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Notas sobre desenvolvimento regional a partir da construção de hidrelétricas na Bacia do Uruguai

Notes on Regional Development involving Hydroelectric Plants in the Uruguay Basin

Resumo

O desenvolvimento tem a energia como ponto nevrálgico. Ao privilegiar a matriz hídrica, o Brasil assume a construção de usinas hidrelétricas no âmbito de projetos de grande escala (PGEs). As adjetivações sustentável ou endógeno oferecidas ao termo desenvolvimento acompanham esses projetos, que não precisam ser tomados como promotores do desenvolvimento ou impactantes ambientais em si mesmos. Este trabalho elenca elementos que devem ser considerados na análise da promoção do desenvolvimento a partir de PGEs, distinguindo conceitos como crescimento econômico e desenvolvimento humano, assinalando o paradoxo endógeno e exógeno do desenvolvimento e, por fim, enfatizando o conceito de inovação territorial, com base em elementos políticos como densidade institucional, democracia, capital social e empoderamento das comunidades. Empiricamente, a discussão se localiza na bacia hidrográfica do Uruguai, Sul do Brasil, onde, desde a década de 1960, decidiu-se pela exploração sistemática da hidroeletricidade. Como tese central, o artigo defende que, ignorada a conjunção entre os conceitos de natureza teórica e as realidades empíricas das principais hidrelétricas da região, o desenvolvimento dos projetos de grande escala representa um eufemismo que suplanta territórios e desintegra localidades em nome de lucros desterritorializados que deixam sequelas territoriais.

Palavras-Chave:
Desenvolvimento Regional; Espaço; Tempo; Hidrelétricas; Política

Abstract

In development, energy may be considered as a neuralgic point. By giving priority to the water matrix, Brazil has undertaken the construction of hydroelectric plants, which implies large-scale projects (LSPs). The adjectivization of the term development - sustainable, endogenous - accompanies these projects, which in themselves, do not need to be considered as promotors of development or environmental impacts. This article lists the elements that should be considered when analyzing the promotion of development through large-scale projects, distinguishing concepts such as economic growth and human development, pointing out the endogenous and exogenous paradox of development as well as the concept of territorial innovation based in political elements such as institutional density, democracy, social capital and empowerment within communities. The discussion is empirically located in the Uruguay Basin, Southern Brazil, where since the 1960s it has been decided to systematically explore hydroelectricity. As a central thesis, the present article argues that, ignoring the conjunction between the concepts of theoretical nature and the empirical realities of major hydroelectric dams in the region, the development of large-scale projects represents a euphemism that supplants territories and causes the disintegration of locations in the name of profitable deterritorialization, thereby causing territorial sequelae.

Keywords:
Regional Development; Space; Time; Hydroelectric; Policy

Introdução

A busca pelo desenvolvimento é inerente a qualquer sociedade. No entanto, as concepções, os caminhos e o lugar de cada agente social nos respectivos projetos de desenvolvimento são elementos postos em discussão. A energia ocupa lugar de destaque na concepção capitalista de desenvolvimento, pois a sua necessidade, seus custos e benefícios são aspectos que compõem cenários socialmente conflitivos. Nesse cenário, o Brasil demonstra claramente uma opção pela matriz hídrica como fonte de energia elétrica, sustentando, com os argumentos da sustentabilidade ambiental (“energia limpa”) e econômica (“barata”), preceitos que embasam a ideia de “desenvolvimento regional”, que ajuda a justificar a predominância e o avanço dessa matriz energética pelo país (BERMANN, 2010BERMANN, C.. “A energia hidrelétrica não é limpa, nem barata”. Disponível em: <https://www.viomundo.com.br/entrevistas/bermann-a-energia-hidreletrica-nao-e-limpa-nem-barata.html> . Acesso em: 01 Ago. 2010.
https://www.viomundo.com.br/entrevistas/...
).

Este artigo procura discutir recortes analíticos a fim de averiguar em que medida as usinas hidrelétricas de energia (UHE) promovem o desenvolvimento regional nos locais em que são instaladas. A pesquisa está localizada espacialmente na bacia hidrográfica do Uruguai, no Sul do Brasil, onde, ainda na década de 1960, decidiu-se pela exploração sistemática da hidroeletricidade (ROCHA, 2014ROCHA, H. J.. Panorama histórico do setor elétrico no sul do Brasil: a bacia hidrográfica do Rio Uruguai. In: ROCHA, H.J; LOCATELLI, C.; PASE, H.L.. (Org.). Políticas públicas e hidrelétricas no sul do Brasil . 1ed. v. 1. Pelotas: Editora da UFPel, 2014. Pp. 31-49.). Dessa forma, tomamos como base as principais hidrelétricas da bacia, entre as quais destacamos, em ordem cronológica, a UHE Itá, UHE Machadinho, UHE Barra Grande, UHE Campos Novos e UHE Foz do Chapecó, todas em operação. Considerando os processos de instalação da primeira (UHE Itá) e da última (UHE Foz do Chapecó) hidrelétricas da bacia, nosso estudo adota como recorte temporal o período entre 1991 e 2010, no interior do qual extraímos os dados quantitativos que fundamental a argumentação.

A metodologia empregada segue as orientações de Lieberman (2005, p. 440), quando o autor chama a atenção para o “valor sinérgico” de uma análise, mesclando métodos quantitativos e qualitativos, pois os primeiros permitem a observação do conjunto de dados e os segundos, uma análise causal mais aproximada.

Para dar conta dos objetivos propostos segundo o recorte espaço-temporal e metodológico delineado, este trabalho se estrutura da seguinte forma: após esta breve introdução, na segunda seção, apresentamos a problemática de pesquisa, demarcando as linhas gerais que balizam a discussão sobre o desenvolvimento do ponto de vista teórico-metodológico. Na terceira, enfatizamos o recorte espaço-temporal, sublinhando a noção de desenvolvimento regional e local em relação aos projetos de grande escala (PGEs). Depois disso, discutimos os PGEs e o desenvolvimento regional da perspectiva dos “enclaves”. Na última seção, resgatamos elementos centrais da discussão e, com base em informações sobre futuras hidrelétricas a serem instaladas na bacia do Uruguai, apresentamos nossas considerações finais acerca da promoção do desenvolvimento regional a partir de PGEs.

A complexidade do desenvolvimento na contemporaneidade

Discutir a questão do desenvolvimento implica contextualizar esse termo na contemporaneidade, de forma a apontar, desde o princípio, aonde se pretende chegar. O pano de fundo para essa discussão é o que Beck (2012)BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, A.; LASH, S.; BECK, U. Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. Pp. 11-87. trata como “sociedade de risco” e, consequentemente, “modernização reflexiva”. A ideia de sociedade de risco corresponde a “um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial”. Isso se reflete em três aspectos, concatenados do seguinte modo: [1] a exaustão dos recursos naturais e culturais leva à [2] dificuldade nas tomadas de decisões que os envolve, o que produz uma [3] condição de incerteza ante os riscos (BECK, 2012BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, A.; LASH, S.; BECK, U. Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. Pp. 11-87., p. 19-21). Esse cenário traz para a cena a ideia de “modernização reflexiva”, que, segundo o autor, embora sugira reflexão, implica, antes, autoconfrontação. Nesses termos, a modernização reflexiva significa o enfrentamento dos efeitos da sociedade de risco mencionados anteriormente, sem se prender aos parâmetros da sociedade industrial que os causa, mas, sim, procurando alternativas para que eles possam ser “distribuídos, evitados, controlados e legitimados” (BECK, 2012BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, A.; LASH, S.; BECK, U. Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. Pp. 11-87., p. 17-19).

Os efeitos dessa sociedade de risco vão ao encontro do que Morin e Kern (2005MORIN, E.; KERN, A.. Terra-Pátria. 5.ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.) chamam de “tragédia do desenvolvimento”. Para os autores, essa tragédia se dá pelo fato de que o “mito global” - segundo o qual “as sociedades industrializadas atingem o bem-estar, reduzem suas desigualdades extremas e dispensam aos indivíduos o máximo de felicidade que uma sociedade pode dispensar” - é alimentado por uma “concepção redutora, em que o crescimento econômico é o motor necessário e suficiente de todos os desenvolvimentos sociais, psíquicos e morais” (MORIN; KERN, 2005MORIN, E.; KERN, A.. Terra-Pátria. 5.ed. Porto Alegre: Sulina, 2005., p. 78). Esse contraste revela que “a noção de desenvolvimento se apresenta gravemente subdesenvolvida” (MORIN; KERN, 2005MORIN, E.; KERN, A.. Terra-Pátria. 5.ed. Porto Alegre: Sulina, 2005., p. 78-79). Tal reducionismo conceitual, que busca, paradoxalmente, resultados amplos, está inscrito em outro “problema” da sociedade contemporânea: a dificuldade de acessar, articular e organizar informações de forma a perceber e conceber “o contexto, o global, (a relação todo/partes), o multidimensional, o complexo”. Ante esse problema universal, Morin (2001MORIN, E.. Os sete saberes necessário à educação do futuro. 3.ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2001., p. 35-36) assinala a existência de uma “inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários”.

É possível perceber, assim, que a questão do desenvolvimento está inscrita em um cenário complexo. O ponto de partida para qualquer abordagem que tente dar conta dele é ter clareza do recorte teórico-metodológico que conferirá corpo ao que entende como desenvolvimento, e isso é o que fazemos a partir das recomendações de Becker (2008aBECKER, D.F. A contradição em processo: o local e o global na dinâmica do desenvolvimento regional. In: BECKER, D.F.; WITTMANN, M.L. (Orgs.). Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares . 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2008ª. Pp. 67-115.). Do ponto de vista teórico-metodológico, é evidente a necessidade de compreender a dinâmica do desenvolvimento segundo duas ordens: a dos empreendedores e a das comunidades locais - lógicas que merecem ser analisadas de uma perspectiva dialética (BECKER, 2008aBECKER, D.F. A contradição em processo: o local e o global na dinâmica do desenvolvimento regional. In: BECKER, D.F.; WITTMANN, M.L. (Orgs.). Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares . 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2008ª. Pp. 67-115., p. 75-78). O método dialético não propõe a diluição de dicotomias em uma unidade de análise, tampouco as posiciona frente a frente, buscando suas razões e prevalências. O que ele evidencia é a “contradição”. Mais do que simples “contrariedade” entre duas lógicas, a “contraditoriedade”, ou simplesmente contradição, implica a compreensão do desenvolvimento, de forma a atentar-se para o processo de transformação do homem, do trabalho e do ambiente em mercadoria, a desnudar os benefícios que, antagônica e progressivamente, apenas alguns recebem e, no limite, a enxergar a reprodução do capital como um fim em si mesmo (BECKER, 2008BECKER, D.F. A economia política do (des)envolvimento regional contemporâneo. In: BECKER, D.F.; WITTMANN, M.L. (Orgs.). Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares. 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. Pp. 37-66., p. 102-105). Vale destacar que a análise dialética precisa ser feita sob três ângulos: econômico, social e político, os quais estabelecem relações entre si. Dessa maneira, a economia compreende a articulação do capital global nos processos de desenvolvimento que acontecem em locais que sofrem transformações socioambientais, que, por sua vez, têm sua mediação feita politicamente (BECKER, 2008aBECKER, D.F. A contradição em processo: o local e o global na dinâmica do desenvolvimento regional. In: BECKER, D.F.; WITTMANN, M.L. (Orgs.). Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares . 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2008ª. Pp. 67-115., p. 95-97).

Do ponto de vista da economia, o fator teórico-metodológico preponderante é a proposição de uma discussão do desenvolvimento para além do crescimento econômico. A análise do crescimento econômico a partir do Produto Interno Bruto (PIB) é questionada por Celso Furtado ainda na década de 1970, quando o autor demonstra que esse índice, ao ignorar o custo da destruição dos recursos naturais e os baixos salários - elementos que geram o desgaste humano - se torna um “conceito ambíguo, amálgama considerável de definições mais ou menos arbitrárias”, que acaba sustentando o “mito do desenvolvimento econômico” (FURTADO, 1974FURTADO, C.. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Círculo do Livro, 1974., p. 117-118). Na mesma linha, Amartya Sen (2010SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 20) defende que “ser genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto ser genericamente contra a conversa entre as pessoas”. Todavia, não obstante o papel importante do mercado, o autor assinala que “o principal é [que] o impacto do crescimento econômico depende muito do modo como seus frutos são aproveitados” (SEN, 2010SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 66). Tanto Furtado (1974) quanto Sen (2010) mencionam dados de mortalidade infantil e expectativa de vida como aspectos essenciais para a análise do desenvolvimento. Isso nos remete à possibilidade da utilização do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como um instrumento metodológico que pode representar melhor os efeitos do desenvolvimento em determinada sociedade. Ao considerar a saúde, a educação e a renda per capita, o IDH oferece referências mais completas para a análise de uma região. Avançando na busca de uma maior completude analítica, chegamos ao Índice de Condições De Vida (ICV), que intenta “verificar a percepção dos indivíduos sobre suas condições de vida, captando elementos relativos aos fatores, às características e aos efeitos do desenvolvimento” (RAMBO et al., 2015RAMBO, A.G. et al. O Índice de Condições De Vida (ICV): construindo metodologias de análise e avaliação de dinâmicas territoriais do desenvolvimento rural. Revista em Gestão, Inovação e Sustentabilidade, Brasília, v. 1, n. 1, p. 68-94, dez. 2015. , p. 70). Embora considerem importantes os instrumentos como o IDH, esses autores assinalam que, “por serem pautados em dados secundários, [eles] não consideram as percepções do público-alvo das ações de desenvolvimento” (RAMBO et al., 2015RAMBO, A.G. et al. O Índice de Condições De Vida (ICV): construindo metodologias de análise e avaliação de dinâmicas territoriais do desenvolvimento rural. Revista em Gestão, Inovação e Sustentabilidade, Brasília, v. 1, n. 1, p. 68-94, dez. 2015. , p. 89). Dessa forma, o ICV é um instrumento que, além dos dados de PIB e IDH, cobre a perspectiva das comunidades locais sobre o desenvolvimento.

Não se trata de eleger o melhor método em detrimento de outros, a problemática de pesquisa, em particular, deve apontar o mais adequado. Todavia, tratando-se de PGE, o aumento do PIB é importante, mas precisa ser tomado como ponto de partida, não como um fim em si mesmo. Enquanto o IDH oferece elementos que podem ser compreendidos como referência ou reflexo de projetos, o ICV permite uma aproximação às impressões das pessoas que vivem nos locais impactados. Indicadores como PIB, IDH e ICV servem tanto para pesquisa de viabilidade de determinado projeto quanto para a análise de sua efetividade ao longo de certo período.

Considerando a UHE Itá, primeira grande hidrelétrica instalada na bacia do Uruguai, percebemos que o IDH dos municípios atingidos não apresenta, em comparação às médias estadual e nacional, uma diferença significativa com o advento da hidrelétrica. Na Figura 1, é possível notar que, passadas duas décadas desde o início das obras, o IDH dos municípios atingidos superou o índice nacional, realidade verificada também nos municípios da região que não foram atingidos por hidrelétricas. No que diz respeito aos índices estaduais de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, apenas o município de Concórdia/SC apresentou significativo desenvolvimento em relação às médias estaduais e nacional, o que se explica, sobretudo, pela histórica pujança da agroindústria nesse município.

Figura 1
Comparação do IDH dos municípios atingidos pela UHE Itá, Estados e país

Para avaliar a viabilidade e a efetividade de determinado projeto, Fernández (2004FERNÁNDEZ, V.R. Densidad institucional, innovación colectiva y desarrollo de las cadenas de valor local: un triángulo estratégico en la evolución de los enfoques regionalistas durante los 90s. Redes, vol. 9, n. 1. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, jan./abr. 2004. p. 7 35. 10.17058/redes.v9i1.10969
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) apresenta os conceitos de “densidade institucional”, “cadeias de valor” e “inovação territorial” como componentes de um “triângulo estratégico” na análise do desenvolvimento regional. A “densidade institucional” compreende os agentes envolvidos em determinado projeto e região; a “cadeia de valor” se refere às atividades realizadas em todo o projeto; já a “inovação territorial” é o conjunto desses agentes e atividades, compondo, assim, um sistema dinâmico que caracteriza e especifica certo território num processo de desenvolvimento (FERNÁNDEZ, 2004FERNÁNDEZ, V.R. Densidad institucional, innovación colectiva y desarrollo de las cadenas de valor local: un triángulo estratégico en la evolución de los enfoques regionalistas durante los 90s. Redes, vol. 9, n. 1. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, jan./abr. 2004. p. 7 35. 10.17058/redes.v9i1.10969
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). Então, mapear os agentes e atividades de forma a vislumbrar esse sistema é outro caminho metodológico fundamental para um recorte analítico direcionado ao desenvolvimento regional.

Observando o caso da UHE Foz do Chapecó, última grande hidrelétrica instalada na bacia Uruguai, é possível vislumbrar uma rede de agentes que pouco evoluiu desde a UHE Itá (ROCHA, 2013ROCHA, H. J .. Relações de poder na instalação de hidrelétricas. Passo Fundo: EDIUPF, 2013.). Indo ao encontro da proposição de Fernández (2004FERNÁNDEZ, V.R. Densidad institucional, innovación colectiva y desarrollo de las cadenas de valor local: un triángulo estratégico en la evolución de los enfoques regionalistas durante los 90s. Redes, vol. 9, n. 1. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, jan./abr. 2004. p. 7 35. 10.17058/redes.v9i1.10969
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), é possível responder aos componentes de forma que a densidade institucional é marcada pelo protagonismo estatal e das empresas interessadas no projeto. Dessa maneira, a cadeia de valor continua restrita aos interesses do mesmo e seu alargamento para atividades de fomento regional é pífio, comprometendo, consequentemente, a inovação territorial.

O estudo do desenvolvimento regional a partir de índices como PIB, IDH e ICV, bem como da percepção de densidade, cadeia e inovação, embora permita um panorama da região em questão, precisa ser acompanhado de elementos do campo político, sob pena de ficar demasiadamente estrutural e quantitativo. Para tanto, são fundamentais os conceitos de “democracia”, “capital social” e “empoderamento”. Ante a complexidade do termo democracia, Norberto Bobbio (2000BOBBIO, N.. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000.) apresenta uma definição que ele mesmo reconhece como “mínima”. Em seus termos, uma democracia seria “caracterizada por um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos” (BOBBIO, 2000BOBBIO, N.. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000., p. 30). Quando abordamos o desenvolvimento a partir de projetos de grande escala, esse conceito reforça a importância da institucionalização da discussão, que, em diferentes regiões de análise, é mais bem percebida em suas condicionantes e efeitos através da utilização do conceito de capital social.

Putnam (2006PUTNAM, R.D.. Comunidade e democracia: A experiência da Itália moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.) afirma que o capital social compreende as “características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribu[e]m para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM, 2006PUTNAM, R.D.. Comunidade e democracia: A experiência da Itália moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006., p.177). À luz dessa ideia, o autor analisou regiões distintas da Itália a fim de entender por que havia diferenças de desenvolvimento entre elas. Considerando isso, o nível de capital social de determinada sociedade ajuda-nos a verificar a dinâmica da densidade institucional.

A noção de “empoderamento” vai ao encontro das duas primeiras já apresentadas, reforçando a natureza endógena do desenvolvimento. O termo pode se referir à delegação e à emancipação (GOHN, 2004GOHN, M. G.. Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde e Sociedade, mai-ago, 2004, v. 13, n. 2, pp. 20-31. 10.1590/S0104-12902004000200003
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), além de poder ocorrer nos âmbitos individual, organizacional e/ou coletivo (BAQUERO, 2012BAQUERO, R.V.A. Empoderamento: Instrumento de emancipação social? Uma discussão conceitual, Revista Debates, Porto Alegre, v. 6, n. 1, 2012, p.173-187. 10.22456/1982-5269.26722
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). No entanto, nos projetos de desenvolvimento, ele incrementa a participação efetiva dos diferentes grupos, especialmente dos mais fracos, e a tomada de decisões sobre coisas que incidem diretamente na qualidade de vida.

A análise empírica desses conceitos do campo político confere materialidade e aponta, como dito, a natureza da densidade institucional. Nesse quesito, o caso da UHE Campos Novos é exemplar. Entre 2000 e 2005, a instalação da usina foi conduzida sob a premissa da democratização do processo. Oliveira e Silva (2014OLIVEIRA, G.; SILVA, M.K. As disputas sociais envolvendo os atingidos pela UHE Campos Novos. In: ROCHA, H.J.; PASE, H.; LOCATELLI, C. (Orgs.). Políticas públicas e hidrelétricas no sul do Brasil. Pelotas: UFPEL, 2014. pp. 129-145.) assinalam nuances importantes que questionam a presença desses elementos no processo. De acordo com eles, a pluralidade das entidades representativas dos atingidos acabou funcionando como elemento de fragmentação e, consequentemente, enfraqueceu a população nas rodadas de negociação. Dessa forma, a democratização, por si mesma, se mostrou insuficiente, indo na contramão do empoderamento da comunidade. Na mesma linha, o trabalho de Baquero, Morais e Vasconcelos (2013BAQUERO, M.; MORAIS, J.; VASCONCELOS, C. Construindo capital social em contextos de assimetria de poder: uma análise dos atingidos por hidrelétricas no Brasil. In: BAQUERO, Marcello; PASE, H.. (Orgs.). Desenvolvimento hidrelétrico: qualidade de vida e capital social no sul do brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2013.Pp. 57-107.) tomou como objetivo de investigação as hidrelétricas da bacia, inclusive a UHE Campos Novos, para assinalar a pouca confiança dos atingidos em relação aos empreendedores. Segundo os autores, o capital social é um elemento fundamental para “aumentar a capacidade de negociar os vários desafios gerados pelo processo” e pode “auxiliar o fomento à ação coletiva e um melhor relacionamento entre empreendedores e atingidos” (BAQUERO, MORAIS, VASCONCELOS, 2013BAQUERO, M.; MORAIS, J.; VASCONCELOS, C. Construindo capital social em contextos de assimetria de poder: uma análise dos atingidos por hidrelétricas no Brasil. In: BAQUERO, Marcello; PASE, H.. (Orgs.). Desenvolvimento hidrelétrico: qualidade de vida e capital social no sul do brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2013.Pp. 57-107., p. 98-99).

Em síntese, a complexidade da sociedade atual exige uma análise sob a luz de uma situação de risco, de modo a fazer com que o desenvolvimento não represente a exaustão dos recursos naturais nem reflita apenas o crescimento econômico. Os critérios desse desenvolvimento podem ser analisados a partir de dados quantitativos (PIB, IDH e ICV) que evoluem qualitativamente, à medida que são mesclados com dados de densidade institucional. Estes últimos, por sua vez, são compreendidos não somente como meros mapas de agentes, mas também como níveis de democracia, capital social e empoderamento. Com esse grupo de aspectos, são dadas as linhas gerais para abordar a temática do desenvolvimento, indo, pois, ao encontro do que propõe Amartya Sen (2010SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.), que, conscientemente, começa seu texto reconhecendo que seria “estapafúrdia” a ideia de rejeitar o mercado nas abordagens sobre desenvolvimento (2010, p. 20). De forma não menos eloquente, ele termina tal artigo defendendo que esta “não pode realmente concentrar-se tanto apenas os detentores do poder” (SEN, 2010SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 317).

Implicações espaciais sobre o desenvolvimento: o regional e o local

Milton Santos (2004SANTOS, M.. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 270) sugere que há três níveis de espaço que se confirmam e se contradizem mutuamente: “nível mundial ou global”, que se refere ao planeta; “nível dos territórios dos Estados”, concernente aos países - sem entrar aqui na questão das fronteiras diante da globalização; e “nível local”, no qual os outros dois níveis tendem a ocorrer de forma condizente com cada especificidade. Para adequar as ideias do autor aos nossos objetivos, apresentamos os níveis espaciais recorrendo à noção de “escala”, considerada em um sentido duplo: primeiro, quanto à “origem”, em referência à demanda de determinada ação, ou seja, à parte do espaço em que foi organizada a ação; segundo, quanto à “ocorrência”, ou seja, à parte do espaço em que a ação será empreendida, sendo que, além do fator espacial - área de ocorrência -, deve ser levado em conta o fator temporal, a variação dos efeitos ao longo do tempo (SANTOS, 2004SANTOS, M.. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 152).

A partir dessa noção de escala, propomos a organização do espaço em quatro níveis, acrescentando à ideia original de Santos o nível regional, o que nos ajudará a dar especificidade à conceituação de desenvolvimento. O nível global se refere às ações que podem influenciar sociedades locais, mas que são tomadas por agentes que agem de forma desterritorializada espacialmente. Ações de agentes como o Banco Mundial são exemplos disso, pois, por meio de seus relatórios e proposições, baseados em diferentes casos espalhados pelo globo, ele influencia ações locais. O nível nacional não desconsidera o nível anterior, mas é adequado às normas de um território que precisa ser compreendido em suas especificidades política, jurídica, econômica, ambiental, social e cultural. Aqui, as ações dos Estados e das legislações dos países são preponderantes. O nível regional tem sua importância no Brasil, dada a extensão territorial e a heterogeneidade cultural do país. Apesar da importância da regionalização política, econômica e cultural, merece destaque a organização da hidrografia brasileira segundo regiões hidrográficas que, conforme o aspecto ambiental, sobretudo o fluvial, são cruciais para o tratamento da questão hídrica, pois seria difícil entender o tema na bacia do rio Uruguai tomando como base as características amazônicas, por exemplo. O nível local se relaciona às especificidades de determinada região. Assim, na região em análise, temos uma variação de condições que tornam o Alto Uruguai distinto do Baixo Uruguai, o que, conquanto restrito a uma mesma bacia hidrográfica, precisa ser apontado para que problemas específicos de determinado local não sejam tratados com base em generalizações que nem sempre correspondem à totalidade regional, muito menos à diversidade das realidades locais (CHRISTOFOLETTI, 1979CHRISTOFOLETTI, A.. Análise de Sistemas em Geografia. São Paulo: HUCITEC: EDUSP, 1979.).

A categorização do espaço em quatro níveis não significa compartimentação analítica. Ao contrário, serve para dimensionar objetos, ações e agentes no tempo e no espaço em momentos como o da análise da densidade institucional. Além disso, a ideia de níveis espaciais auxilia na compreensão de categorias de desenvolvimento endógeno e exógeno, que, grosso modo, sugerem, respectivamente, controle interno e externo das ações de desenvolvimento, tendo como referência determinado território (BOISIER, 2000BOISIER, S.. Desarrollo (local): ¿De qué estamos hablando? In: BECKER, D. F.; BANDEIRA, P. S. (Orgs.). Desenvolvimento local-regional: Determinantes e desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2000. Pp. 151-185. , p. 168-169). Segundo Moraes, o desenvolvimento endógeno vai ao encontro da ideia de desenvolvimento “de baixo para cima” (MORAES, 2008MORAES, J. L. A.. Capital social: potencialidades dos fatores locais e políticas públicas de desenvolvimento local-regional. In: BECKER, D.F.; WITTMANN, M.L. (Orgs.). Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares . 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2008. Pp. 263-281., p. 265). Mas essa proposta, a qual se aproxima do empoderamento, precisa ser trabalhada considerando o território como “um sistema que sofre influência de variáveis internas e interage com sistemas territoriais de maior escala” (MORAES, 2008MORAES, J. L. A.. Capital social: potencialidades dos fatores locais e políticas públicas de desenvolvimento local-regional. In: BECKER, D.F.; WITTMANN, M.L. (Orgs.). Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares . 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2008. Pp. 263-281., p. 270). Vejamos, então, como podemos avançar na análise.

Boisier (2000BOISIER, S.. Desarrollo (local): ¿De qué estamos hablando? In: BECKER, D. F.; BANDEIRA, P. S. (Orgs.). Desenvolvimento local-regional: Determinantes e desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2000. Pp. 151-185. , p. 160) assinala que “o desenvolvimento regional consiste em uma mudança estrutural localizada em um âmbito territorial denominado região”. Essa ideia aproxima-se da caracterização de região de Milton Santos. Para este, “a região e o lugar não têm existência própria. Nada mais são que uma abstração, se os considerarmos à parte da totalidade”. Essa abstração se transforma de acordo com o “movimento histórico” dos “recursos totais do mundo ou de um país, quer seja o capital, a população, a força de trabalho, o excedente etc., dividem-se pelo movimento da totalidade, através da divisão do trabalho e na forma de eventos” (SANTOS, 2004SANTOS, M.. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p 108). Na mesma linha, Boisier conclui que falar de desenvolvimento regional implica a “própria complexidade de um sistema aberto” (BOISIER, 2000BOISIER, S.. Desarrollo (local): ¿De qué estamos hablando? In: BECKER, D. F.; BANDEIRA, P. S. (Orgs.). Desenvolvimento local-regional: Determinantes e desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2000. Pp. 151-185. , p. 161).

O “desenvolvimento local”, conforme Milton Santos (2004SANTOS, M.. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 108), se aproxima conceitualmente do regional, já que ambos compreendem “subespaços subordinados às mesmas leis gerais de evolução, onde o tempo empiricizado entra como condição de possibilidade e a entidade geográfica preexistente entra como condição de oportunidade”. Embora o autor entenda a distinção entre lugar e região como menos relevante do ponto de vista hierárquico do espaço, ao ponto mesmo de uma região poder ser considerada e vice-versa (SANTOS, 2004SANTOS, M.. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 109), da perspectiva do desenvolvimento, uma distinção parece ser importante. Quando falamos em desenvolvimento local ou do local, referimo-nos a um ponto preciso da região ou do território mais amplo em que ele está inserido (BOISIER, 2000BOISIER, S.. Desarrollo (local): ¿De qué estamos hablando? In: BECKER, D. F.; BANDEIRA, P. S. (Orgs.). Desenvolvimento local-regional: Determinantes e desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC , 2000. Pp. 151-185. , p. 164). Na instalação de uma hidrelétrica, por exemplo, temos a região em questão, no caso, a bacia do Uruguai ou o Alto Uruguai, e, depois, o local do empreendimento, que é o ponto em que os trabalhos de instalação acontecem, quer dizer, o município, o distrito ou a comunidade local.

A diferença é que a região assume uma conotação ainda mais específica e o desenvolvimento “local” se refere aos municípios que são diretamente afetados pelo projeto de grande escala, pela hidrelétrica. Uma implicação disso é o fato de que, enquanto o restante do país conta com a energia gerada pela hidrelétrica, o ônus socioambiental tende a ser dividido apenas entre as populações regionais, o que se agrava à medida que há uma maior aproximação da obra propriamente dita, quando se passa a falar em “local” exatamente. Como exemplo, podemos mencionar o caso da instalação da UHE Barra Grande.

Instalada no rio Pelotas entre os municípios de Pinhal da Serra/RS e Anita Garibaldi/SC, essa hidrelétrica ficou mundialmente conhecida por um grave problema ambiental detectado durante sua instalação: o EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental, seguido do Relatório de Impacto Ambiental) negligenciou informações sobre uma área de 7.650 hectares de cobertura florestal primária (mata de Araucária), em estágios médios e avançados de regeneração, desqualificada como “capoeirão”, tendo sido sua extensão de alagamento diminuída (PROCHNOW, 2005PROCHNOW, Miriam. Entendendo o caso. In: PROCHNOW, Miriam. (Org.). Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta . Rio do Sul: APREMAVI, 2005. pp. 6-8., p. 6-7). Da perspectiva da densidade institucional, são cruciais as palavras de Miriam Leitão proferidas em 2005LEITÃO, Miriam. Você decide. In: PROCHNOW, Miriam. (Org). Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta. Rio do Sul-SC: APREMAVI, 2005. P. 42-44., quando a jornalista enfatiza a “falência institucional” explícita no caso. Segundo ela, o empreendedor justificou-se dizendo que o EIA-RIMA foi feito a partir de “interpretação de fotografias aéreas que mostravam que eram matas secundárias, com manchas de matas primárias” e que, mais tarde, caberia aos órgãos ambientais a verificação por terra (LEITÃO, 2005LEITÃO, Miriam. Você decide. In: PROCHNOW, Miriam. (Org). Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta. Rio do Sul-SC: APREMAVI, 2005. P. 42-44., p. 42). Apesar do flagrante problema ambiental de repercussão mundial, a operação da hidrelétrica acabou sendo autorizada com base na teoria do “fato consumado”: alegou-se que 80% da obra já estava concluída (ROSSATO, 2008ROSSATO, A.. A recepção de rádio e televisão por jovens do movimento dos atingidos por barragens: as representações da classe popular. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria: UFSM, 2008.. p. 75). A autorização aconteceu em julho de 2005, assegurando o ganho econômico em escala nacional e global, mas com perda ambiental para as populações locais. Conforme os elementos mencionados anteriormente, esse caso demonstra, além dos problemas institucionais e de análise escalar (local-global), as limitações da democratização do processo, o baixo capital social e, finalmente, o baixo poder decisório local.

O desenvolvimento regional na “era dos enclaves”

Na perspectiva de Gustavo Lins Ribeiro (1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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), um PGE se caracteriza, sobretudo, por três fatores: “gigantismo”, “isolamento” e “temporariedade”. O “gigantismo” implica, ademais da grandeza física, uma enorme demanda de capital e trabalho. Por causa dessa dimensão, os PGEs causam grandes mudanças locais que refletem regional, nacional e internacionalmente; todavia, essa alternância escalar é planejada a partir de uma estrutura centralizada de articulação das ações nas diferentes escalas (RIBEIRO, 1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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, p. 8-9). O “isolamento” se refere mais ao isolamento socioeconômico que geográfico: os PGEs se inserem em determinada região sem que ela tenha, obrigatoriamente, estruturas preexistentes que supram as necessidades de mão de obra e material para a sua execução (RIBEIRO, 1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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, p. 12). Já a “temporariedade” demonstra que os PGEs se caracterizam como “sistemas fechados no tempo: começam e acabam num lapso relativamente curto” (RIBEIRO, 1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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, p. 17).

O gigantismo supõe que os PGEs promovem, naturalmente, o desenvolvimento dos locais onde se inserem, especialmente na fase em que os trabalhos de instalação são mais agudos. O isolamento faculta o que se considera uma zona de “enclave”, onde se constitui um território de “ambiguidade jurídica” dentro do qual os empreendedores desempenham papeis originalmente estatais. Nesse sentido, o Estado se ausenta em favor da “otimização” da produção (RIBEIRO, 1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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, p. 12-13). No território controlado pelo PGE, impõe-se um controle do tempo que obedece ao ritmo dos trabalhos e aos custos do projeto (RIBEIRO, 1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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, p. 17).

Vignatti (2013VIGNATTI, M.A.P.. Modificações territoriais induzidas pelas usinas hidrelétricas do rio Uruguai, no Oeste Catarinense. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013.) discute as “modificações” dos PGE na bacia do Uruguai. Em relação à UHE Machadinho, a autora distingue quatro fases distintas dos efeitos: 1ª) “Antes da construção”, a expectativa da mudança e o desencontro de informações dificulta a articulação entre agentes públicos, sociedade civil organizada e instituições, criando um clima de incerteza e tensão; 2ª) “Durante a construção”, as relocações populacionais, a chegada de milhares de trabalhadores de outras partes do mundo, a sobrecarga dos serviços públicos e comerciais e a brusca alteração no fluxo regional são os principais efeitos; 3ª) “A partir da produção de energia”, já com a usina operando, dá-se início a um período de restabelecimento do fluxo de vida anterior à obra e surge a “sensação de vazio e readaptação dos modos de vida com novas possibilidades de atividades econômicas no entorno do reservatório e recursos econômicos para os municípios”; 4ª) “Estabilização”, quando a hidrelétrica se integra à paisagem regional. Ao lado das novas atividades e recursos, é notória a “segregação espacial” no entorno do reservatório, que passa a ser ocupado segundo um padrão social orientado pelas especulação e reserva imobiliária (VIGNATTI, 2013VIGNATTI, M.A.P.. Modificações territoriais induzidas pelas usinas hidrelétricas do rio Uruguai, no Oeste Catarinense. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013., p. 217-220).

Esses efeitos vão ao encontro dos elementos de gigantismo, isolamento e temporariedade dos PGEs, os quais, em conjunto, provocam uma severa reconfiguração das relações sociais, de forma mais aguda durante a obra, antecedida pela incerteza e sucedida pelo vazio deixado pela demanda concentrada. As novas oportunidades são fatos preponderantes, todavia, do ponto de vista econômico, são aproveitadas e exploradas por grupos que já detêm recursos e expertise notórios e recorrentes, o que dificilmente resulta em “inovação territorial”, como mencionamos anteriormente.

Entre os três principais elementos do PGE, sobressai a ideia de “enclave” como referência para a análise do desenvolvimento regional. Vainer e Araújo (1992VAINER, C.B.; ARAÚJO, F.G.B. de. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro, CEDI, 1992.) traçam um panorama da questão regional no Brasil, assinalando a década de 1970 como o início da “era dos enclaves”. Os autores defendem que a partir dessa época “a totalidade do território não é vista nem como conjunto de regiões hierarquicamente articuladas, nem como amálgama de regiões-programa, mas como um somatório de recursos mais ou menos acessíveis” (VAINER; ARAÚJO, 1992VAINER, C.B.; ARAÚJO, F.G.B. de. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro, CEDI, 1992., p. 28). Embora utilizem a denominação Grandes Projetos de Investimento (GPI), suas ideias se aproximam das de Ribeiro (1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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) quando afirmam que o Estado viabiliza a ação sobre os recursos dos territórios por meio de políticas setoriais (VAINER; ARAÚJO, 1992VAINER, C.B.; ARAÚJO, F.G.B. de. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro, CEDI, 1992., p. 29). Temos, portanto, “o encontro de processos sociais exógenos e endógenos” como perspectiva analítica. Segundo Ribeiro (1987RIBEIRO, G.L. ¿Cuánto más grande mejor? Proyectos de gran escala: una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos. Buenos Aires, Desarrollo Económico, n° 105, Vol. 27, pp. 3-27, abr-jun 1987,. Doi: 10.2307/3466748
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, p. 8), os primeiros são mantidos por burocracias nacionais e internacionais, planificados e fortemente coercitivos, ao passo que os últimos dizem respeito às realidades das populações locais envolvidas nos projetos.

Revisitando o tema, Vainer (2007VAINER, C. B. Planejamento territorial e projeto nacional: os desafios da fragmentação. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.9, n.1, pp. 09-23, maio. 2007. http://dx.doi.org/10.22296/2317-1529.2007v9n1p9
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) retoma a ideia dos enclaves, sublinhando que eles ainda preponderam no país, porém, atualmente “grande parte das empresas e de seus empreendimentos territoriais não estão mais sob o controle do Estado brasileiro”, como acontecia na década de 1970. O autor explica que, hoje, os PGEs são concebidos a partir de “grupos de interesses e lobbies, coalizões políticas que expressam, quase sem mediações, articulações econômico-financeiras e políticas”, segundo as quais o “local, o regional, o nacional e o global se entrelaçam e convergem na constituição de consórcios empresariais e coalizões políticas” (VAINER, 2007VAINER, C. B. Planejamento territorial e projeto nacional: os desafios da fragmentação. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.9, n.1, pp. 09-23, maio. 2007. http://dx.doi.org/10.22296/2317-1529.2007v9n1p9
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, p. 12).

Dito isso, os conceitos que apresentamos ao longo do texto podem ser correlacionados, de modo a vislumbrar um caminho teórico-metodológico para a abordagem do desenvolvimento pelo viés desses projetos. Os PGEs representam o agrupamento de interesses multiescalares que se organizam para inserir seus empreendimentos em determinados locais. Essa inserção, que já chamamos de “integração desintegradora” (ROCHA, 2012ROCHA, H. J .. Integração desintegradora: a trajetória de projetos hidrelétricos desde a IIRSA até as comunidades locais. Revista Mural Internacional, v. 3, pp. 30-36, 2012. http://dx.doi.org/10.12957/rmi.2012.5910
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), reconfigura o espaço através da hegemonização de uma temporalidade no respectivo território, a partir das estratégias que denominamos de “controle do espaço-tempo” (ROCHA, 2014aROCHA, H. J.. O controle do espaço-tempo nos processos de instalação de hidrelétricas. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP (Impresso), v. 26, n. 1, pp. 259-280, 2014a.). Dessa forma, as noções de espaço, território, territorialidade, tempo e temporalidade são sobrepostas pelos enclaves resultantes dos PGEs, já que a determinação da magnitude dos impactos e, consequentemente, da área de abrangência é feita, segundo a Resolução 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), por uma equipe multidisciplinar custeada pelos empreendedores.

Com base nessa prerrogativa, as equipes multidisciplinares determinam os conceitos de Impacto Ambiental Regional e Áreas de Influência Direta e Indireta. A Resolução nº 237 do CONAMA, de 19 de dezembro de 1997, em seu Artigo 1°, Item IV, define Impacto Ambiental Regional como “todo e qualquer impacto ambiental que afete diretamente (área de influência direta do projeto), no todo ou em parte, o território de dois ou mais Estados”. Já o Anexo I da Resolução nº 305 do CONAMA, de 12 de junho de 2002, define Área de Influência Direta como a área “necessária à implantação de obras/atividades, bem como aquelas que envolvem a infraestrutura de operacionalização de testes, plantios, armazenamento, transporte, distribuição de produtos/insumos/água, além da área de administração, residência dos envolvidos no projeto e entorno”. Já a Área de Influência Indireta compreende o “conjunto ou parte dos municípios envolvidos, tendo-se como base a bacia hidrográfica abrangida”.

Estabelecido esse polígono do empreendimento, o enclave acontece por meio de uma Declaração de Utilidade Pública, que, prevista no Capítulo XXIV, do Artigo 5°, da Constituição Federal, ampara legalmente a apropriação do território pelos empreendedores mediante indenização das populações locais. Dessa maneira, a reconfiguração do espaço por meio do enclave é efetivada com a suplantação, do ponto de vista das políticas públicas, das noções iniciais de território, região e local para efeito de análise do desenvolvimento. São importantes algumas ressalvas sobre a forma que acontece essa reconfiguração.

Em 2007, o Ministério Público Federal (MPF), a partir de um corpo técnico multidisciplinar, emitiu uma Nota Técnica baseada na análise de 89 Informações Técnicas referentes a empreendimentos instalados no Brasil entre 1997 e 2005 (MPF, 2007BRASIL. Ministério Público Federal. Nota Técnica n° 39: Trabalho Sobre Área de Influência. - Brasília: MPF/4ª CCR; Escola Superior do Ministério Público da União, 2007.). No que tange aos “recortes espaciais” concernentes aos empreendimentos analisados, a equipe do MPF concluiu que, considerando as delimitações segundo “bacia hidrográfica”, “divisão geopolítica” e “área do empreendimento e seu entorno”, embora a normativa do CONAMA apontasse a primeira delas, as duas últimas predominavam nos empreendimentos examinados (MPF, 2007BRASIL. Ministério Público Federal. Nota Técnica n° 39: Trabalho Sobre Área de Influência. - Brasília: MPF/4ª CCR; Escola Superior do Ministério Público da União, 2007., p. 21). Com um aprofundamento dos pontos mais sensíveis, a equipe assinalou os seguintes itens:

e) insuficiência dos limites da área de influência, tendo em vista o EIA ter considerado apenas o espaço de ação e as instalações do empreendimento;

f) uso de limites arbitrários e rígidos, sem justificativa técnica, tais como divisões geopolíticas ou linhas imaginárias traçadas a certa distância (raio de alguns quilômetros) de um ponto selecionado, não permitindo considerar a homogeneidade de fatores importantes, tais como o contexto geológico e geomorfológico, além das bacias e sub-bacias hidrográficas; e

g) delimitação de áreas de influência estanques para os meios físico, biótico e antrópico, desconsiderando a unidade do meio ambiente e prejudicando a análise integrada e global dos impactos, não permitindo sua adequada avaliação (MPF, 2007BRASIL. Ministério Público Federal. Nota Técnica n° 39: Trabalho Sobre Área de Influência. - Brasília: MPF/4ª CCR; Escola Superior do Ministério Público da União, 2007., p. 25-28).

Nessa mesma linha, Fonseca e Bitar (2012FONSECA, W.; BITAR, O.Y.. Critérios para delimitação de áreas de influência em estudos de impacto ambiental. In: I Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental e II Conferência da Rede da Língua Portuguesa da Avaliação de Impactos, 2012, São Paulo. Anais. São Paulo: ABAI, 2012. 14 p.) analisaram conteúdo dos Termos de Referência (TR) e do EIA-RIMAS e ouviram a opinião dos profissionais envolvidos na elaboração desses documentos. Entre os pontos por eles levantados, destaca-se o fato de que, em função do “modo pelo qual são construídos os TRs atualmente, a equipe técnica que elabora o EIA/Rima acaba sendo levada a estabelecer, ela própria, os critérios para a delimitação das áreas de influência” (FONSECA; BITAR, 2012FONSECA, W.; BITAR, O.Y.. Critérios para delimitação de áreas de influência em estudos de impacto ambiental. In: I Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental e II Conferência da Rede da Língua Portuguesa da Avaliação de Impactos, 2012, São Paulo. Anais. São Paulo: ABAI, 2012. 14 p., p. 9). A isso, é acrescido o registro de que os próprios técnicos reclamam do pouco tempo que dispõem para realizar os estudos e da falta de uma padronização da metodologia empregada (FONSECA; BITAR, 2012FONSECA, W.; BITAR, O.Y.. Critérios para delimitação de áreas de influência em estudos de impacto ambiental. In: I Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental e II Conferência da Rede da Língua Portuguesa da Avaliação de Impactos, 2012, São Paulo. Anais. São Paulo: ABAI, 2012. 14 p., p. 10). No que se refere à delimitação da área de abrangência dos PGEs, os autores sublinham a necessidade de

padronização de nomenclaturas das áreas de influência utilizadas nos estudos; definição de critérios mínimos para o estabelecimento da área de influência; [...]; conceituação e distinção claras entre área de influência de impacto ambiental e área do diagnóstico ambiental; e estabelecimento de condicionantes para a revisão da área de influência dos impactos durante a elaboração do EIA/Rima, bem como na instalação e operação do empreendimento (FONSECA; BITAR, 2012FONSECA, W.; BITAR, O.Y.. Critérios para delimitação de áreas de influência em estudos de impacto ambiental. In: I Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental e II Conferência da Rede da Língua Portuguesa da Avaliação de Impactos, 2012, São Paulo. Anais. São Paulo: ABAI, 2012. 14 p., p. 13-14).

Ambas as pesquisas, realizadas em tempos e lugares distintos, apontam fatores que atestam a insuficiência da atual metodologia de delimitação das áreas de influência dos projetos de grande escala. Falta de padronização nos conceitos, pouco tempo de discussão e delimitações arbitrárias são pontos que aparecem em diferentes momentos das avaliações sobre os empreendimentos. Mas o que chama a atenção é que as duas investigações indicam como ponto primordial para o avanço da discussão sobre desenvolvimento a partir de PGEs “a participação pública” nos processos decisórios (MPF, 2007BRASIL. Ministério Público Federal. Nota Técnica n° 39: Trabalho Sobre Área de Influência. - Brasília: MPF/4ª CCR; Escola Superior do Ministério Público da União, 2007., p. 31; FONSECA; BITAR, 2012FONSECA, W.; BITAR, O.Y.. Critérios para delimitação de áreas de influência em estudos de impacto ambiental. In: I Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental e II Conferência da Rede da Língua Portuguesa da Avaliação de Impactos, 2012, São Paulo. Anais. São Paulo: ABAI, 2012. 14 p., p. 13). Tais aspectos fecham essa seção. Eles deixam claro que a promoção do desenvolvimento a partir dos PGEs merece ser analisada com base nas noções que apresentamos ao longo do texto, sob risco da armadilha do crescimento por si tomado como algo natural em função do gigantismo desses projetos.

Considerações finais: o desenvolvimento regional a partir de projetos futuros

A busca pelo desenvolvimento está entre as principais premissas da sociedade contemporânea. De acordo com os casos apresentados, as adjetivações sustentável, endógeno, territorial, regional e local parecem restritas ao campo da propaganda, tendo em vista o fato de o IDH dos municípios atingidos por PGEs não ter apresentado alteração significativa em relação àqueles da mesma região que não possuem hidrelétricas.

Os PGEs não precisam ser tomados como promotores do desenvolvimento ou impactantes do ambiente de maneira apressada e definitiva. Além do PIB, os índices que merecem ser vistos com cautela, quando da análise dos reflexos dos PGEs, são: Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Índice das Condições de Vida (ICV). As duas hidrelétricas de provável instalação nos próximos anos na bacia do Uruguai, a UHE Garabi e a UHE Itapiranga, apresentam elementos que refletem o processo histórico das hidrelétricas já instaladas nessa área.

A UHE Garabi, prevista para o rio Uruguai na altura no município de Garruchos, no oeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina, traz como novidade em relação às usinas anteriores a conformação de um comitê de acompanhamento homologado pelo governo estadual. O Decreto Estadual nº 51.595, de 23 de junho de 2014, “institui a Política de Desenvolvimento de Regiões Afetadas por Empreendimentos Hidrelétricos - PDRAEH, e a Política Estadual dos Atingidos por Empreendimentos Hidrelétricos no Estado do Rio Grande do Sul - PEAEH”. De forma geral, esse decreto prevê a instituição de um Comitê Gestor que envolve empresas, Poder Público e comunidade afetada para acompanhamento das tratativas acerca da instalação - ou não - de hidrelétricas no Estado.

No caso da UHE Itapiranga, prevista para o rio Uruguai na altura dos municípios de Itapiranga (SC) e Pinheirinho do Vale (RS), os trabalhos estão suspensos com base em uma Medida Liminar, fruto de um Ação Civil Pública que questionou procedimentos do licenciamento ambiental. Além dessa suspensão, é importante o estudo de Baron et al. (2010BARON, Sadi et al. Compensação financeira x produção agrícola renunciada: comparação entre compensação financeira da UHE Itapiranga para o município de Mondaí (SC) e a produção agrícola renunciada pela formação do reservatório da UHE. In: Encontro Latino Americano de Ciências Sociais e Barragens, 3, 2010, Belém - PA. Anais III Encontro Latinoamericano de Ciências Sociais e Barragens. Belém-PA: Data Memory - LMR Alencar Ltda., v. 1, 2010, Pp. 2-28. ), que investiga a compensação financeira referente ao município de Mondaí/SC. Conforme tal pesquisa, para mencionar apenas a parte econômica, segundo dados de 2010, a diferença entre a receita com a compensação financeira e a perda com a saída das 331 famílias de produtores rurais seria expressiva. Enquanto se previa R$ 1.073.767,61 em compensação, a perda em movimentação financeira em função das famílias de produtores que deixariam a região seria de R$ 6 milhões anuais (BARON et al., 2010BARON, Sadi et al. Compensação financeira x produção agrícola renunciada: comparação entre compensação financeira da UHE Itapiranga para o município de Mondaí (SC) e a produção agrícola renunciada pela formação do reservatório da UHE. In: Encontro Latino Americano de Ciências Sociais e Barragens, 3, 2010, Belém - PA. Anais III Encontro Latinoamericano de Ciências Sociais e Barragens. Belém-PA: Data Memory - LMR Alencar Ltda., v. 1, 2010, Pp. 2-28. , p 14-15).

Os dois casos que representam os próximos pontos de conflito na bacia do Uruguai correspondem a um processo que começou ainda na década de 1960 e que acumula experiências nos próprios locais, já que essas usinas foram replanejadas e há, ainda, experiências de outras grandes usinas instaladas tanto na bacia, como tratamos aqui, quanto além dela, como os casos recentes da bacia amazônica. A experiência é reveladora e as medidas parecem caminhar para o aprimoramento do processo. Todavia, tratando-se da bacia do Uruguai, as grandes hidrelétricas têm demonstrado inovações muito mais no sentido da facilitação do empreendimento do que no da inovação territorial, isto é, no sentido do desenvolvimento regional.

Com base na realidade da bacia do Uruguai, para a promoção do desenvolvimento regional a partir dos projetos de grande escala, há a necessidade de viabilizar a participação da comunidade local de forma mais efetiva e deliberativa e menos consultiva, considerando o PGE não como protagonista, mas como “objeto” que se integra ao espaço. A democracia, o empoderamento e o capital social são elementos constitutivos de uma política de desenvolvimento que precisa preponderar ao longo do processo, a fim de que as hidrelétricas não signifiquem meros enclaves. Do contrário, o desenvolvimento apenas representará um eufemismo que suplanta territórios e desintegra localidades em nome de lucros econômicos desterritorializados que deixam sequelas socioambientais nos territórios.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2017
  • Aceito
    23 Out 2017
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