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Pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo associado a insuficiência mitral grave complicando infarto agudo do miocárdio ínfero-látero-dorsal

Resumos

Descrevemos um caso de pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo associado a grave regurgitação mitral, complicando um infarto ínfero-látero-dorsal. A lesão foi descoberta em ecocardiograma de rotina durante o seguimento ambulatorial. Destacam-se a estratégia cirúrgica bem sucedida, e a boa evolução clínica da paciente.


We described a case of left ventricular pseudoaneurysm associated to a severe mitral regurgitation, complicating a inferolaterodorsal acute myocardial infarction. The lesion was found in a routine echocardiogram during the in-hospital follow-up. The well-succeeded surgical strategy and the good clinical evolution of the patient were distinguished.


RELATO DE CASO

Pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo associado a insuficiência mitral grave complicando infarto agudo do miocárdio ínfero-látero-dorsal

João Luiz de A. A. Falcão; Sandra Nívea R. S. Falcão; Maria Fernanda M. A. Garcia; Ana Lúcia M. Arruda; Alexadre C. Hueb; Fábio B. Jatene; Paulo S. Gutierrez; José Carlos Nicolau; José Antônio F. Ramires; Roberto Rocha C. V. Giraldez

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP - São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência João Luiz de A. A. Falcão Rua Alves Guimarães, 408/121 05410-000 - São Paulo, SP E-mail: jlfalcao@uol.com.br

RESUMO

Descrevemos um caso de pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo associado a grave regurgitação mitral, complicando um infarto ínfero-látero-dorsal. A lesão foi descoberta em ecocardiograma de rotina durante o seguimento ambulatorial. Destacam-se a estratégia cirúrgica bem sucedida, e a boa evolução clínica da paciente.

O pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo após o infarto agudo do miocárdio é uma complicação bastante rara e, freqüentemente, não diagnosticada. O seu aparecimento, no entanto, acarreta um prognóstico sombrio a seus portadores, que podem evoluir rapidamente para óbito. Ao contrário da rotura da parede livre ventricular, as aderências pericárdicas do pseudoaneurisma contêm o sangue intraventricular, conferindo uma natureza menos aguda a esta condição e permitindo que a intervenção terapêutica seja realizada antes de um eventual desfecho fatal. Assim, é importante estar atento ao risco de aparecimento do pseudoaneurisma pós-infarto para que se lance mão dos métodos diagnósticos mais adequados e se corrija a condição rapidamente após sua confirmação.

Relato do Caso

Paciente do sexo feminino de 67 anos, portadora de hipertensão arterial, diabetes mellitus e dislipidemia de controle irregular, foi admitida no Pronto Socorro do Instituto do Coração com dor em ombro esquerdo de forte intensidade há 10 h. O quadro iniciou-se ao repouso, associando-se a náuseas, vômitos e sudorese fria. O ecocardiograma indicava a presença de infarto agudo do miocárdio ínfero-látero-dorsal em curso, com acometimento do ventrículo direito. A cineangiocoronariografia de urgência revelou oclusão completa da artéria coronária direita em sua porção proximal, além de obstruções luminais de 70% no terço médio da artéria interventricular anterior (descendente anterior), de 90% na porção média do seu primeiro ramo diagonal e de 90% no primeiro ramo marginal da artéria circunflexa. A paciente foi submetida a angioplastia transluminal percutânea da coronária direita com implante de stent, obtendo-se fluxo coronariano distal lentificado, classificado como TIMI II. O procedimento foi complicado por trombose e embolização distal com oclusão do ramo ventricular posterior da coronária direita. A paciente evoluiu durante a fase inicial de internação em classe II de Killip, mantendo-se dispnéica aos pequenos esforços. A avaliação ecocardiográfica no 2º dia pós-infarto agudo do miocárdio mostrou acinesia das paredes inferior e posterior do ventrículo esquerdo, associada à hipocinesia lateral e septal; levando a uma disfunção sistólica importante do ventrículo esquerdo (fração de ejeção pelo método de Simpson=35%). O ventrículo direito apresentava função sistólica normal. Ao Doppler, a insuficiência mitral era moderada. Progressivamente, a paciente cursou com melhora do estado clínico; em uso de inibidor da enzima de conversão, hidralazina, nitrato e diuréticos. Houve redução do cansaço, que ainda persistiu a moderados esforços; e despararecimento dos estertores pulmonares. O ecocardiograma transtorácico realizado no 7º pós-infarto do miocárdio, indicou nítida redução da insuficiência mitral, com aparecimento de discreto derrame pericárdico. A cintilografia de perfusão miocárdica realizada no 10º pós-infarto do miocárdio mostrou hipocaptação persistente acentuada das paredes inferior, lateral, apical e dorsal do ventrículo esquerdo. A ventriculografia radioisotópica, conjugada ao estudo cintilográfico, estimou a fração de ejeção do ventrículo esquerdo em 20%. A alta hospitalar ocorreu no dia seguinte.

No seguimento ambulatorial, a paciente persistiu com fadiga e dispnéia a moderados esforços, a despeito de otimização terapêutica. O ecocardiograma de acompanhamento (4 meses após o infarto agudo do miocárdio) confirmou disfunção importante do ventrículo esquerdo (fração de ejeção=27%), à custa de acinesia inferior, e insuficiência mitral moderada, quando foi detectada presença de extenso pseudoaneurisma póstero-lateral do ventrículo esquerdo com colo de 3,5 cm de diâmetro, associado a derrame pericárdico moderado relacionado à parede ínfero-posterior do ventrículo esquerdo (fig. 1).


A paciente foi internada para reavaliação clínica e abordagem cirúrgica. Foi submetida à ressonância nuclear magnética de coração que confirmou o diagnóstico de pseudoaneurisma ventricular de parede ínfero-posterior do ventrículo esquerdo e de regurgitação mitral grave (fig. 2) e indicada a correção cirúrgica. Durante o procedimento, a parede livre do aneurisma foi ressecada e o defeito miocárdico foi corrigido com patch de pericárdio bovino (fig. 3). A valva mitral foi explorada por atriotomia esquerda. Os testes hemodinâmicos mostraram boa coaptação dos folhetos valvares, sem regurgitação residual significativa, julgando-se desnecessária a anuloplastia. A operação foi completada com a revascularização miocárdica por meio de enxertos de veia safena aorta-descendente anterior e aorta- 1º ramo diagonal. Os achados anátomo-patológicos confirmaram a rotura da parede livre do ventrículo esquerdo, com manutenção da cavidade ventricular por trombos e pericárdio, confirmando o diagnóstico de pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo (fig. 4). O período pós-operatório imediato foi complicado por quadro congestivo importante. À ausculta cardíaca, verificou-se leve sopro regurgitante mitral. O ecocardiograma realizado no 10º pós-operatório mostrou ventrículo esquerdo de tamanho normal e disfunção sistólica moderada (fração de ejeção=35%), à custa de acinesia inferior e posterior e hipocinesia das demais paredes. Detectou-se ainda insuficiência mitral discreta e derrame pericárdico moderado, circunscrito à parede ínfero-posterior do ventrículo esquerdo. A paciente recebeu alta hospitalar após compensação clínica.




Durante o seguimento ambulatorial, manteve-se em insuficiência cardíaca congestiva classe funcional II (NYHA) com leve regurgitação mitral. A avaliação ecocardiográfica tardia confirmou os achados pós-operatórios e mostrou regressão do derrame pericárdico.

Discussão

O pseudoaneurisma ventricular é sugerido pelo abaulamento da silhueta cardíaca detectado em exames de imagem. Sua formação envolve a expansão gradual do hematoma intrapericárdico por extravasamento de sangue da cavidade ventricular para o saco pericárdico, após rotura miocárdica parcialmente contida por trombos, fibrose e adesões intrapericárdicas. O diagnóstico definitivo é feito exclusivamente por exame anátomo-patológico, demonstrando-se ausência completa de fibras miocárdicas em uma certa extensão da parede do ventrículo esquerdo, as quais são substituídas por hematoma organizado e pericárdio espessado1,2.

A real incidência do pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo é desconhecida por sua extrema raridade e dificuldade diagnóstica, tornando-se ainda mais incomum após a era fibrinolítica. Apesar disso, sabe-se que a topografia posterior desses falsos aneurismas é pelo menos duas vezes mais comum que a anterior. Esse fato decorre, possivelmente, do apoio da face ínfero-posterior do coração sobre o diafragma. A sustentação do diafragma favorece a formação de adesões intrapericárdicas durante a evolução da pericardite fibrinosa local após o infarto inferior. Esse fato permite que o coração não se rompa abruptamente, a despeito da necrose de toda a espessura do músculo cardíaco da parede do ventrículo, facilitando a contenção da cavidade ventricular pelo pericárdio adjacente. A partir daí, acentua-se a reação inflamatória local que espessa o pericárdio, tornando-o ainda mais resistente à rotura1,3-5.

No caso relatado, além do retardo na reperfusão miocárdica decorrente da admissão tardia da paciente, não foi possível se obter fluxo distal completo TIMI III, pela embolização distal para o ramo ventricular posterior da coronária direita e para a microcirculação (fenômeno de no-reflow) contribuindo para um dano miocárdico mais extenso e predispondo à formação do pseudoaneurisma ventricular.

O diagnóstico clínico dessa condição é difícil. Em quase duas décadas de acompanhamento, entre 1980 e 1996, foram diagnosticados apenas 22 casos antemortem de pseudoaneurisma ventricular pós-infarto na Mayo Clinic. Nessa série, a maioria dos pacientes era do sexo masculino e de faixa etária avançada (média de 68 anos). O intervalo médio entre o infarto do miocárdio e o diagnóstico do pseudoaneurisma ventricular foi de 3,9 meses, variando entre 0 dia e 15 anos. As principais manifestações clínicas associadas à formação do pseudoaneurisma foram insuficiência cardíaca, precordialgia, síncope, arritmia e tromboembolismo sistêmico. Quase um quarto dos casos era assintomático e foram descobertos acidentalmente. A metade dos pacientes tinha antecedente de hipertensão, e a maioria (87%) era vítima de primo infarto. O exame físico era inespecífico, porém a maioria apresentava sopro sistólico em foco mitral à ausculta, sugerindo acometimento simultâneo da valva mitral nessa situação5. O caso supracitado enquadra-se dentro deste perfil epidemiológico. O diagnóstico de pseudoaneurisma póstero-lateral de ventrículo esquerdo foi dado pelo ecocardiograma realizado para avaliação de insuficiência cardíaca no 4º mês após primo infarto.

Os exames de imagem são a parte mais importante da investigação, uma vez que o eletrocardiograma e a radiografia simples de tórax são de pouca utilidade.

A angiografia constituiu-se no principal método de imagem utilizado, apresentando alta sensibilidade no diagnóstico da complicação. A presença de um orifício estreito levando a uma dilatação sacular, e a ausência de artérias coronárias marginando exteriormente a parede aneurismática, são achados angiográficos que sugerem a presença de pseudoaneurisma, ao contrário de aneurisma ventricular verdadeiro3.

Mais recentemente, o ecocardiograma bidimensional ofereceu alguns ganhos diagnósticos, permitindo detectar a descontinuidade do endocárdio ventricular, bem como verificar a presença de um orifício estreito (em relação ao diâmetro do aneurisma) comunicando as cavidades ventricular e aneurismática. O Doppler púlsatil e o colorido têm sido muito úteis, permitindo identificar fluxos sistólico e diastólico intercavitários, i.e., entre o ventrículo esquerdo e o pseudoaneurisma. Apesar de detectar anormalidades em até 90% dos pacientes, permite o diagnóstico definitivo em apenas 25 a 33% dos casos3.

Vários trabalhos recentes têm relatado a utilidade da ressonância nuclear magnética em identificar a presença de pseudoaneurisma de ventrículo esquerdo. As vantagens do método são a excelente resolução espacial e a capacidade de examinar o coração globalmente; permitindo detectar o tamanho e a localização do pseudoaneurisma, além de distinguir as diversas estruturas adjacentes, como pericárdio, trombos e miocárdio4.

Por ser um método pouco invasivo, de baixo custo e facilmente disponível, o ecocardiograma deve ser preferido para a investigação diagnóstica inicial. A ressonância nuclear magnética deve ser realizada como método complementar, uma vez que o diagnóstico definitivo normalmente suscita dúvidas e a detecção de uma camada residual de miocárdio na parede ventricular pode tornar o prognóstico mais favorável. O cateterismo cardíaco pode ser empregado caso persistam dúvidas diagnósticas ou visando definir a anatomia coronariana, objetivando-se melhor planejamento cirúrgico.

O tratamento cirúrgico é o mais adequado para o pseudoaneurisma do ventrículo esquerdo devido ao risco de rotura e morte súbita, ocorrida em 30 a 45% dos casos1,3,6. Alguns autores, no entanto, propõem a possibilidade de tratamento clínico para pseudoaneurismas diagnosticados tardiamente, após 3 meses do infarto, por considerarem que a rotura espontânea nessa fase é menos comum4,5. A freqüente associação de regurgitação mitral grave ao falso aneurisma da parede posterior do ventrículo esquerdo relaciona-se com elevada mortalidade operatória7. Independentemente da modalidade terapêutica empregada, entretanto, a mortalidade do pseudoaneurisma parece relacionar-se, primariamente, à gravidade da disfunção ventricular e da miocardiopatia isquêmica subjacente. No caso em questão, optou-se pela abordagem cirúrgica, visando ressecar o pseudoaneurisma e corrigir a insuficiência mitral, procurando melhorar a condição clínica da paciente, que se mantinha dispnéica a pequenos esforços a despeito da otimização da terapia clínica.

O pseudoaneurisma reduz o débito cardíaco ao dilatar-se durante a sístole ventricular esquerda, roubando parte do volume de sangue a ser ejetado pelo coração. Assim, prejudica a ejeção ventricular anterógrada durante a sístole, gerando insuficiência cardíaca. Essa alteração hemodinâmica acarreta dilatação ventricular progressiva. Na coexistência de insuficiência mitral e pseudoaneurisma ventricular esquerdo, as condições hemodinâmicas são ainda mais desfavoráveis e a evolução para a falência ventricular pode ser ainda mais rápida. Nesses casos, apesar da premente indicação cirúrgica, a troca da valva mitral concomitante ao reparo do pseudoaneurisma, pode produzir aumento súbito da pós-carga ventricular esquerda com possível falência de bomba no período pós-operatório. Por esta razão, parece mais prudente optar-se pelo reparo da valva mitral, preservando o funcionamento do aparato valvar (cordoalhas e músculos papilares), o que favorece o desempenho ventricular7.

A insuficiência mitral associada ao pseudoaneurisma decorre de três fatores principais: dilatação do anel valvar mitral; dilatação ventricular; e restrição da motilidade do folheto valvar posterior devido à perda da contração da parede ventricular e/ou dos músculos papilares. No caso relatado, o reparo da parede miocárdica, com aproximação das bordas e o uso de retalho de pericárdio bovino, permitiu restituir a geometria do ventrículo esquerdo, restabelecendo a função valvar mitral. Este fato pode ser explicado por redução da área discinética, reconstrução ventricular e ajuste de tensão do músculo papilar posterior, permitindo melhor funcionamento do aparato mitral. Apesar da anuloplastia ser usualmente realizada no reparo valvar mitral que acompanha a correção do pseudoaneurisma ventricular; a exclusão da área acinética, com reconstrução ventricular e ajuste de tensão do músculo papilar posterior, parece ser o principal determinante para adequada correção cirúrgica da insuficiência mitral7.

Recebido em 10/07/2004

Aceito em 16/12/2004

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  • Endereço para correspondência
    João Luiz de A. A. Falcão
    Rua Alves Guimarães, 408/121
    05410-000 - São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      16 Dez 2004
    • Recebido
      10 Jul 2004
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