Acessibilidade / Reportar erro

A percepção das ocupações de pessoas sob cuidados paliativos oncológicos diante das dimensões de ser e fazer de Wilcock

Resumo

Introdução

Ann Allart Wilcock, tendo como foco a ciência da ocupação, idealizou as dimensões ser, fazer, tornar-se e pertencer, relacionando saúde, bem-estar e ocupação. Em sua jornada acadêmica e profissional, buscou apresentar a interdependência das dimensões citadas com a pessoa e a comunidade. Quando uma pessoa sofre uma ruptura parcial ou total em suas ocupações, pode vir a sofrer repercussões biopsicossociais, espirituais e ocupacionais. O câncer ainda é visto como um diagnóstico relativo à morte, contudo, diante da identificação precoce, tratamentos e avanços em pesquisas, é possível promover bem-estar e qualidade de vida. Dentre os tratamentos, os cuidados paliativos possuem como um dos princípios garantir a integralidade nos cuidados, controle e manejo de sintomas, acompanhamento multiprofissional à pessoa, à família, aos cuidadores e à comunidade, do diagnóstico até o processo de luto pós-óbito.

Objetivo

Compreender as percepções das ocupações de pessoas em cuidados paliativos oncológicos, sob a perspectiva de Wilcock.

Método

Pesquisa qualitativa, com procedimento de pesquisa–ação, que realizou sete entrevistas semiestruturadas, no período de julho a agosto de 2022, em clínicas de cuidados paliativos.

Resultados

Os achados se apresentaram nas categorias de ser e fazer, expondo as percepções e relações ocupacionais da pessoa consigo e em seu entorno.

Conclusão

As relações do ser e fazer nos cotidianos e como o terapeuta ocupacional podem vir a identificar as ocupações prejudicadas por meio das dimensões e dar suporte à pessoa internada. Busca-se estimular novos saberes nas comunidades acadêmicas e profissionais com base no objeto de estudo em ocupação e nos contextos dos terapeutas ocupacionais no cenário nacional, bem como garantir uma prática baseada em evidências.

Palavras-chave:
Câncer; Cuidados Paliativos; Atividades Cotidianas

Abstract

Introduction

Ann Allart Wilcock, focusing on the occupational science, idealized the dimensions of being, doing, becoming and belonging, relating health, well-being, and occupation. In her academic and professional journey, she sought to present the interdependence of the dimensions with the person and community. When a person suffers a partial or total break in their occupations, they may suffer biopsychosocial, spiritual and occupational repercussions. Cancer is still seen as a diagnosis related to death, however, given early identification, treatments, and advances in research, it is possible to promote well-being and quality of life. Among the treatments, palliative care has as one of the principles to guarantee completeness in care, control and management of symptoms, multidisciplinary monitoring of the person, their family, caregivers, and community, from diagnosis to the post-death mourning process.

Objective

To understand the perceptions of occupations of people in oncological palliative care, from Wilcock's perspective.

Method

Qualitative research, with an action-research procedure. Seven semi-structured interviews were carried out from July to August 2022, in palliative care clinics.

Results

The findings were presented in the categories of being and doing, presenting the perceptions and occupational relationships of the person with themselves and their surroundings.

Conclusion

The relationships between being and doing in everyday life and how occupational therapists can identify impaired occupations through the dimensions and provide support to the hospitalized person. The aim is to stimulate new knowledge in academic and professional communities based on the object of study in occupation and the contexts of occupational therapists in the national scenario, as well as ensuring evidence-based practice.

Keywords:
Cancer; Palliative Care; Activities of Daily Living

Introdução

A relação do ser humano com as ocupações é inata. Esta relação está associada com a saúde e o bem-estar, tendo a ocupação um potencial terapêutico (Wilcock, 2007Wilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8.).

Para Wilcock (1993)Wilcock, A. A. (1993). Theory of the human need for occupation. Journal of Occupational Science, 1(1), 17-24., as ocupações possuem funções como: desenvolver as necessidades de sustentação imediatas do corpo, autocuidado, proteção e segurança; desenvolver habilidades, estruturas sociais e tecnologias se relacionam com o meio ambiente, entre outras funções.

Ao pensar em ciência da ocupação, sobretudo sob o olhar de Wilcock (1998, p.10, tradução nossa), tem-se que “A ocupação são todas as coisas que as pessoas fazem, a relação do que elas fazem com quem elas são como humanas”. Assim, é preciso refletir sobre o ser humano ser a soma de suas relações ocupacionais consigo e à sua volta, e como estas relações são importantes e como são afetadas ou não ao longo do adoecimento. Wilcock & Hocking nos apresentam quatro dimensões, o ser, o fazer, o tornar-se e o pertencer (Wilcock & Hocking, 2015Wilcock, A. A., & Hocking, C. (2015). An occupational perspective of health. Thorofare: Slack.). Dimensões estas que apresentam a independência, a autonomia e a identidade da pessoa, e que podem sofrer impactos e apresentar interdependência entre si.

Ann Allart Wilcock, cidadã australiana, terapeuta ocupacional, cientista ocupacional e professora, foi uma das principais idealizadoras das dimensões ser, fazer, tornar-se e pertencer. Segundo Hocking (2020), aHocking, C. (2020). A tribute to Dr Ann Wilcock. Journal of Occupational Science, 27(1), 1-4. Ciência Ocupacional foi o maior foco acadêmico e profissional, tornando o seu sentido implícito e imediato, apresentando o modo das relações dos aspectos da vida humana e impacto no planeta, mostrando a perspectiva ocupacional diante da evolução humana, sociedade, política, economia e os esforços combinados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das Nações Unidas para melhorar o estado da saúde das pessoas e bem-estar.

Portanto, pesquisas apresentaram a relação da ocupação com a saúde e bem-estar, sendo associadas as ocupações que fazem e como influenciam pessoas e comunidades (Wilcock, 2007Wilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8.). Nesse sentido, a terapeuta ocupacional Ann Wilcock, em parceria com Clare Hocking, apresentam quatro dimensões a serem mais bem analisadas na Ciência Ocupacional, em suas publicações intituladas “Uma Perspectiva Ocupacional em Saúde”, que possui três edições, apenas na língua inglesa. A autora traz consigo as dimensões ser, fazer, tornar-se e pertencer, sendo a saúde e problemas de saúde, doença e suas desordens abordadas a partir de um ponto de vista histórico e ligações com a ocupação (Wilcock & Hocking, 2015Wilcock, A. A., & Hocking, C. (2015). An occupational perspective of health. Thorofare: Slack.).

Para melhor compreensão, de acordo com Hitch et al. (2014, pHitch, D., Pépin, G., & Stagnitti, K. (2014). In the footsteps of Wilcock, Part one: the evolution of doing, being, becoming, and belonging. Occupational Therapy in Health Care, 28(3), 231-246.. 238-239), as dimensões podem ser definidas como:

Fazer foi definido como o meio pelo qual as pessoas se envolvem em ocupações, e inclui as habilidades necessárias para sua realização e desenvolvimento ao longo do tempo [...].

Ser como o sentido que possuímos como profissionais e humanos, incluindo os significados que investimos na vida, nas capacidades e habilidades físicas, mentais e sociais únicas. A ocupação pode fornecer uma direção e um foco para o Ser, que também continua existindo durante a reflexão e a autodescoberta, de forma independente da ocupação. Ser é expresso por meio da consciência, da criatividade e dos papéis que as pessoas assumem na vida. Em um contexto ideal, os indivíduos seriam capazes de exercer autogestão e escolha em sua expressão de Ser, mas nem sempre isso é possível ou mesmo desejável [...].

Tornar-se é o contínuo processo de crescimento, desenvolvimento e mudança que afeta uma pessoa ao longo de sua vida. É dirigido por metas e aspirações que surgem por escolha ou necessidade do indivíduo ou de grupos. Nessa direção, mudanças e revisões regulares dos objetivos e anseios auxiliam a manter o ímpeto de Tornar-se, assim como experimentações de desafios e novas situações [...].

Pertencer na obra de Wilcock como um senso de conexão com outras pessoas, lugares, comunidades, culturas e tempos. É o contexto no qual ocupações ocorrem, nos quais a pessoa pode experimentar várias formas de pertença ao mesmo tempo. Para tal, relacionamentos são essenciais – seja com pessoas, lugares, grupos ou outros fatores – e o sentimento de reciprocidade e compartilhamento está presente, seja ele positivo ou negativo.

Segundo Carrapato et al. (2017)Carrapato, P., Correia, P., & Garcia, B. (2017). Determinante da saúde no Brasil: a procura da equidade na saúde. Saúde e Sociedade, 26(3), 676-689., as condições de saúde para o adoecimento podem ser concebidas da relação do ser humano ao seu redor, logo a interação dos fatores biológicos com o meio em que vivem, configuram-se, então, em um processo de relação multifatorial. Sendo assim, uma relação agregada a partir dos determinantes biológicos, psicológicos, sociais, espirituais e, também, ocupacionais. Dessa forma, repercute-se nos aspectos físico-funcionais das atividades cotidianas, de maneira gradativa ou abrupta, podendo ocorrer emergências oncológicas ou maus súbitos.

O câncer pode ser compreendido como um processo de alterações genéticas com crescimento de sucessivas populações e replicações celulares, caracterizado pela proliferação independente e invasão em tecidos, órgãos, resultando em alterações estruturais e/ou funcionais das células que compõem o organismo (Sequeira et al., 2020Sequeira, S. D. H., Castellanos, N. A. R., & Vargas, J. C. W. (2020). Fisiopatología del cáncer (Monografia). Facultad de Ciencias Socioeconómicas y Empresariales Tecnología Deportiva, Bucaramanga.).

Encontra-se no grupo de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), um grupo de patologias de múltiplas causas e fatores de risco, extensos períodos de latência e curso prolongado, com origem não infecciosa, podendo ocasionar incapacidades funcionais à pessoa acometida (Brasil, 2011Brasil. (2011). Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT) no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde.).

De acordo com o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (2018), oInstituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva – INCA. (2018). A mulher e o câncer de mama no Brasil. Rio de Janeiro: INCA. tratamento terapêutico oncológico é proposto conforme a avaliação da extensão do comprometimento do organismo, intitulado estadiamento. No estudo de Kaliks et al. (2017)Kaliks, R. A., Matos, T. F., Silva, V. A., & Barros, L. H. C. (2017). Diferenças no tratamento sistêmico do câncer no Brasil: meu SUS é diferente do teu SUS. Brazilian of Journal Oncology, 13, 1-12., após o diagnóstico de câncer, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece os tratamentos neoadjuvante ou adjuvante e metastático/paliativo, direcionados à quimioterapia, à radioterapia e ao procedimento cirúrgico. Entre as formas de tratamento, encontram-se os cuidados paliativos, os quais devem ser inseridos no universo da pessoa o mais precoce possível.

O uso da abordagem em cuidados paliativos precoce, para Victor (2021)Victor, G. H. G. (2021). Cuidado paliativo precoce. In R. K. Castilho, V. C. S. Silva & C. S. Pinto (Eds.), Manual de cuidados paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (pp. 387-391). Rio de Janeiro: Atheneu., ocorre devido às possibilidades de a equipe promover o manejo e controle de sintomas, auxiliar na comunicação do prognóstico e na elaboração de plano de cuidados, bem como o uso racional dos recursos e cuidados de fim de vida. Segundo Ryan et al. (World Health Organization, 2020World Health Organization – WHO. (2020). Palliative care. Recuperado em 2 de fevereiro de 2023, de https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
), os cuidados paliativos possuem uma visão abrangente, considerando cuidados ativos de pessoas, sem distinção de idade, por meio de uma equipe multiprofissional que avalia e busca melhorar a qualidade dos aspectos físicos, psicossociais e espirituais de pessoas com sofrimento significativo à saúde devido a doenças graves e, em especial, próximas ao final de vida. Logo, como contribuir para um direcionamento e protagonismo dessas pessoas e suas ocupações?

Com base nas leituras acerca da temática e de vivências e experiências vividas no programa de residência multiprofissional em saúde nas clínicas direcionadas à assistência e aos cuidados paliativos, foi possível observar questionamentos e queixas sobre perdas ocupacionais, principalmente papéis ocupacionais de trabalho e no lar, por meio dos relatos de histórias de vida pessoal e desdobramentos após o diagnóstico de tratamento paliativo. Surgiram indagações por meio de validação e reflexão sobre ser profissional da saúde, ser terapeuta ocupacional e ter ocupações além do contexto hospitalar.

Diante disso, cabe refletirmos sobre como pessoas internadas em cuidados paliativos oncológicos percebem suas ocupações diante do adoecimento e possibilidade iminente de morte?

Assim, esta pesquisa tem como objetivo geral compreender a percepção das ocupações de pessoas em cuidados paliativos oncológicos sob a luz de Wilcock, destacando as dimensões ser e fazer.

Metodologia

Tipo de pesquisa

Trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa. Utilizou-se a entrevista semiestruturada e o diário de pesquisa como instrumentos de coleta de pesquisa, tendo sido feita a análise de Bardin e a avaliação bioestatística descritiva da frequência simples dos dados. Para Yin (2016), aYin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso. abordagem qualitativa permite a produção de estudos com maior detalhe sobre uma ampla variedade de assuntos, em termos simples e cotidianos.

Yin (2016)Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso. também apresenta que a escolha pela pesquisa qualitativa permite estudar o significado da vida de pessoas nas condições reais, além de representar e apresentar opiniões e perspectivas do público-alvo, abrangendo as condições verossímeis que vivem e, ainda assim, contribuir com descobertas e explicação de fenômenos sociais humanos a partir da busca de uma ampla fonte de evidência.

Local de pesquisa

A pesquisa foi realizada nas Clínicas de Cuidados Paliativos Oncológicos 1 e 2 (CCPO 1 e CCPO2), situadas em um hospital de referência no tratamento e acompanhamento de pessoas com câncer na Região Norte do Brasil.

Participantes da pesquisa

Participaram da pesquisa 7 pessoas internadas no hospital referência em tratamento em cuidados paliativos oncológicos nas Clínicas CCPO 1 e 2, conforme caracterização dos participantes da pesquisa (Tabela 1). Segundo Gil (2010)Gil, A. C. (2010). Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas., na pesquisa qualitativa não há necessidade de determinação numérica para a amostragem, nem mesmo um número alto de entrevistados. A amostra pretendida foi não probabilística, portanto, esta pesquisa se baseou na média de quantidade de leitos e ocupação física destes leitos nas clínicas que atendem pessoas em cuidados paliativos oncológicos, respeitando a performance e quadro clínico de cada pessoa internada.

Tabela 1
Caracterização dos participantes da pesquisa.

Como critérios de inclusão, tivemos: pessoas com faixa etária a partir de 18 anos, internadas, com conhecimento do motivo de acompanhamento da equipe e tratamento de cuidados paliativos e acompanhadas pelas equipes clínicas na CCPO1 e CCPO2, e que aceitaram assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido da pesquisa (TCLE) e o Termo de Autorização para Utilização de Relatos Escritos, Imagens e Sons de Voz para fins de Pesquisa (TAUI).

Como critérios de exclusão, tivemos: idade inferior a 18 anos, pessoas internadas, mas que não estão sendo acompanhadas pela equipe de cuidados paliativos, ou com alterações nas habilidades percepto-cognitivas.

Procedimentos de coleta e análise de dados

A pesquisa em questão seguiu os preceitos da Declaração de Helsinque e do Código de Nuremberg, respeitando as resoluções relativas às Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, como a Resolução CNS 466/12 e 580/18, do Conselho Nacional de Saúde. O trabalho foi também aprovado pela Plataforma Brasil com parecer n. 5.393.013 e CAAE de n. 57576322.4.0000.5550.

Os dados da pesquisa foram obtidos após a assinatura do TCLE e TAUI, deixando uma cópia com cada participante. Foram realizados registros dos dados sociodemográficos dos participantes como codificados na Tabela 1. Concomitantemente, foram realizadas as entrevistas semiestruturadas e registro no diário de campo. A fim de garantir o sigilo dos participantes, estes foram identificados por nome de árvores, conforme sua representação simbólica ao longo do acompanhamento durante a internação.

O tempo das entrevistas variou de 16 minutos a 30 minutos com cinco entrevistados em um único encontro, porém, dois usuários de saúde internados optaram por dois encontros, por meio do seguinte roteiro de perguntas: 1) Conte-me sobre você. Quem é você? 2) Quais ocupações são importantes para você? 3) Como você está realizando suas ocupações? 4) Como você vê suas ocupações atualmente? 5) Quais ocupações foram acrescentadas ou perdidas ao longo do adoecimento? 6) Como você percebe a relação das suas ocupações consigo mesma(o)? e 7) Que significado elas têm para você?

Cabe destacar a dificuldade na compreensão do termo “ocupação” pelos entrevistados, sendo reformuladas as perguntas, substituindo o termo por “atividades”, “atividades diárias”, “atividades do dia a dia”.

O uso da entrevista semiestruturada pelo pesquisador contribui para este se ater a seus objetivos de entender as bases para a ocorrência das situações, quando busca desenvolver a compreensão das circunstâncias que envolve o objeto de pesquisa (Easterby-Smith et al., 2007).

A pesquisa ocorreu no período de 4 meses em sua totalidade, sendo as entrevistas realizadas em julho a agosto de 2022, no turno matutino e vespertino, de acordo com o quadro clínico e escolha dos participantes. As entrevistas semiestruturas foram registradas por aplicativo de gravação de voz em aparelho smartphone e, posteriormente, transcritas na íntegra e analisadas por meio da técnica de análise de conteúdo de Bardin.

A análise do conteúdo de Bardin é definida como um método empírico, conjunto de instrumentos de cunho metodológico que busca o conhecimento daquilo que está por trás do significado das palavras, foca-se na mensagem, ou seja, na comunicação que ocorre entre o pesquisador e o participante, sendo seu objetivo organizar a mensagem para confirmar os indicadores que permitam inferir sobre realidades que não sejam da mensagem (Bardin, 2016Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70.).

A organização dos dados da pesquisa, após a leitura dos prontuários e transcrição do conteúdo obtido durante as entrevistas, deu-se por meio da elaboração do perfil dos participantes, sendo utilizada a criação de uma tabela para a caracterização dos entrevistados. Para organização do trabalho, criação de tabela e imagens foram utilizados os softwares Microsoft Office Excel®, Microsoft Office PowerPoint® e Microsoft Office Word®, versão Microsoft 365®, sistema operacional Windows 11 home®.

A escolha por esta análise de conteúdo é devido à organização do conteúdo, pois Bardin (2016, apud Santos, 2012Santos, F. M. (2012). Análise de conteúdo: a visão de Laurence Bardin. Revista Eletrônica de Educação, 6(1), 383-387.) passa pela exaustividade do assunto, representatividade das amostras, homogeneidade dos dados ao tema, pertinência aos objetivos da pesquisa e exclusividade das categorias elencadas.

Portanto, a análise dos dados ocorreu após leitura detalhada e repetida das entrevistas transcritas, baseada nas dimensões de ser, fazer, tornar-se e pertencer, as quais foram as categorias centrais.

Resultados

A Tabela 1 apresenta a caracterização dos participantes da pesquisa:

Pioneiros no estudo e pesquisadores da CO apresentam sua relação direta entre ocupações, saúde, bem-estar e qualidade de vida. Convidando-nos a refletir sobre como as nossas ocupações se relacionam aos processos de saúde e doença da pessoa. Diante disso, observamos que Wilcock nos apresenta uma saúde que vai além de uma visão limitada de doença, mas também do ser ocupacional que somos.

Portanto, ao falar sobre as dimensões ser, fazer, tornar-se e pertencer, estas são apresentadas à literatura como indicativos importantes para uma questão de perspectiva ocupacional em saúde. Portanto, neste artigo, destacamos as dimensões ser e fazer descritas como categorias a seguir, sendo possível observar as perspectivas, as interações e as percepções ocupacionais dos entrevistados, bem como o desequilíbrio ocupacional gerado pela dificuldade de manter o cotidiano conhecido antes da doença.

Ser

Nesta categoria, a dimensão do ser, podemos ver expressa a essência do eu-pessoa, da realização por meio de suas capacidades e envolvimento em suas ocupações. Tais capacidades podem ser lidas nas falas de Ipê amarelo e Jacarandá, os quais apresentavam sentimentos positivos em ser suas profissões.

[...] Eu trabalhava nas férias, só eu, me divertia na praia. Vendia pipa, vendia molho de pimenta, vendia bastante, olha o dia todo lá no canto, [...], Meu, vendia de tudo mesmo (Ipê Amarelo).

Eu era pedagoga [...]. eu gostava muito de trabalhar na área com crianças pequenas, entendeu? Eu gostava de ver a maturidade delas, o comportamento, de se divertirem (Jacarandá).

Apesar do emprego verbal usado no passado (trabalhava, era) nos trechos citados, o ser diante do eu trabalhador dos entrevistados ocorreu por meio dos papéis ocupacionais assumidos de forma consciente e criativa. Os trechos a seguir remetem o ser de como estas pessoas se reconhecem, denotam quem são, como se reconhecem e como se apresentam à comunidade.

Eu sou uma mulher otimista. Não muito paciente. Eu gosto muito de brincar, me divertir com as pessoas. Conhecer. Ter uma convivência alegre, [...] no local de trabalho, com a minha família, eu não gosto de misturar as coisas, né? Amizade, amizade, trabalho, trabalho, profissionalismo, profissionalismo, [...], eu sou assim (Jacarandá).

Eu sou mãe, sou agricultora (Cerejeira).

É possível identificar que as ocupações estão relacionadas, e que a dificuldade em realizar uma(algumas) atividade(s) repercute em como o indivíduo reconhece a sua pessoa, o seu ser. Portanto, sentimentos de tristeza e menos-valia se fazem presentes. É o exemplo do relato a seguir:

Não posso dizer essa palavra, mas inútil, não tenho como definir em outras (Ipê Amarelo).

Havendo dificuldade na realização das ocupações, a pessoa pode apresentar interrupções e rupturas em seu cotidiano. Logo, buscamos compreender as alterações no descanso e sono de Figueira.

Pouco sono, [...], descanso muito pouco, porque sinto dores mesmo, depois da quimioterapia aí que piorou mesmo as dores, tem vez que eu não faço nada, meu Deus do céu! (Figueira).

É possível observar a relação das características do ser diante da ligação direta com o fazer. Logo, podemos ser convidados a refletir sobre como nossa essência e existência se dá por meio do que realizamos consigo e com os outros. Nesse sentido, chegamos, então, à segunda categoria de análise.

Fazer

Pode ser compreendido por meio da realização das ocupações significativas, podendo ser saudáveis ou não saudáveis, mas que são realizadas ao longo do desenvolvimento e envolvimento da pessoa em sua comunidade, como apresentado a seguir:

Era uma obrigação todo sábado, [...]. Tinha gente que trabalhava, longe, perto, outros mecânicos, outros motoristas, sabe? Mas aquela obrigação da gente tá lá, cê entendeu? Às vezes, eu trabalhava numa oficina lá de polir móvel, sabe? Essas coisas de móveis, essas coisas. Aí, quer dizer que eu faltava muito serviço. Aí o que que a gente fazia? A gente ia, ia pra bola. Obrigação. Aí voltava depois do jogo, ficava até duas três horas da manhã do outro dia trabalhando ainda pra entregar o serviço que a gente marcava (Ipê amarelo).

O fazer se relaciona com o propósito, sua capacidade de se adaptar às necessidades e circunstâncias para a realização das ocupações, como relatado por Jacarandá de forma lenta:

Eu não tô conseguindo tomar banho só, porque faz muito esforço, [...], eu fico demais cansada... eu preciso de ajuda para tomar banho, mas eu me enxugo, não muito, [...], mas é só para me movimentar mesmo (Jacarandá).

A capacidade de realizar ou não as ocupações, como observado nos relatos dos entrevistados, pode ser determinante de como as pessoas veem e vivenciam a doença em sua vida.

Ah! é, eu tava bem, eu tava saudável, [...]. Eu varria minha casa, ainda tem um quintal, eu limpava o quintal, limpava a frente, ia lá pra lá pra rua, varria até o meio-fio. [...], Eu sempre gostei de fazer as minhas atividades assim. Lavo minha louça, cozinho, gosto de cozinhar. Tudo isso eu faço. Vamos fazer, né? Agora com essa doença não sei (Figueira).

Tá sendo muito, digamos assim, que é muito cruel, sabe? Entendeu? É muito forte, uma coisa muito forte. Aí, a gente vê que até pra baixo, né? Porque por causa disso aí, as vezes não dá vontade de fazer nada, dá vontade de largar tudo, [...], como pode gente isso mexe muito com a mente da gente (Figueira).

O relato destacado anteriormente apresenta uma variável de percepção diante da ausência de envolvimento nas ocupações, trazendo à tona como o câncer pode afetar a pessoa diante do fazer alterado e, consequentemente, o sentimento de tristeza em relação consigo também é aflorado.

Portanto, é possível observar que as conexões estabelecidas entre as categorias ser e fazer apresentadas, assim como a natureza ocupacional do fazer interrompida devido à doença, podem interferir na identidade e no reconhecimento do ser, gerando os mais diversos sentimentos na pessoa.

Discussão

Quando as dimensões do ser, fazer, tornar-se e pertencer surgiram na literatura e para a prática dos profissionais de terapia ocupacional, as dimensões foram apresentadas a fim de facilitar a compreensão do ser humano como ser ocupacional. Para White et al. (2020), aWhite, C., Lentin, P., & Farnworth, L. (2020). ‘I know what I am doing’: A grounded theory investigation into the activities and occupations of adults living with chronic conditions. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 27(1), 56-65. ocupação humana compreende todas as atividades e ações de uma pessoa, e esta ocupação se modela conforme as mudanças na vida e nas condições de saúde da pessoa e em seu entorno.

Em estudos de Valverde (2013), aValverde, M. A. T. (2013). O cotidiano de nossas. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 21(2), 211-214. definição da ocupação apesar de apresenta-se como mutável junto ao ser humano, algumas condições e estruturas poderão ser repetições contínuas de desenvolvimentos, mas que podem ser perder ao longo da evolução conceitual, principalmente ao considerar contextos, entornos, cultura, identidade, agencialidade, significado, proposito ou fim entre o que a cerca.

Nossa identidade e nosso fazer é mais bem observado a partir do lugar onde estamos (Valverde, 2013Valverde, M. A. T. (2013). O cotidiano de nossas. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 21(2), 211-214.). Quando a pessoa se percebe incapacitada de realizar ou manter suas ocupações devido à sua condição de saúde, pode gerar diversas reações biopsicossociais, espirituais e ocupacionais.

Para Hoppes (2005), aHoppes, S. (2005). Meanings and purposes of caring for a family member: an autoethnography. The American Journal of Occupational Therapy, 59(3), 262-272. pessoa pode se sentir desorganizada e com quadros psicoemocionais instáveis. Assim, consequentemente, a saúde aparenta rebaixar gradualmente e paralelamente em decorrência da ausência da possibilidade de realizar ocupações, que podem ser compreendidas como atividades de vida diária (AVDS), atividades instrumentais de vida diária (AIVDS), trabalho, gestão de saúde, participação social, entre outras (American Occupational Therapy Association, 2020American Occupational Therapy Association – AOTA. (2020). Occupational therapy practice framework: domain and process – fourth edition. American Journal of Occupational Therapy, 74(Suppl. 2), 1-87.).

De acordo com World Health Organization (1948), aWorld Health Organization – WHO. (1948). Constitution of World Health Organization. Recuperado em 2 de fevereiro de 2023, de https://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/constitution-en.pdf
https://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/c...
saúde pode ser definida como “um estado completo de bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Nesta frase, e de acordo com os estudos de Wilcock (2007), oWilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8. aspecto ocupacional possui relevância e deveria estar incluído em saúde, visto que a ocupação e a saúde possuem uma relação forte e antiga com a identidade e o engajamento do ser humano, logo, sendo uma relação complementar e de afetos.

Com base nos resultados apresentados, podemos observar que a interrupção no fazer da pessoa interferiu de maneira significativa no ser da pessoa. Isso é retratado por Wilcock (1998)Wilcock, A. A. (1998). Reflections on doing, being and becoming. Canadian Journal of Occupational Therapy, 65(5), 248-256. ao apresentar a dimensão ser como a essência das capacidades e habilidades pessoais que promove motivação e envolvimento nas ocupações, podendo ser inatos ou não, e como este envolvimento proporciona sentimentos ao ser realizado. Entretanto, também possui viés de idealismo e existencialismo do ser. Wilcock (1998, p. 5, tradução nossa) destaca: “Ser é sobre ser fiel a nós mesmos, à nossa natureza, à nossa essência e ao que é distintivo sobre nós trazermos para os outros como parte de nossos relacionamentos e para o que fazemos”.

Segundo Wilcock (1998, 2007), o termo ser também pode ser compreendido como as pessoas se sentem com o que fazem. Njelesani et al. (2014)Njelesani, J., Tang, A., Jonsson, H., & Polatajko, H. (2014). Articulating an occupational perspective. Journal of Occupational Science, 21(2), 226-235. destacam a filosofia sugerida e observada de Wilcock acerca da ocupação para o além do fazer, envolvendo o passado, o presente e o sentido antecipado de si das pessoas. Isso acontece devido à realização das ocupações contribuir para um estilo de vida equilibrado diante da plenitude funcional (American Occupational Therapy Association, 2020American Occupational Therapy Association – AOTA. (2020). Occupational therapy practice framework: domain and process – fourth edition. American Journal of Occupational Therapy, 74(Suppl. 2), 1-87.).

A contribuição para a saúde por meio de ocupações específicas pode ser significativa (Hocking et al., 2002Hocking, C., Wright-St Clair, V., & Bunrayong, W. (2002). The meaning of cooking and recipe work for older Thai and New Zealand women. Journal of Occupational Science, 9(3), 117-127.). O envolvimento de pessoas com as ocupações permite e expressa a autoidentidade (White et al., 2020White, C., Lentin, P., & Farnworth, L. (2020). ‘I know what I am doing’: A grounded theory investigation into the activities and occupations of adults living with chronic conditions. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 27(1), 56-65.).

Wilcock (2001)Wilcock, A. A. (2001). Occupation for health: re-activating the regimen sanitatis. Journal of Occupational Science, 8(3), 20-24. considera que a interrupção da realização das necessidades ocupacionais da pessoa poderia estar diretamente ligada à saúde e ao seu bem-estar. Suas palavras buscavam reflexões acerca da natureza ocupacional do ser humano, como exposto a seguir.

As percepções que obtive de um conceito muito amplo de saúde e de necessidades ocupacionais levaram a uma perspectiva de disfunção ocupacional e bem-estar ocupacional que não é limitada por uma visão médica de desordem (Wilcock, 1998, pWilcock, A. A. (1998). Reflections on doing, being and becoming. Canadian Journal of Occupational Therapy, 65(5), 248-256.. 248, tradução nossa).

Portanto, é possível refletir que o ser estaria relacionado diretamente com a segunda dimensão que Wilcock nos apresenta, o fazer, ao lermos a seguinte frase “[…] as pessoas se sentem sobre o que fazem” (Wilcock, 2007, pWilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8.. 113, tradução nossa).

De acordo com Wilcock (2007), oWilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8. fazer está associado a ocupações que são significativas para os seres humanos, que podem ou não ser saudáveis e organizadas, mas que inclui habilidades necessárias para a realização e desenvolvimento ao longo do tempo. Pensando assim, Wilcock (1998, p. 249, tradução nossa) relata que “[…] as pessoas passam a vida quase que constantemente engajadas no ‘fazer’ intencional, mesmo que livre de obrigações ou necessidade, elas ‘fazem’ suas tarefas diárias, incluindo coisas que sentem que devem fazer e outras que desejam”.

O envolvimento na ocupação é um fator tênue entre a doença da pessoa e a experiência de seu adoecimento e as suas consequências para a realização de atividade de vida diária (Hammell, 2004Hammell, K. W. (2004). Dimensions of meaning in the occupations of daily life. Canadian Journal of Occupational Therapy, 71(5), 296-305.). É possível identificar nos relatos na categoria fazer questionamentos acerca das ocupações. Para Maersk et al. (2019)Maersk, J. L., Johannessen, H., & la Cour, K. (2019). Occupation as marker of self: occupation in relation to self among people with advanced cancer. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 26(1), 9-18., os questionamentos sobre como as ocupações irão ser realizadas surgem e interferem em uma rotina independente e autônoma.

Assim, trazemos à tona um dos principais questionamentos de Wilcock (2007)Wilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8. acerca da relação da ocupação e da saúde, sobre a possibilidade de ambas serem a mesma coisa, pois, de acordo com a autora, todas as realizações ocupacionais da pessoa podem ser relacionadas com a saúde ou doença física, mental, espiritual ou social.

Foi possível identificar como as dimensões podem ser encontradas e, mesmo não percebidas, podem ser descritas. Diante disso, pensar nas dimensões trazidas nos estudos de Wilcock, o engajamento da pessoa em ocupações significativas relaciona-se diretamente pelo desempenho do fazer como algo concreto e do relacionamento consigo e seu entorno, às vezes invisível, mas relatado (Carreira de Mello et al., 2020Carreira de Mello, A. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). A construção de sentidos sobre o que é significativo: diálogos com Wilcock e Benetton. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 352-373.).

A natureza ocupacional que podemos observar de Wilcock se apresenta por meio da consonância entre o ser ou fazer em ocupação diante do processo de saúde e doença.

É possível observar que as percepções das pessoas acerca de suas ocupações possuem potencial positivo e negativo, e que este potencial demanda das escolhas e nas ocupações significativas da pessoa. De acordo com Ashworth (2013)Ashworth, E. (2013). Utilizing participation in meaningful occupation as an intervention approach to support the acute model of inpatient palliative care. Palliative & Supportive Care, 12(5), 409-412., as ocupações significativas possuem valor e interesse especial, e é diante desses fatores que a participação e engajamento ocorrem, apesar das limitações.

Ao apresentar os trechos relatados, é possível perceber ocupações significativas que denotam o reconhecimento do eu da pessoa por meio do ser e fazer consigo e com a comunidade. As dimensões em questão apresentam a íntima associação diante da autopercepção das áreas de ocupação para os entrevistados como significativas como trabalho, descanso e sono, gestão em saúde, atividades de vida diária, atividades instrumentais de vida diária e participação social.

De acordo com Reynolds & Prior (2006), aReynolds, F., & Prior, S. (2006). Creative adventures and flow in art-making: a qualitative study of women living with cancer. British Journal of Occupational Therapy, 69(6), 255-262.[REMOVED IF= FIELD] pessoa possui diversos papéis sociais e associações em grupos. Quando uma doença interfere no desenvolvimento desses papéis, a identidade diante dos grupos e da própria autoimagem pode reverberar deslocamento de si e dos demais.

Quem somos no mundo? Somos aqueles baseados no que fazemos ou baseados no que o nosso entorno determina a partir do nosso fazer? São questões importantes a serem discutidas e que não há definição certa, pois somos seres em constante mudanças e, se nossa essência de ser está relacionada com o nosso fazer, este se modifica constantemente e de acordo com o nosso desenvolvimento humano e suas interferências, como estilo de vida, comportamento, envelhecimento, adoecimento.

Cabe ao profissional de terapia ocupacional se atentar para a identificação das ocupações significativas para as pessoas e sobre como podem ter potencial terapêutico diante do adoecimento. Segundo Larivière & Quintin (2021)Larivière, N., & Quintin, J. (2021). Heidegger and human occupation: an existential perspective. Journal of Occupational Science, 30(2), 251-261., as ocupações dão sentido à existência humana, portanto, têm potencial para recuperação diante da ruptura ocupacional, seja para resgatar o gerenciamento da própria vida, gerenciamento funcional e busca de qualidade de vida de forma adequada.

Logo, corrobora o pensamento de Wilcock (1998)Wilcock, A. A. (1998). Reflections on doing, being and becoming. Canadian Journal of Occupational Therapy, 65(5), 248-256. o fato de que a terapia ocupacional deve buscar compreender de maneira única a ocupação, desde que inclua tudo o que as pessoas fazem, a relação do que elas fazem diante da percepção de quem são e que estas ocupações podem se tornar diferentes.

Portanto, cabe a todos nós refletirmos acerca da necessidade de compreender como as ocupações são percebidas pela pessoa e como estas interferem no processo de adoecimento e na qualidade de vida ao longo do tratamento e da evolução da doença.

Assim, há necessidade de buscar estratégias em saúde, a fim de estabelecer a manutenção, promoção e garantia de qualidade de vida diante da percepção dos seres ocupacionais que somos no mundo. Wilcock previa os limites com o ser e o fazer, e nos traz a reflexão sobre como buscamos definir o ser e o fazer na vida da pessoa.

Tendemos a imbuir o estado de ser com as noções de fazer, particularmente quando o usamos para descrever papéis ocupacionais como ser pai, ser estudante, ser esportista ou ser terapeuta ocupacional. Embora a noção de ser seja importante para nós dessa maneira, os impulsos culturais para fazer cada vez melhor alteram as formas de ser em papéis particulares e sobrecarrega com uma variedade de ser em cada um dos quais esperamos vir a ser perfeito (Wilcock, 1998, pWilcock, A. A. (1998). Reflections on doing, being and becoming. Canadian Journal of Occupational Therapy, 65(5), 248-256.. 251).

Logo, é importante redescobrir, revisar, repensar e permitir que a pessoa se apresente em suas mais diversas perspectivas ocupacionais para garantir uma abordagem centrada na pessoa e suas ocupações, formular novas avaliações e intervenções baseadas em evidência.

Para Wilcock (2001)Wilcock, A. A. (2001). Occupation for health: re-activating the regimen sanitatis. Journal of Occupational Science, 8(3), 20-24., focar na ocupação para a saúde e em relação às pessoas como seres ocupacionais exige que fiquemos de voltar e tentar pensar diferente. É preciso apontar para uma maior compreensão do engajamento humano na ocupação, uma maior compreensão das ideias sobre saúde, e para o desenvolvimento de uma teoria sobre o relacionamento entre saúde e ocupação de uma perspectiva ocupacional da saúde, em vez de uma perspectiva médica reducionista, que, para nós, parece já direcionada, pré-moldada, pré-estabelecida, sem respeitar a multipluralidade do ser ocupacional.

Portanto, as dimensões aqui apresentadas reconhecem um ser humano que não pode ser resumido e nem reduzido, devido à multipluralidade e interrelações das dimensões na vida da pessoa. Sendo assim, compreender o ser humano como ser ocupacional permite incluir que a realização ou declínio das ocupações se relacionam na performance e na saúde dessa pessoa, que é um ser dinâmico, complexo e multifacetado.

Conclusão

Diante do exposto, foi possível identificar a importância que a realização das ocupações e suas relações possuem na vida de cada participante, e como a pausa total ou parcial repercute na autopercepção e identidade de cada pessoa. O diagnóstico de uma doença crônica, que ainda se apresenta de forma estigmatizada e cheia de estereótipos, como câncer, possui impacto no mundo pessoal e em tudo o que envolve a pessoa, consequentemente, podendo vir a sofrer perdas físico-funcionais, sociais, espirituais e ocupacionais.

Durante as entrevistas, foi exposta a importância da realização das ocupações, nas quais o passado e o presente foram comparados pelos participantes, percepção que contribuía para sentimentos positivos ou negativos de si e das relações com familiares, cuidadores e comunidade.

Com base nos relatos dos participantes, foi possível identificar suas ocupações significativas, estas citadas como trabalho, atividades de vida diária, atividades instrumentais de vida diária, participação social, lazer, educação, descanso e sono, bem como a identificação e autopercepção dos participantes diante do processo de adoecimento e internação.

As relações ocupacionais e ocupações significativas identificadas puderam ser analisadas pelos achados da filosofia proposta. Contudo, a literatura nacional ainda possui poucos autores que publicam à luz dos estudos de Wilcock e de sua perspectiva ocupacional de saúde. Isso se deve, em partes, às publicações sobre as dimensões supracitadas serem restritas à língua inglesa, sendo os poucos artigos existentes publicados em inglês ou espanhol, bem como as restrições de acesso virtual que, por vezes, não são gratuitas, e livros acerca do assunto não estarem disponíveis no Brasil.

Diante disso, esta pesquisa encontrou dificuldade pela escassez e pela falta de pesquisas em cenário nacional, principalmente pela dificuldade encontrada para o acesso à leitura nas plataformas internacionais existentes.

Contudo, este trabalho visa apresentar as percepções ocupacionais de pessoas em cuidados paliativos oncológicos por meio das dimensões ser e fazer, buscando estimular novas pesquisas sobre a temática abordada com o público em questão ou com outros públicos, em outros cenários de serviços do profissional de terapia ocupacional.

Nós, terapeutas ocupacionais, trabalhamos com as ocupações do ser humano, e onde não há ocupação? Portanto, apontamos para contextos, cenários que podem ser redescobertos, aprimorados e outros desbravados, tendo como objeto de estudo a ocupação e afinidade aos contextos propostos para análise do objeto de estudo.

Cabe a nós sermos profissionais detentores de técnicas, abordagens, ciências e evidências em saúde do porquê estamos nos serviços de baixa, média e alta complexidade, bem como os porquês em atendermos as mais variáveis faixas etárias do desenvolvimento humano, e o porquê de as repercussões ocupacionais serem únicas e significativas para cada faixa etária, pessoa e patologia, e dos porquês somos terapeutas ocupacionais.

Por fim, é preciso reformular essas respostas, e esta pesquisa se atreve a considerar que a saúde vai além do estado completo de bem-estar físico, mental, social e espiritual, contemplando também uma saúde ocupacional.

  • Como citar: Pereira, W. K. S., Pinho, A. C. C., Corrêa, V. A. C., Santos, G. K. C., & Boulhosa, R. M. (2023). A percepção das ocupações de pessoas sob cuidados paliativos oncológicos diante das dimensões de ser e fazer de Wilcock. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3523. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO270035231

Referências

  • American Occupational Therapy Association – AOTA. (2020). Occupational therapy practice framework: domain and process – fourth edition. American Journal of Occupational Therapy, 74(Suppl. 2), 1-87.
  • Ashworth, E. (2013). Utilizing participation in meaningful occupation as an intervention approach to support the acute model of inpatient palliative care. Palliative & Supportive Care, 12(5), 409-412.
  • Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70.
  • Brasil. (2011). Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT) no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde.
  • Carrapato, P., Correia, P., & Garcia, B. (2017). Determinante da saúde no Brasil: a procura da equidade na saúde. Saúde e Sociedade, 26(3), 676-689.
  • Carreira de Mello, A. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). A construção de sentidos sobre o que é significativo: diálogos com Wilcock e Benetton. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 352-373.
  • Easterby Smith, M., Thorpe, R., & Lowe, A. (2007). Management research: an introduction. London: Sage Publications.
  • Gil, A. C. (2010). Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas.
  • Hammell, K. W. (2004). Dimensions of meaning in the occupations of daily life. Canadian Journal of Occupational Therapy, 71(5), 296-305.
  • Hitch, D., Pépin, G., & Stagnitti, K. (2014). In the footsteps of Wilcock, Part one: the evolution of doing, being, becoming, and belonging. Occupational Therapy in Health Care, 28(3), 231-246.
  • Hoppes, S. (2005). Meanings and purposes of caring for a family member: an autoethnography. The American Journal of Occupational Therapy, 59(3), 262-272.
  • Hocking, C. (2020). A tribute to Dr Ann Wilcock. Journal of Occupational Science, 27(1), 1-4.
  • Hocking, C., Wright-St Clair, V., & Bunrayong, W. (2002). The meaning of cooking and recipe work for older Thai and New Zealand women. Journal of Occupational Science, 9(3), 117-127.
  • Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva – INCA. (2018). A mulher e o câncer de mama no Brasil. Rio de Janeiro: INCA.
  • Kaliks, R. A., Matos, T. F., Silva, V. A., & Barros, L. H. C. (2017). Diferenças no tratamento sistêmico do câncer no Brasil: meu SUS é diferente do teu SUS. Brazilian of Journal Oncology, 13, 1-12.
  • Larivière, N., & Quintin, J. (2021). Heidegger and human occupation: an existential perspective. Journal of Occupational Science, 30(2), 251-261.
  • Maersk, J. L., Johannessen, H., & la Cour, K. (2019). Occupation as marker of self: occupation in relation to self among people with advanced cancer. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 26(1), 9-18.
  • Njelesani, J., Tang, A., Jonsson, H., & Polatajko, H. (2014). Articulating an occupational perspective. Journal of Occupational Science, 21(2), 226-235.
  • Reynolds, F., & Prior, S. (2006). Creative adventures and flow in art-making: a qualitative study of women living with cancer. British Journal of Occupational Therapy, 69(6), 255-262.[REMOVED IF= FIELD]
  • Santos, F. M. (2012). Análise de conteúdo: a visão de Laurence Bardin. Revista Eletrônica de Educação, 6(1), 383-387.
  • Sequeira, S. D. H., Castellanos, N. A. R., & Vargas, J. C. W. (2020). Fisiopatología del cáncer (Monografia). Facultad de Ciencias Socioeconómicas y Empresariales Tecnología Deportiva, Bucaramanga.
  • Valverde, M. A. T. (2013). O cotidiano de nossas. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 21(2), 211-214.
  • Victor, G. H. G. (2021). Cuidado paliativo precoce. In R. K. Castilho, V. C. S. Silva & C. S. Pinto (Eds.), Manual de cuidados paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (pp. 387-391). Rio de Janeiro: Atheneu.
  • Wilcock, A. A. (1993). Theory of the human need for occupation. Journal of Occupational Science, 1(1), 17-24.
  • Wilcock, A. A. (1998). Reflections on doing, being and becoming. Canadian Journal of Occupational Therapy, 65(5), 248-256.
  • Wilcock, A. A. (2001). Occupation for health: re-activating the regimen sanitatis. Journal of Occupational Science, 8(3), 20-24.
  • Wilcock, A. A. (2007). Occupation and health: are they one and the same? Journal of Occupational Science, 14(1), 3-8.
  • Wilcock, A. A., & Hocking, C. (2015). An occupational perspective of health Thorofare: Slack.
  • White, C., Lentin, P., & Farnworth, L. (2020). ‘I know what I am doing’: A grounded theory investigation into the activities and occupations of adults living with chronic conditions. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 27(1), 56-65.
  • World Health Organization – WHO. (1948). Constitution of World Health Organization. Recuperado em 2 de fevereiro de 2023, de https://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/constitution-en.pdf
    » https://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/constitution-en.pdf
  • World Health Organization – WHO. (2020). Palliative care. Recuperado em 2 de fevereiro de 2023, de https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care
    » https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care
  • Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso.

Editado por

Editor de seção

Prof. Dr. Milton Carlos Mariotti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2023
  • Revisado
    15 Fev 2023
  • Revisado
    28 Maio 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
E-mail: cadto@ufscar.br