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Da representação à busca de expressão: visões do indígena na produção literária brasileira1 1 Uma parte deste texto foi publicada anteriormente sob o título “A tópica ‘índio’ do Neoclassicismo ao Romantismo”. In: CASTRO, Silvio (dir.). História da Literatura Brasileira. 3 vols. Lisboa: Publicações Alfa, 1999. v. 2, p. 169-180. Uma versão reduzida foi apresentada online no 13º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), realizado em Roma, Itália, em julho de 2021.

De la representación a la búsqueda de la expresión: visiones del indígena en la producción literaria brasileña

RESUMO

Habitante das terras brasileiras à época de seu descobrimento pelos portugueses, o ameríndio sempre esteve presente, enquanto tema, na produção literária do Brasil, tendo inclusive ocupado posto de relevo em alguns momentos, como nos períodos arcádico e romântico, e em algumas expressões do século XX, como na obra de Antônio Callado e Darcy Ribeiro. No entanto, a despeito do papel que desempenhou nessas narrativas, e dos esforços dos últimos escritores de aproximar-se de sua cultura, ele nunca deixou de ser tratado por uma ótica externa a si mesmo.

Nas últimas décadas, contudo, graças em grande parte ao diálogo que vem sendo estabelecido entre os estudos literários e correntes do pensamento como os Estudos Culturais e Pós-Coloniais, descendentes de índios versados em português, estão buscando recuperar suas tradições ancestrais narrando as estórias de suas tribos e publicando-as em livros. Essa nova expressão, marcada por alto teor de resistência à dominação da cultura hegemônica, já tem dado frutos importantes tanto no que diz respeito à literatura e à cultura brasileira quanto no que se refere ao papel do indígena no quadro político e social do país.

O presente ensaio é uma reflexão sobre essa passagem da representação do indígena à sua busca de uma expressão própria, que vem sendo conhecida como “Literatura indígena contemporânea no Brasil” e uma tentativa de desconstrução da ideia de integração e assimilação dos povos indígenas ao padrão nacional, mostrando que suas manifestações literárias, mesmo quando produzidas através dos códigos de comunicação dominantes, contribuem para o fortalecimento de suas lendas e tradições.

Palavras-chave:
literatura indígena brasileira; representação vs. expressão própria; herança cultural

RESUMEN

Siendo el habitante de las tierras brasileñas en la ocasión de su descubrimiento por los portugueses, el amerindio siempre estuvo presente como tema en la producción literaria brasileña y ha ocupado un puesto de relieve en algunos momentos: por ejemplo, en los movimientos arcádico y romántico, y en algunas expresiones del siglo XX, como en la obra de Antonio Callado y Darcy Ribeiro. Pero a despecho del rol que ha jugado en esas narrativas y de los esfuerzos de estos escritores para aproximarse de su cultura, él nunca ha dejado de ser tratado por una perspectiva externa a sí mismo.

Sin embargo, en las últimas décadas, gracias al diálogo que se ha establecido entre los estudios literarios y corrientes del pensamiento como los Estudios Culturales y Postcoloniales, descendientes de los amerindios que hablan el portugués están empeñados en recuperar sus tradiciones ancestrales narrando las historias de sus tribus y publicándolas en libros. Esa nueva expresión, caracterizada por fuerte resistencia a la dominación de la cultura hegemónica, ya ha producido frutos importantes tanto respecto a la literatura y a la cultura brasileña como en lo que se refiere al rol del indígena en el cuadro político y social del país.

El presente ensayo es una reflexión sobre ese pasaje de la mera representación del indígena por el hombre blanco a su búsqueda de una expresión propia, que está siendo conocida como “Literatura indígena contemporánea de Brasil”. Es también una tentativa de desconstrucción de la idea de integración y asimilación de los pueblos indígenas al padrón nacional, y la propuesta de que sus manifestaciones literarias, mismo cuando son producidas por medio de los códigos de comunicación dominantes, contribuyen para el fortalecimiento de sus leyendas y tradiciones.

Palabras clave:
literatura indígena brasileña; representación vs. expresión propia; herencia cultural

Habitante das terras brasileiras à época de seu descobrimento pelos portugueses, o indígena sempre esteve presente, enquanto tema, na produção literária do Brasil, tendo inclusive ocupado posto de relevo em alguns momentos, como nos períodos arcádico (citem-se aqui as obras de Basílio da Gama, Santa Rita Durão e Cláudio Manuel da Costa), e romântico (Gonçalves Dias e José de Alencar, para ficarmos apenas com os dois mais representativos), e em algumas expressões do século XX, como na narrativa de Antônio Callado e Darcy Ribeiro. No entanto, a despeito do papel que desempenhou nessas obras, e dos esforços dos últimos escritores de aproximar-se de sua cultura, ele nunca deixou de ser tratado por uma óptica externa a si mesmo, fato que foi observado também na América de língua espanhola pelo crítico José Carlos Mariátegui ao referir-se, sobretudo, ao movimento indigenista que dominou os países andinos na primeira metade do século XX. Em suas palavras, “[...] uma literatura indígena, se deve vir, virá a seu tempo. Quando os próprios índios estiverem em condições de produzi-la” (MARIÁTEGUI, 2008MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Tradução de Felipe José Lindoso. São Paulo: Expressão Popular; Clacso, 2008. 290 p., p. 317).

Nas últimas décadas, contudo, graças em grande parte ao diálogo que vem sendo estabelecido entre os estudos literários e correntes do pensamento como os Estudos Culturais e Pós-Coloniais, que deram força para o surgimento de um movimento indígena, descendentes de ameríndios versados em português, estão buscando recuperar suas tradições ancestrais narrando estórias de suas tribos e publicando-as em livros. Essa nova expressão, marcada por alto teor de resistência à dominação da cultura hegemônica, já tem dado frutos importantes tanto no que diz respeito à literatura e à cultura brasileira quanto no que se refere ao papel do indígena no quadro político e social do país. Exemplos são as obras de Eliane Potiguara, Daniel Manduruku, Graça Graúna e Olívio Jekupé, entre outros, em que o indígena, agora sujeito de seu próprio discurso, expressa um esforço extraordinário pela sobrevivência de sua cultura.

O presente ensaio é uma reflexão sobre essa passagem da representação do indígena à sua busca de uma expressão própria, que vem sendo conhecida como “Literatura indígena contemporânea do Brasil” e uma tentativa de desconstrução da ideia de integração e assimilação dos povos indígenas ao padrão nacional, mostrando que suas manifestações literárias, mesmo quando produzidas através dos códigos de comunicação dominantes, contribuem para o fortalecimento de suas lendas e tradições. Esses textos trazem em si as marcas não só da violência vivida pelos indígenas, como a herança tradicional firmada espiritualmente pelos seus ancestrais e manifestada através da escrita por seus remanescentes. Antes, porém, de discutirmos esse momento de afirmação de uma produção realmente indígena, teceremos, para melhor nos situarmos, uma breve panorâmica da presença do elemento indígena nas fases anteriores da literatura brasileira.

Os primeiros textos que se referem ao ameríndio brasileiro não são ainda criações literárias no sentido estrito. Trata-se das cartas dos primeiros exploradores e viajantes que aportaram na nova terra e dos relatos de cronistas e colonizadores que para lá se deslocaram com propósitos diversos, mas definidos. Nesses textos, que se estendem desde a carta de Pero Vaz de Caminha até longos e por vezes minuciosos documentos de historiadores e colonizadores sobre a vida e os costumes do indígena, esse constitui, acima de tudo, objeto de curiosidade, o que atenta para a preocupação com a objetividade que neles vislumbraram estudiosos posteriores. Contudo, se tal preocupação existiu, ela nunca alcançou completamente o alvo que se propôs, pois o indígena emergente desses textos é uma imagem dupla e contraditória que expressa, de modo muito adequado, a ideologia da conquista e da colonização. Assim, de um lado, ele é pintado através de certo tom de exaltação, que visava a atrair o interesse do europeu pela terra conquistada, e de outro apresentado como inferior, ou mesmo bárbaro, para bem justificar a intenção de submetê-lo à cultura do colonizador.

Embora a maioria desses textos contenha uma série de traços em comum, a visão do indígena neles expressa, longe de ser uniforme, varia de acordo com os objetivos que norteiam a vida de cada autor ou grupo de autores. Assim, enquanto os exploradores e viajantes se preocupavam mais com os seus aspectos exteriores - a retratação de hábitos e costumes - e com dados que funcionassem como atrativos para o europeu - a aparente liberdade de suas vidas e a sua docilidade propícia ao processo de colonização - os colonizadores procuravam penetrar mais a fundo em seu modus vivendi, para, entendendo sua cultura, melhor poder dominá-lo. Os primeiros restringiam-se desse modo a um plano mais descritivo, enquanto os segundos já se entregavam a interpretações, cujo teor oscilava frequentemente do favorável ao mais desfavorável. No entanto, por mais simpático que um desses autores se mostrasse à figura do indígena, as vantagens da civilização e do cristianismo não deixaram jamais de serem lembradas, funcionando como parâmetro em qualquer tipo de avaliação. A visão de um Montaigne, por exemplo, ou de historiadores franceses como Jean de Léry, que encontraram algum parentesco futuramente na teoria rousseauniana do bon sauvage, não se registra ainda nessa época nos escritores em língua portuguesa.

Entre os textos em português que, ainda no século XVI, abordaram o indígena, encontram-se já também obras de literatura, as primeiras de que se tem notícia, produzidas no Brasil. E são obras de colonizadores, os jesuítas Manuel da Nóbrega e especialmente José de Anchieta, sob a forma de prosa dialogada, poesia e peças teatrais. Essas obras, de valor estético reconhecido, congregam, como era de se esperar, o caráter descritivista dos documentos mencionados com boa dose de interpretação, e expressam amplo conhecimento da cultura dos povos representados. Mas como a preocupação ideológica que encerram é muito acentuada, tais aspectos acham-se vinculados com frequência - máxime nos autos religiosos - a um inevitável didatismo. A visão que se apresenta do indígena é predominantemente positiva, mas marcada, ao mesmo tempo, por certo tom preconceituoso de condescendência, e a sua cultura é revelada como atrasada, a ser superada pelo processo da catequese. Das obras que mais se destacaram nesse sentido, citem-se o Diálogo sobre a conversão do gentio (1557), do Padre Manuel da Nóbrega, cujo título por si só já indica tratar-se de uma aplicação da fórmula horaciana docere cum delectare, e os poemas e principalmente os autos de Anchieta, dentre os quais o Auto de São Lourenço (1587) e Na vila da Vitória (1595).

No século XVII, o tema do indígena permanece vivo nos relatos de historiadores e colonizadores, que continuam a descrever seu modo de vida, interpretando-o ora favorável ora desfavoravelmente. E na literatura o tema figura na maioria das vezes como pano de fundo. É o caso do poema Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira, que louva a ação portuguesa no Brasil e a beleza da terra, e no qual o ameríndio aparece praticamente só como integrante desse contexto. É o caso também das obras dos dois grandes autores do século, Gregório de Matos e Antônio Vieira: no primeiro, o indígena é apenas um dos personagens de sua extraordinária sátira, e, no segundo, ele é mencionado simplesmente quando se trata da questão de sua escravidão, veementemente combatida pelo autor. Há uma obra, atribuída a Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogo das grandezas do Brasil, escrita no final do século anterior, mas publicada em 1601, em que o tema é um pouco mais explorado, porém ainda longe de ter a dimensão que irá alcançar nos séculos seguintes. É uma tentativa frágil de exaltação do indígena, que acaba revelando-se simpática a uma ação civilizadora e cristianizadora, responsável pelo desaparecimento de muitos hábitos e costumes desses mesmos ameríndios que louvava.

Ao contrário do século precedente, o século XVIII irá projetar novo alento ao tema do ameríndio, tanto em textos documentais e depoimentos, quanto principalmente no âmbito da literatura, em que surgirão as primeiras tentativas de heroicização do indígena. No campo da historiografia, merecem menção as obras de Sebastião da Rocha Pita, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio e Domingos Loreto Couto, em que o indígena é visto mais uma vez por uma óptica contraditória: é um ser humano, mas inferior, e seus costumes são interessantes, mas bárbaros; portanto, deve ser submetido à cultura do colonizador. É essa a postura que domina quase todos os seus escritos, calcada nos valores do cristianismo e na ideologia colonialista. Na área da literatura é mister citarmos três nomes que se destacaram na busca de construção de uma épica, mas antes vale a simples alusão a um texto que, porquanto de passagem, ocupa-se também do indígena dentro da mesma perspectiva dos anteriores - O peregrino da América (1728), de Nuno Marques Pereira. Com as obras de Basílio da Gama, Frei José de Santa Rita Durão e Cláudio Manuel da Costa inicia-se o período em que o indígena se torna matéria de primeira plana na literatura brasileira.

Nas obras dos três últimos autores citados - O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, o Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, e Vila Rica (1773), de Cláudio Manuel da Costa - o indígena, pela primeira vez, aparece atuando como indivíduo, embora, ainda aqui, a óptica que prevalece seja a do colonizador. Em O Uraguai, o ameríndio é pintado por uma perspectiva favorável, que chega à exaltação de sua bravura guerreira e da nobreza de seus sentimentos, e é, sem dúvida, sobre ele que recai o foco de interesse de toda a obra (é a ele que pertencem, por exemplo, os momentos épicos do poema), mas a obra é, no fundo, um canto de louvor ao Marquês de Pombal, protetor do autor, e um libelo às ações dos jesuítas. O Caramuru é o primeiro poema a tomar como motivo uma lenda local, a discorrer sobre o indígena brasileiro e a pintar seus costumes, mas constitui um retrocesso no que concerne ao tratamento dado a ele: aqui a dimensão épica presente no poema anterior é esmaecida e, embora se louvem alguns de seus costumes e se façam referências a sua bravura e ingenuidade, o ameríndio é mostrado constantemente como inferior ao europeu, lembrando-se o tempo todo que é preciso submetê-lo à fé e ao Império. No terceiro poema que integra a tríade mencionada, o Vila Rica, a perspectiva etnográfica, calcada na descrição de lendas e costumes, é substituída por uma espécie de sentimentalização do indígena, que já antecipa, porquanto timidamente, a visão que irá florescer no Romantismo, mas, aqui também, apesar do forte nativismo do autor, o ameríndio continua a ser abordado por uma óptica pouco favorável: ele é o bárbaro rebelde que deve ser domado pela ação civilizatória.

Basílio da Gama, Santa Rita Durão e Cláudio Manuel da Costa não foram os únicos a abordar o tema do indígena na literatura brasileira do século XVIII. Outros houve, em menor escala que, sem se aventurar na tentativa de uma épica, se serviram do tema em suas obras na maioria das vezes em plano secundário (ver: Alvarenga Peixoto e José Bonifácio de Andrada e Silva). E em quase todos eles a perspectiva foi similar: oscilava no que dizia respeito a maior ou menor simpatia pelo elemento indígena, mas tendia invariavelmente ao reconhecimento das vantagens da cristianização e de sua submissão à ação civilizatória europeia. O tema do bon sauvage, desenvolvido nesse século por Rousseau e que irá encontrar terreno tão fértil no Romantismo, praticamente não teve repercussão nesse período, a não ser em uma ou outra composição lírica, de pequena projeção, e da parte de autores que viveram na França (ver: Sousa Caldas e Filinto Elísio). Entretanto, alguns traços que se tornarão básicos no Indianismo de novecentos já se acham presentes na literatura de então. Ressaltem-se, entre eles, a individualização do indígena, tão significativa, sobretudo, em Basílio da Gama, a sua sentimentalização, presente nos três autores, mas mais expressiva em Cláudio, e o nativismo, que irá se fortalecer cada vez mais, associando-se aos anseios políticos pela independência, até desabrochar, na era romântica, sob a forma de nacionalismo.

A preocupação com o elemento indígena sempre esteve marcada, como vimos até então, com tintas claramente políticas; daí a necessidade, surgida entre intelectuais brasileiros, de distinguirem-se duas coordenadas, a primeira mais centrada na observação empírica, que daria matéria para a antropologia e para a política de defesa e proteção do ameríndio, que foi designada de “indigenismo”; e a segunda, de caráter mais eminentemente literário e forte sentido nacionalista, expressa por uma visão tendente ao legendário e mítico, que alcançou sua maior expressão no período romântico e entrou para a historiografia brasileira como “Indianismo”. Surgida com Chateaubriand, por influência das ideias de Rousseau, e movida pelo desejo de evasão de uma sociedade que corrompe e massacra o homem, a literatura de idealização do indígena encontra em solo brasileiro o contexto ideal para o seu florescimento. Só que, na nova terra, o sentido de evasão dessa literatura é substituído por um afã de nacionalismo, e o indígena que em Chateaubriand era valorizado em sua condição de “homem natural” em oposição ao civilizado é aqui não só o elemento nativo, mas o habitante da terra à época do descobrimento, portanto o representante de um passado que era preciso exaltar, sobretudo para fazer frente à colonização europeia. Com a fusão desses dois aspectos, o nativista e o histórico, o indígena ganha dimensão mais ampla, passando a ser o termo diferenciador por excelência da identidade brasileira em oposição ao elemento adventício (o português e o africano), e se ergue como uma espécie de símbolo - é o elemento nacional avant tout. É com este sentido que ele irá figurar na literatura da época, máxime na obra de Gonçalves Dias e José de Alencar, que, um na poesia outro na prosa, constituem os expoentes do Indianismo brasileiro.

Nos poemas indianistas de Gonçalves Dias, que ocupam boa parte de sua obra, o indígena até então enfocado pela literatura brasileira por uma óptica exterior (mesmo nos casos em que se individualiza e chega a ocupar posição de protagonismo) passa a constituir a substância mesma de sua criação, o seu epicentro. E não só é visto em termos idealizados, de franca exaltação de seus valores, como inclusive apreendido por meio de traços de sua própria cultura, que o poeta pesquisou e vivenciou no local. Nas narrativas de Alencar, mais ainda do que na obra do primeiro, a idealização do indígena é levada ao extremo, com a construção de figuras que se tornarão emblemáticas, como as de Peri, do romance O Guarani, e Iracema e Ubirajara, os dois últimos protagonistas de romances com o mesmo título. No entanto, em todas essas obras, o indígena é sempre desenhado pelo olhar do homem branco, e consequentemente marcado por forte contradição: de um lado ele é exaltado a proporções nunca atingidas nas letras nacionais por ser símbolo da terra brasílica em contraposição à europeia, mas por outro é quase todo concebido com os valores da cultura a que se opõe.

O Indianismo romântico não se restringiu obviamente às obras de Gonçalves Dias e Alencar. Ao contrário, abundou em autores que, se não se dedicaram ao tema em extensão, pelo menos o abordaram, de uma ou outra maneira, ao largo de seus textos. Do ponto de vista estético, porém, trata-se, na maioria, de composições de pequeno alcance. Citem-se, contudo, a título de informação, Gonçalves de Magalhães, com o poema A confederação dos tamoios (1856); Bernardo Guimarães, com o romance O ermitão de Muquém (1868); Joaquim Manuel de Macedo, com A moreninha (1844), em que se inserta num dos capítulos a lenda indígena de Aí e Aiotín; e poetas como Junqueira Freire e Fagundes Varela. Em todos esses autores, o tratamento dado ao indígena oscilou muito, desde a perspectiva entusiástica de Alencar até uma visão mais crítica, que aponta para novos rumos, mas em nenhum deles deixou de estar presente certa dose de idealização, somada contraditoriamente a uma atitude que deixa transparecer preconceitos de ordem etnocêntrica. A única exceção a essa regra, dentro do período romântico, talvez seja a figura de Sousândrade, com seu Guesa errante (1866), só verdadeiramente apreciado a partir do Modernismo.

Os movimentos parnasiano e realista-naturalista, que se seguiram ao Romantismo, registram considerável decréscimo no que concerne ao interesse pelo indígena, mas ainda assim muitos de seus representantes produziram obras sobre o tema. É o caso, no campo da poesia, de Olavo Bilac, com a elegia Morte de tapir, e do próprio Machado de Assis, com suas poesias Americanas (1875). É o caso, na seara da prosa, de autores como Franklin Távora, com o seu Os índios do Jaguaribe (1862) e de Inglês de Sousa, com O missionário (1891), para não falar em outros de menor projeção. Entretanto, nesse período, a visão sobre o assunto não traz mais a mitificação que tanto caracterizou o Indianismo romântico, e o indígena, não mais consagrado como símbolo de brasilidade, aparece frequentemente mesclado com o sertanejo, ou outro tipo regional, a quem vai cedendo gradativamente o lugar.

No século XX, verifica-se uma revivescência da temática indígena, primeiramente com o Modernismo, de 1922, e mais tarde, em meados do século, mas sob moldes bastante diferentes. A primeira é uma fase desmistificadora, que, tomando por base o Indianismo romântico e nutrindo-se de contribuições oriundas do folclore e da tradição, somadas a uma releitura de textos dos cronistas e colonizadores do passado, procede a uma revisão do problema e propõe um anti-herói, em lugar do ameríndio, como caricatura do perfil do caráter nacional brasileiro. Desse grupo, é mister citar as figuras de Oswald de Andrade, com seus manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928), que revolucionaram a literatura brasileira; Raul Bopp, com o seu Cobra Norato (1931); e Mário de Andrade, com o Macunaíma (1928), ponto crucial da revisão mencionada. Mas registre-se ainda o manifesto Nhengaçu (1929), do grupo “Verde Amarelo”, em que o indígena é apontado como responsável pela diferenciação do brasileiro.

Nesse período, porém, surge na América de língua espanhola, em especial nos países andinos, um movimento de forte expressão, que foi denominado de “Indigenismo”. Tendo-se constituído em oposição ao Indianismo romântico que, embora não tenha tido a mesma projeção que seu equivalente brasileiro, apresentou algumas obras de peso, e por influência de correntes do pensamento então em voga, voltadas para uma preocupação com a identidade nacional, e, sobretudo, com a exploração do indígena, tão fortemente presente nesses países, o Indigenismo erigiu-se como uma literatura de protesto, marcada por incisivo tom de denúncia dos maus tratos e injustiças sociais sofridos por essa camada da população, máxime no contexto rural, dominado pelo sistema latifundiário. E encontrou sua mais significativa expressão no gênero romance, dos quais vale destacar obras de Alcides Arguedas, Ciro Alegría e Jorge Icaza (1979ICAZA, J. Huasipungo. 12. ed. Buenos Aires: Editorial Losada, 1979. 228 p.), principalmente esse último, com Huasipungo, cujo título já por si só ilustra essa situação: o termo reporta-se à parcela da terra concedida aos indígenas (a menos proveitosa) em troca de sua mão de obra em toda a propriedade.

O Indigenismo literário alcançou forte repercussão no universo hispano-americano, e associou-se em grande parte a outros movimentos de cunho regionalista que se desenvolveram então no continente, inclusive no Brasil (cite-se, como exemplo, o romance regionalista dos anos de 1930), todos marcados por alto teor de crítica da situação econômica, social e política dos contextos representados. No entanto, a despeito da importância que teve essa produção, e da visão simpática à causa indígena, o romance indigenista apresentava uma contradição, que não passou despercebida à crítica de autores como Mariátegui (2008MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Tradução de Felipe José Lindoso. São Paulo: Expressão Popular; Clacso, 2008. 290 p.), e posteriormente Cornejo Polar (1994CORNEJO POLAR, A. Escribir em el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Editorial Horizonte, 1994. ) e Lienhard (1990LIENHARD, M. La voz y su huella: escritura y conflicto étnico-social en América Latina (1492-1988). La Habana: Casa de Las Américas, 1990.): os personagens que integravam o universo narrativo dessas obras eram os indígenas, mas seus autores eram mestiços ou brancos, educados à maneira europeia, que pouco ou nada conheciam sobre a cultura e o modus vivendi daqueles. O resultado era uma narrativa que, embora buscasse recuperar o seu passado extremamente rico e tentasse contribuir para uma mudança das condições de vida do indígena, fazia-o por uma perspectiva externa, em que o referente era o mundo indígena, mas o emissor e o receptor - até mesmo o código e o canal empregados, o romance e a língua espanhola - não são indígenas. O narrador dessas obras apresenta uma voz única das questões tratadas e impõe um único significado ao universo da representação, e os protagonistas, ao invés de falar, são sempre “traduzidos”.

A consciência dessa defasagem entre o autor e o universo representado levou, contudo, a uma mudança de postura da parte de uma nova geração de autores indigenistas, que, imbuídos de um maior conhecimento da cultura indígena, seja por meio da antropologia, seja pela própria vivência, buscaram mergulhar em sua cultura e tentaram representá-la por uma perspectiva interna. Dentre esses, o mais representativo é, sem dúvida, o peruano José María Arguedas, que conviveu com os índios da serra em sua infância e adolescência e assimilou a cosmogonia quíchua e grande conhecimento de suas crenças, tradições e costumes, além de ter desenvolvido estudos, como etnólogo e folclorista, sobre a cultura incaica. Versado tanto em espanhol quanto em quíchua, Arguedas escreve em ambos os idiomas, alternando por vezes de acordo com o gênero (prosa em espanhol; poesia em quíchua), e outras vezes mesclando em uma só obra os dois idiomas, como no romance Los ríos profundos, escrito em espanhol, mas bastante marcado pela oralidade e musicalidade do quíchua, incluindo letras de huaynos - cantos característicos dos Andes peruanos -, e onde se observa a busca de uma língua transculturada do espanhol com o quíchua.

Esse grupo de autores, que foram designados pela crítica de neo-indigenistas, apresentaram em suas obras uma série de aspectos que os tornam realmente distintos dos primeiros, conferindo-lhes uma identidade própria, dentre os quais o recrudescimento do lirismo na narrativa, o que permite que se fale em uma “prosa poemática”, associada à presença de um narrador em primeira pessoa; o emprego do real-maravilhoso como instrumento artístico capaz de revelar o sentido mítico do mundo do homem andino; uma maior amplitude no tratamento do problema do indígena, que deixa de ser discutido apenas em seu microcosmo e passa a ser encarado como uma questão nacional; e a ampliação, complexidade e aperfeiçoamento do arsenal técnico da narrativa, mediante um processo de experimentação, extraído das vanguardas hispano-americanas do início do século. É verdade que o problema principal da geração anterior se manteve, apesar das inovações - os autores continuavam a ser intelectuais, mesmo que mestiços, e empregavam um código diverso (o espanhol escrito em oposição ao quíchua oral) - mas as respostas dadas pelos neo-indigenistas aos impasses criados pela heterogeneidade do mundo andino estavam relacionadas aos efeitos modernizadores e à recriação da língua para aproximar a fala do narrador à dos personagens.

O movimento indigenista hispano-americano não teve equivalente na literatura brasileira da época, pelo menos nos moldes como se caracterizou naquele contexto, mas não deixou de transparecer em áreas como a Antropologia e a Sociologia, nas quais se desenvolveram diversos estudos sobre a situação do indígena, e na política de preservação do ameríndio e sua cultura. Em meados do século, entretanto, surgiram alguns autores que tentaram construir, a partir de seu conhecimento do discurso indígena, um discurso ficcional. É o caso de Antônio Callado, com o seu Quarup (1967), e de Darcy Ribeiro, com Maíra (1976), romance em que mescla suas experiências como antropólogo junto aos índios com alta dose de ficcionalização. Na obra, Ribeiro busca aproximar-se da cultura indígena, mas seu olhar, por mais que tente expressar, como ele próprio afirma, “a dor e o gozo de ser índio”, não chega a penetrar nos meandros mais íntimos de sua cultura e sua maneira de ser. É uma obra que contribui, como também a de Callado, para a projeção do universo indígena, sobretudo pelo conhecimento antropológico e etnográfico que expressa, mas que se erige, acima de tudo, como instância literária, revelando as potencialidades artísticas de seu autor e os seus próprios limites.

Na segunda metade do século XX, época em que a Weltanschauung pós-moderna passou a dominar as plagas ocidentais, e conceitos como o de “nação” deixaram de ser exclusivos no mapeamento da cartografia literária, abrindo espaço para a produção de grupos até então à margem - as chamadas minorias de poder - verificou-se no contexto brasileiro um novo tipo de produção ainda centrado na representação do mundo indígena, mas com uma marca fundamental que a distingue de todas as anteriores: agora os autores são remanescentes ou descendentes de indígenas que, embora educados em instituições de ensino à maneira europeia, produzem uma literatura de forte expressão, que tem como um de seus principais objetivos a recuperação de suas tradições ancestrais, através do relato das estórias de suas tribos. Não mais vistos como “o outro”, mas, ao contrário, sujeitos de seu próprio discurso, os autores dessas narrativas embrenham-se numa luta pela busca de identidade, visando o respeito pela diversidade e a melhoria da sociedade não indígena. E o fazem por uma perspectiva que se poderia designar de “transculturadora”, na medida em que se apropriam dos códigos de comunicação hegemônicos, subvertendo-os sempre que necessário.

A apropriação dos códigos dominantes - como a escritura - como estratégia não só de registro, mas de expansão e divulgação dos pensamentos autóctones, é uma das lutas que muitos desses autores vêm travando como forma de manter viva a chama ancestral. Daniel Munduruku, um dos principais representantes desse grupo de escritores, afirmou, em sua tese de doutorado para a Universidade de São Paulo, posteriormente publicada em livro, que “[...] a apropriação de códigos impostos era de fundamental importância para afirmar a diferença e lutar pelos interesses, não mais de um único povo, mas de todos os povos indígenas brasileiros” (MUNDURUKU, 2012MUNDURUKU, D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012. 232 p., p. 45), e continuou mencionando o simulacro, que definiu como a representação de si a partir do modelo cultural do dominador, como a “[...] possibilidade destes sujeitos políticos atuarem no sentido de romperem a sujeição a que foram historicamente submetidos” (MUNDURUKU, 2012MUNDURUKU, D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012. 232 p., p. 44). Ao apropriar-se da escrita, esses autores não só dão um novo alcance a sua palavra ancestral, que se mantém viva no papel, como expressam suas insatisfações, fazendo-se ouvir e tornando a escritura em importante arma de resistência e transformação.

Em seu livro acima mencionado - O caráter educativo do movimento indígena brasileiro -, Munduruku problematiza diversas questões que motivaram a luta de jovens indígenas por seus direitos, e que resultou na organização pan-indígena conhecida como Movimento Indígena Brasileiro. Criticando o paradigma integracionista, presente nas entidades criadas por diversos governos anteriores, como o Serviço de Proteção ao Índio e a FUNAI, o autor comenta a necessidade a que isso deu origem de inclusão na Constituição de 1988 de uma cláusula referente ao respeito pela diversidade e à criação de uma proteção jurídica especial destinada aos povos indígenas. E salientou o caráter educativo do movimento, que levou a uma modificação do olhar dos próprios indígenas para consigo - favorecendo a sua formação especializada cada vez maior nas instituições de ensino do país, - e da população não indígena que se tornou consciente da diversidade cultural e linguística ao reconhecer um rosto que o Brasil ainda não conhecia. Na linha desse cunho educativo do movimento, destaca-se, como não podia deixar de ser, a produção literária dos indígenas, que se achava em plena efervescência então, revelando entre outras coisas à população geral do país a história dos vencidos.

Esse cunho educativo, ou, se quisermos, “engajado”, da produção literária indígena foi ressaltado por algumas lideranças que se voltaram para a escrita, dentre as quais Eliane Potiguara, que, em seu livro Metade cara, metade máscara, afirmou que a literatura indígena “é um movimento” (POTIGUARA, 2004, p. 15 apudMUNDURUKU, 2012MUNDURUKU, D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012. 232 p., p. 129), uma forma de manifestação dos direitos e identidades dos remanescentes, ou ainda um espaço de organização no qual os escritores indígenas almejam mudanças, através de suas atitudes verbais, no contexto nacional pelos direitos de seus povos. E bastaria um rápido olhar para livros como os do próprio Munduruku (O sinal do pajé, 2003MUNDURUKU, D. O sinal do pajé. São Paulo: Peirópolis , 2003. 56 p., e Todas as coisas são pequenas, 2008MUNDURUKU, D. Todas as coisas são pequenas. São Paulo: Arx, 2008. 72 p.), para que tal se torne evidente. No primeiro, indígenas são instruídos a migrarem para a cidade a fim de informar a população não indígena sobre a importância de sua tradição; e no segundo, um homem urbano se torna familiarizado com a cultura indígena depois de muitos desafios impostos por pajés em nome da tradição, e posteriormente terá a missão de levar para fora da aldeia os ensinamentos adquiridos sobre esta cultura. O primeiro desses livros, como muitos outros produzidos pelos indígenas, é voltado para o público infanto-juvenil, inclusive com belas ilustrações, dada a importância que têm para esses povos a formação do jovem e seu papel na transmissão de sua cultura. O segundo é um romance, voltado para o público adulto, e trata de um homem bem-sucedido na vida urbana, que, após um grave acidente na floresta amazônica, encontra a sabedoria indígena no convívio com um pajé que o salva da morte. Em ambos os livros, de gêneros distintos, está fortemente presente a necessidade de transmitir aos seus descendentes e aos de fora os valores da cultura indígena.

Outro autor que também se destaca na mesma linha de Munduruku é o guarani Olívio Jekupé, que, em livros como O Saci verdadeiro (2002JEKUPÉ, O. O Saci verdadeiro. 2. ed. Londrina: EDUEL, 2002.) e Verá: o contador de histórias (2003JEKUPÉ, O. Verá: o contador de histórias. São Paulo: Peirópolis, 2003. 48 p.), explora com grande argúcia a questão identitária, sugerindo que é na sabedoria ancestral que estaria a chave para uma tomada de consciência, e que os autores indígenas contemporâneos são os porta-vozes desse conhecimento originário. Nesses livros, o autor questiona o conhecimento hegemônico ao apresentar um Saci diferente, visto pela perspectiva indígena: é um Saci indígena, com duas pernas e que ajuda as pessoas que merecem. Nas narrativas, um menino indígena, ao deparar-se com a versão do Saci presente na cultura dominante, e posteriormente estabelecida pela escrita em obras como a de Monteiro Lobato, fica em dúvida sobre qual seria a verdadeira, mas no final acaba optando pela versão que lhe fora transmitida pelos seus antepassados. Os idosos, para os indígenas, são, como quisera Munduruku, as “bibliotecas” em que está guardada a memória ancestral, pois é a palavra que dá sentido ao nosso estar no mundo; assim, ao contar ao leitor, através de palavras escritas, sobre a experiência dos mais velhos e os ensinamentos da cultura e tradição de seus ancestrais, Jekupé utiliza uma estratégia da cultura dominante para com ela nos falar de seu povo, sem deixar de pertencer ao universo oral que emana da cultura indígena.

A voz desses autores que nasceram nas comunidades ou que descendem das diversas etnias indígenas e não carregam em si o sangue autóctone, mas fazem dele uma identidade sólida e bem estruturada, bem como um atributo de resistência e luta, vem constituindo o que atualmente tem sido designado de uma “literatura indígena brasileira contemporânea”. A comunicação indígena em terras do que hoje é o Brasil era predominantemente oral e, embora houvesse diversas formas sofisticadas de registro de diferentes etnias na confecção de artesanato e nas representações corporais, como os ritos, as pinturas e as danças, os primeiros textos escritos por eles de que se tem notícia datam da década de 1970. No entanto, a oralidade como forma tradicional de comunicação autóctone já havia revelado a força da palavra na transmissão da cultura desses povos de geração a geração, e essa questão permaneceu fortemente presente nos textos escritos, expressando-se na forma de narrar, e em todas as instâncias da linguagem empregada: da entoação à morfossintaxe, passando pelo emprego de um vocabulário com grande interferência de termos indígenas e uma musicalidade muito próxima à da língua falada, até a ênfase dada à palavra em si como geradora de uma ampla gama de significados, e que evoca constantemente a poesia dos mitos.

É nessa linha de exploração da palavra poética que podemos situar, por exemplo, o trabalho de Eliane Potiguara e Graça Graúna, remanescentes da cultura indígena que resistiram ao extermínio e que, apropriando-se das letras, dos números e dos códigos sociais do colonizador, empenharam-se na disseminação da cultura de seus povos. Eliane atuou nos momentos iniciais do Movimento Indígena brasileiro e contribuiu politicamente para a criação e articulação de vários outros movimentos, como o primeiro grupo de mulheres indígenas do país, o Grupin (Grupo Mulher-Educação Indígena), que tinha como um de seus principais objetivos o de promover o acesso de mulheres e homens indígenas e suas organizações à informação, mobilizando-os na formação de opinião. Sua poesia, toda marcada por imagens da natureza e do cotidiano de mulheres indígenas, expressa a permanência e sobrevivência desses povos, e um clamor por um presente justo e um futuro liberto. Seu livro Metade cara, metade máscara, estruturado em prosa, é uma forma de liberação da voz feminina e indígena, abafada por tanta opressão, para exprimir a força de suas tradições e valores. A autora acredita que a mulher possui uma energia superior, ligada intimamente à terra, à origem e aos ancestrais; por isso pode ser a esperança de tempos melhores. A mulher pode representar a mediação entre a terra e os homens; daí o seu papel crucial no processo de conscientização dos indígenas e de afirmação de sua identidade.

Graça Graúna (2013GRAÚNA, G. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013. 200 p.), em seu livro Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, originalmente tese de Doutorado defendida na Universidade Federal de Pernambuco, afirma que, na literatura indígena, os autores procuram expressar sua identidade/alteridade fornecendo “uma literatura de sobrevivência para as nações indígenas e de resistência para os brancos”. Nesse livro, em que discorre sobre a conquista da palavra por parte dos indígenas e transita pelos diversos processos políticos e literários que configuraram a produção atual, a autora divide as manifestações literárias indígenas no Brasil em duas grandes fases: o período clássico referente à tradição oral (coletiva) que atravessa os tempos com as narrativas míticas, e o período contemporâneo (da tradição estética individual e coletiva) na poesia e na “contação de histórias” com base em narrativas míticas e no entrelaçamento da história (do ponto de vista indígena) com a ficção (em fase de experimentação). No entanto, ao discutir essa dicotomia (oral/escrita; coletiva/individual), ela a relativiza, ao mostrar que a literatura indígena contemporânea, por mais que se tenha manifestado através da escrita, possui uma raiz oral que se revela pela confluência de vozes silenciadas pela colonização, e que, agora, com a possibilidade de retomada da palavra em tempo e espaço, permanece com sua força coletiva.

Essa relativização da dicotomia oral vs. escrita, que marcou a dominação das culturas ágrafas brasileiras pelo poder da escrita do colonizador é, sem dúvida, uma das grandes contribuições trazidas por essa produção que se firmou a partir da década de 1970, quando o indígena, deixando de ser apenas uma figura representada pelo homem branco, descendente de europeus, passou a assumir a posição de sujeito do discurso, apropriando-se dos instrumentos destes últimos para produzir suas próprias obras. É verdade que na produção anterior que representava o indígena por uma óptica exterior, o simples fato de estar presente na produção literária já era uma forma de chamar atenção para a sua figura e para a condição em que esta figura se encontrava, mas a visão exótica com que ela fora construída no período da literatura indianista romântica ou mesmo a perspectiva crítica, denunciadora, com que fora retratada no período do Indigenismo hispano-americano e de suas poucas expressões no Brasil, revelam a falta de um protagonismo que só vai ser suprida quando o indígena se torna senhor de sua própria fala. Nesse momento, o sentido engajado das obras já presente na fase indigenista adquire uma feição concreta: a luta por seus próprios direitos. E o escritor indígena embrenha-se nessa luta, servindo-se da arma do conquistador - a palavra escrita. Não é à toa que uma das principais reivindicações deste grupo é justamente a demarcação e manutenção de seus territórios. Se suas terras foram tomadas pelos conquistadores e sua posse legalizada por documentos escritos, os chamados “requerimentos”, é através de sua escrita que os indígenas agora clamam pela sua demarcação e pela preservação do que ainda se tem de natureza.

E finalmente, ao falar-se de território no contexto indígena, é preciso observar que o termo, além de portar um significado geográfico, traz também uma noção de história, pois, como afirma a própria Eliane Potiguara, “um território traz marcas de séculos, de cultura, de tradições”... “Território é vida e biodiversidade, é um conjunto de elementos que compõem e legitimam a existência indígena” (POTIGUARA, 2010POTIGUARA, E. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2010. 144 p., p. 105). E Graça Graúna, na mesma linha de reflexão, associa o território à palavra e complementa, citando Cristóbal Muñoz e Massimo Di Felice: “os excluídos marcham e multiplicam-se na luta pelo direito à terra (propriedade coletiva) e à palavra porque a palavra também fertiliza a terra”. Assim, perdê-las (a palavra e a terra, claramente associadas) significaria “perder a própria história coletiva, a própria identidade, enfim, o próprio significado que orienta as relações sociais do indivíduo dentro do grupo e da comunidade em relação às demais e em relação ao próprio mundo simbólico” (DI FELICE; MUÑOZ, 1998 apudGRAÚNA, 2013GRAÚNA, G. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013. 200 p., p. 68). É justamente essa conquista da palavra, em sua forma escrita, que os descendentes de indígenas das últimas décadas do século XX realizaram no território brasileiro e que agora, por intermédio dela - a expressão literária - vêm buscando alcançar no que diz respeito a suas próprias terras.

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    Uma parte deste texto foi publicada anteriormente sob o título “A tópica ‘índio’ do Neoclassicismo ao Romantismo”. In: CASTRO, Silvio (dir.). História da Literatura Brasileira. 3 vols. Lisboa: Publicações Alfa, 1999COUTINHO, E. F. A tópica “índio” do Neoclassicismo ao Romantismo. In: CASTRO, S. (org). História da Literatura Brasileira. Lisboa: Publicações Alfa, 1999. 3 v. p. 169-180.. v. 2, p. 169-180. Uma versão reduzida foi apresentada online no 13º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), realizado em Roma, Itália, em julho de 2021.

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2022
  • Aceito
    11 Nov 2022
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