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ARQUIVO DAS MEMÓRIAS, MEMÓRIA DOS ARQUIVOS

A memória, em sua complexa realidade contemporânea, suscita investigações em diversas áreas do saber. Enseja abordagens multifocais, considerando a sua natureza filosófica, produção, enquanto processo bioquímico e linguagens, preservação, individual e coletiva, bem como a sua proteica reconfiguração no campo das artes. Traz à tona questões relacionadas às ciências, à tecnologia, à psicanálise, à experiência estética etc. A matéria memorialística desafia o trabalho de historiadores, antropólogos e de sociólogos, bem como presentifica dimensões políticas e econômicas, colocando em pauta, por exemplo, imaginários na base da criação e manutenção de museus e instituições de cultura que preservam acervos pessoais e institucionais (v. ZILBERMAN et al., 2004ZILBERMAN, Regina et al. As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2004). No campo da literatura, o memorialismo propiciou a criação de obras-primas como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, e Baú de ossos, de Pedro Nava. Outras produções também se enraízam nas “escritas de si” (v. GUSDORF, 1991GUSDORF, Georges. Les écritures du moi: lignes de vie 1. Paris: Odile Jacob, 1991.), como autobiografias, diários, correspondências e entrevistas, instaurando intricadas proposições reflexivas na teoria, na historiografia e na crítica literária e biográfica (v. SOUZA, 2011SOUZA, Eneida Maria de.Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2011.). Memória evoca necessariamente esquecimento, seu duplo, ampliando o espectro de indagações sobre os seus significados individuais e coletivos (v. RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.).

Locus emblemático da memória (e também dos silenciamentos), os arquivos, em sentido lato, fundam e fomentam ideários. Acervos, nas trilhas da arquivologia, resultam de seleções, que forjam autorrepresentações de seus detentores e retratos de grupo sociais ou políticos, norteados por interesses mais ou menos explícitos (v. DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.). Arquivo (e suas instituições de guarda), portanto, conservam a memória, como também a edificam. “O que se preserva?”, “Para que(m) se preserva?” “Como se preserva?”, perduram como interrogações incontornáveis ao estudioso de arquivos, seja qual for a sua formação. Essas perguntas, que recusam respostas imediatas, categóricas e superficiais, fazem eclodir postulados teóricos e hermenêuticos, percepções ideológicas e encaminhamentos tecnológicos, que tramam controvérsias (v. MARQUES, 2015MARQUES, Reinaldo.Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2015.). Acendem o debate políticas públicas que embasam a preservação e a extroversões de documentos de fonte primária.

Os arquivos (e tudo o que com eles se relaciona, como a marginália de escritores em acervos bibliográficos) constituem substanciosos objetos de exploração nos estudos da literatura. Os acervos e coleções possuem organicidade própria, dinamismo particular, muitas vezes apreensível somente à custa de demorada observação. Em sua heterogeneidade constitutiva, os arquivos amealham manuscritos, cartas, registros iconográficos e fonográficos, matéria extraída de periódicos, provas editoriais, memorabilia etc. Testemunham a gênese e os processos de criação de obras (v. HAY, 2007HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão técnica de Consuelo fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.), deslindam aspectos do funcionamento da sociabilidade intelectual e artística, alimentam interpretações acerca de questões identitárias nos estudos culturais etc. Mesmo sendo o literário o horizonte do pesquisador, o seu olhar sobre o arquivo demanda a prática da interdisciplinaridade (v. SOUZA; MIRANDA, 2011SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (org.).Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2011.). O próprio arquivo (alegorias, técnicas estruturantes, estratégias compositivas, significações) pode se moldar como literatura: prosa, poesia, dramaturgia.

O dossiê Arquivos da Memória e Memórias de Arquivos da Revista Brasileira de Literatura Comparada faculta uma abrangente cartografia do tema, reunindo artigos e entrevista de abalizados pesquisadores brasileiros e do exterior. Em seu conjunto, vislumbram-se três linhas de força que se interconectam: ciências, filosofia, políticas da memória; literatura (como) memória; memorialismo e arquivos.

Os dois artigos que abrem este número, “Tempo e memória em árvores e nos seres humanos”, de Philippe Willemart, e “O museu em chamas: a perda do patrimônio e as tecnologias digitais sob a luz de um incêndio”, de Pablo Gobira e Priscila Rezende Portugal, alargam a abordagem da memória, indiciando a sua urgente atualidade. O primeiro deles, articulando saberes das ciências biológicas, da psicanálise e da crítica genética na esfera dos estudos literários, aproxima a memória vegetal, animal e a dos homens, em conexões nem sempre evidentes, mas enlaçados em suas realidades mais profundas (e ainda pouco conhecidas). O outro texto, perscrutando o trauma coletivo vivenciado em face do lamentável incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2008, acusa a “falta de políticas públicas eficientes sobre o patrimônio histórico-cultural brasileiro.”

A segunda parcela de artigos examina a memória e os arquivos como elementos da criação literária. Zilá Bernd, em “Silenciamentos e impasses na transmissão memorial: Haiti e Brasil vistos pelos olhos de duas escritoras afro-americanas: Emmelie Prophète e Djamila Ribeiro”, discerne nas autoras, em perspectiva crítica comparatista, a figuração da “memória geracional” unindo seus projetos literários, que constituem vigorosos gestos políticos, em luta contra a invisibilização e a subalternização, em decorrência de gênero e racismos. Roberto Ferreira Júnior, em “Memory and the neo-slave novel in Colson Whitehead’s The Underground railroad and Ta-Nehisi Coate’s The water dancer”, se debruça sobre duas narrativas “neo-escravas” do século XXI, assinadas por estadunidenses, para perceber o “papel da memória”, ao mergulhar na história da escravidão. Filomena Juncker, pela vez dela, em “Memoire volatile et obsession d’une trace: sur le chemin obscur des Souvenirs dormants”, analisa a memória como “motor” da obra do autor francês Patrick Modiano, prêmio Nobel em 2014, detectando “exercícios de rememoração” e conexões entre as narrativas publicadas pelo autor. Shirley de Souza Gomes Carreira, em “A literatura como lugar de memória: uma análise de Muito longe de casa, de Ishmael Beah”, examina o trânsito entre memorialismo e literatura, concretizado como denúncia da guerra civil em Serra Leoa, assim como uma “necessidade psicológica” do escritor e ativista africano. Eduardo Ferraz Felipe, em “Tempo e romance contemporâneo para além do realismo traumático”, enfoca os romances Nostalgia, do romeno Mircea Cărtărescu, e The return, do estadunidense de ascendência líbia, Hisham Matar, buscando observar relatos ficcionais que, para além da experiência do trauma, se valem de “outros modos de acessar o passado e lidar com a memória”. Eliane Vasconcellos e Moema Mendes, em “Corina Coaraci: crônicas do século XIX para serem lidas no século XXI”, recuperam, por meio de pesquisa em fonte primária, a produção de uma jornalista que “preconizava a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher, equiparando seus direitos ao dos homens”.

O terceiro bloco de artigos ocupa-se dos arquivos, em suas diversas facetas, no terreno do memorialismo. Márcia Abreu, em “Os arquivos, as ideias e o elogio da desconfiança”, fornece três robustos exemplos de como os arquivos “desafiam certezas, abrem novas dúvidas e favorecem a produção de interpretações menos arbitrárias e voluntariosas”, favorecendo “a escrita de uma outra história”. Marisa Lajolo, acompanhada do grupo de pesquisadores lobatianos (Cilza Bignotto, Emerson Tin, Glaucia S. Bastos, Katia Chiaradia, Luís Camargo, Milena Martins, Raquel Affonso da Silva, Tamara Abreu e Thais Albieri), distingue, em “De papéis a documentos: Monteiro (1882-1948) e outros modernismos brasileiros”, a potencialidades dos arquivos, quando estes oferecem elementos para a configuração de perfis biográficos, a reconstituição de movimentos de escritura, o desenho de redes de sociabilidades literárias etc. O artigo patenteia, igualmente, a importância do trabalho em equipe no trato com os arquivos, dada a sua vasta e intricada constituição, abrindo-se para multifárias visadas interpretativas. Aline Novais de Almeida, Edson do Prado Pfutzenreuter e Patrícia Spinelli, estudiosos da crítica genética e dos processos criativos, testemunham trajetórias investigativas em fundos pessoais, levantando discussões teóricas, em “Arquivos nos estudos de crítica genética: questões conceituais e estudos de caso nos acervos de Mário de Andrade e Otto Stupakoff”. Elisângela da Silva Santos, no estudo “Conectando os fragmentos de José Enrique Rodó: uma análise dos originais de Ariel”, mostra como os manuscritos da obra publicada em 1900, bem como outros documentos do autor uruguaio, guardados em seu arquivo, fundamentam leituras críticas originais.

Ainda no terceiro conjunto de artigos, dois deles devotam-se ao estudo de acervos documentais que distinguem o teatro como mecanismo de enfrentamento da ditadura militar brasileira, no período de 1964 a 1985. Calla J. C. Knapp e Rex P. Nielson, em “The Rusty Butler Archive: revelations of cultural repression during the Brazilian military dictatorship”, exibem a relação de valiosas peças do arquivo de Rusty Butler, conservadas nos Estados Unidos, como uma “untoched time capsule”, material que recebe apurada visada crítica. Rosa Borges, em “Arquivos e memórias de escritores e dramaturgos baianos: edição, crítica filológica, genética e sociológica”, oferece depoimento sobre o projeto que coordena, intentando a edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia, balizado pelos estudos de filologia, crítica textual, sociologia dos textos e crítica genética, no âmbito das humanidades digitais. Nesse último terreno inserem-se os artigos finais do dossiê: “O banco de dados bibliográfico João Guimarães Rosa”, de Gustavo Castro Silva, e “A poesia digital em arquivos online latino-americanos: convergências e divergências”, de Vinícius Carvalho Pereira, os quais refletem sobre os arquivos na era digital, pontuando suas potencialidades, limitações, assim como os desafios no que tange à atualização tecnológica.

A importante entrevista da pesquisadora Marta de Senna, que dirigiu a Fundação Casa de Rui Barbosa até 2019, história o funcionamento e as contribuições da renomada instituição federal, sediada no Rio de Janeiro. Instaura também a discussão sobre memória e arquivos. A estudiosa da obra de Machado de Assis coloca na ordem do dia temas candentes acerca das políticas públicas de preservação de arquivos no Brasil.

Eduardo Lacerda Faria disponibiliza a tradução de “#Instapoetry. Poesia popular no instagram e seus affordances (propiciamentos)”, de Niels Penke, oportuna contribuição para se pensar o vigor da literatura que circula amplamente, sem fronteiras, em ambientes virtuais.

A Revista Brasileira de Literatura Comparada, atenta às manifestações culturais da atualidade, propicia reflexões a partir de duas resenhas críticas, a primeira, assinada por Antônio Carlos Mousquer, dialoga com os ensaios inseridos em Literatura e arte no Antropoceno: conceitos e representações (2021), organizada por Marina Pereira Penteado e Sonia Torres; a segunda resenha, de Rejane Pivetta de Oliveira, focaliza O livro dos afetos: cultura e autoritarismo na literatura contemporânea (2022), de Lucia Helena.

Referências

  • DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
  • GUSDORF, Georges. Les écritures du moi: lignes de vie 1. Paris: Odile Jacob, 1991.
  • HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão técnica de Consuelo fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.
  • MARQUES, Reinaldo.Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2015.
  • RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
  • SOUZA, Eneida Maria de.Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2011.
  • SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (org.).Crítica e coleção Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2011.
  • ZILBERMAN, Regina et al As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2004

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022
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