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REDE URBANA, PRECARIEDADE E DESIGUALDADES URBANO-REGIONAIS NA AMAZÔNIA PARAENSE: OS SERVIÇOS DE SAÚDE E A PANDEMIA DA COVID-19

Urban Network, Precariousness and Urban-Regional Inequalities in the Amazon Paraense: The Health Services and the Pandemic of Covid-19

RESUMO

Esse artigo discorre sobre a difusão da pandemia de COVID-19 no Estado do Pará, na Amazônia brasileira, levando em conta os fatores relativos à rede urbana. O seu objetivo principal consiste em analisar as implicações das propriedades da rede urbana do Estado do Pará, especialmente em relação à condição e disposição dos serviços de saúde, na dinâmica da COVID-19 no território paraense. Utilizando-se de levantamentos bibliográficos e documentais, constatou-se que a disseminação da patologia tem obedecido à lógica da rede urbana, atingindo primeiramente os seus estratos superiores e depois chegando aos centros locais, sendo potencializada pelas desigualdades e precariedades características das cidades paraenses. Desse modo, as cidades de maior expressão na rede urbana têm apresentado números mais elevados de casos de infecção e de morte, mas também possuem infraestruturas de saúde mais significativas se comparadas àquelas disponíveis nas cidades de estratos inferiores da rede urbana, que, quando consideradas em conjunto, aparecem como fortemente afetadas pela pandemia, porém com condições mínimas de responder ao avanço da patologia, uma vez depondo de serviços de saúde extremamente escassos e precários. A solução encontrada é o deslocamento para os centros maiores, o que sobrecarrega os serviços destes e, por conseguinte, expõe tanto as desigualdades na distribuição dos serviços de saúde na rede urbana quanto a sua precariedade.

Palavras-chave:
rede urbana; precariedade; desigualdade; COVID-19; Estado do Pará

ABSTRACT

This article discusses the spread of the COVID-19 pandemic in the State of Pará, in the Brazilian Amazon, taking about the factors related to the urban network. Its main objective is to analyze the implications of the properties of the urban network of the State of Pará, especially in relation to the condition and disposition of health services, in the dynamics of COVID-19 in the territory of Pará. Using bibliographic and documentary surveys, it was found that the dissemination of the pathology has obeyed the logic of the urban network, first reaching its upper strata and then reaching the local centers, being enhanced by the inequalities and precariousness characteristic of the cities of Pará. Thus, the cities with greatest expression in urban network has presented high numbers of infection’s cases and deaths, but also have health infrastructure most significant if compared to those available into the cities with bottom layer of urban network, which, when considered together, turn up strongly affected by pandemic, however in minimal conditions to answer to the advance of pathology, once lay down of health services extremely scant and precarious. The solutions found is the displacement to the large centers, which overload these services and, consequently, expose as unequal distribution of urban network healthy service as its precariousness.

Keywords:
urban network; precariousness; inequality; COVID-19; State of Pará

1. INTRODUÇÃO

São marcantes nos estudos sobre as redes urbanas os elementos expressivos de diferenças e sobretudo de desigualdades entre os seus componentes, as cidades, tanto em relação a sua configuração enquanto centro urbano quanto no tocante a sua participação no emaranhado de fluxos que materializa a rede. Isso adquire grande relevância por pelo menos dois fatores: a) a natureza socioespacial dessas desigualdades - implicando na materialidade do espaço e no seu conteúdo social, isto é, na sociedade em si; b) a amplitude de suas repercussões - envolvendo a totalidade do espaço abrangido pela rede urbana, não se restringindo às cidades, já que seus serviços, por exemplo, ultrapassam os limites do espaço urbano.

Desse modo, a rede urbana, com sua vasta abrangência e suas importantes implicações nas mais diversas dimensões da vida social, tem cada vez mais destaque no mundo contemporâneo, tão estreitamente assentado nas articulações entre os espaços. Obviamente, essa condição de conectividade do mundo atual serve a todo tipo de dinâmica, sejam aquelas de cunho econômico, cultural, político ou mesmo à disseminação de patologias em escala planetária, como se tem vivenciado com a COVID-19, que alcançou rapidamente o patamar de pandemia. Todavia, não é apenas a propriedade fundamental da articulação a implicar nessas dinâmicas, as desigualdades e precariedades, também marcantes na composição das redes urbanas, adquirem, do mesmo modo, forte proeminência.

É neste cenário que são desenvolvidas as reflexões deste texto, que, com base na análise da rede urbana, articula os serviços de saúde e a disseminação da COVID-19 num locus específico, o Estado do Pará, na Amazônia brasileira. A questão central a nortear a análise está assim estabelecida: Como as propriedades da rede urbana do Estado do Pará, especialmente em relação à condição e disposição dos serviços de saúde, implicam na dinâmica da COVID-19 no território paraense?

Quanto aos procedimentos metodológicos, eles dizem respeito a dois conjuntos: bibliográficos e documentais. Ressalta-se que ambos estão largamente preenchidos pelas experiências dos autores quanto à análise da rede urbana do Estado do Pará a partir de outros fatores que não aqueles relativos aos serviços de saúde e à disseminação de patologias, mas sim a investigações sobre trabalho, estudo, violência, redes de comércio varejista, atividade pesqueira, interações socioespaciais e particularidade de cidades.

Nesses termos, os levantamentos bibliográficos foram fundamentais aos resultados expostos, mesmo que não estejam tão explícitos no texto, o que se deveu a intenção de reservar maior espaço à análise dos dados. O conceito de rede urbana foi o de maior destaque nesse âmbito, com o uso de trabalhos como o de Corrêa (2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.) e Santos (2008aSANTOS, Milton. Manual de geografia urbana. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2008a. ; 2008bSANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp , 2008b. ). Os serviços de saúde foram outro foco do levantamento bibliográfico e estão manifestos no texto por meio de trabalhos como: Barreto (2017BARRETO, Maurício Lima. Desigualdades em Saúde: uma perspectiva global. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 7, p. 2097-2108, jul. 2017.), Barata (2009BARATA, Rita Barradas. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. 120 p.), Martinucci (2013) e Siqueira (2011).

Quanto aos levantamentos documentais, eles tiverem três focos distintos, porém associados: a) as características da rede urbana paraense; b) a condição da oferta de serviços de saúde no território paraense; c) a disseminação da COVID-19 no Estado do Pará. Para dar conta dessas demandas foram utilizados os seguintes documentos ou bases de dados: Regiões de Influência das Cidades 2018 (IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. ); DATASUS (MS - Ministério da Saúde / CNES - Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil, 2019MS - Ministério da Saúde / CNES - Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil. DATASUS. 2019: Disponível em: Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?cnes/cnv/equipobr.def . Acesso em: 22 agosto 2020.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht...
); Monitora COVID-19 (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br...
); Monitoramento COVID-19 ( SESPA, 2020aSESPA - Secretaria de Estado de Saúde do Pará. Monitoramento COVID-19. Disponível em: Disponível em: https://www.covid-19.pa.gov.br/#/ . Acesso em: 22 agosto 2020a.
https://www.covid-19.pa.gov.br/#/...
).

Além desta introdução, o artigo dispõe de três seções de discussão de resultados, a primeira dedicada à apresentação do conceito de rede urbana, a segunda voltada ao exame dos serviços de saúde no Pará do ponto de vista da rede urbana e a terceira dedicada à análise da dinâmica da pandemia de COVID-19 no território paraense, considerando as propriedades da rede de cidades. Por fim, a seção dedicada às considerações finais tenta articular as duas partes anteriores e fornecer elementos com a pretensão de responder à questão formulada nesta introdução.

2. A CONCEPÇÃO DE REDE URBANA

Os estudos da ciência geográfica sobre a rede urbana remontam às últimas décadas do século XIX, sendo relevantes entre geógrafos alemães, franceses, ingleses e norte-americanos. A partir dos anos 1950, ganharam ainda mais relevo, até atingir a expressiva valorização contemporânea, fruto da proeminência da rede urbana na realidade atual. Ela passou a ser fundamental na organização de um mundo cada vez mais globalizado e que tem nas redes sua estratégia básica de funcionamento e nas cidades suas principais bases de gestão dos fluxos de diferentes tipos.

A rede urbana possui seu princípio fundante no funcionamento articulado das cidades, conforme explicita Corrêa (2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., p.16), ao defini-la enquanto “[...] conjunto de centros urbanos funcionalmente articulados entre si”. Segundo o autor, a constituição de uma economia globalizada somente foi possível devido à rede urbana e à crescente rede de comunicações a ela atrelada, “a rede urbana passou a ser o meio através do qual produção, circulação e consumo se realizam efetivamente” (CORRÊA 2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., p.15).

Compreensão assemelhada faz-se presente em Santos (2008a)SANTOS, Milton. Manual de geografia urbana. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2008a. , ao enunciar que as redes urbanas “[...] são a expressão dos fluxos de população, das produções agrícolas e industriais e dos fluxos monetários de informação e de ordens” (p.172). E também está clara em Santos (2008b)SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp , 2008b. , que define a rede urbana como um “[...] conjunto de aglomerações produzindo bens e serviços junto com uma rede de infraestrutura de suporte e com os fluxos que, através desses instrumentos de intercâmbio, circulam entre as aglomerações” (p.68).

Para Santos (2008a)SANTOS, Milton. Manual de geografia urbana. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2008a. , três fatores estão na base da estruturação das redes urbanas: as massas, os fluxos e o tempo. As massas corresponderiam à população, produção, poupança, consumo e equipamentos, ao passo em que os fluxos se conformariam como os mais expressivos da dinâmica do poder, desse modo, o exercício do poder pressuporia o controle dos fluxos. O tempo seria o responsável por explicar as disparidades de realidades na rede urbana.

Corrêa (2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.) também valoriza fatores como o tempo, as disparidades e as conexões. Para ele, a apreensão da natureza e do significado das redes urbanas requer a apreciação de quatro elementos fundamentais: a divisão territorial do trabalho, os ciclos de exploração, a forma espacial e a periodização. Aqui, considerando os objetivos do texto, serão enfatizados os dois primeiros fatores.

Segundo Corrêa (2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.), a rede urbana é, concomitantemente, reflexo e condição para divisão territorial do trabalho. Seria “um reflexo na medida em que, em razão de vantagens locacionais diferenciadas, verifica-se uma hierarquia urbana e uma especialização funcional [...]”, que fornece papéis e características particulares às cidades, como um resultado da atuação dos diversos agentes sociais. Por outro lado, a rede urbana também seria condição para a divisão territorial do trabalho, pois esta depende das funções articuladas das cidades (bancos, serviços de transporte, comércio atacadista etc.), “[...] é via rede urbana que o mundo pode tornar-se, desigual e integrado” (CORRÊA, 2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., p. 26).

Com relação ao segundo elemento, os ciclos de exploração, esclarece Corrêa que cada cidade da rede urbana participa do processo de criação, apropriação e circulação do valor excedente, do contrário, teria sua existência inviabilizada. Neste sentido, explica:

[...] a rede de centros de distribuição, as localidades centrais, é, de fato, uma rede de drenagem de lucros. Trata-se, na verdade, do processo de realização do valor e do valor excedente, que é apropriado pela cidade. [...] O papel da cidade como centro difusor de desenvolvimento deve ser visto, na realidade, como o de centro a partir do qual o modo de produção capitalista se propaga e, ao fazê-lo, aparenta perpetuar-se (CORRÊA, 2006CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., pp.36-37).

Portanto, os papéis diferenciados das cidades na dinâmica da rede urbana também refletem as desigualdades na apropriação do valor, o que autoriza a compreensão dela como “[...] a forma sócio-espacial de realização do ciclo de exploração da grande cidade sobre o campo e centros menores” (CORRÊA, 1989CORRÊA, Roberto Lobato. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989., p.53).

Com base nestas breves considerações sobre a rede urbana já é possível reconhecer o caráter desigual de sua estruturação, com a configuração de cidades de maior densidade de infraestrutura e serviços e outras com escassez desses elementos. Porém, ao se adentrar na escala do espaço intraurbano, percebe-se também a atuação de outras lógicas de desigualdade, que se traduzem, por vezes, na configuração de áreas bem mais providas de infraestrutura e serviços que outras da mesma cidade.

Em ambas as escalas, rede urbana e espaço urbano, as desigualdades produzem espaços precários, que abrigam os desfavorecidos, sejam em termos econômicos ou étnico-culturais. A grande cidade, normalmente privilegiada no âmbito da rede, na escala intraurbana manifesta complexidade bem maior quanto aos fatores de desigualdade e produção de espaços precários. Esta realidade não é novidade na história das cidades. Em Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, originalmente publicada em 1845, Friedrich Engels, ao analisar Londres, no século XIX, oferece uma descrição muito precisa da materialização da precariedade:

Todas as grandes cidades têm um ou vários “bairros de má fama” onde se concentra a classe operária. É certo ser frequente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora próximas aos palácios dos ricos; mas, em geral, é-lhe designada uma área à parte, na qual, longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha. Na Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam-se cottages e normalmente constituem em toda a Inglaterra, exceto em alguns bairros de Londres, a habitação da classe operária. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias - onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar a roupa (ENGELS, 2010ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010., p.70).

Os elementos expressivos das precárias condições de vida de grupos numerosos das grandes cidades, comumente segregados em áreas pouco propícias à moradia ou indesejadas pelos grupos abastados, tão bem descritos por Engels, com as devidas ressalvas em termos de tempo e de espaço, podem ser ainda hoje reconhecidos, principalmente nas grandes cidades, em boa parte do mundo. Hoje, bem menos nos países desenvolvidos, como é o caso da Inglaterra. Mas aí se está restringido a análise ao plano intraurbano, quando se toma a escala da rede percebe-se outra lógica de desigualdade, que favorece os centros maiores e reserva a precarização especialmente às pequenas cidades. Em ambas as escalas, as desigualdades e as precariedades se mantêm como elemento fundamental na produção do espaço.

A razão de se estar aqui promovendo esse debate remete ao fato de que essa produção desigual do espaço implica em todo tipo de dinâmica inerente à sociedade ou que sobre ela se estabeleça. A saúde, ou a falta dela, é um dos aspectos a se inserir nessa lógica. Em Engels (2010ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.) é enfatizada a relação entre a exploração da classe trabalhadora e a multiplicação de epidemias: “As frequentes epidemias de cólera, tifo, varíola e outras enfermidades mostraram ao burguês britânico a necessidade urgente de sanear as cidades, se quisesse, com sua família, escapar delas” (p.348).

Na atual crise vivenciada mundialmente desde 2020, a pandemia de Covid-19, as desigualdades socioespaciais e as precariedades a elas associadas estão sendo fundamentais na maximização dos impactos. A partir do próximo tópico, privilegiando a escala da rede urbana, será analisada a realidade concreta do Estado do Pará e a associação entre a desigualdade na distribuição dos serviços de saúde e a disseminação da pandemia.

3. A REDE URBANA DO ESTADO DO PARÁ E AS DESIGUALDADES NA OFERTA DOS SERVIÇOS DE SAÚDE

O lócus da presente investigação, o Estado do Pará, manifesta, notadamente, o caráter desigual da rede urbana. E isso já pode ser percebido na própria hierarquia entre os centros, que, mesmo inerente à configuração da rede de cidades, é reveladora de seu caráter desigual e, portanto, conferidor de vantagens e desvantagens aos grupos sociais segundo a sua posição na rede. Nesse cenário, o Estado do Pará (figura 1) caracteriza-se pela existência de um reduzido número de cidades privilegiadas por sua posição hierárquica, cabendo destaque à metrópole de Belém, primeiramente, e, num segundo plano, às capitais regionais Santarém, Marabá e Castanhal, bem como aos centros sub-regionais A de Altamira, Parauapebas e Redenção, como estabelecido pelo estudo Regiões de Influência das Cidades 2018 (IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. ).

Figura 1
Estado do Pará. Hierarquia dos centros da rede urbana. 2018

Obviamente, as desigualdades entre as cidades não são tributárias apenas da hierarquia urbana, mas respondem a uma diversidade de fatores, entre os quais se podem realçar as condições socioespaciais da região, neste caso, do Estado do Pará, em que elas estão imersas.

Uma forma de reconhecer essas desigualdades se consiste na análise da oferta de serviços essenciais à população e na posterior possibilidade de se atestar situações satisfatórias ou mesmo de precariedade. É essa pretensão que preenche essa primeira seção deste texto, qual seja estabelecer um comparativo entre as cidades paraenses no que tange os serviços de saúde.

Desse modo, dentre as variáveis que ilustram a desigualdade no âmbito da rede urbana, tomam-se como base para este estudo aquelas relativas à saúde, como o acesso a serviços médicos, a presença de profissionais da área e a distribuição de equipamentos que interferem diretamente no bem-estar do ser humano.

Essa perspectiva de análise com fundamento na rede urbana se insere em quadros mais amplos. Assim, as desigualdades na saúde podem ser compreendidas enquanto “as desiguais condições de saúde dos diferentes grupos” (BARRETO, 2017BARRETO, Maurício Lima. Desigualdades em Saúde: uma perspectiva global. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 7, p. 2097-2108, jul. 2017., p.2098), “como a diferença no acesso a recursos e a fatores” (SIQUEIRA, 2011, p.1) que a influenciam, ou em outras palavras, como sinônimos de “injustiça social e desrespeito a direitos humanos” (BARATA, 2009BARATA, Rita Barradas. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. 120 p., p.11). O estudo relativo à rede urbana não abarca toda essa complexidade, mas contribui para o esclarecimento de uma importante dimensão dessas desigualdades, aquela condizente ao espaço.

As injustiças e desigualdades estabelecidas no campo da saúde não são atributos recentes (BARATA, 2009BARATA, Rita Barradas. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. 120 p.), ao contrário, foram produzidas ao longo de décadas, como resultado de dinâmicas políticas, econômicas e sociais (MARTINUCCI, 2013MARTINUCI, Oséias da Silva. A compreensão geográfica dos eventos em saúde no território brasileiro e a análise cartográfica dos equipamentos de imagem-diagnóstico de alta complexidade. 2013. 266p. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2013.), ou seja, “grande parte das desigualdades observadas no campo da saúde estão diretamente relacionadas com as observadas em outros planos da vida social” (BARRETO, 2017BARRETO, Maurício Lima. Desigualdades em Saúde: uma perspectiva global. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 7, p. 2097-2108, jul. 2017., p.2098). Além disso, são produtos de ações estabelecidas em variadas escalas, como adverte Martinucci (2013MARTINUCI, Oséias da Silva. A compreensão geográfica dos eventos em saúde no território brasileiro e a análise cartográfica dos equipamentos de imagem-diagnóstico de alta complexidade. 2013. 266p. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2013., p.132), “[...] entender a saúde no Brasil de hoje implica a análise em múltiplas escalas”. Dessa maneira, a realidade constatada no Estado do Pará é uma síntese das ações de uma multiplicidade de agentes estabelecidos em escalas diversas.

De forma preliminar, com o objetivo examinar o cenário paraense, optou-se pela exposição da situação de alguns dos componentes dos serviços de saúde, especialmente no contexto da pandemia da COVID-19, como o quadro dos leitos de UTI, número de respiradores disponíveis e a disponibilidade dos médicos e enfermeiros no território estadual (Tabela 1).

Tabela 1
Estado do Pará. Caracterização da Saúde. 2019

A Tabela 1 apresenta os elementos citados anteriormente e possibilita um primeiro entendimento a respeito da realidade dos serviços de saúde no Estado do Pará. As bases foram os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020) e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES/DATASUS (2019), referentes ao período de dezembro de 2019. Sobressai-se entre os dados contidos na tabela 1 o fato do estado do Pará permanecer, para todos os itens considerados, entre as últimas posições no conjunto dos estados brasileiros.

Quanto à disponibilidade dos leitos de UTI, ficou em 20° ao apresentar média de oito unidades a cada 100 mil habitantes, com aproximadamente 49% do total pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS). De forma análoga, encontra-se a realidade do montante de respiradores, o Pará esteve em 22° com a somatória de 1418 aparelhos, correspondente à média de 16 itens a cada 100 mil habitantes. Desses, 1092 referentes ao setor público, equivalendo a 72% do total.

Outros indicativos que explicitam a precariedade são encontrados na ponderação dos números acerca dos enfermeiros e médicos, que, do mesmo modo, configuram as últimas colocações entre os estados brasileiros. Com o quantitativo de 7339 médicos, o Pará se posicionou em 26° ao reunir a média de 85 especialistas a cada 100 mil habitantes, com 79,75% integrado à rede pública. Por sua vez, com 6499 enfermeiros, posicionou-se em 27°, ao atingir o quantitativo de 75 especialistas a cada 100 mil habitantes, segmentado em 75% vinculado ao SUS e 25% à rede privada.

Esses dados já permitem uma inferência inicial: no âmbito da rede urbana nacional, a área de influência de Belém, quando considerados esses indicadores relativos à saúde, evidencia uma situação de precariedade e, por conseguinte, expressa uma desigualdade no plano nacional. Dessa forma, as desigualdades socioespaciais, mesmo que aqui estejam sendo enfocadas numa escala regional, tomando por totalidade o Estado do Pará, estabelecem-se em múltiplas escalas, assim, a precariedade, que se constata como disseminada por todo o território estadual ao se enfatizar a escala nacional, cede lugar a um novo plano de desigualdades ao se priorizar a escala regional, reconhecendo espaços claramente mais bem assistidos que outros.

É justamente com vista à compreensão dessa realidade regional dos serviços de saúde que se buscou analisar as discrepâncias entre os municípios e, portanto, a constatação da forma de distribuição desses serviços ao longo do território paraense. Para tanto, fez-se uso de mapeamentos, a partir do software Quantum Gis 3.4 e mais especificamente da técnica de interpolação, que consiste em um gradiente representativo dos diferentes contrastes relacionados aos elementos aqui considerados. Nesse caso, optou-se pelo conjunto de cores espectral, associado à lógica de que as tonalidades mais frias condizem aos dados satisfatórios, ao passo que os tons mais quentes dizem respeito aos números negativos, como se pode verificar na figura 2.

Figura 2
Estado do Pará. Espacialização de indicadores relativos aos serviços de saúde. 2019

O exame da figura 2 oportuniza, primordialmente, a constatação de que as melhores condições no nível dos municípios estão naqueles cujas sedes correspondem a cidades de maior nível hierárquico na rede urbana regional, isto é, cidades nas quais a concentração populacional, econômica, de infraestruturas e de serviços proporciona a formação de áreas de influência próprias e abrangentes de vários territórios municipais. Como parte disso, em relação aos leitos de UTI a cada 100 mil habitantes, percebeu-se que grande parte deles se concentra no arranjo populacional de Belém1 1 Expressão utilizada pelo estudo Regiões de Influência das Cidades 2018 (IBGE, 2020) para se referir aos aglomerados urbanos, sejam de caráter metropolitano ou relativos a patamares inferiores da hierarquia urbana. No caso do arranjo populacional de Belém, a composição dá-se pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba e Benevides. , Capanema, Redenção, Paragominas, Castanhal, Tucuruí, Santarém e Altamira, destacados em cor azul. Formas urbanas que estão entre a condição de metrópole e a de centro sub-regional B, de acordo com IBGE (2020)IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. .

Relativo ao zoneamento dos respiradores, Bom Jesus do Tocantins esteve em primeiro lugar, seguido de Altamira, Redenção, arranjo populacional de Belém, Bragança e Paragominas. Concernente à cartografia dos médicos, os tons mais claros apontam o quadro existente no arranjo populacional de Belém, Jacareacanga, Canaã dos Carajás, Barcarena e Altamira. Em seu extremo oposto, entre as localidades de pior proporção estão os centros locais Santarém Novo, Limoeiro do Ajuru, Moju, Anajás e Gurupá. Semelhante a esses padrões, no que diz respeito aos enfermeiros, as cores vermelhas, especificamente retratam as disparidades encontradas em Nova Timboteua, São Miguel do Guamá, Muaná, Acará e Moju, em oposição às circunstâncias identificadas em Jacareacanga, Faro, Novo Progresso, Pau D’arco e Altamira.

Como foi possível perceber nos indicadores número de respiradores, médicos e enfermeiros, existem casos em que centros locais aparecem em condições comparativamente favoráveis. Considerando que dispõem de baixos contingentes populacionais, mesmo reduzidos números em relação a esses fatores já os colocam em posições melhores, especialmente, tendo por base o quadro geral de precariedade. Contudo, prevalece mesmo a situação de maior precariedade dos centros locais, notadamente aqueles de certas regiões do Estado como o Marajó, o eixo da transamazônica e da BR-163, o sul, sudeste e noroeste do Pará. Além disso, é preciso ter em conta as grandes distâncias que normalmente existem entre essas cidades e aquelas com maiores aparatos na área da saúde, bem como os frequentes constrangimentos à circulação muito particulares à região amazônica, traduzidos na metáfora da ‘viscosidade’, de Santos e Silveira (2002SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 4 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002.), em oposição à ‘fluidez’.

Na maior parte dos casos, os centros locais que aparecem em condições melhores são concernentes àqueles com implicações a partir de projetos estatais ou privados de grande porte, baseados na exploração de recursos naturais, que se, de um lado, potencializam uma série de problemáticas socioespaciais e ambientais, de outro, ampliam a oferta de serviços e entre eles os de saúde.

Nota-se então que grande parte dos moradores dos municípios paraenses inseridos em mais extremadas lógicas de precariedade quanto aos serviços de saúde convivem com expressivas distâncias em relação aos polos que reúnem mecanismos mais adequados, o que traz consigo a ideia de que a desigualdade em saúde “se remete às vantagens e desvantagens [...] é o acesso desigual aos recursos presentes na sociedade” (SIQUEIRA, 2011, p.2).

As cidades que reúnem os requisitos mais favoráveis, regularmente, tratam-se das zonas centrais dos serviços de saúde. Nesse sentido, de acordo com o estudo Regiões de Influência das Cidades 2018 (IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. ), os principais núcleos referem-se em primeiro lugar, ao arranjo populacional de Belém, seguido de Santarém, Marabá e Castanhal (figura 3). Contudo, vale ressaltar que Belém compõe apenas o terceiro patamar de centralidade quanto aos serviços de saúde, em âmbito nacional. Do mesmo modo, as três capitais regionais citadas estão apenas no quinto patamar de centralidade em saúde. Já o restante dos centros urbanos paraenses ocupa o sexto e último nível.

Figura 3
Estado do Pará. Centralidade dos serviços de saúde. 2018

Desse modo, os espaços centrais identificados na figura 3 não necessariamente simbolizam um estágio ideal do que é necessário para a manutenção da saúde pública e, mais especificamente, de que esses municípios estão compatíveis com os padrões apresentados em outras regiões do país, ao contrário, atestam uma situação de precariedade regional e de desigualdades perante outras regiões brasileiras. Não à toa, frequentemente, destacam-se nos noticiários problemas relativos à falta de médicos, falhas em aparelhos e insuficiência de materiais básicos. Nesse sentido, pode-se entender que:

A rede ao mesmo tempo em que possibilita a disseminação de objetos modernos e, com isso, em algum sentido, a própria corporificação da cidadania, gera também novos carecimentos, exatamente pelo fato de que ela não se realiza em todo o espaço e não está ao alcance de todos (MARTINUCCI, 2013MARTINUCI, Oséias da Silva. A compreensão geográfica dos eventos em saúde no território brasileiro e a análise cartográfica dos equipamentos de imagem-diagnóstico de alta complexidade. 2013. 266p. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2013., p.224).

Assim, a lógica de atendimento a partir da rede urbana, com o estabelecimento de espaços de concentração de serviços com a função de ofertá-los a amplas áreas, ao mesmo tempo em que materializa o serviço constitui desigualdades a partir do acesso diferencial a esses centros principais. Isso não quer dizer que mesmo nos espaços mais privilegiados não haja desigualdade e dificuldade de acesso, que, por outros fatores, pode se manifestar, e comumente se identifica, tanto em uma metrópole como em uma cidade interiorana, enquanto “privação relativa ao acesso, controle e poder” (SIQUEIRA, 2011, p.14).

De qualquer forma, para a melhor análise da qualidade da oferta do serviço, bem como das desigualdades produzidas a partir dele, é fundamental compreender como se dão os deslocamentos relativos à saúde no âmbito da rede urbana, o que é apresentado na figura 4 para o Estado do Pará, levando-se em conta a tipificação dos movimentos em baixa, média e alta complexidade dos serviços pretendidos (figura 4).

Figura 4
Estado do Pará. Deslocamentos para serviços de saúde. 2018

De acordo com dados representados no mapa, os fluxos em busca de serviços de baixa e média complexidade direcionam-se sobretudo ao Arranjo Populacional de Belém. Em um segundo nível, voltam-se às capitais regionais de Santarém, Marabá e Castanhal, ao centro sub-regional A de Redenção e ao centro sub-regional B de Capanema. Num terceiro grau de recepção dos fluxos estão Altamira (centro sub-regional A) e os centros sub-regionais B de Abaetetuba, Barcarena, Paragominas e Tucuruí, bem como o centro de zona A de Bragança e o centro de zona B de Breves.

De maneira complementar, outras informações trazidas pelo estudo Regiões de Influência das Cidades 2018 (IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. ) constatam as disparidades existentes no Pará. Primeiramente, entre as quinze regiões brasileiras de busca por serviços de baixa e média complexidade mais populosas, destaca-se que o arranjo metropolitano de Belém se posiciona em penúltimo lugar em relação a número de médicos ao apresentar a média de 134 profissionais a cada 100 mil habitantes, e no que diz respeito à presença de enfermeiros e à distribuição de respiradores, em ambos os quesitos ficou em último lugar, respectivamente com a razão de 84 especialistas a cada 100 mil habitantes, e a proporção de 26 aparelhos a cada 100 mil habitantes.

Nesse contexto, quando se analisam as regiões de busca por serviços de baixa e média complexidade no Brasil, com população acima de 500 mil habitantes, os pontos negativos definem-se em razão de que Santarém representa a pior extensão nos quesitos dos números de médicos e respiradores a cada 100 mil habitantes, com média de 65 profissionais e 7,5 itens respiratórios, além de Marabá, que alcançou o montante mais negativo acerca de enfermeiros a cada 100 mil habitantes, com 65 especialistas.

Ainda sobre os deslocamentos referentes à procura por serviços de baixa e média complexidade, a média brasileira foi de 72 km no país, enquanto que na escala paraense esses registros aumentam, atingindo a somatória de 120 km, ou seja, no Pará estima-se que um morador necessite se locomover aproximadamente 50% a mais do que o padrão nacional. Quando se soma isso à “viscosidade” normalmente manifesta nas condições de deslocamento, a precariedade fica ainda mais evidente.

Por sua vez, quanto aos serviços de alta complexidade há uma maior restrição (figura 4), limitando-se a poucos pontos, em destaque novamente a metrópole de Belém, com larga vantagem, e a capital regional de Santarém. Em seguida, despontam a capital regional C de Marabá e o centro sub-regional A de Redenção. O que faz com que em muitos casos os paraenses recorram a estados vizinhos, especialmente o Maranhão, por meio de Imperatriz, e Tocantins, a partir de Palmas. Tanto a precariedade quanto as desigualdades associadas aos serviços de saúde tornam-se bastante explícitas nos dados de deslocamentos motivados pela procura por serviços de alta complexidade, já que se constata tanto a baixa oferta desse tipo de serviço no Estado do Pará quanto a sua forte concentração no espaço metropolitano de Belém.

Esse conjunto de dados e informações reunidas revela um panorama inicial da precariedade inerente aos serviços de saúde no estado do Pará, bem como do estabelecimento de desigualdades na distribuição dos serviços, agravadas pelos problemas associados aos deslocamentos de pessoas em muitas áreas do território estadual.

Essa realidade implica diretamente na limitada capacidade de respostas estratégicas frente a carências históricas, tais como o atendimento clínico mais básico, assim como, e principalmente, no tocante ao aparecimento de novos fatores demandantes de ações imediatas e eficazes, como provou a todos a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19.

4. A LÓGICA HIERÁRQUICA DA DISSEMINAÇÃO DA COVID-19

O ano de 2020 representa um marco histórico, especialmente pelo surgimento de uma nova espécie de vírus, que desencadeou crises em diversos segmentos da vida social, afetando, a partir dos impactos causados à saúde, também a economia e as relações sociais, de uma forma geral. Acerca disso, mais precisamente em 31 de dezembro de 2019, foi identificado pela primeira vez em Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China, o novo coronavírus (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus - SARS-CoV-2) que provoca a doença denominada “Coronavirus Disease 2019” (COVID-19), que se proliferou rapidamente em escala global, fazendo com que a Organização Mundial da Saúde - OMS, em 11 de março de 2020, classificasse a situação como uma “pandemia”, termo referente à capacidade de disseminação geográfica de uma doença (OPAS, 2020OPAS - Organização Pan-Americana da Saúde. Folha informativa COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875 . Acesso em: 11 agosto 2020.
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).

Desse modo, preliminarmente, a respeito das dinâmicas espaciais das doenças transmissíveis, pode-se entender o seu processo de disseminação basicamente através da difusão hierárquica, que se dá a partir de um determinado agente infeccioso que se espalha ao longo das cidades em razão, sobretudo, de sua dimensão populacional e da relevância de suas atribuições na rede urbana, o que se expressa em sua centralidade e na intensidade de suas conexões em termos de fluxos de pessoas, mercadorias, informações etc. Assim, a dinâmica de propagação desse tipo de doença, comumente, em um primeiro momento, concentra-se nas cidades de maior porte e centralidade, seguindo posteriormente com a contaminação dos núcleos de menor porte, a partir dos fluxos de pessoas (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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).

Em tal perspectiva, destaca-se o cenário em que o Coronavirus se manifestou, caracterizado por um mundo majoritariamente urbano, com boa parte da população mundial vivendo em cidades, que também são os principais espaços de realização de grande parcela das atividades que compõem a vida social. Mesmo os moradores dos espaços não urbanos necessitam da cidade para o desenvolvimento de suas atividades, é lá, por exemplo, que têm acesso a alguns serviços fundamentais.

Além disso, as cidades vêm, nos últimos séculos, no âmbito do desenvolvimento do modo capitalista de produção, reforçando paulatinamente sua conectividade, levando a rede urbana a um nível de relevância sem igual. Todavia, essa forma de organização do espaço baseada em aglomerações densamente interligadas serve não apenas a propósitos econômicos e sociais, por exemplo, mas também cria inéditas condições para a ocorrência de adversidades como uma pandemia. No caso específico do novo coronavírus, fatores de contaminação associam-se, entre outras coisas, às aglomerações de pessoas e às conexões estabelecidas a grandes distâncias (SPOSITO; GUIMARÃES, 2020SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; GUIMARÃES, Raul Borges. Porque a circulação de pessoas tem peso na difusão da pandemia. Portal UNESP/notícia, 26/03/2020. Disponível em: Disponível em: https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tem-peso-na-difusao-da-pandemia . Acesso em: 20 junho 2020.
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). A dinâmica verificada no Brasil confirma esse quadro:

O processo de difusão da Covid-19 no Brasil parece seguir a lógica observada na maioria dos países onde, a partir de grandes centros urbanos, se dissemina para cidades médias e pequenas interioranas. Se por um lado a difusão em escala nacional entre os centros urbanos de nível mais alto parece ter decorrido de ligações áreas, o espelhamento em escala regional depende das ligações rodoviárias e interurbanas, no caso de grandes conurbações como as metrópoles (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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, p.7)

No contexto brasileiro, em 26 de fevereiro de 2020, registrou-se a primeira ocorrência do vírus no país, mais especificamente em São Paulo, onde uma pessoa com histórico de viagem à Itália2 2 A Itália representou um dos epicentros da COVID-19 no continente europeu (CNN,2020). apresentou os principais sintomas da doença (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020aMS - Ministério da saúde. Brasil confirma primeiro caso de novo coronavírus. Notícia, 27 de fevereiro 2020a. Disponível em: Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus . Acesso em: 15 março 2020.
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). Seguido a isto, o que se observou foi a incidência rápida ao longo das demais metrópoles brasileiras com destaque ao Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre, Brasília e, inclusive, Belém.

O Brasil, atualmente, é um dos países situação mais crítica, dado o avançar da patologia, sobretudo por conta de deficiências no combate à pandemia, que acabaram por impulsionar os impactos no país. À exemplo disso, pode-se apontar a insuficiência no número de profissionais de saúde, o quantitativo reduzido de UTIS, a reduzida testagem da população, as precariedades relativas a equipamentos como respiradores e, mais recentemente, os desencontros em relação à disponibilização de vacinas. O resultado tem sido um número acentuado de vítimas de COVID-19.

Em razão disso, alguns estados apresentaram um quadro de maior gravidade, como o Pará, devido ao elevado quantitativo de casos. O primeiro registro paraense foi datado em 18 de março de 2020 (SESPA, 2020bSESPA - Secretaria de Estado de Saúde do Pará. Confirmado o primeiro caso de covid-19 no Pará. Agência Pará, 18/03/2020. Disponível em: Disponível em: https://agenciapara.com.br/noticia/18475/ . Acesso em: 22 agosto 2020b.
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), em Belém, cujo paciente retornava do Rio de Janeiro, deste modo, tratava-se de um caso importado da região sudeste. Após a confirmação, deu-se início a um processo de imediata circulação do vírus ao longo dos demais municípios, principalmente os localizados na Região Metropolitana de Belém3 3 A Região Metropolitana de Belém é composta pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara do Pará, Santa Izabel do Pará e Castanhal. , que concentrou, nas primeiras semanas, o maior quantitativo de pessoas infectadas.

Ao se considerar os quatro meses4 4 A opção por esse recorte temporal, deu-se em razão de se tratar de um espaço que abrange os múltiplos comportamentos da COVID-19, como o início da pandemia no estado, os ápices de disseminação na primeira onda e o processo de proliferação para além da metrópole. Bem como, por representar um tempo hábil para o desenvolvimento da presenta pesquisa. a partir do primeiro caso registrado, ou seja, ao se analisar o período de 18 de março a 18 de junho de 2020, nota-se que o estado do Pará se sobressaiu negativamente como um dos mais atingidos do país. O gráfico 1 ilustra o número de casos acumulados por estado brasileiro no período aqui considerado, nele é possível perceber que o Pará ocupou a terceira posição em número de casos confirmados, 137.484, atrás somente de São Paulo, com 412.027 registros, e do Ceará, que apresentou 146.972 ocorrências do coronavírus, ilustrando a situação de calamidade pública materializada no cenário paraense.

Gráfico 1
Brasil. Casos de COVID-19 por unidade da federação. 18 de março a 18 de junho de 2020

Por sua vez, quando se pensa nesses números na razão de 100 mil habitantes, o Pará ficou em décimo primeiro com a média de 1.598 pessoas contaminadas. Além disso, no que diz respeito ao quantitativo de óbitos por essa doença, o território paraense representou a quinta incidência mais expressiva, com a média de 5.523 casos a cada 100 mil hab., superado apenas por São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Pernambuco. Em relação aos óbitos a cada 100 mil habitantes, figurou na quinta posição, com 64,2 mortes.

Visando uma melhor compreensão do comportamento da pandemia no Pará, foi avaliada a sua evolução mediante o mapeamento do progresso do vírus ao longo de quatro períodos mensais, a contar do primeiro caso. Para tanto, fez-se uso da técnica de categorização, que basicamente consistiu no estabelecimento de intervalos a partir da base de dados referentes a casos confirmados no período, onde cada um deles é representado por uma cor, com os tons mais quentes condizendo aos maiores números, enquanto as mais frias correspondendo aos menores quantitativos (figura 5).

Figura 5
Estado do Pará. Evolução dos casos de COVID-19. De 18/03 a 18/07/2020

A partir da figura 5 é possível compreender que no início da pandemia a maior concentração se restringiu a algumas das cidades de maior centralidade do estado, bem como àquelas com maiores articulações externas, com destaque ao arranjo populacional de Belém, num primeiro nível, e Santarém e Parauapebas, num segundo. No mês de março, quando do primeiro registro, apenas nove dos 144 municípios apresentaram notificações do coronavírus, sobressaindo-se entre eles, a capital Belém, Ananindeua, Castanhal e Marabá.

No segundo quadrante, que começa em abril de 2020, torna-se perceptível a proliferação do vírus ao longo de diversas extensões do estado, não se limitando a algumas áreas em particular. Processo esse que se intensifica a partir de junho e sobretudo em meados de julho, quando alcança especialmente os interiores. Assim, no último intervalo, nota-se que todos os territórios municipais do Pará apresentaram ao menos um caso.

Complementar a isso, ao se avaliar a hierarquia urbana e, mais especificamente, ao relacioná-la às semanas epidemiológicas5 5 As semanas epidemiológicas tratam-se da padronização internacional para o estudo de dados referentes a problemáticas relacionadas à saúde, contadas de domingo a sábado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020b). , tem-se um olhar mais apurado sobre a forma como a COVID-19 se alastrou no Pará. Para tal, considerou-se o interstício de quatro períodos (18 de março a 18 de julho), o equivalente a dezoito semanas epidemiológicas (12 a 29), alcançando-se a disposição dos casos acumulados conforme a tabela 2.

Tabela 2
Estado do Pará. Hierarquia urbana e a evolução das notificações de coronavírus. De 18/03 a 18/07/2020

Observa-se na tabela 2, que, durante a primeira semana, os registros limitaram-se a metrópole paraense, vislumbrando-se apenas a partir do segundo extrato o movimento reduzido em direção a outros níveis, todavia, ainda se restringindo às esferas superiores da rede urbana. Assim, nota-se que nos períodos iniciais, os casos de coronavírus concentram-se na metrópole, para, em seguida, alcançar as capitais regionais e centros sub-regionais.

Apenas posteriormente, ocorreu o crescimento do número de casos nos centros locais, especialmente a contar da semana 17, quando seu montante superou o quantitativo de 200 vítimas do vírus e, sobretudo, a partir da semana 20, quando seus números passam a crescer aceleradamente em todos os estratos da rede urbana.

A semana 23 consiste no momento em que as contagens dos centros locais ultrapassam, inclusive, os registros da metrópole, que até então se posicionava como núcleo mais atingido. Assim, em relação aos casos acumulados, o conjunto de centros locais seguiram na posição de esfera da hierarquia urbana mais impactada. O que traz consigo novos dilemas, pois:

O avanço em direção às cidades menores é complexo em virtude da menor disponibilidade e capacidade dos serviços de saúde, o que implicará na busca pela atenção nos centros de maior nível hierárquico da rede urbana do país, o que tende a ampliar a pressão sobre os recursos de saúde (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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, p.7).

Neste momento de disseminação da pandemia nos centros locais, as precariedades e as desigualdades manifestas nos serviços de saúde no Estado do Pará passaram a potencializar o drama vivenciado pela população, já que as condições de atendimento das pequenas cidades são extremamente reduzidas, implicando em deslocamentos às cidades mais estruturadas, aquelas de patamares superiores na hierarquia urbana, o que gera maior pressão em seus sistemas, que também não estão livres da precariedade.

Desse modo, comumente, espaços pertencentes às hierarquias superiores que expressam insuficiências em suas condições, alcançam níveis de precariedade ainda mais alarmantes, visto que eventos como a pandemia reforçam as exigências pelo cumprimento de seus papéis regionais, isto é, de atendimento às demandas surgidas de cidades menores inseridas em sua região de influência.

Por um lado, a disseminação de doença ocorre das metrópoles e capitais regionais em direção aos centros de zona e centros locais. Por outro, a busca por atenção à saúde ocorrerá no sentido contrário, com os serviços mais complexos disponíveis nos centros de nível hierárquico mais alto, voltando-se a atender os casos clínicos mais problemáticos, que exigem serviços de maior complexidade, como as UTIs (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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, p.8).

Quando se consideram os casos de COVID-19 de forma individualizada, por municípios, mas tendo em conta seu estrato na rede urbana, percebe-se a pressão estabelecida sobre os serviços de saúde das cidades de patamares superiores na rede, já que, além do atendimento em nível regional, esses centros se destacam no número de casos (figura 6).

Figura 6
Estado do Pará. Disseminação dos casos de covid-19. De 18/03 a 18/07/2020

A figura 6 contribui à compreensão da espacialização da patologia nas cidades paraenses, levando em conta novamente a hierarquia urbana, além da infraestrutura dos transportes, como rodovias, portos e aeroportos. Assim, realizou-se o mapeamento de casos acumulados, representados através de diagramas, onde a dimensão de cada um deles é proporcional à somatória de ocorrências.

Nesse contexto, evidencia-se a influência desempenhada pelo Arranjo Populacional de Belém, importante para compreender a disseminação da pandemia, visto sua capilaridade associada à sua centralidade. Em razão disso, como visto, durante as primeiras semanas, as notificações se restringiram a essa extensão territorial, o que posteriormente facilitou o espalhamento às demais áreas do estado, no que pesa a forte articulação da metrópole de Belém com os diversos pontos que compõem o território paraense.

Além das articulações a partir da metrópole, ressaltam-se as centralidades exercidas pelas capitais regionais C de Marabá, Santarém e Castanhal, responsáveis por parte expressiva das dinâmicas de suas áreas de influência. Nesse ponto, percebe-se também o movimento de casos oriundos dessas zonas centrais em direção aos polos de menor influência.

Dentre os padrões identificados, nota-se que as ocorrências de COVID-19 se concentraram ao longo das principais rodovias que interligam os municípios paraenses, destacando-se a BR-316, a PA-010 e a PA-320, que efetivam a interligação entre Belém e faixas próximas à metrópole. Também vale frisar a BR-230, a BR-163 e BR-155, importantes eixos, inclusive com o alcance para além dos limites do Pará.

De maneira semelhante, destaca-se o papel desempenhado pelos portos. Nesse sentido, por se tratar de uma das unidades federativas com maior contingente hidrográfico, diversas de suas áreas dependem efetivamente de tais meios de locomoção, o que também baseia a associação de algumas cidades a estados vizinhos, à exemplo de Afuá, Almeirim, Oriximiná e Monte Alegre, que estabelecem ligações fortes com Amazonas e Amapá.

Atrelado a esses fatores, pesa ainda as consequências relacionadas aos inúmeros voos realizados nas escalas internacionais e nacionais, além do fluxo aéreo entre os municípios paraenses. Os primeiros casos de COVID-19 confirmados no Pará, como visto, foram relativos a vítimas com histórico de viagens recentes a outras metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, ou mesmo ao exterior.

Enfatiza-se que entre as 10 cidades com mais casos registrados no Pará, a maioria pertence aos níveis mais altos da hierarquia urbana. Em primeiro lugar, o arranjo populacional de Belém, o centro sub-regional A de Parauapebas, a capital regional C de Marabá, o Centro Local de Cametá, a capital regional C de Santarém, o centro sub-regional B de Itaituba, o centro sub-regional A de Altamira, os centros sub-regionais B de Barcarena e Abaetetuba, além do centro local de Canaã dos Carajás, cujas articulações com outros estados brasileiros são relevantes devido aos grandes empreendimentos de exploração mineral em seu território.

Além disso, entre as 20 cidades brasileiras com mais casos de covid-19, no período estudado, Belém esteve na oitava posição, com 23.276 casos, e Parauapebas em décimo sétimo, com 13.225 ocorrências. Bem como, em relação às 20 cidades brasileiras com mais óbitos por COVID-19, Belém se posicionou em quarto, com 2.029 mortes (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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).

De forma associada, outro panorama pode ser observado quando se considera o número de casos de cada município na proporção de cem mil habitantes. A partir desse critério, busca-se equilibrar todas as áreas através de uma mesma base de contingente populacional, o que ao menos teoricamente estabelece uma igualdade no estudo dos espaços que compõem o estado (figura 7).

Figura 7
Estado do Pará. Casos de covid-19 a cada 100 mil habitantes. De 18/03 a 18/07/2020

Ao interpretar os casos de COVID-19 no Estado do Pará da forma apresentada na figura 7, verifica-se que o principal núcleo quantitativo relacionado às notificações não mais condiz com a metrópole, que dá lugar a novos polos, ou seja, nota-se que outros níveis hierárquicos passam a representar os espaços mais atingidos, especialmente os centros locais como Jacareacanga, Canaã dos Carajás, Curionópolis e Ourilândia do Norte, além de Parauapebas, enquanto centro sub-regional A. Entre as vinte cidades brasileiras com mais casos confirmados, Jacareacanga representou a primeira posição com a proporção de 13.982 a cada 100 mil habitantes, além de Canaã dos Carajás se situar em décimo sexto, ao passo que Belém, no mesmo intervalo, representou a quarta cidade com mais óbitos, aproximadamente 135,92 (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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).

5. O “PREÇO” DO PRECÁRIO E DO DESIGUAL E AS LIÇÕES DEIXADAS (CONSIDERAÇÕES FINAIS)

A pandemia de COVID-19, na data de finalização desse artigo, 11 de abril de 2021, alcançou a marca de 13.482.023 casos confirmados no Brasil, com 353.137 óbitos. Só no Pará, o número de infectados chegou a 438.251, com 11.251 mortos (MS/DATASUS, 2021MS - Ministério da saúde / DATASUS. Painel Coronavírus. 2021. Disponível em: Disponível em: https://covid.saude.gov.br/ . Acesso em: 11 abril 2021.
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), mantendo o número de novos casos e óbitos diários ainda muito elevados, o que supõe a configuração de uma tragédia com números bem mais expressivos que os já registrados.

Um drama social desse porte gera implicações sobre as mais diversas esferas da vida social e demonstra aspectos da realidade normalmente pouco valorizados. Um deles diz respeito à importância da ciência em suas distintas áreas. Nesse contexto, o campo da saúde, tanto na ação direta contra a pandemia quanto na pesquisa relativa ao entendimento do comportamento e das implicações do vírus, ao desenvolvimento de tratamentos e à busca de desenvolvimento de vacinas, possui uma acentuada e explícita indispensabilidade à sociedade. Ressalta-se que, no caso brasileiro, isso se refere majoritariamente aos serviços públicos, tanto hospitalares quanto às universidades.

Porém, é conveniente realçar, também, a relevância de outras áreas do conhecimento, como a que subsidia esse texto, a geografia, cuja importância se manifesta, entre outros fatores, ao oportunizar a compreensão dos mecanismos de disseminação da patologia por meio da rede urbana, bem como das implicações diferenciadas da doença de acordo com a variabilidade das condições socioespaciais, trazendo à tona aspectos como a precariedade e a desigualdade em escala regional e no contexto do espaço urbano.

Tratando especificamente dos resultados aqui apresentados, ao demonstrarem a precariedade dos serviços de saúde no Estado do Pará, trazem à tona uma contradição com os discursos que enfatizam a robustez do Sistema Único de Saúde - SUS brasileiro, da mesma forma como sua alardeada capilaridade. Não que ele seja desprovido dessas qualidades (robustez e capilaridade), especialmente se comparado à realidade de outros países com sistemas de saúde basicamente privados, todavia, são escassos os motivos de satisfação diante das evidentes precariedades e desigualdades que o assinalam.

O exame dos serviços de saúde do Estado do Pará mostrou que a sua disposição obedece à lógica da rede urbana, fazendo com que as cidades de maior centralidade também disponham de mais recursos relativos à saúde, em contraposição aos centros locais, com serviços extremamente escassos, salvo raras exceções. Situação agravada pelas frequentes dificuldades de deslocamento características de boa parte do espaço amazônico, seja pela distância ou pela ineficiência das vias de transporte ou mesmo pelos custos. Além disso, mesmo os centros principais da rede urbana não estão a salvo dos serviços precários, muito pelo contrário, suas populações convivem dolorosamente com eles.

Essa situação correntemente difícil alcançou um novo patamar de penúria com a pandemia de COVID-19, que primeiramente pressionou os já precários sistemas de saúde das cidades de maior centralidade, uma vez que a difusão da patologia tem obedecido à lógica hierárquica da rede urbana, para, em seguida, atingir os centros locais, quase desprovidos de recursos no campo da saúde, o que, além de instalar situações extremamente dramáticas nessas localidades, voltou a pressionar as cidades de estratos superiores da rede urbana, por meio dos deslocamentos em busca de atendimento.

No caso do Estado do Pará, a pandemia evidenciou e potencializou realidades já existentes de precariedade e de desigualdade, manifestas em diversos campos da vida social, e não apenas na saúde. Também tem deixado claro que a melhor resposta a esse tipo de drama requer a estruturação dos serviços públicos, principalmente de saúde, mas também da ciência, de forma ampla, e da educação, outro fator de agravamento da difusão da patologia, visto a insistência de boa parte da população em desobedecer às recomendações dos especialistas.

REFERÊNCIAS

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  • CNN Brasil. Coronavírus: Como é viver na Itália, epicentro da pandemia na Europa. Internacional. 14 de março 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/03/14/coronavirus-como-e-viver-na-italia-epicentro-da-pandemia-na-europa . Acesso em: 18 abril 2020.
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  • CORRÊA, Roberto Lobato. A rede urbana. São Paulo: Ática, 1989.
  • CORRÊA, Roberto Lobato. Estudos sobre a rede urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
  • ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • FIOCRUZ. Monitora COVID-19. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/ . Acesso em: Acesso em: 20 junho 2020.
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    » https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tem-peso-na-difusao-da-pandemia
  • 1
    Expressão utilizada pelo estudo Regiões de Influência das Cidades 2018 (IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. ) para se referir aos aglomerados urbanos, sejam de caráter metropolitano ou relativos a patamares inferiores da hierarquia urbana. No caso do arranjo populacional de Belém, a composição dá-se pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba e Benevides.
  • 2
    A Itália representou um dos epicentros da COVID-19 no continente europeu (CNN,2020CNN Brasil. Coronavírus: Como é viver na Itália, epicentro da pandemia na Europa. Internacional. 14 de março 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/03/14/coronavirus-como-e-viver-na-italia-epicentro-da-pandemia-na-europa . Acesso em: 18 abril 2020.
    https://www.cnnbrasil.com.br/internacion...
    ).
  • 3
    A Região Metropolitana de Belém é composta pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara do Pará, Santa Izabel do Pará e Castanhal.
  • 4
    A opção por esse recorte temporal, deu-se em razão de se tratar de um espaço que abrange os múltiplos comportamentos da COVID-19, como o início da pandemia no estado, os ápices de disseminação na primeira onda e o processo de proliferação para além da metrópole. Bem como, por representar um tempo hábil para o desenvolvimento da presenta pesquisa.
  • 5
    As semanas epidemiológicas tratam-se da padronização internacional para o estudo de dados referentes a problemáticas relacionadas à saúde, contadas de domingo a sábado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020bMS - Ministério da saúde. Calendário de notificação para o ano de 2020. 2020b. Disponível em: Disponível em: http://portalsinan.saude.gov.br/images/documentos/Calendario/2020.pdf . Acesso em: 15 março 2020.
    http://portalsinan.saude.gov.br/images/d...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
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