Acessibilidade / Reportar erro

Corina Coaraci: crônicas do século xix para serem lidas no século xxi

Corina Coaraci: chronicles of the 19th century to be read in the 21st century

RESUMO

Corina Coaraci (Estados Unidos, 18/4/1859 - 23/3/1892) foi jornalista, filha da americana Mary Frances Lawe e do jornalista brasileiro Carlos Francisco Alberto de Vivaldi. A convite de José do Patrocínio, entrou para a redação do jornal Cidade do Rio, onde passou a escrever a coluna semanal “A Esmo”. Coaraci colaborou em periódicos, como: Illustração Brazil, South American Mail, Illustração Popular, Folha Nova, Gazetinha, The New York Herald, Cidade do Rio, Correio do Povo, O Paiz. Sua atividade literária não se limitava a simples comentários ou a notícias de faits divers. No Cidade do Rio, a cronista transita por diversos temas, como roubos, assassinatos, infanticídios, notícias literárias e políticas. Outro assunto importante ao qual damos destaque é a posição da mulher enquanto ser social. Ela preconizava a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher, equiparando seus direitos aos dos homens. Embora não tenha publicado nenhum livro de sua autoria, Corina Coaracy é um nome significativo em nossas letras. Elegemos como corpus o período de 5 de julho a 27 de setembro de 1890 da citada coluna para as reflexões que constituem este artigo. Seu objetivo é divulgar a sua obra, fazê-la conhecida a fim de que pesquisadores tenham acesso à sua produção com o objetivo de conhecer o que escreviam e publicavam as mulheres no século XIX.

Palavras-chave:
Corina Coaraci; Edição de texto; Coluna “A Esmo”; Cidade do Rio

ABSTRACT

Corina Coaraci (United States, 4/18/1859 - 3/23/1892) was a journalist, daughter of American Mary Frances Lawe and Brazilian journalist Carlos Francisco Alberto de Vivaldi. At the invitation of José do Patrocínio, she joined the editorial staff of Cidade do Rio, where she began writing the weekly column “A Esmo”. She has collaborated in periodicals such as: Illustração Brazil, South American Mail, Illustração Popular, Folha Nova, Gazetinha, The New York Herald, Cidade do Rio, Correio do Povo, O Paiz. Her literary activity was not limited to simple comments or news of faits divers. In Cidade do Rio, the columnist transits through several themes, such as, robberies, murders, infanticides, literary and political news. Another important issue that we highlight is the position of women as a social being. She advocated the legal expansion of women's civil and political rights, equating their rights with those of men. Although she has not published any books of her own, Corina Coaracy is a significant name in our literature. We chose as corpus the period from July 5th to September 27th, 1890, of the aforementioned column for the reflections that constitute this article. Its aim is to publicize her work, to make it known so that researchers have access to her production in order to know what women wrote and published in the 19th century.

Keywords:
Corina Coaraci; Text editing; Column “A Esmo”; Cidade do Rio

Introdução

Esta pesquisa em andamento é parte do Projeto Resgate da obra de Corina Coaraci subdividido em Corina Coaraci: uma revisão que se impõe e Corina Coaraci: crônicas do século XIX para serem lidas no século XXI, que intitulou esta reflexão.

Desde a dissertação de mestrado (VASCONCELLOS, 1981VASCONCELLOS, Eliane. A mulher na língua do povo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.) e da tese de doutorado (VASCONCELLOS, 1999VASCONCELLOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.), tenho me dedicado a estudar a posição da mulher em nossa sociedade. Este interesse motivou a Professora Zahidé Muzart a me convidar a participar da pesquisa que tinha como objetivo o levantamento de escritoras brasileiras do século XIX e que deu origem ao trabalho em três volumes publicado pela Editora Mulheres intitulado Escritoras brasileiras do século XIX. Motivadas por este projeto, continuamos a investigar e a pesquisar a literatura feminina do século XIX. De minha parte, pela Editora Mulheres, publiquei um estudo sobre Carmem Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo) na reedição do romance A luta, estabeleci o texto do romance Mistérios del Plata, de Joana Paula Manso de Noronha, junto com a pesquisadora Ivette Maria Savelli. Pelo Arquivo Público de Estado do Rio de Janeiro, editei uma coletânea de crônicas de autoria de Carmem Dolores, uma das escritoras mais importantes de sua época. E, atualmente, junto com a pesquisadora Moema Mendes, também autora deste artigo, estamos recuperando a obra jornalística da cronista Corina Coaraci.

Os primeiros anos da infância dessa jornalista transcorreram entre os Estados Unidos e Brasil, da seguinte forma: em 1861, vem para o Brasil com a família; em 1866, retorna com a mãe para os Estados Unidos; em 1869, volta ao Brasil fixando residência com a família no Rio de Janeiro. Nesta cidade, casou-se com Visconti Coaraci e, deste matrimônio, tiveram um filho: Vivaldo de Vivaldi Coaraci, escritor. Em 1891, volta aos Estados Unidos para cuidar de interesses familiares, porém não se afasta do jornalismo, tornando-se correspondente estrangeira do periódico O Paiz, para onde enviou a série de crônicas "No país dos dólares". Adoeceu em Nova Iorque e, a conselho médico, transferiu-se para o sul do país, onde veio a falecer, perto de Nova Orleans, de embolia cerebral.

As publicações de Corina vêm sendo identificadas, transcritas e anotadas a partir da documentação periódica, principalmente, disponível na Biblioteca Nacional, com o propósito de divulgar a obra desta jornalista, que se caracteriza essencialmente por sua atuação na imprensa. Sobre isso, publica a Gazeta de Notícias:

Não é preciso dizer aos habitantes desta cidade, aos leitores de tantas folhas nossas o que valia o talento de Corina Coaraci. Nasceu especialmente para o jornalismo, tais eram as qualidades do seu estilo, correntio, fácil, sem deixar de ser vivaz e pitoresco, tendo a animação do pensamento e a seriedade dos instintos. Fugia à superficialidade e sabia pôr sempre alguma coisa em qualquer linha que escrevesse. Suas crônicas deixaram dela uma feição característica. Na propaganda, soube ter alma comunicativa e ardente. Sabia observar com exatidão e finura (COARACY, 1892COARACY, Corina. Corina Coaracy. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, p. 1, 2 maio 1892., p. 1).

Sua atividade literária não se limitava a simples comentários ou a notícias de faits divers. No Cidade do Rio, na coluna “A Esmo”, a cronista transita por diversos temas, como, por exemplo, na crônica sem título, de 26 de julho de 1890, na qual comenta roubos, assassinatos e infanticídios. Outro assunto importante ao qual damos destaque é que Corina preconizava a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher, equiparando seus direitos aos dos homens, como na crônica intitulada, “Ainda o divórcio”, de 2 de agosto de 1890, na qual defende que a questão do divórcio vai além da questão dos direitos políticos da mulher.

Também colaborou ativamente na campanha abolicionista, participando de comissões cuja finalidade era angariar fundos para a libertação dos escravos e, para isso, publicou textos de apoio a José do Patrocínio, como na Gazeta de Notícias de 13 de maio de 1891, em edição dedicada ao referido abolicionista, na qual assina uma coluna em que defende Patrocínio como o audacioso responsável pela campanha abolicionista. E no Cidade do Rio, em 9 de agosto de 1890, a jornalista nos permite compreender a amizade que os unia ao falar sobre a maternidade e citar pensamentos de Patrocínio como porta-voz das críticas da cronista:

“A maternidade como sentimento não existe! É a maior das mentiras que a mulher inventou desde que o mundo é mundo, para subjugar o homem! À sombra dessa maternidade tem-nos impingido um sem-número de exigências sentimentais, que nós, homens, vamos satisfazendo, porque a mulher soube apoderar-se assim de uma auréola de santidade que nunca existiu na imaginação!...”

Era isto, pouco mais ou menos, o que me dizia há três ou quatro dias José do Patrocínio em um grande ímpeto de asseverar a todo transe paradoxos insustentáveis (COARACY, 1890COARACY, Corina. Ainda o divórcio. Cidade do Rio. Rio de Janeiro, p. 1, 9 ago. 1890., p. 1).

Conforme Brasil (2015BRASIL, Bruno. Cidade do Rio. Biblioteca Nacional Digital Brasil, Hemeroteca Digital. Rio de Janeiro, 3 nov. 2015. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/artigos/cidade-do-rio/ . Acesso em: 28 dez. 2021.
http://bndigital.bn.gov.br/artigos/cidad...
), o Cidade do Rio foi um periódico diário e vespertino constituído por quatro páginas, com lançamento em 28 de setembro de 1887 na cidade do Rio de Janeiro. Foi criado por José do Patrocínio, que imprimiu em seu jornal todo o idealismo de sua campanha abolicionista: uma folha modesta, sem recursos, mas politicamente determinada. Sacramento Blake (1893BLAKE, Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893.) em seu verbete sobre Corina Coaraci, diz que ela passou a colaborar neste periódico em janeiro de 1890, escrevendo a coluna semanal "A Esmo" e não nos dá nenhuma outra informação. Na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o ano IV (1890) encontra-se danificado. Há uma lacuna entre as publicações de 31 de dezembro de 1889 e 4 de julho de 1890. A de 4 de julho é constituída por duas páginas que se encontram bastante mutiladas. Na edição 0151, que é o exemplar de 5 de julho de 1890, um sábado, lê-se na primeira página uma crônica de Corina. Apesar de inúmeras tentativas de localizar o periódico, todas foram em vão. O que outras bibliotecas possuem é cópia do material que se encontra na Biblioteca Nacional.1 1 Caso algum pesquisador ou instituição saiba onde este periódico pode ser encontrado, agradeceríamos muito que nos fosse comunicado. A partir da informação registrada por Blake (1893) e levando em consideração que ele foi contemporâneo de Corina Coaraci, esta informação está correta. Em sua produção, não há livro publicado, somente traduções, embora tenha colaborado em periódicos fundados por seu pai no Rio de Janeiro: Illustração do Brazil (1878-1879) e South American Mail, escrevendo em inglês e em português. Em 1877, passa a dirigir a Illustração Popular. Foi correspondente do Arauto, de Petrópolis; manteve uma seção na Folha Nova, do Rio de Janeiro, e escreveu regularmente na Gazetinha, também do Rio de Janeiro. Foi correspondente especial do The New York Herald (1888-1889), onde publicou uma série de artigos sobre o nosso movimento republicano. Ingressou no Cidade do Rio (1890), transferiu-se para o Correio do Povo (1890-1891) e, depois, para O Paiz (1891-1892).

Com o marido, colaborou no drama histórico Moema, que foi levado à cena depois de sua morte. Artur Azevedo (1897AZEVEDO, Artur. Teatro. A Notícia. Rio de Janeiro, p. 2, 1897.), no jornal A Notícia, em 2 de fevereiro de 1897, diz que “para o Sant’Ana organiza-se uma companhia dramática sob a direção de Ismênia dos Santos, companhia que se estreará com um drama póstumo de Corina Coaraci, intitulado Moema”. Entretanto, a peça não entrou em cartaz, porque dois ou três atores se despediram da companhia.

A produção de Corina, portanto, tem nos permitido conhecer e analisar os fatos e posicionamentos de uma jornalista-mulher sob uma perspectiva histórica alicerçada em um discurso crítico. O acesso a esses textos é denominado pesquisa de tendência arqueológica, trabalho de resgate das escritoras esquecidas e a recuperação de dados silenciados ou excluídos, como a obra e a atuação dessas mulheres. O reencontro com tais obras é o que deve ser empreendido em primeiro lugar, para embasamento da discussão de outras questões, pois não se pode estudar e discutir questões teóricas sem conhecer o que as mulheres escreveram e publicaram. É necessário conhecer e discutir seus pressupostos ideológicos, seus códigos estéticos e retóricos, tão marcados por preconceitos de cor, de raça, de classe social e de gênero.

O nosso trabalho se baseia nas pesquisas de fontes primárias e contribui para problematizar e renovar a historiografia oficial, que só leva em conta o corpus de textos canônicos. Ele se insere em um escopo mais amplo, que envolve os estudos de Ecdótica, de base filológica, e vem resultando, na prática, na edição de obras do século XIX, por meio do trabalho de localização dos textos, fixação e edição dos mesmos. Sintetizando, a preparação e o estabelecimento de um texto crítico obedecem aos critérios da Crítica Textual, para que se possa transmitir ao leitor um texto fidedigno, genuíno. O trabalho final de edição dos textos de Corina Coaraci não pretende apenas publicá-los, mas prepará-los, para que reflitam, realmente, a vontade da autora. Ao procurar fazer circular os textos desta escritora, estamos contribuindo para corrigir velhas ideias e preconceitos arraigados sobre a pretensa ausência da mulher nas letras nacionais.

O nosso trabalho seguiu as seguintes etapas: localização e reprodução dos textos, digitação, estabelecimento do texto crítico, elaboração de notas e preparo da edição.

Sobre a edição

As crônicas de Corina Coaraci, a que temos acesso, foram publicadas no jornal Cidade do Rio entre 5 de julho e 27 de setembro de 1890, sempre aos sábados na coluna “A Esmo” e todas trazem a assinatura “C. Cy”. Os textos aparecem sempre na primeira página do periódico, exceto a de 27 de setembro, que figura na segunda página. A crônica de 2 de agosto traz o título “Ainda o divórcio”; há um artigo sem vinculação à coluna publicado na quarta-feira, 4 de setembro, com o título “Candidatura feminina”. No sábado 13 de setembro, a coluna não é publicada e há uma nota da redação justificando a ausência:

EXPEDIENTE - Privamos hoje involuntariamente os nossos leitores da interessante crônica A Esmo, com que costuma ilustrar estas colunas, aos sábados, a nossa gentil colaboradora C. Cy. Pedimos disso humilde desculpa, tão certos de alcançá-la, quanto é verdade que somos nós os mais prejudicados por uma falta, só devida a força maior (EXPEDIENTE, 1890EXPEDIENTE. Cidade do Rio. Rio de Janeiro, p. 1, 13 set. 1890., p. 1).

Como as crônicas só foram publicadas no periódico, não houve como comparar com outra versão que permitisse sanar problemas de leitura decorrentes da deterioração do jornal. As partes ilegíveis estão indicadas entre colchetes. Os textos em sua maioria não possuem título, e cada um foi introduzido pela respectiva data de publicação, padronizada pelo modelo dia (numeral cardinal), mês (por extenso) e, como todas as crônicas datam de 1890, o ano não foi registrado.

As notas de pesquisa de naturezas distintas - biográficas, contextuais, vocabulares - foram elaboradas pelas organizadoras. Os vocábulos e expressões estrangeiros foram traduzidos, exceto alguns de fácil compreensão, ou por que figuram em dicionários de língua portuguesa atuais.

Para o preparo da edição, foram adotados os seguintes procedimentos:

  1. atualização da grafia dos vocábulos segundo as normas vigentes, sempre tendo por base o Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Volp), disponível no site da Academia Brasileira de Letras, e recorrendo, quando necessário, aos dicionários de língua portuguesa on-line: oDicionário Houaiss corporativo, o Aulete digital; e o Dicionário Aurélio da língua portuguesa (2010);

  2. atualização da grafia dos verbos quando acompanhados por pronomes oblíquos átonos: trocou-se possuil-o, por possuí-lo, têl-a, por tê-la;

  3. correção do acento grave indicador de crase, segundo as normas vigentes;

  4. correção dos erros óbvios de imprensa;

  5. manutenção de formas variantes em que figuram letras consoantes que ainda hoje se proferem, desde que arroladas no Volp: contacto;

  6. manutenção da grafia original no título dos periódicos Jornal do Commercio, Diario de Noticia, Gazeta de Noticia, O Paiz;

  7. manutenção do ditongo ou em cousa, dous, afoutasse;

  8. manutenção da inicial maiúscula quando se observou que a autora desejou dar destaque ao vocábulo: Lúcifer, Povo;

  9. manutenção de palavras em língua estrangeira, mesmo que hoje aportuguesadas, tais como: bonds;

  10. uniformização do emprego de iniciais maiúsculas: nos títulos de publicações;

  11. uniformização do recurso gráfico do itálico, nem sempre aplicado criteriosamente no original. Este procedimento foi usado para destacar: vocábulos e expressões em língua estrangeira, títulos de livros, periódicos, peças teatrais;

  12. substituição do recurso gráfico do itálico por aspas duplas para destacar, por vontade autoral, palavras e expressões desde que não se incluam nas normas de uso do itálico;

  13. substituição de formas variantes em que figuram letras consoantes mesmo que ainda hoje estejam arroladas no VOLP: assumpto - assunto, factos - fatos, omnipresente - onipresente;

  14. substituição do uso de inicial minúscula por inicial maiúscula no pronome de tratamento: sr.ª (Sr.ª;

  15. adoção da grafia em redondo nos vocábulos e expressões que, sem razão, se encontravam em itálico;

  16. adoção da inicial maiúscula nos vocábulos: Congresso e Câmara, sempre que se referem às respectivas instituições;

  17. opção pela grafia Belas Artes, sem hífen, sempre que se tratar da instituição.

  18. respeito à pontuação do original, ainda que se afigurasse imprópria. Entretanto, raros acréscimos de pontuação estão indicados entre colchetes;

O papel das notas de pesquisa

No que diz respeito às notas, resumidamente podemos dizer que há duas correntes: uma que é a favor da notação o mais sucinta possível, como é o caso, por exemplo, de vocábulos desconhecidos do leitor, respeitando o argumento de que o mesmo deve buscá-los em dicionários; ou procurar em enciclopédias, se for o caso de desejar obter informações adicionais sobre fatos ou personagens citados; a outra é a favor de auxiliar o leitor o mais que puder.

Para realizar nosso trabalho, seguimos os passos de Colette Becker (2013BECKER, Colette. O discurso da escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola). Tradução Ligia Ferreira. Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 144-156, jan./jun. 2013.) propostos na introdução da edição da correspondência de Zola, apresentada na conferência de abertura do seminário Artisans de la correspondance: dialogues sur l’édition de lettres en France, au Brésil et au Portugal. O trabalho intitulou-se “La correspondance d’Émile Zola, le discours d’escorte trente ans après”, que retomava o ensaio publicado em 1984, “Le discours d’escorte: l’annotation et ses problèmes (a propôs de la correspondance de Zola), em Les correspondances inedites (Paris: Econômica). No Brasil, esse último texto foi traduzido por Ligia Fonseca Ferreira e publicado com o título “O discurso de escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola)” (Patrimônio e Memória, São Paulo, UNESP, v.9, n.1, p.144-156, jan.-jun, 2013).

O papel das notas não me parece exatamente idêntico: eu preferiria chamar de “discurso de acompanhamento”, menos guerreiro. Assim, tal como a concebo, a anotação é um enorme trabalho de formiga, amiúde ingrato, quando não desesperador, nunca encerrado, sempre problemático, utópico e, para alguns, petulante em suas ambições de abarcar a totalidade ou reconstruir um objeto literário. Mas, no final, cabe ao leitor julgar, leitor que nunca é obrigado a obedecer à chamada de nota. Apesar disso tudo e por essa razão, esse trabalho continua sendo para mim cativante e necessário (BECKER, 2013BECKER, Colette. O discurso da escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola). Tradução Ligia Ferreira. Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 144-156, jan./jun. 2013., p. 144.).

A primeira preocupação é saber a quem se dirige o trabalho, tarefa nem sempre fácil: público especializado? público em geral? Pensando no público em geral, e levando em conta que o nosso leitor não seja um especialista e pode não conhecer algumas palavras estrangeiras, momentos históricos mencionados, localização de alguns bairros, ou estabelecimentos, assim como personagens tanto dos cenários, histórico, político, teatral, literário e cultural, achamos por bem elucidá-lo sobre eles.

A partir desta reflexão de Becker (2013BECKER, Colette. O discurso da escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola). Tradução Ligia Ferreira. Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 144-156, jan./jun. 2013.), seguem alguns exemplos de notas produzidas pelas autoras deste artigo para textos de Corina. As notas se referem às partes dos textos marcadas em negrito. Todos os trechos dos textos citados são da coluna “A Esmo”, publicados em 1890. Indicaremos abaixo o dia e mês:

Contextualização histórica

Texto (5 de julho):

Dias e noites que nos fazem pensar no ignoto sábio das sombrias florestas de além Reno, de quem nos contou O Paiz de anteontem a maravilhosa descoberta de “um fluido imponderável que por si só não desenvolve calor nem luz, mas que produz eletricidade, calor, luz e magnetismo, quando se acha em contacto com o éter.

Notas:

Jornal carioca diário de grande circulação nacional, fundado por João José dos Reis, o conde de São Salvador de Matozinhos. Com sede na rua do Ouvidor, n.63, sua primeira edição foi lançada em 1º de outubro de 1884. Teve sua publicação interrompida entre 24 de outubro de 1930 e 22 de novembro de 1933, encerrando sua circulação em 18 de novembro de 1934. Foram seus redatores Rui Barbosa e Quintino Bocaiúva. A imparcialidade marcou a ideologia do periódico em seus primeiros tempos, entretanto esta posição não foi mantida devido à ativa participação nas campanhas abolicionista e republicana.

A notícia está publicada em O Paiz de 3 de julho de 1890, sob o título “O Actien,” informando que o autor da descoberta foi Steven Allan-Flamarion.

Localidade, estabelecimento

Texto (5 de julho):

Dançou-se [...] nos vales da Gávea e [...], dançou-se e [...] nos salões do Cassino.

Notas:

Região em torno da Pedra da Gávea, bairro da zona Sul do Rio de Janeiro.

Cassino Fluminense, localizado no Passeio Público, no Rio de Janeiro. Fundado em 1845, reunia a alta sociedade da época. Dissolveu-se em dezembro de 1908.

Texto (16 de agosto):

O êxodo das irmãs, que tinham a seu cargo a guarda do Hospício de Alienados, vem agora confirmar que não andava eu muito errada na semicensura feita então.

Nota:

Hospício de Alienados Pedro II, inaugurado em 1852, na Praia Vermelha. Em 1890 foi denominado Hospício Nacional de Alienados e, em 1911, Hospital Nacional de Alienados.

Tradução de expressão estrangeira

Texto (19 de julho):

Abondance de biens ne nuit pas, diz o provérbio francês: mas nem sempre nos achamos dispostos a entrar no gozo dessa abundância, e é justamente esse o caso em que nos encontramos agora.

Nota:

Tradução do provérbio francês: “É melhor sobrar do que faltar”.

Mundo teatral

Texto (19 de julho):

Daremos uma fugida até os teatros, onde há risos e aplausos para alguns, e dissabores e tristezas para muitos. É que chegou o tempo mau para os nossos empresários, vêm vindo já as aves de arribação, trazendo umas asas de águia como Novelli e Coquelin, outras ruflando faceiras as suas penas de andorinhas elegantes e irrequietas como Judic, outras trauteando as cristalinas notas dos rouxinóis como Gabbi e Stahl.

Notas:

Ermete Novelli (Luca, 5/5/1851 - Benevento, 29/1/1917), ator italiano; Constant Coquelin (Boulogne-sur-Mer, 23/1/1841 - Couilly-Pont-aux-Dames, 27/1/1909), ator francês; Anna Judic (1850 - 1911), atriz francesa, chegaram ao Rio de Janeiro no segundo semestre de 1890, provenientes dos países do Prata para uma temporada no Teatro Lírico no Rio de Janeiro.

Cantoras da Companhia Lírica Ferrari, a primeira-dama Adalgisa Gabbi (Parma, 23/5/1857 - Milão, 16/12/1933) e a meio-soprano Amélia Stahl chegaram à América do Sul no primeiro semestre de 1890.

Texto (26 de julho):

E ninguém talvez, em nosso meio, terá apresentado melhor esse triste quadro, com todas as suas sombras, tal como ele é, do que os meus colegas e amigos Emilio Rouède e Aluísio Azevedo no drama - Um caso de adultério - que é hoje levado à cena no Lucinda.

Notas:

Émile Rouède (Avinhão, 1848 - Santos, 1908): escritor, pintor, litógrafo, caricaturista, fotógrafo, jornalista e dramaturgo francês. Fixou-se no Rio de Janeiro a partir de 1880.

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (São Luís, 14/4/1857 - Buenos Aires, 21/1/1913): escritor, jornalista, caricaturista e diplomata brasileiro.

Conforme nota na Gazeta de Noticias, a peça inédita (de manuscrito desaparecido) estreou no dia 26 de julho de 1890.

Teatro inaugurado em 1880, na rua do Espírito Santo, Rio de Janeiro, pelo empresário, ator e dramaturgo português Furtado Coelho, que deu esse nome ao teatro em homenagem à sua esposa.

Mundo politico

Texto (9 de agosto):

Era isto, pouco mais ou menos, o que me dizia, há três ou quatro dias, José do Patrocínio em um grande ímpeto de asseverar a todo transe paradoxos insustentáveis.

Nota:

José João do Patrocínio (Campos de Goitacazes, 9/10/1853 - Rio de Janeiro, 29/1/1905): farmacêutico, jornalista, escritor, orador e ativista político brasileiro. Redator principal e dono do jornal Cidade do Rio, convidou Corina a entrar para a redação em 1890, quando ela passou a escrever a coluna “A Esmo”.

Mundo literário

Texto (16 de agosto):

Já me não lembra em que romance de Carlos Dickens encontrei um personagem, palpitante de vida e de verdade, que levava o livro todo a reclamar apenas - fatos.

Tocava-lhe de quando em vez inspecionar a escola rural do seu distrito e então o desgraçadinho que lhe caía sob as garras como examinando, via-se atordoado ante a sempiterna exigência: A fact, sir! Give me a fact!”

Notas:

Charles John Huffam Dickens (Landport, 7/2/1812 - Higham, 9/6/1870): romancista inglês.

“In this life, we want nothing but Facts, sir; nothing but Facts!”: sentença proferida pelo personagem Thomas Gradgrind, do romance Hard times, de Dickens, no capítulo The one thing needful”, do primeiro livro da obra, Sowing.

Texto (16 de agosto):

[...] do qual a gente se recorda da linda fantasia de Gonçalves Crespo em que ele nos conta como uma formosa Pompadour descia do seu quadro de oiro para bailar a faceira dança dos velhos tempos.

Notas:

Antônio Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 11/3/1846 - Lisboa, 11/6/1883): jornalista, poeta brasileiro.

Jeanne-Antoinette Poisson, Marquesa de Pompadour, (Paris, 29/12/1721 - Versalhes, 15/4/1764). Notável por sua influência política e pelo incentivo às artes e à literatura. Favorita de Luís XV.

Referência ao poema “O minuète”, dedicado ao Dr. Thomaz de Carvalho, publicado nas Obras completas, Lisboa, 1897. Neste poema, ao descrever um luxuoso salão, Gonçalves Crespo se atém aos retratos de grandes personalidades ali dispostos. Não há uma referência clara à Madame de Pompadour, entretanto, fala-se de um bailado com uma dama que desce da moldura de um dos retratos “E vi descer do quadro a lânguida açafata / Que, ao discreto palor das lâmpadas de prata, / A fímbria alevantando azul do seu vestido / O rosto acerejado, o gesto comovido, / A sorrir, deslizou graciosa no tapete, dançando airosamente o airoso minuète...”

Mundo artístico

Texto (16 de agosto)

Primícias também m’as ofereceu Antônio Parreiras, mostrando-me anteontem o quadro que hoje expõe e com o qual pretende responder àqueles que o acusam de carrancismo por se deixar ele ficar na Academia de Belas Artes.

Notas:

Antônio Diogo da Silva Parreiras (Niterói, 20/1/1860 - 17/10/1937), pintor, desenhista, ilustrador e professor brasileiro. Frequentou a Academia Imperial de Belas Artes, cursando as aulas de paisagem, flores e animais, ministradas por Georg Grimm, o que o tornaria um integrante do chamado Grupo Grimm, que reunia diversos outros pintores dedicados à pintura ao ar livre nos arredores de Niterói.

Parreiras ambicionava continuar seus estudos na Europa. Para isso, fez um acordo com a Academia de Belas Artes, que comprou algumas de suas obras, com a condição de que, quando o pintor retornasse ao Brasil, assumisse a cátedra de paisagem na Academia, sem receber salário, o que nos possibilita entender o motivo do carrancismo citado por Corina.

Mitologia

Texto (2 de agosto):

Tempo houve em que paladinos e cruzados, fidalgos e plebeus, cingindo a espada e revestindo a férrea armadura, lá iam em fé de seu Deus, por terras e mares batalhar a moirama e libertar o sepulcro santo. Eram tudescos e italianos, flamengos e normandos, louros filhos de Albião e filhos valentes da França que seguiam o mesmo trilho, que obedeciam à mesma voz do Ermitão que lhes clamava o - “Deus o quer!” - com que os ia conduzindo à vitória ou à morte.

Nota:

Albião, de origem celta - alba, por referência às falésias brancas de Dover - ou helênica - Ἀλϐίων, gigante, filho de Poseidon e deus tutelar das ilhas britânicas - Albião é um apelativo antigo para designar a Grã-Bretanha e mais especialmente a Inglaterra.

Becker (2013BECKER, Colette. O discurso da escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola). Tradução Ligia Ferreira. Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 144-156, jan./jun. 2013.) ainda sugere um outro tipo de nota que, no caso deste trabalho, destina-se a fornecer a informação a partir de outro texto, normalmente uma notícia de jornal, retirada até mesmo da própria publicação, para elucidar, clarificar o leitor sobre algum episódio narrado pela cronista.

Texto (5 de julho):

Só quem não viu uma criança, dessas pobres criaturas deserdadas que andam andrajosas e descalças pelas ruas, apanhar, com o júbilo de um mineiro infeliz que descobre um inesperado veio de ouro, o boneco ou o brinquedo roto e quebrado, que, das mãos descuidosas daquelas a quem não faltam mimos nem carinhos, caiu ao chão, é que poderá deixar de fazer ideia do que vai ser o “jubileu das crianças” imaginado pelos generosos corações que pretendem festejar o 14 de julho!

Nota:

Vários jornais estamparam a festa, que aconteceria em 14 de julho de 1890. A edição do Jornal do Commercio, de 11 de julho, noticia: “Continuarão ativamente os preparativos para a festa franco-brasileira a realizar-se no dia e noite de 14 do corrente mês. A comissão central, organizadora dos festejos, sente-se penhoradíssima pelo acolhimento que teve no seio da população desta capital, principalmente do lado das senhoras, a ideia da organização de um ‘jubileu de crianças’”. Os donativos deveriam ser encaminhados para o tesoureiro da comissão, na rua do Ouvidor, n. 64, Casa Costrejean. Outra comissão estava encarregada da matinê literária e musical e uma terceira, encarregada da ornamentação e da iluminação dos bailes populares que aconteceriam na praça Tiradentes, na praça da Aclamação e no Passeio Público. Uma marcha, denominada marche aux flambeaux, sairia do largo do Passo até o Passeio Público, iluminada por fogos de bengala. O Jornal do Commercio de 14 de julho publica a programação do evento.

Retomando os estudos de Colette Becker (2013BECKER, Colette. O discurso da escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola). Tradução Ligia Ferreira. Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 144-156, jan./jun. 2013.), a teórica ressalta que há perigo de o pesquisador se animar e, consequentemente, produzir uma nota que resulte mais importante que o texto. Por outro lado, vale destacar que a elaboração de uma nota de poucas linhas, ou até mesmo de uma linha, foi fruto de longo trabalho de pesquisa.

O presente trabalho, que obedeceu às etapas de localização das crônicas, digitação e cotejo com o original, estabelecimento do texto, pesquisa para a elaboração de notas e organização da edição, faz parte do projeto de pesquisa desenvolvido na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) com o apoio do CNPq e já pode ser consultado, no site da FCRB, o e-book da edição anotada da coluna “Modos e Modas-Usos e Costumes” (textos publicados na Folha Nova) no endereço http://rubi.casaruibarbosa.gov.br/handle/ 20.500.11997/16135. Já foram entregues ao Setor de Editoração da FCRB as crônicas publicadas em O Paiz e Illustração do Brasil. As da coluna “A Esmo”, que foram publicadas no Cidade do Rio e no Correio do Povo, ainda estão sendo trabalhadas.

Para a realização desta pesquisa, contou-se com a colaboração dos bolsistas Giselha Magalhães Lessa e Breno Pagoto de Oliveira, aos quais agradecemos. Somos gratas também à Prof.ª Dr.ª Marlene Gomes Mendes, pela leitura atenta das crônicas de Corina.

REFERÊNCIAS

  • AZEVEDO, Artur. Teatro. A Notícia Rio de Janeiro, p. 2, 1897.
  • BECKER, Colette. O discurso da escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola). Tradução Ligia Ferreira. Patrimônio e Memória São Paulo, v. 9, n. 1, p. 144-156, jan./jun. 2013.
  • BLAKE, Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893.
  • BRASIL, Bruno. Cidade do Rio. Biblioteca Nacional Digital Brasil, Hemeroteca Digital Rio de Janeiro, 3 nov. 2015. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/artigos/cidade-do-rio/ Acesso em: 28 dez. 2021.
    » http://bndigital.bn.gov.br/artigos/cidade-do-rio/
  • COARACY, Corina. Ainda o divórcio. Cidade do Rio Rio de Janeiro, p. 1, 9 ago. 1890.
  • COARACY, Corina. Corina Coaracy. Gazeta de Notícias Rio de Janeiro, p. 1, 2 maio 1892.
  • EXPEDIENTE. Cidade do Rio Rio de Janeiro, p. 1, 13 set. 1890.
  • VASCONCELLOS, Eliane. A mulher na língua do povo Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
  • VASCONCELLOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
  • 1
    Caso algum pesquisador ou instituição saiba onde este periódico pode ser encontrado, agradeceríamos muito que nos fosse comunicado.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2022
  • Aceito
    15 Mar 2022
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br