Acessibilidade / Reportar erro

FARINGO-ÍLEO-COLO-ANASTOMOSE COM SUPRIMENTO SANGUÍNEO MICROVASCULAR PARA SUBSTITUIÇÃO ESOFAGOGÁSTRICA POR NECROSE ESOFAGOGÁSTRICA APÓS INGESTÃO CÁUSTICA

RESUMO

Racional:

A necrose esofagogástrica completa após ingestão cáustica é um cenário cirúrgico desafiador para a reconstrução do trânsito digestivo alto.

Objetivo:

Apresentar uma técnica cirúrgica para reconstrução do trato digestivo superior após esofagectomia total e gastrectomia por necrose esofágica e gástrica.

Método:

O trânsito foi restabelecido por interposição faringo-íleo-cólica com anastomose arterial e venosa microcirúrgica com aumento do suprimento sanguíneo. Adicionalmente, anastomose colo-duodeno-anastomótica e íleo-transversa foram realizadas para reconstrução completa do trânsito digestivo.

Resultado:

Este procedimento foi aplicado em um homem de 41 anos com tentativa de suicídio pela ingestão de líquido cáustico alcalino (hidróxido de sódio concentrado). Ocorreu necrose total do esôfago e do estômago, o que exigiu inicialmente esofagogastrectomia total, fechamento ao nível do esfíncter cricofaríngeo e jejunostomia para alimentação enteral produzindo qualidade de vida altamente deteriorada. O procedimento foi realizado mais tardiamente e não houve maiores complicações pós-operatórias precoces e tardias e condições nutricionais normais foram restabelecidas.

Conclusão:

O procedimento é viável e deve ser manejado por equipe multidisciplinar a fim de restabelecer a qualidade de vida normal.

DESCRITORES:
Necrose. Esôfago; anastomose; Cirurgia; cólon ascendente.

ABSTRACT

Background :

Complete esophago-gastric necrosis after caustic ingestion is a challenging surgical scenario for reconstruction of the upper digestive transit.

Aim :

To present a surgical technique for reconstruction of the upper digestive tract after total esophagectomy and gastrectomy due to esophageal and gastric necrosis

Method:

The transit was re-established by means of a pharyngo-ileo-colic interposition with microsurgical arterial and venous anastomosis for augmentation of blood supply. Colo-duodeno-anastomosis and ileo-transverse colic anastomosis were performed for complete digestive transit reconstruction.

Result:

This procedure was applied in a case of 41 years male attempted suicide by ingesting alkali caustic liquid (concentrated sodium hydroxide). Total necrosis of the esophagus and stomach occurred, which required initially total esophago-gastrectomy, closure at the level of the crico-pharyngeal sphincter and jejunostomy for enteral feeding with a highly deteriorated quality of life. The procedure was performed later and there were no major early and late postoperative complications and normal nutritional conditions were re-stablished.

Conclusion:

The procedure is feasible and must be managed by multidisciplinary team in order to re-establish a normal quality of life.

HEADINGS:
Necrosis. Esophagus; anastomosis; Surgery; ascending colon.

INTRODUÇÃO

A reconstrução do trânsito gastrointestinal superior é um desafio cirúrgico22 Barkley C, Orringer MB, Iannettoni MD, Yee J. Challenges in reversing esophageal discontinuity operations. Ann. Thorac. Surg. 2003;76:989-94,33 Braghetto I, Cardemil G, Csendes A, Venturelli A, Herrera M, Korn O, Sepúlveda S, Rojas J. Digestive tract reconstitution after failed esophago-gastro or esophago-coloanastomosis. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2013;26:7-12.,77 Marks JL, Hofstetter WL. Esophageal reconstruction with alternative conduits. Surg Clin North Am. 2012;92:1287-97.. Após falha de operação prévia e desconexão total do trato digestivo, a interposição de cólon é utilizada associada à alta morbidade (50-70%)44 Briel JW, Tamhankar AP, Hagen JA, DeMeester SR, Johansson J, Choustoulakis E, Peters JH, Bremner CG, DeMeester TR. Prevalence and risk factors for ischemia, leak, and stricture of esophageal anastomosis: gastric pull-up versus colon interposition. J Am Coll Surg. 2004;198:536-41.,55 Dickinson KJ, Blackmon SH. Management of Conduit Necrosis Following Esophagectomy. Thorac Surg Clin. 2015;25:461-70.. Uma dificuldade adicional ocorre quando não há esôfago cervical disponível para reconstrução em pacientes com ingestão cáustica.

O objetivo deste estudo é apresentar uma técnica cirúrgica a ser utilizada para reconstrução do trânsito digestivo superior com aumento da oferta de sangue microvascular.

MÉTODO

Este trabalho foi conduzido eticamente de acordo com a Declaração da Associação Médica Mundial de Helsinque.

Ao fazer o procedimento, o paciente deve ser atendido por equipe multiprofissional, composta por cirurgiões gastrintestinais e microvasculares, nutrólogos, anestesistas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, endoscopistas e com suporte psiquiátrico.

Técnica cirúrgica

Inicialmente é realizada laparotomia mediana e adesiólise supra-infra mesocólica completa. O cólon direito e íleo distal são mobilizados. Os pedículos vasculares são identificados preservando-se os vasos cólicos direitos e médios e as arcadas vasculares mesentéricas ileais para serem utilizados posteriormente para a anastomose microvascular. As etapas cirúrgicas sequenciais são: 1) divisão do tronco ileo-ceco-apêndico-cólico, ligadura em sua origem e divisão do íleo distal a 20 cm antes da válvula ileocecal; 2) divisão do cólon transverso à esquerda dos vasos cólicos médios com um cartucho de grampeador linear violeta (Medtronic®, Figura 1); 3) tunelização retroesternal para ascensão do íleo-cólon isoperistáltico em direção à região cervical; 4) simultaneamente, uma cervicotomia esquerda é realizada com dissecção e identificação dos vasos da tireoide, veia jugular interna e artéria carótida externa; 5) os pedículos vasculares são preparados; 6) íleo e cólon direito são girados e ascendidos através do túnel retroesternal em direção à faringe. São realizadas por cirurgiões digestivos a anastomose faringoileal laterolateral com suturas manuais interrompidas por Monocryl® 3/0, tutoradas com um bougie 36F, e uma anastomose ileoileal à maneira de Tomoda com sutura contínua com Monocyl® 3/0 (Figura 1).

FIGURA 1
Imagens intraoperatórias dos tempos abdominal e cervical: A) transiluminação do tronco íleo-ceco-apêndico-cólico; B) cólon direito dissecado e íleo distal; C) enxerto ileocolônico preparado para ascensão; D) anastomose faringoileal na etapa cervical; E) anastomose vascular; F) visão final em uma alça Tomoda

O aumento do suprimento sanguíneo arterial é obtido pelo pedículo da arcada arterial do íleo para a artéria tireoidea superior e pedículo de arcada venosa para a veia tireoidea inferior com anastomose microvascular com sutura contínua Ethylon® 9/0. O procedimento é completado com uma anastomose com sutura dupla coloduodenal manual utilizando Monocryl 3/0 e finalmente a anastomose mecânica ileotransversa com um grampeador cartucho branco Medtronic® de 60 mm. Um fino dreno de látex próximo à anastomose duodenal é exteriorizado no quadrante abdominal superior direito e deixado no lugar. Um dreno de Penrose cervical é colocado.

RESULTADO

Este procedimento foi aplicado em um homem de 41 anos com tentativa masculina de suicídio pela ingestão de líquido cáustico alcalino (hidróxido de sódio concentrado). Ocorreu necrose total do esôfago e do estômago, que exigiu esofagogastromia total, fechamento ao nível do esfíncter crico-faríngeo e jejunostomia para alimentação enteral. Durante os três anos seguintes, ele apresentou qualidade de vida altamente deteriorada, manejo nutricional inadequado e permaneceu sob suporte psiquiátrico (escore GIQLI=73). O paciente foi avaliado confirmando afagia, emagrecimento (IMC=18,9) com desnutrição calórica protéica severa, sarcopenia (albumina sérica=2,9), deficiência de vitamina e anemia. O exame físico cardiopulmonar era normal.

A deglutição com sulfato de bário mostrava ausência de passagem do contraste distal ao seio piriforme (Figura 2A e B), e a endoscopia confirmava os achados radiológicos (Figura 2C e D). Enema baritado e colonoscopia não mostravam achados patológicos. A angiotomografia computadorizada para avaliar o suprimento vascular de vasos cervicais, cólon direito e íleo distal demonstrou excelentes pedículos e arcadas vasculares, sem achados patológicos.

FIGURA 2
Avaliação pré-operatória - Estudo baritado: A) visão lateral; B) visão frontal. Estudo endoscópico: C e D) mostrando fechamento completo da faringe

A única alternativa para o tratamento cirúrgico foi a realização de interposição de cólon com anastomose faringo-íleo-colônica e implante cirúrgico microvascular para garantir o suprimento sanguíneo, como descrito aqui. A duração da operação foi de 6 h 55 min e o sangramento total foi estimado em 250 ml. O paciente ficou hospitalizado para nutrição médica intensiva e fisioterapia.

Resultado pós-operatório

Houve hemorragia gastrointestinal alta sem repercussão hemodinâmica ou queda de hemoglobina mais provavelmente devido ao sangramento da linha de sutura da anastomoses coloduodenal e medicamente manejada. Nenhuma outra complicação foi observada. O paciente recebeu inicialmente nutrição parenteral intravenosa total e nutrição enteral por meio de jejunostomia. O meio de contraste oral solúvel em água foi indicado no 7º dia de pós-operatório, que mostrou discreta estenose das anastomoses faringoileal. Endoscopia digestiva alta com dilatação Savary-Guillard 36F promoveu bom trânsito no segmento ileocólico (Figura 3A, endoscopia, Figura 3B, bário ingerido). Após reabilitação da deglutição, foi iniciada a ingestão oral. O paciente recebeu alta no 17º dia do pós-operatório com nutrição enteral oral e complementada por jejunostomia. No primeiro mês de seguimento, alcançou nutrição oral completa e a jejunostomia foi retirada.

FIGURA 3
Controle pós-operatório demonstrando ausência de estenose anastomótica: A) endoscopia; B) exame baritado

Seguimento

No seguimento de um ano, o paciente continuava com a ingestão oral normal e tratamento vitamínico suplementar. Estava em estado nutricional adequado e qualidade de vida significativamente melhorada, passando da pontuação GIQLI pré-operatória de 73 para a pós-operatória de 122.

DISCUSSÃO

Há ocasiões em que o esôfago cervical não está disponível e a anastomose deve ser realizada no nível faríngeo33 Braghetto I, Cardemil G, Csendes A, Venturelli A, Herrera M, Korn O, Sepúlveda S, Rojas J. Digestive tract reconstitution after failed esophago-gastro or esophago-coloanastomosis. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2013;26:7-12.,77 Marks JL, Hofstetter WL. Esophageal reconstruction with alternative conduits. Surg Clin North Am. 2012;92:1287-97., não sendo possível o uso do estômago e, portanto, é utilizado um segmento de cólon. Para este procedimento, preferências foram descritas para diferentes segmentos cólicos. A decisão final sobre qual segmento empregar depende da experiência de cada equipe cirúrgica22 Barkley C, Orringer MB, Iannettoni MD, Yee J. Challenges in reversing esophageal discontinuity operations. Ann. Thorac. Surg. 2003;76:989-94,44 Briel JW, Tamhankar AP, Hagen JA, DeMeester SR, Johansson J, Choustoulakis E, Peters JH, Bremner CG, DeMeester TR. Prevalence and risk factors for ischemia, leak, and stricture of esophageal anastomosis: gastric pull-up versus colon interposition. J Am Coll Surg. 2004;198:536-41.,55 Dickinson KJ, Blackmon SH. Management of Conduit Necrosis Following Esophagectomy. Thorac Surg Clin. 2015;25:461-70.. Para avaliar o tipo de enxerto cólico a ser realizado, estudo pré-operatório com AngioTC 3-D do abdome e da pelve é muito útil, com 97,1% de acurácia diagnóstica anatômica do suprimento vascular mesentérico e cólico66 Kesler KA, Pillai ST, Birdas TJ, Rieger KM, Okereke IC, Ceppa D, Socas J, Starnes SL. "Supercharged" isoperistaltic colon interposition for long-segment esophageal reconstruction. Ann Thorac Surg. 2013;95:1162-8. A taxa de complicações relatadas inclui necrose do enxerto (0-14%), vazamentos anastomóticos (0-50%), estenose anastomótica (0-32%), complicações respiratórias (10-42%), e mortalidade pós-operatória (0-16,7%)11 Bakshi A, Sugarbaker D, Burt B. Alteranative conduits for esophageal replacement. Ann Cardiothorac Surg. 2017; 6: 137-143.,22 Barkley C, Orringer MB, Iannettoni MD, Yee J. Challenges in reversing esophageal discontinuity operations. Ann. Thorac. Surg. 2003;76:989-94,44 Briel JW, Tamhankar AP, Hagen JA, DeMeester SR, Johansson J, Choustoulakis E, Peters JH, Bremner CG, DeMeester TR. Prevalence and risk factors for ischemia, leak, and stricture of esophageal anastomosis: gastric pull-up versus colon interposition. J Am Coll Surg. 2004;198:536-41.,55 Dickinson KJ, Blackmon SH. Management of Conduit Necrosis Following Esophagectomy. Thorac Surg Clin. 2015;25:461-70.

Recentemente, com o intuito de garantir adequado suprimento sanguíneo do órgão ascendente, vários autores relataram casos utilizando anastomose microcirúrgica entre os vasos da arcada vascular ileal e os troncos vasculares do pescoço com excelentes resultados66 Kesler KA, Pillai ST, Birdas TJ, Rieger KM, Okereke IC, Ceppa D, Socas J, Starnes SL. "Supercharged" isoperistaltic colon interposition for long-segment esophageal reconstruction. Ann Thorac Surg. 2013;95:1162-8. Considerando esses argumentos, a fim de prevenir isquemia ou necrose do enxerto, planejou-se potencialização do suprimento sanguíneo vascular com anastomose microcirúrgica para os vasos cervicais. Algumas vezes é necessária ressecção parcial do manúbrio esternal e da cabeça clavicular esquerda, a fim de ter espaço adequado para ascensão do enxerto com menor probabilidade de compressão da irrigação vascular77 Marks JL, Hofstetter WL. Esophageal reconstruction with alternative conduits. Surg Clin North Am. 2012;92:1287-97..

CONCLUSÃO

Esses casos representam situação clínica muito desafiadora, que deve ser avaliada e gerenciada de forma multidisciplinar e multiprofissional, a fim de restabelecer qualidade de vida próxima à normalidade. O procedimento aqui descrito é viável para ser utilizado em casos de necrose cáustica total do esôfago e estômago, necessitando de ressecção desses segmentos em uma operação prévia.

REFERENCES

  • 1
    Bakshi A, Sugarbaker D, Burt B. Alteranative conduits for esophageal replacement. Ann Cardiothorac Surg. 2017; 6: 137-143.
  • 2
    Barkley C, Orringer MB, Iannettoni MD, Yee J. Challenges in reversing esophageal discontinuity operations. Ann. Thorac. Surg. 2003;76:989-94
  • 3
    Braghetto I, Cardemil G, Csendes A, Venturelli A, Herrera M, Korn O, Sepúlveda S, Rojas J. Digestive tract reconstitution after failed esophago-gastro or esophago-coloanastomosis. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2013;26:7-12.
  • 4
    Briel JW, Tamhankar AP, Hagen JA, DeMeester SR, Johansson J, Choustoulakis E, Peters JH, Bremner CG, DeMeester TR. Prevalence and risk factors for ischemia, leak, and stricture of esophageal anastomosis: gastric pull-up versus colon interposition. J Am Coll Surg. 2004;198:536-41.
  • 5
    Dickinson KJ, Blackmon SH. Management of Conduit Necrosis Following Esophagectomy. Thorac Surg Clin. 2015;25:461-70.
  • 6
    Kesler KA, Pillai ST, Birdas TJ, Rieger KM, Okereke IC, Ceppa D, Socas J, Starnes SL. "Supercharged" isoperistaltic colon interposition for long-segment esophageal reconstruction. Ann Thorac Surg. 2013;95:1162-8
  • 7
    Marks JL, Hofstetter WL. Esophageal reconstruction with alternative conduits. Surg Clin North Am. 2012;92:1287-97.
  • 8
    Nesgaard JM, Stimec BV, Bakka AO, Edwin B, Ignjatovic D. RCC study group Navigating the mesentery: part II. Vascular abnormalities and a review of the literature. Colorectal Dis. 2017;19:656-666.
  • Fonte de financiamento:

    não há

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2018
  • Aceito
    29 Mar 2018
Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 278 - 6° - Salas 10 e 11, 01318-901 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (11) 3288-8174/3289-0741 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaabcd@gmail.com