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Caso 6/2015 – Mulher de 40 Anos com Dor Torácica Aguda, Dispneia e Choque

Palavras-chave
Dissecção Aórtica / cirurgia; Doenças da Aorta / cirurgia; Hipertensão; Síndrome de Marfan

Paciente feminina de 40 anos foi transferida à emergência médica por dor torácica, dispneia e choque.

Havia história pregressa de hipertensão arterial, nefropatia por IgA, síndrome HELLP na gravidez (hipertensão, hemólise, aumento de enzimas hepáticas e plaquetopenia).

A paciente procurou o Hospital Regional de Osasco por dor precordial e lombar e parestesia em membros inferiores (10 nov 2013), tendo sido avaliada e liberada para a sua residência. Contudo, como persistissem esses sintomas, retornou àquele hospital no dia seguinte. À admissão, apresentava-se hipotensa (80/50 mmHg), hipertérmica (temperaturas variando entre 37,8°C e 38°C) e hipoxêmica, com estertores crepitantes em pulmões, tendo sido auscultado sopro cardíaco.

Recebeu antibioticoterapia empírica para pneumonia com ceftriaxona, claritromicina e oseltamivir, sendo heparinizada por suspeita de tromboembolismo pulmonar.

A angiotomografia de tórax para diagnóstico de tromboembolismo pulmonar revelou dissecção de aorta tipo A, aumento de área cardíaca e áreas de consolidação em bases pulmonares.

Evoluiu com hipotensão arterial e insuficiência respiratória por edema agudo de pulmão, necessitando de intubação endotraqueal.

À internação no Instituto do Coração (InCor) do HCFMUSP, o exame físico de entrada (15 nov 2013) revelou paciente sedada, com intubação orotraqueal, FIO2 de 100% e saturação de O2 98%. A pressão arterial era 90/40 mmHg, a frequência cardíaca, 120 bpm. Não havia estase jugular e os pulsos de membros inferiores eram assimétricos. A ausculta pulmonar revelou diminuição de murmúrio vesicular em bases. A ausculta cardíaca mostrou hipofonese de bulhas, sopro sistólico +++/6+ e sopro diastólico aspirativo +++/6+ em área aórtica. Ao exame, o abdome era flácido, com ruídos hidroaéreos, sendo o fígado palpado a 3 cm da reborda costal direita.

Foi introduzida noradrenalina endovenosa e solicitados ecocardiograma e angiotomografia de aorta, além de avaliação do cirurgião cardiovascular.

Os exames laboratoriais (15 nov 2013; 2h5) revelaram: hemoglobina, 10,3 g/dL; hematócrito, 32%; VCM, 97 fl; CHCM, 32 g/dL; leucócitos, 15.010/mm3 (neutrófilos 77%, eosinófilos 3%, linfócitos 15%, monócitos 5%); plaquetas, 186.000/mm3; CK-MB, 5,49 ng/mL; troponina I, 2,43 ng/mL; ureia, 51 mg/dL; creatinina, 0,97 mg/dL; magnésio, 1,6 mEq/L; proteína C reativa, 105,23 mg/L; sódio, 137 mEq/L; potássio, 4,8 mEq/L; cálcio ionizado, 1,17 mmol/L; lactato arterial, 12 mg/dL. A gasometria arterial revelou: pH, 7,46; pCO2, 32,5 mmHg; pO2, 129 mmHg; saturação de O2, 98,7%; bicarbonato, 22,9 mmol/L; excesso de base, (-) 0,1 mmol/l.

O ecocardiograma (15 nov 13) revelou câmaras de medidas normais, fração de ejeção de ventrículo esquerdo de 65%, valva aórtica trivalvulada e os seguintes diâmetros aórticos: raiz, 33 mm; e aorta ascendente, 54 mm. Havia lâmina de dissecção em aorta abdominal. O estudo com Doppler e mapeamento de fluxo revelou insuficiência aórtica de grau acentuado.

A angiotomografia revelou extensa dissecção aguda da aorta, Stanford A, iniciando-se na raiz, acometendo toda a aorta torácica e toda a aorta abdominal, e estendendo-se para as artérias ilíacas comuns, comprometendo ainda tronco braquiocefálico e o segmento inicial da artéria carótida comum direita. O exame demonstrou ainda colapso da luz aórtica verdadeira ao final da diástole, com imagem sugerindo obstrução dinâmica do tronco da artéria coronária esquerda.

A paciente foi encaminhada para cirurgia de emergência, com intubação orotraqueal e ventilação mecânica, em uso de noradrenalina endovenosa (0,5 µg/kg/min) e ainda hipotensa. À indução anestésica, apresentou parada cardíaca em atividade elétrica sem pulso, sem resposta à reanimação, e faleceu (15 nov 2013; 15h45).

Aspectos clínicos

O caso é de uma paciente de 40 anos de idade com dissecção aórtica, que evoluiu para choque hipovolêmico e óbito. Era portadora de hipertensão arterial e apresentou síndrome HELLP na gestação. A síndrome HELLP se caracteriza por hemólise, enzimas hepáticas elevadas e plaquetopenia.11 Amaral LM, Cunningham MW Jr, Cornelius DC, LaMarca B. Preeclampsia: long-term consequences for vascular health. Vasc Health Risk Manag. 2015;11:403-15.

Admite-se que sejam fatores de risco para a dissecção de aorta:22 Hagan PG, Nienaber CA, Isselbacher EM, Bruckman D, Karavite DJ, Russman PL, et al. The International Registry of Acute Aortic Dissection (IRAD): new insights into an old disease. JAMA. 2000;283(7):897-903. a) hipertensão arterial; b) síndrome de Marfan; c) valva aórtica bivalvulada; d) síndrome de Turner; e) gestação. Nas necropsias realizadas no InCor33 Gutierrez PS. A matriz extracelular nas doenças da aorta. [Livre-Docência]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2008. entre 1998 e 2007, foram diagnosticados 82 casos de dissecção de aorta. Na maior parte, essas dissecções foram associadas a outras doenças, destacando-se a hipertensão arterial presente em 73/82 casos (90%). Outras doenças relacionadas foram a síndrome de Marfan, outras doenças do tecido conjuntivo, valva aórtica bivalvulada e traumas relacionados a cirurgias torácicas. Um outro estudo de 161 casos de pacientes com dissecção aórtica em necropsia44 Larson EW, Edwards WD. Risk factors for aortic dissection: a necropsy study of 161 cases. Am J Cardiol. 1984;53(6):849-55. relatou hipertensão arterial em 93/161 (57,7%) casos. Outras causas encontradas foram síndrome de Marfan (16 casos), aterosclerose da aorta (38), degeneração da aorta (30). Outros fatores de risco menos prevalentes foram valva aórtica bivalvulada, síndrome de Turner, coarctação da aorta e gestação. Entretanto, a probabilidade de existir dissecção aórtica por coarctação da aorta está relacionada à coexistência de hipertensão arterial ou à valva aórtica bivalvulada congênita. Embora a gestação seja considerada um fator de risco espontâneo para a dissecção da aorta, esse mecanismo é infrequente, estando 25% a 50% dos casos associados concomitantemente com hipertensão.

Em estudo realizado no Estado de São Paulo,55 Santo AH, Puech-Leão P, Krutman M. Trends in aortic aneurysm- and dissection-related mortality in the state of São Paulo, Brazil, 1985-2009: multiple-cause-of-death analysis. BMC Public Health. 2012;12:859. foram observados, ao longo de um período de 25 anos, 42.615 casos de pacientes que morreram por aneurisma da aorta e dissecção, dos quais 36.088 (84,7%) tiveram as seguintes causas básicas de morte identificadas: dissecção (37%), aneurisma da aorta abdominal roto (17,3%) e aneurisma aórtico roto de localização não especificada (17,5%). Entre as mulheres, observaram-se dissecção (38,6%) e aneurismas da aorta de localização não especificada (25,4%). Esse estudo mostrou que, no grupo de mulheres, a dissecção foi mais prevalente, enquanto que, no dos homens, o aneurisma de aorta abdominal foi mais frequente.

Outro fator relevante presente no estudo foi a associação da hipertensão arterial como causa da dissecção aórtica observada em 49% dos pacientes.

A dissecção aórtica é uma doença na qual o diagnóstico pode ser difícil, pois os sinais e os sintomas iniciais podem ser inespecíficos. A paciente em questão procurou atendimento com queixa de dor precordial e dor lombar com parestesia em membros inferiores, sendo que, em um primeiro exame clínico, os dados obtidos não permitiram o diagnóstico. Com a piora e persistência dos sintomas, a paciente retornou ao hospital no dia seguinte já em estado grave, apresentando hipotensão, hipoxemia, febre e sopro cardíaco.

No quadro clínico clássico do paciente que sofre dissecção, predominam dor precordial intensa e síncope. Um estudo com 464 pacientes22 Hagan PG, Nienaber CA, Isselbacher EM, Bruckman D, Karavite DJ, Russman PL, et al. The International Registry of Acute Aortic Dissection (IRAD): new insights into an old disease. JAMA. 2000;283(7):897-903. demonstrou que a dor severa e de inicio súbito foi a queixa mais comum, porém com apresentação clínica bem diversificada. A síncope ocorreu em 12% dos pacientes, 10 (2,2%) dos quais não apresentaram dor. O exame físico pode fornecer dados importantes para o diagnóstico de dissecção da aorta: o déficit de pulso, um dos sinais clássicos, foi verificado em menos de 20% dos pacientes, e o sopro de regurgitação aórtica foi documentado em 44% dos pacientes.

Por ser doença com elevada morbimortalidade, seu diagnóstico e tratamento devem ser rápidos. O tratamento cirúrgico visa à prevenção de complicações fatais, como: 1) tamponamento cardíaco secundário à ruptura da aorta; 2) infarto agudo do miocárdio; 3) insuficiência aórtica sintomática, que ocorreu com a paciente em questão; 4) complicações neurológicas.66 Daily PO, Trueblood HW, Stinson EB, Wuerflein RD, Schumway NE. Management of acute aortic dissections. Ann Thorac Surg. 1970;10(3):237-47.,77 Miller DC. Surgical management of acute aortic dissection: new data. Semin Thorac Cardiovasc Surg. 1991;3(3):225-37.(Dra. Daiana Zupirolli Gonçalves)

    Hipóteses diagnósticas:
  1. Dissecção aguda da aorta

  2. Insuficiência valvar aórtica

  3. Infarto agudo do miocárdio

Necropsia

À necropsia, evidenciavam-se alterações características de hipertensão arterial sistêmica: arteriolosclerose renal e hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo. A hipertensão foi fator subjacente à doença principal, dissecção aguda da aorta, com delaminação estendendo-se desde 1 cm acima do plano valvar, local do orifício de dissecção (Figura 1), até o fim da aorta abdominal. Em consequência da dissecção, houve insuficiência aórtica, choque levando a necrose tubular aguda e a infarto do miocárdio com poucas horas de evolução (Figura 2). Como decorrência do infarto, cujo tamanho não pôde ser delimitado com precisão devido ao pequeno tempo de evolução, e da insuficiência aórtica, observou-se edema agudo dos pulmões (Figura 3), fator final responsável pela morte da paciente. Não havia dissecção, aterosclerose grave ou trombose de artérias coronárias (Figura 4). (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Doença principal: dissecção aguda da aorta tipo I pela classificação de DeBakey, tipo A pela classificação de Stanford, com hipertensão arterial sistêmica subjacente

Figura 1
Aorta ascendente mostrando clivagem que caracteriza dissecção aórtica.
Figura 2
Corte histológico mostrando área de necrose miocárdica recente, indicada pelas setas. Coloração pela hematoxilina e eosina; aumento da objetiva: 20x.
Figura 3
Corte histológico mostrando espaços alveolares preenchidos por material amorfo levemente eosinofílico, correspondente a edema agudo dos pulmões. Coloração pela hematoxilina e eosina; aumento da objetiva: 10x.
Figura 4
Fotomicrografia: secção transversal de artéria coronária, mostrando apenas aterosclerose leve (placa aterosclerótica indicada pelo asterisco). Coloração pelo método pentacrômico de Movat; aumento da objetiva: 1x.

Causa de morte: edema agudo dos pulmões (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Comentários

Quando o tempo de evolução é curto, como aconteceu com esta paciente, o método anatomopatológico não consegue delimitar com exatidão a área acometida pelo infarto agudo do miocárdio. Portanto, não se sabe se a lesão era grande e foi a principal causa do edema pulmonar, ou se foi apenas fator associado à insuficiência aórtica, o que parece menos provável. Um paciente com dissecção aórtica pode sofrer infarto do miocárdio por vários mecanismos, como choque hipovolêmico, dissecção que se estende à artéria coronária, compressão extrínseca de artéria coronária por hematoma na falsa luz, ou, como a angiotomografia mostrou no caso desta paciente, diminuição direta do fluxo coronário decorrente da delaminação da aorta. A despeito de ocorrer infarto do miocárdio, edema agudo dos pulmões é incomum como causa de óbito em portadores de dissecção aguda da aorta, que em geral cursa com hipovolemia pela ruptura e sangramento. A necrose tubular aguda renal pode ter contribuído através do aumento da volemia.

O caso ilustra ainda limites e vantagens dos diversos métodos. Só o diagnóstico por imagem, in vivo, pôde mostrar a obstrução ao fluxo coronário. Sem o movimento, ainda que houvesse exames semelhantes, a necropsia não conseguiria comprovar isso. (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato(dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

References

References
  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015
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