo (14 anos ou mais de estudo). O elemento escolaridade é de extrema importância para as análises que estão sendo realizadas, pois pode ser um indicativo de mudanças mais estruturais em termos de posição social das pessoas no médio e longo prazo.

Tabela 2:
Distribuição da população por grupos de renda - RMSP(%)
Tabela 3:
Distribuição da população por grupos educacionais - RMSP (%)
Tabela 4:
Distribuição da população por grupos sócio-ocupacionais - RMSP (%)

Como dito anteriormente, as variações percentuais da distribuição da população entre 2000 e 2010 em termos de renda e, principalmente, no que se refere à escolaridade são relativamente mais expressivas do que as variações em termos de categorias sócio-ocupacionais9 9 As variações no nível educacional podem ser influenciadas por mudanças etárias da população. Contudo, por se tratar de um período de apenas 10 anos entre as pesquisas e em que a média de idade das pessoas variou de 29 para 32 anos, a variação etária tem efeito apenas marginal sobre o nível de escolaridade. . Desse modo, são elementos que podem trazer contribuições bastante significativas para o entendimento da evolução dos padrões de segregação na região metropolitana de São Paulo, justificando nossa escolha metodológica.

Além do tipo de dado escolhido, diferentes métodos podem ser utilizados para medirmos a segregação em um espaço urbano. Como aponta Préteceille (2004PRÉTECEILLE, E. A construção social da segregação urbana: convergências e divergências. Espaço e Debates 24, pp.11-23, 2004., p.16), é possível fazer uso tanto de índices globais quanto de análises tipológicas que buscam construir “subconjuntos definidos pela similitude dos perfis de distribuição das categorias sociais”. Neste artigo, usarei ambos os métodos a fim de obter uma visão mais ampla do fenômeno em questão.

Inicialmente, a fim de identificar o tipo e as características gerais da segregação urbana em São Paulo, utilizarei índices que medem a intensidade dessa segregação e apontam para quais grupos ela é mais ou menos relevante.10 10 Para calcular os índices de segregação, utilizei o software Geo-Segregation Analyzer, que pode ser obtido gratuitamente no site http://geoseganalyzer.ucs.inrs.ca/. Para tanto, é fundamental fazer uso de diferentes índices que sejam capazes de medir a segregação na Região Metropolitana de São Paulo. Diante das limitações de espaço deste texto, usarei apenas a classificação por renda na análise dos índices globais e as complementarei com as análises tipológicas combinando renda e escolaridade.

Medindo a segregação em São Paulo

Messey e Denton (1988)MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988. defendem que a segregação urbana deve ser entendida de forma multidimensional e que ela varia ao longo de cinco eixos ou dimensões da segregação residencial: uniformidade, exposição, concentração, centralização e agrupamento.

O eixo da uniformidade se refere à distribuição diferencial dos grupos entre as áreas da cidade. Trata-se da dimensão mais comumente observada nas análises de segregação residencial. Nas palavras dos autores, “um grupo minoritário é tido como segregado se ele está desigualmente distribuído entre as unidades de área” (MESSEY; DENTON 1988MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988., p. 283). A uniformidade, então, não é medida de forma absoluta, mas escalonada em relação a outro(s) grupo(s). O máximo de uniformidade e o mínimo de segregação poderia ser encontrado caso todas as unidades geográficas possuíssem a mesma distribuição relativa dos grupos que a cidade apresenta como um todo.

Para medir a uniformidade, o índice mais usado é o índice de dissimilaridade (ID), introduzido por Duncan e Duncan (1955DUNCAN, O.; DUNCAN, B. A Methodological Analysis of Segregation Indices. American Sociological Review. 20, pp. 210-217, 1955.). Grosso modo, esse índice mede o percentual da população de um grupo que precisaria se mudar para outra região da cidade para que ela fosse perfeitamente uniforme. A tabela 5 apresenta os resultados para esse índice para cada um dos grupos.11 11 Realizei exercícios no sentido de medir a dissimilaridade entre os grupos agrupados em par, mas os resultados encontrados não agregaram significativamente em termos de interpretação, por isso optei por excluir esses dados da apresentação.

Tabela 5:
Índice de Dissimilaridade (ID) - RMSP 2000 e 2010

Em geral, considera-se a segregação baixa quando o ID for menos 0,3; a segregação é moderada se o índice for entre 0,3 e 0,6 e alta se for acima de 0,6. Nota-se que apenas a “alta classe alta” apresenta índices próximo de uma segregação alta, os demais apresentam uma segregação relativamente baixa.

Contudo, como dito anteriormente, não se trata de medir a segregação de forma absoluta, mas sim relativamente entre os grupos e avaliar sua evolução histórica. Assim, pode-se dizer que os índices apresentados mostram que a segregação residencial é mais intensa para os extremos da distribuição de renda e praticamente duplicam quando chegamos no grupo de renda mais elevada. Os grupos intermediários de renda apresentam índices mais baixos pois encontram-se mais bem distribuídos ao longo da cidade, sendo possível encontrá-los tanto em regiões mais ricas quanto nas regiões mais pobres. A variação dos índices entre 2000 e 2010 é negativa para os extremos e positiva para as camadas intermediárias. No entanto, por se tratar de variações relativamente baixas, ainda é difícil apontar tendências mais contundentes em qualquer sentido; os índices apontam muito mais para uma permanência do padrão de segregação do que mudanças dignas de nota.

A segunda dimensão da segregação residencial urbana, apontada por Messey e Denton (1988MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988., p. 287) é a exposição, definida como o “grau de contato potencial, ou a possibilidade de interação, entre membros do grupo minoritário e majoritário das áreas geográficas da cidade.” Os dois índices que serão usados aqui medem a exposição de um grupo ao outro ou a si mesmo.

O índice de isolamento (xPx) (tabela 6) mede a probabilidade de pessoas do mesmo grupo compartilharem o mesmo espaço da cidade, ou seja, ao escolhermos uma pessoa de um determinado grupo X, o índice aponta qual seria a probabilidade de que algum de seus vizinhos,12 12 As “unidades de vizinhança” aqui utilizadas são as áreas de ponderação definidas pelo IBGE. escolhido de forma aleatória, também pertença ao grupo X. Complementarmente, o índice de interação (xPy) mede a probabilidade de pessoas de grupos distintos compartilharem o mesmo espaço. Dessa forma, por se tratar de uma probabilidade estatística, a soma de todos os índices de interação e do índice de isolamento de um determinado grupo deve sempre ser igual a 1 ou 100%.

Tabela 6:
Índice de Isolamento dos grupos de renda (xPx)

A partir dos dados, é possível observar o isolamento progressivo dos grupos de renda conforme elas se aproximam do topo da pirâmide. Enquanto a probabilidade de uma pessoa do grupo pobre ou extremamente pobre ter um vizinho pertencente ao mesmo grupo é de menos de 10%, essa probabilidade passa de 30% ao analisarmos o grupo de renda mais elevada. Quando comparamos os anos de 2000 e 2010, poucas alterações são notadas, apenas os grupos denominados pobres, vulneráveis e médio-baixo diminuem seu isolamento, ao passo que os médio-altos e os alto-baixos apresentam uma pequena variação positiva no índice, tornando-se, portanto, mais isolados. Vejamos como se comporta o índice de interação entre os grupos nas tabelas 7 e 8:

Tabela 7:
Índice de interação entre os grupos de renda (xPy) 2000
Tabela 8:
Índice de interação entre os grupos de renda (xPy) 2010

Apesar de o índice de interação não seguir a mesma lógica perfeitamente linear de aumento conforme os grupos se distanciam na pirâmide de renda, os números revelam que a segregação dos grupos é bastante alta para os extremos da distribuição de renda, em especial para os mais ricos. Ainda que exista alguma probabilidade de grupos mais afastados em termos de rendimentos compartilharem os mesmos espaços na cidade, essa probabilidade é muito baixa para o grupo denominado “alta classe alta”. Além disso, a disposição dos números indica que é mais provável encontrarmos pessoas de camadas intermediárias e altas em espaço habitados por pessoas de baixa renda do que encontrar pessoas de baixa renda em espaços mais elitizados, reforçando a hipótese de diversificação social nas periferias, mas não das áreas nobres. Tal como ocorre no que se refere à uniformidade, os grupos de renda intermediária mostram maior interação com os demais, funcionando como uma espécie de “barreira” ou “zona de transição”, permitindo maior isolamento entre os extremos.

Com relação às mudanças entre 2000 e 2010, é digno de nota que as variações mais expressivas estejam nos índices de interação das camadas extremamente pobre e pobre, que diminuíram seus níveis de interação com as camadas mais baixas e aumentaram com as camadas mais elevadas da população, o que também vai ao encontro da hipótese deste texto de aumento da heterogeneidade dos espaços periféricos.

A terceira dimensão da segregação residencial a ser analisada é a concentração que se refere ao espaço relativamente pequeno ocupado por um grupo minoritário13 13 Cumpre ressaltar que minoria nesse contexto é usado meramente no sentido estatístico do termo. no ambiente urbano. Para medir essa dimensão, faremos uso do índice Delta (DEL) desenvolvido por Duncan, Cuzzort e Duncan (1961, apud MASSEY; DENTON, 1988MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988.). (Tabela 9) Esse índice calcula a proporção de membros do grupo X residindo em unidades espaciais com densidade média acima daquela dos membros do próprio grupo e pode ser interpretado de maneira muito similar ao índice de dissimilaridade, embora tenha um foco específico na dimensão concentração14 14 Messey e Denton (1988) sugerem o uso do índice de concentração relativa (RCO) para avaliar essa dimensão devido a sua menor correlação com outros índices, optamos pelo uso do índice Delta devido a maior facilidade na sua interpretação. .

Tabela 9:
Índice Delta (DEL)

Do mesmo modo que nos demais índices, notamos um aumento nos valores conforme nos aproximamos dos grupos de renda mais elevada. Contudo, cabe destacar que, entre 2000 e 2010, houve uma queda no índice para quase todos os grupos, indicando que os grupos se encontravam menos concentrados no espaço em 2010 do que em 2000. O índice revela, portanto, que, com exceção dos extremamente pobres, cujo índice se manteve igual, todos os demais grupos estão mais dispersos no espaço metropolitano, apontando uma importante tendência de possível redução na segregação residencial.

A dimensão da centralização, que mede o grau em que um grupo é alocado próximo ao centro de uma área urbana, possui diversos problemas em suas possibilidades de aferição, a principal delas está na dificuldade sociológica de marcar claramente o “centro” de uma cidade, uma vez que o centro geográfico não necessariamente é a região mais atrativa em termos de moradia para os grupos sociais, além das possibilidades de múltiplas centralidades se desenvolverem em uma metrópole como São Paulo. Dessa forma, não farei uso de índices focados nessa dimensão neste trabalho, que serão, contudo, observados geograficamente com a construção de mapas na seção seguinte.

Finalmente, a quinta dimensão da segregação urbana que será analisada é o agrupamento (clustering) (Tabela 10). Essa dimensão mede a extensão em que as unidades geográficas habitadas por minorias estão adjuntas a outras, ou seja, trata-se de avaliar a segregação para além de uma unidade isolada, olhando também para aquelas que estão ao seu redor. Para essa dimensão, utilizo o índice de agrupamento absoluto (ACL),15 15 Apesar de Messey e Denton (1988) sugerirem o índice de proximidade espacial de White como o mais adequado para esta dimensão, optei pelo índice de agrupamento absoluto devido à sua maior facilidade de cálculo e sua alta correlação com o índice de proximidade espacial. que expressa o número médio de membros de um grupo nas proximidades como uma proporção do total da população nas proximidades.

Tabela 10:
Índice de agrupamento absoluto (ACL)

O índice apresenta dois aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, a camada de mais alta renda apresenta um índice de agrupamento muito mais elevado que todas as demais camadas, comprovando a tendência desse grupo em buscar áreas contíguas a regiões já tidas como “nobres” como local de residência. Ou seja, esgotadas as possibilidades de moradia para as classes altas em determinada região, por falta de oferta de terrenos ou por preços excessivamente elevados, a tendência é que os membros dessas classes busquem locais de moradia o mais próximo possível dos bairros já tidos como nobres.

Em segundo lugar, nota-se uma queda relativa nos índices para as camadas extremas, mais baixas e mais altas, e uma leve alta para as camadas intermediárias entre 2000 e 2010, o que pode indicar uma leve tendência a reversão do agrupamento dos grupos que ocupam as pontas da pirâmide distributiva. Neste sentido, a construção de “enclaves fortificados” em regiões mais periféricas pode ajudar a explicar o fenômeno em questão.

Buscando resumir brevemente o que foi apresentado até aqui, pode-se dizer que, em todas as dimensões, as camadas mais segregadas são aquelas que possuem maior poder aquisitivo. São os mais ricos, portanto, que estão menos uniformemente distribuídos pelo espaço urbano, menos expostos ao contato com outros grupos, mais concentrados e mais agrupados em determinadas regiões da cidade. Tal fator é esperado e compreensível na medida em que o controle do uso e ocupação do solo urbano tende a ser determinado pelos grupos de maior renda que detêm a possibilidade de escolha do local de moradia.

Ao observarmos o índice de dissimilaridade e os índices de isolamento e interação entre os grupos, impressiona a forma como eles evoluem de maneira quase linear conforme a distância econômica entre os grupos aumenta e os setores intermediários apresentam maior interação com ambos os extremos, funcionando como uma espécie de barreira social entre ricos e pobres. Esses dados revelam a existência de um padrão de segregação que busca separar o máximo possível os grupos mais distantes entre si no espectro econômico, especialmente os de maior renda com relação aos demais, configurando o que Eduardo Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014.) chama de “evitação social” por parte das elites econômicas.

Por outro lado, é importante ressaltar que em praticamente todos os índices houve uma relativa diminuição da segregação residencial, sobretudo entre as camadas médias e baixas, o que parece apontar para uma maior diversidade de grupos em algumas regiões da cidade. Não há elementos que nos permitam dizer que esteja ocorrendo em São Paulo uma intensificação da segregação dos mais pobres, ou de um “efeito gueto” entre as classes populares. Apesar de relativamente menos agrupados e menos concentrados em 2010 do que em 2000, os mais ricos gozam de relativa estabilidade em sua segregação residencial, uma vez que não houve mudanças em seus índices de dissimilaridade e isolamento.16 16 É interessante notar que a desigualdade global de renda em São Paulo não foi reduzida nesse período. O índice de Gini para a cidade de São Paulo passou de 0,61, em 2000, para 0,62 em 2010, devido aos maiores ganhos relativos nos estratos de renda mais alta, sobretudo o 1% mais rico (FREITAS & ARAUJO, 2014).

Os mapas da seção seguinte nos ajudarão a interpretar melhor esses dados, bem como a identificar zonas da cidade ocupadas majoritariamente por cada um desses grupos.

Analisando a segregação geograficamente

As análises geográficas são fundamentais como complemento do que foi apresentado anteriormente, uma vez que elas nos dão uma visão mais global dos padrões de segregação. Os números frios podem trazer uma falsa impressão seja de maior ou menor segregação, uma vez que levam em conta as unidades de referência (áreas de ponderação) de forma isolada, sem colocá-las no contexto urbano geral. Além disso, o fato de o IBGE ter alterado os limites e os tamanhos das áreas de ponderação entre 2000 e 2010 pode trazer alterações nos índices que devem ser contrapostas e complementadas com outras metodologias com o intuito de aprimorar os resultados das análises.

A análise que segue foi elaborada a partir da realização de um Classificação Hierárquica Ascendente (CHA) realizada por meio do software Philcarto. Esse tipo de classificação busca separar dados multivariados a partir de critérios que homogeneízem internamente os elementos com base no desvio padrão em relação à média das distribuições.17 17 Optei por utilizar a CHA ao invés dos LISA Maps, elaborados a partir do indicador local de associação espacial, pois o primeiro permite combinar o peso dos diversos grupos dentro da mesma análise, enquanto os LISA Maps demandam uma análise de cada grupo individualmente ou para cada par de grupos (Cf. ANSELIM, 1995). Dessa forma, regiões com padrões semelhantes em termos de características da população são agrupadas em uma mesma classificação. Optei por separar os espaços em cinco áreas que, combinadas, explicam aproximadamente 90% dos casos em questão. Os mapas 1 e 2 trazem a distribuição dos grupos de acordo com os dados de 2000 e 2010 respectivamente. Em seguida, as tabelas 11 e 12 mostram a composição social dos espaços por grupos de renda e educacionais respectivamente.

Mapa 1:
Distribuição dos grupos - RMSP 2000

Mapa 2:
Distribuição dos grupos - RMSP 2010

Tabela 11:
Composição Social dos espaços - Renda
Tabela 12:
Composição Social dos espaços - Educação

Primeiramente, analisarei os dados de 2000, para depois compará-los com a realidade de 2010. É possível notar, no centro dos mapas, as áreas que denominamos “espaços das elites”, majoritariamente ocupadas por pessoas com renda e escolaridade elevadas - 81% possuíam renda alta e 59% haviam ao menos iniciado o ensino superior. No ano de 2000, esses espaços abrangiam toda área central da capital, a região de Santana ao norte, parte dos distritos Mooca e Tatuapé ao leste e regiões centrais do ABC Paulista, que congrega os municípios de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul.

As áreas denominadas “espaços médio-altos” eram ocupadas em 2000 ainda de maneira predominante por pessoas com renda e escolaridade relativamente elevadas, porém de forma não tão excludente. Em relação à escolaridade, ainda havia um predomínio de pessoas que ao menos iniciaram o ensino superior (40%), mas menor do que nos espaços das elites. No que se refere à renda, 56% possuíam renda alta e 35% renda média, revelando uma mistura de grupos um pouco maior. Esses espaços formam uma espécie de cinturão em torno da área mais clara no centro expandido da capital paulista e avançam em alguns pontos ao norte, ao redor de Santana, em parte dos distritos de Mandaqui e Tucuruvi, na região central de Guarulhos, nas regiões do ABC Paulista e nos municípios de Osasco, Cotia e Barueri no oeste (esses dois últimos, locais de alguns dos condomínios fechados de elite mais famosos do Brasil - Alphaville e Granja Viana) e Mogi das Cruzes no leste.

Os “espaços médio-misturados” abrigavam em 2000 pessoas com rendimentos e escolaridade intermediários. Em termos de renda, ainda há destacada presença de famílias com rendimentos elevados (39%), mas um predomínio de famílias com rendimento médio (47%). Em relação à escolaridade, predominam os que possuem ensino médio completo e iniciaram, mas não concluíram, o ensino superior (23%). Há também uma forte presença de pessoas apenas com ensino fundamental (52%). Essas áreas se concentram principalmente nas regiões norte e leste da capital, e nas proximidades dos espaços mais elitizados nas demais cidades da Grande São Paulo.

Nos espaços que chamamos de “espaços médio-baixo misturados”, predominavam em 2000 pessoas com rendimentos e escolaridade intermediários a baixo. Em termos de renda, a maioria absoluta da população estava concentrada no estrato médio da distribuição (51%) e, com relação à escolaridade, a maior parte tinha ensino fundamental incompleto (61%), uma parcela tinha ensino fundamental completo, mas sem concluir o ensino médio (18%) e uma pequena parcela igual havia concluído o ensino médio, mas não o ensino universitário. Essas áreas fechavam o cinturão intermediário na parte sul e oeste da capital, mas também avançavam ao norte e ao leste, além de abranger alguns municípios da região metropolitana como Ribeirão Pires, Santana de Parnaíba, Cotia e Caieiras.

Finalmente, os “espaços das classes baixas” contavam, em 2000, com o predomínio de pessoas com renda média (47%), mas com uma forte presença de famílias com renda baixa (44%) e escolaridade também baixa, isto é, pessoas com ensino fundamental incompleto (73%). A maioria dos municípios da região metropolitana, bem como os extremos sul, norte e leste da capital se enquadravam nessa categoria.

Ao compararmos o mapa de 2000 com o mapa de 2010, algumas mudanças são dignas de nota. Em primeiro lugar, é preciso destacar a mudança no perfil das classes, o que condiz com a mudança no perfil da sociedade brasileira como um todo nesse período, isto é, aumento da renda e da escolaridade da população de uma maneira geral e com mais intensidade para os que estão na base da pirâmide.

Os espaços das elites e médio-altos tiveram uma diminuição em termos das diferenças entre si. No primeiro, ocorreu um aumento da escolaridade, se tornando ainda mais exclusivo daqueles que ao menos iniciaram o ensino superior (passando de 59% para 71%), e a manutenção da renda elevada (de 81% para 83%), se tornando um espaço altamente elitizado e quase exclusivo dos que possuem renda alta e escolaridade elevada, apesar de um pequeno aumento de pessoas com renda baixa (de 4% para 7%).18 18 Essa mudança, contudo, pode ser explicada, ao menos parcialmente, devido ao fato de o IBGE ter registrado no Censo de 2010 pessoas que não declararam seus rendimentos como “sem rendimento”. É sabido que são justamente as pessoas de maior renda que tendem a se recusar a informar o quanto ganham.

Nos espaços médio-altos, o mesmo aumento do exclusivismo pode ser observado, sendo que os moradores dessas regiões com renda alta passaram de 56% para 66% e os que ao menos iniciaram o ensino superior passaram de 40% para 56%. Entre 2000 e 2010, mais do que dobra o percentual de pessoas com ensino superior completo, o que, em parte, pode ser explicado pela expansão desses espaços em direção a áreas anteriormente classificadas como “espaços das elites”, mas não se pode desconsiderar o impacto do aumento da escolaridade entre a população.

Assim, a diferenciação entre os dois espaços mais elitizados se dá muito mais pelo exclusivismo mais acentuado do primeiro do que propriamente pelo perfil de seus membros. Em termos de tendências, os dois seguem linhas muito similares, sendo que as mudanças são mais aceleradas nos espaços das classes médias-altas pelo fato de partirem de um patamar mais baixo tanto em termos de renda quanto de escolaridade. Sendo assim, em termos de análise dos espaços ocupados pelos membros dessas duas classes, será feito de forma a unir esses dois espaços.

No que se refere aos “espaços médios misturados” também se observa uma elevação tanto na renda quanto na escolaridade das pessoas, embora relativamente mais lenta. Esses espaços são os que menos tiveram seu perfil de renda alterado, com mudanças apenas marginais. No que se refere à escolaridade, contudo, destaca-se o aumento de pessoas que concluíram o ensino superior passando de 7% para 14%.

Por fim, nos “espaços médio-baixo misturados” e nos “espaços das classes baixas” há pouca mudança significativa no perfil das classes, exceto que ficaram ainda mais misturadas tanto em termos de renda quanto de escolaridade. Destaca-se a redução do percentual de pessoas classificadas como de renda baixa nos espaços das classes baixas, passando de 44% para 36% e um aumento proporcional dos que obtinham uma renda intermediária - de 47% para 54%. Ampliou-se também em ambos os espaços os que ao menos iniciaram o ensino superior, mas ainda não o concluíram, passando de 18% para 24% nos espaços médio-baixo misturados e de 11% para 19% nos espaços das classes baixas. Assim, a heterogeneidades dessas regiões da cidade tornou-se ainda mais marcante em ambos os aspectos.

Posto isso, buscarei resumir algumas das principais tendências que merecem destaque em termos de evolução do padrão de segregação residencial na região metropolitana de São Paulo. Em primeiro lugar, no que se refere às mudanças dentro dos grupos das elites, é preciso realçar alguns avanços geográficos que os grupos ocupantes dos dois espaços - das elites e médio-altos - combinados produziram. Além dos espaços já destacados anteriormente, ocupados por esses grupos, eles se consolidam em regiões de condomínios de luxo em Santana de Parnaíba, Cotia e Barueri na região oeste da grande São Paulo (marcações número 5 no mapa 2), onde localizam alguns dos mais importantes e conhecidos “enclaves fortificados”, tal como definidos por Caldeira (2000CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução: Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo. Ed. 34; Edusp, 2000.). Nas demais regiões, poucas alterações podem ser notadas em termos geográficos, exceto no centro de Guarulhos e no centro velho de São Paulo (Bom Retiro, Pari, Belém e Sé - marcados pelo número 1 no mapa 2), onde houve uma diminuição dos espaços nobres, e no município de Santana de Parnaíba, onde ocorreu um avanço desses setores.

Os “espaços médios misturados”, por sua vez, estão entre os que mais se expandiram nesse período e se firmaram como “zonas de transição” entre os espaços das elites e as regiões periféricas. Além da consolidação e do avanço nas regiões leste e norte da capital (marcados pelo número 2), e na região central de Guarulhos, há outros importantes avanços ao redor do centro expandido nas regiões norte e oeste (marcação 3), abrangendo os distritos de Limão, Freguesia do Ó e Pirituba ao norte, Jaguaré, Rio Pequeno, Vila Sônia e seguidos por Taboão da Serra e Osasco a oeste, até uma parte do distrito de Campo Limpo, ao sul. Nesse mesmo sentido, há um avanço forte desses espaços a sudeste da capital, primeiramente nos bairros de Ipiranga, Cursino, Sacomã - por onde se expandiu a linha verde do metrô - e Jabaquara (marcação 4), seguindo pelo ABC até Ribeirão Pires, Diadema e Mauá. Fora da capital, destaca-se a parte sul de Cotia e partes de Caieiras e Mogi das Cruzes. Destaca-se também a consolidação do centro velho de São Paulo, nos bairros Bom Retiro, Pari, Sé e Belém, como uma região média-misturada, o que ainda não era claro em 2000 (marcação 1).

Por fim, com relação aos “espaços médio-baixo misturados” e aos “espaços das classes baixas” vemos desaparecer o quarto anel que antes parecia se formar em torno da região central da Grande São Paulo, fazendo com que os dois espaços se confundam muito mais nas periferias tanto da capital quanto das demais cidades da região metropolitana. Na capital, cabe destacar, no entanto, que os espaços periféricos se deslocaram para regiões ainda mais distantes, concentrando-se apenas no extremo leste (Itaim Paulista, Jardim Helena, Lajeado, Cidade Tiradentes, Iguatemi, São Rafael, José Bonifácio) e no extremo sul (Jardim Ângela, Grajaú, Parelheiros e Marsilac) e em alguns pontos da zona norte (nos distritos de Perus e Brasilândia). Destaca-se a mudança de áreas antes classificadas como “espaço das classes baixas” para “espaços médio-baixo misturados” nos distritos Parque do Carmo, Vila Curuçá, Guaianazes, Ermelino Matarazzo, no leste (marcação 6), Capão Redondo no sul (7), Anhanguera, Jaraguá, Perus e Tremembé no norte (8). Em suma, além de uma maior diversificação dos espaços periféricos em praticamente toda a região metropolitana, é necessário destacar uma tendência de afastamento progressivo dos mais pobres e menos escolarizados para espaços cada vez mais distantes dos centros dinâmicos das principais cidades da Grande São Paulo, com destaque especial para a capital.

De forma resumida, pode-se dizer, em primeiro lugar, que assistimos, ao longo da década de 2000, uma consolidação dos espaços das elites, que se tornaram ainda mais elitizados e excludentes com relação àqueles que não possuem renda alta e ensino superior. Em segundo lugar, nota-se a consolidação de um espaço intermediário em torno do centro expandido e das regiões centrais de outras cidades, formando uma espécie de cordão que separa os espaços das elites dos espaços periféricos, assegurando o pouco contato e a manutenção de certa distância social entre os extremos de distribuição de renda e de oportunidades de educação. Dessa forma, o processo de “evitação social”, nos temos bem definidos por Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014.), das classes altas com relação às camadas inferiores se intensifica e se explicita ainda mais quando observamos a evolução dos espaços entre 2000 e 2010. Por fim, cumpre destacar que os espaços periféricos, considerando-se aqui o que chamamos de espaços médio-baixo misturados e os espaços das classes baixas, se tornam ainda mais misturados. Pode-se, portanto, afirmar que a metrópole de São Paulo se encontra menos segregada de maneira geral em 2010 do que estava em 2000. Em relação aos espaços mais desfavorecidos, estes se tornam ainda mais periféricos, sendo empurrados para regiões cada vez mais extremas da capital ou para cidades vizinhas.

Além disso, cumpre destacar que não é mais possível falar em uma progressão clara de anéis adjacentes para todas as camadas sociais. Se é verdade, por um lado, que as classes altas e intermediária se organizam dessa maneira no espaço urbano, o mesmo não pode ser dito para os grupos de menor renda e escolaridade que passam a estar muito mais misturados nas periferias da metrópole paulista.

Considerações finais

A fim de retomar as questões levantadas na primeira parte deste texto, algumas observações finais devem ser destacadas. Em primeiro lugar, cumpre lembrar que a década de 2000 foi marcada por um processo de aumento generalizado da renda e da escolaridade no país, especialmente para as camadas inferiores da estrutura social, o que parece explicar a maior parte das transformações nos espaços periféricos, em especial os “espaços médio-baixo misturados” e os “espaços das classes baixas”. Nessas regiões, foi possível observar mudanças mais significativas, com alterações na composição social de diversos espaços, o que ampliou ainda mais a heterogeneidade das periferias. Assim, se nas regiões centrais ainda é possível observar traços do padrão radial-concêntrico de segregação, o mesmo não se pode dizer das áreas periféricas, cada vez mais diversificadas socialmente.

A presença de “enclaves fortificados” voltados para grupos de renda mais elevada é um aspecto que contribui para explicar o aumento da heterogeneidade nessas áreas periféricas. No entanto, se, em um nível mais etnográfico, é possível observar a disseminação de uma “estética da segurança” (CALDEIRA, 2000CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução: Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo. Ed. 34; Edusp, 2000.), não apenas para classes altas, mas também para camadas intermediárias, como observa Cavalcanti (2009CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, n.69, 2009.), no Rio de Janeiro; não é possível dizer, a partir dos dados aqui levantados, que se trata de um novo padrão de segregação que tenha substituído o anterior, uma vez que o fenômeno ainda está concentrado em regiões específicas do tecido urbano.

Com relação à hipótese da “evitação social” defendida por Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. DADOS-Revista de Ciências Sociais. v. 57, n. 3, pp. 675-710, 2014.), os dados que trouxemos corroboram com essa tese, mostrando que as camadas mais altas da sociedade adotam uma postura de isolamento progressivo. Por outro lado, não foram encontrados elementos que apontassem para a produção de um “efeito gueto” por meio da intensificação da segregação dos mais pobres em algumas áreas da cidade. Ressalte-se que a ausência de dados desagregados no nível dos setores censitários dificulta investigações mais aprofundadas nesse sentido.

Dessa forma, apesar das mudanças socioeconômicas ocorridas na década de 2000, São Paulo segue sendo uma cidade segregada, sobretudo no que diz respeito à sua região central e às camadas de mais alta renda e escolaridade. Tal fato respalda a importância de se tratar desigualdades socioeconômicas e segregação residencial como elementos distintos, mas que podem se reforçar mutuamente.

As políticas públicas da década de 2000 foram relativamente exitosas no enfrentamento de desigualdades de renda e escolaridade,19 19 Dentre essas políticas, desenvolvidas sobretudo em nível nacional, estão: a valorização do salário mínimo, políticas de transferência de renda, ampliação do crédito, políticas de universalização da educação básica e de expansão do ensino superior (FIES, PROUNI e REUNI). especialmente entre setores mais pobres e médios, que estão agora mais misturados nas zonas mais periféricas da cidade. Entretanto, a ausência de políticas mais profundas de reforma urbana resultou na manutenção da segregação das camadas superiores em níveis relativamente altos. Com isso, os espaços centrais da cidade, onde é possível desfrutar de uma infraestrutura urbana e de serviços públicos e privados de mais qualidade, continua restrita, em grande medida, aos grupos já privilegiados em termos de renda e educação.

Agradecimentos

O autor agradece ao financiamento do CNPq por meio de bolsa de doutorado junto ao Departamento de Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ) e ao Núcleo de Pesquisa das Violências, por meio do projeto “Sociabilidade, Civilidade e Cidadania em três cidades Brasileiras”. Agradece também aos comentários de Alba Zaluar, Edmond Préteceille, Carlos Antonio da Costa Ribeiro, Juliana Borre, Taís Borges e aos pareceristas anônimos pelos comentários que contribuíram para o aprimoramento das reflexões aqui apresentadas.

Referências Bibliográficas

  • ANSELIN, L. Local indicator of spatial association - LISA. Geografical Analysis, v.27, n.2, pp. 91-115, April 1995.
  • CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo Tradução: Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo. Ed. 34; Edusp, 2000.
  • CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, n.69, 2009.
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  • 1
    Apesar de os indicadores de rendimento poderem ter um caráter relativamente efêmero, uma vez que a renda familiar pode aumentar ou diminuir rapidamente em determinadas conjunturas, os indicadores educacionais tendem a ser um elemento gerador de relativa estabilidade no processo de mobilidade social.
  • 2
    Mesmo o Brasil tendo historicamente um nível de segregação menor do que os Estados Unidos, onde o conceito foi desenvolvido, isso não significa que o conceito não possa ser aplicado por aqui, uma vez que se trata de entendê-lo de forma relativa dentro de cada contexto específico.
  • 3
    Sabatini, Cáceres e Cerda (2001)SABATINI, F.; CÁCERES, G.; CERDA, J. Segregación residencial en las principales ciudades chilenas: Tendencias de las tres últimas décadas y posibles cursos de acción. Revista eure, v. XXVIII, n. 82, p. 21-42, dez. 2001. apontam, ainda, para a importância de análises subjetivas em torno da segregação residencial a fim de compreender aspectos como a percepção que os moradores têm da segregação que experimentam e do papel desse processo na formação de grupos e identidades. Esse importante aspecto, contudo, não será alvo deste texto, diante de sua limitação de escopo.
  • 4
    É importante salientar, contudo, que os autores não estão debatendo diretamente com a tese da “cidade dos anéis”, mas com a ideia de que as cidades no capitalismo globalizado estariam se tornando “duais”, conforme tese defendida por Sassen (1991SASSEN, S. The global city: New York, London, Tokyo. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1991. ).
  • 5
    Os dados disponíveis no Brasil não nos permitem analisar a mudança na escala da segregação de forma mais apropriada, uma vez que temos acesso apenas aos dados abertos das áreas de ponderação e não dos setores censitários. Procuro contornar, em parte, essa dificuldade analisando outras dimensões da segregação residencial.
  • 6
    Esses dados dizem respeito ao percentual de pessoas que migraram de uma camada social para outra no período analisado.
  • 7
    Não pretendo entrar aqui no debate a respeito do critério mais adequado para divisão de classes sociais e que foi motivo de intensos debates nos últimos anos no Brasil. O uso que faço do termo “classe” faz referência apenas a grupos ou categorias a partir das quais se divide a sociedade para fins de análise.
  • 8
    Os valores foram deflacionados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial de inflação no Brasil. Para as análises geográficas, reagruparei as categorias de renda em três grandes grupos: renda baixa, renda média e renda alta, como demonstrado na tabela 2, abaixo.
  • 9
    As variações no nível educacional podem ser influenciadas por mudanças etárias da população. Contudo, por se tratar de um período de apenas 10 anos entre as pesquisas e em que a média de idade das pessoas variou de 29 para 32 anos, a variação etária tem efeito apenas marginal sobre o nível de escolaridade.
  • 10
    Para calcular os índices de segregação, utilizei o software Geo-Segregation Analyzer, que pode ser obtido gratuitamente no site http://geoseganalyzer.ucs.inrs.ca/.
  • 11
    Realizei exercícios no sentido de medir a dissimilaridade entre os grupos agrupados em par, mas os resultados encontrados não agregaram significativamente em termos de interpretação, por isso optei por excluir esses dados da apresentação.
  • 12
    As “unidades de vizinhança” aqui utilizadas são as áreas de ponderação definidas pelo IBGE.
  • 13
    Cumpre ressaltar que minoria nesse contexto é usado meramente no sentido estatístico do termo.
  • 14
    Messey e Denton (1988)MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988. sugerem o uso do índice de concentração relativa (RCO) para avaliar essa dimensão devido a sua menor correlação com outros índices, optamos pelo uso do índice Delta devido a maior facilidade na sua interpretação.
  • 15
    Apesar de Messey e Denton (1988)MESSEY, D.; DENTON, N. The dimensons of residential segregation. Social Forces. (University of North Carolina Press) 67, 2 ., pp. 281-315, Dec. 1988. sugerirem o índice de proximidade espacial de White como o mais adequado para esta dimensão, optei pelo índice de agrupamento absoluto devido à sua maior facilidade de cálculo e sua alta correlação com o índice de proximidade espacial.
  • 16
    É interessante notar que a desigualdade global de renda em São Paulo não foi reduzida nesse período. O índice de Gini para a cidade de São Paulo passou de 0,61, em 2000, para 0,62 em 2010, devido aos maiores ganhos relativos nos estratos de renda mais alta, sobretudo o 1% mais rico (FREITAS & ARAUJO, 2014FREITAS, J. B.; ARAUJO, J. M. P. Persiste a alta desigualdade de renda no Município de São Paulo. Informes Urbanos - Prefeitura de São Paulo, n. 19, jun. 2014. ).
  • 17
    Optei por utilizar a CHA ao invés dos LISA Maps, elaborados a partir do indicador local de associação espacial, pois o primeiro permite combinar o peso dos diversos grupos dentro da mesma análise, enquanto os LISA Maps demandam uma análise de cada grupo individualmente ou para cada par de grupos (Cf. ANSELIM, 1995ANSELIN, L. Local indicator of spatial association - LISA. Geografical Analysis, v.27, n.2, pp. 91-115, April 1995.).
  • 18
    Essa mudança, contudo, pode ser explicada, ao menos parcialmente, devido ao fato de o IBGE ter registrado no Censo de 2010 pessoas que não declararam seus rendimentos como “sem rendimento”. É sabido que são justamente as pessoas de maior renda que tendem a se recusar a informar o quanto ganham.
  • 19
    Dentre essas políticas, desenvolvidas sobretudo em nível nacional, estão: a valorização do salário mínimo, políticas de transferência de renda, ampliação do crédito, políticas de universalização da educação básica e de expansão do ensino superior (FIES, PROUNI e REUNI).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2017
  • Aceito
    24 Nov 2017
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