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Doença de Graves e deficiência de IgA como manifestações da síndrome de deleção 22q11.2

Graves disease and IgA deficiency as manifestations of 22q11.2 deletion syndrome:

Resumos

A síndrome de deleção 22q11.2 (SD22q11.2) está associada à alta variabilidade fenotípica, abrangendo o espectro velocardiofacial/síndrome de DiGeorge. Manifestações autoimunes, endocrinológicas e de imunodeficiência vêm sendo relatadas associadas à síndrome. O objetivo deste estudo foi relatar um caso de SD22q11.2 associado à deficiência de IgA e à doença de Graves e rever a literatura visando verificar a frequência dessas alterações na SD22q11.2. Os distúrbios autoimunes, cada vez mais relacionadas a SD22q11.2 e novos fenótipos, vêm sendo incorporadas ao seu espectro clínico. No presente estudo, verificou-se que a doença de Graves associada à SD22q11.2 foi relatada em apenas dezesseis pacientes e quinze descritos na literatura nos últimos 13 anos. Com base na incidência e na amplitude de seu espectro de manifestações já reconhecidas, reforçaram-se os achados da literatura de que a doença de Graves deve ser incluída nas manifestações da SD22q11.2, o que nos levaria a pesquisá-la nos portadores da deleção 22q11.2.


The 22q11.2 deletion syndrome (22q11.2DS) is related to a high phenotypic variability including the velocardiofacial/DiGeorge spectrum. Autoimmune, endocrine and immunodeficiency manifestations have been reportedly associated with the syndrome. The objective of this study was to report a case of 22q11.2DS associated with IgA deficiency and Graves disease and review literature in order to verify the frequency of syndrome alterations. Autoimmune disorders have been increasingly related to 22q11.2DS, and new phenotypes are being incorporated in the clinical spectrum of this syndrome. In our study we found that Graves disease in association with 22q11.2DS was reported in only sixteen patients, and fifteen cases were described in the last 13 years. Based on the incidence and on the amplitude of this recognized spectrum, we reinforce the findings of literature that Graves disease should be included on the 22q11.2DS manifestations, which would lead us to seek it with 22q11.2 deletion patients.


APRESENTAÇÕES DE CASOS

CASO CLÍNICO

Doença de Graves e deficiência de IgA como manifestações da síndrome de deleção 22q11.2

Graves disease and IgA deficiency as manifestations of 22q11.2 deletion syndrome:

João Miguel de Almeida SilvaI; Cecília Pereira SilvaII; Flavio Fernando Nogueira de MeloIII; Luis Alberto A. SilvaIV; Claudia Yamada UtagawaV

ICurso de Medicina do Centro Universitário de Volta Redonda (UniFOA), Volta Redonda, RJ, Brasil

IIEnsino de Ciências da Saúde e Meio Ambiente. Pediatria do Curso de Medicina, UniFOA, Volta Redonda, RJ, Brasil

IIIEnsino de Ciências da Saúde e Meio Ambiente. Clínica Médica do Curso de Medicina, UniFOA, Volta Redonda, RJ, Brasil

IVCTI Pediátrico do Hospital Vita, Volta Redonda, RJ, Brasil

VFaculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Genética Clínica do Curso de Medicina, UniFOA, Volta Redonda, RJ, Brasil

Correspondence to Correspondência para: João Miguel de Almeida Silva Curso de Medicina, UniFOA Rua Paulo Erlei Alves Abrantes, 1.325 27240-560 - Volta Redonda, Rio de Janeiro, Brasil joaomiguel87@yahoo.com.br

SUMÁRIO

A síndrome de deleção 22q11.2 (SD22q11.2) está associada à alta variabilidade fenotípica, abrangendo o espectro velocardiofacial/síndrome de DiGeorge. Manifestações autoimunes, endocrinológicas e de imunodeficiência vêm sendo relatadas associadas à síndrome. O objetivo deste estudo foi relatar um caso de SD22q11.2 associado à deficiência de IgA e à doença de Graves e rever a literatura visando verificar a frequência dessas alterações na SD22q11.2. Os distúrbios autoimunes, cada vez mais relacionadas a SD22q11.2 e novos fenótipos, vêm sendo incorporadas ao seu espectro clínico. No presente estudo, verificou-se que a doença de Graves associada à SD22q11.2 foi relatada em apenas dezesseis pacientes e quinze descritos na literatura nos últimos 13 anos. Com base na incidência e na amplitude de seu espectro de manifestações já reconhecidas, reforçaram-se os achados da literatura de que a doença de Graves deve ser incluída nas manifestações da SD22q11.2, o que nos levaria a pesquisá-la nos portadores da deleção 22q11.2.

SUMMARY

The 22q11.2 deletion syndrome (22q11.2DS) is related to a high phenotypic variability including the velocardiofacial/DiGeorge spectrum. Autoimmune, endocrine and immunodeficiency manifestations have been reportedly associated with the syndrome. The objective of this study was to report a case of 22q11.2DS associated with IgA deficiency and Graves disease and review literature in order to verify the frequency of syndrome alterations. Autoimmune disorders have been increasingly related to 22q11.2DS, and new phenotypes are being incorporated in the clinical spectrum of this syndrome. In our study we found that Graves disease in association with 22q11.2DS was reported in only sixteen patients, and fifteen cases were described in the last 13 years. Based on the incidence and on the amplitude of this recognized spectrum, we reinforce the findings of literature that Graves disease should be included on the 22q11.2DS manifestations, which would lead us to seek it with 22q11.2 deletion patients.

INTRODUÇÃO

A síndrome de deleção 22q11.2 (SD22q11.2) é considerada uma das síndromes de microdeleção genética mais frequentes em seres humanos, com a incidência de aproximadamente 1 caso para cada 4 - 5.000 nascidos vivos (1). A síndrome de DiGeorge e a síndrome velocardiofacial são as duas principais representações clínicas da deleção do 22q11.2 (2). Essas denominações distintas ocorrem em razão da grande amplitude fenotípica da síndrome, que foi nomeada de síndrome de DiGeorge e de síndrome velocardiofacial, entre outras, em épocas diferentes, antes da identificação da alteração cromossômica comum às duas, descoberta no início da década de 1990 (3).

Diversas manifestações clínicas podem ser encontradas na SD22q11.2, incluindo dismorfismo facial, malformações cardíacas, hipocalcemia, imunodeficiências, fenda labiopalatina, hipoplasia tímica, alterações da linguagem e do desenvolvimento (4). A maior disponibilidade de testes genéticos e o crescente conhecimento sobre a síndrome têm aumentado o número de casos descritos, levando a uma ampliação do espectro clínico, permitindo, dessa forma, o diagnóstico em pacientes com manifestações não clássicas.

As manifestações endócrinas mais encontradas na SD22q11.2 são: hipoparatireoidismo, baixa estatura e disfunções tireoidianas, com predomínio do hipotireoidismo (5,6). Estudos prévios relataram que a hipocalcemia decorrente da hipofunção da paratireoide é certamente a manifestação endócrina mais comum nessa síndrome (7-10). A incidência da baixa estatura associada à SD22q11.2 varia entre 39% e 67%, não havendo evidências que a correlacione com baixos níveis de hormônio de crescimento (7,8).

A doença de Graves foi associada à SD22q11.2 em alguns casos, relacionando-se com a maior suscetibilidade dos portadores da deleção 22q11.2 às doenças autoimunes já descritas na literatura (11,12).

Este estudo tem o objetivo de relatar a manifestação da doença de Graves associada à imunodeficiência de IgA em uma criança com SD22q11.2 e rever a literatura visando verificar a frequência desses achados na síndrome.

RELATO DO CASO

Paciente de 10 anos e quatro meses de idade, masculino, branco, filho de mãe de 38 anos e pai de 42 anos, saudáveis e não consanguíneos, foi admitido em um pronto-socorro pediátrico queixando-se de palpitação e manchas no corpo. O pai relata que a criança já havia apresentado 32 episódios de pneumonia, sendo o primeiro com 20 dias de vida, além de diarreia oleosa desde o período neonatal. Iniciou quadro dermatológico aos 2 anos de idade, com diagnóstico presuntivo de eczema atópico com piora no último mês. Realizou tratamento bem-sucedido para pé-torto congênito e relata a história de fraqueza muscular associada à dificuldade de ganho pôndero-estatural, pesando atualmente 24.100 gramas (P5) e altura de 132 cm (P10-25).

O paciente nasceu de parto cesário, a termo, com peso de 2.500 gramas, comprimento de 49 cm e pé torto congênito à direita, recebendo alta no segundo dia de vida. A mãe tem a história de um aborto espontâneo no primeiro trimestre.

Frequenta a 4ª série do ensino fundamental apresentando déficit cognitivo e faz acompanhamento com fonoaudióloga há seis anos por problemas na fonação.

À admissão apresentava frequência cardíaca de 135 bpm, frequência respiratória de 20 ipm e pressão arterial de 110 x 70 mmHg. À inspeção verificaram-se fácies peculiar alongada (Figura 1), cabelos finos e quebradiços, fendas palpebrais estreitas, nariz proeminente, voz hipernasal e tremores finos de extremidade. A oftalmopatia de Graves foi excluída na avaliação oftalmológica. A orofaringe e a membrana timpânica mostraram-se hiperemiadas. O paciente também apresentava voz anasalada, dificultando a compreensão da fala. À palpação evidenciaram-se adenomegalias axilares, cervicais e inguinais móveis, indolores com tamanho variando entre 1,0 e 1,5 cm, além de uma tireoide difusamente aumentada de volume e aumento e endurecimento da parótida esquerda. A genitália externa era masculina com testículos tópicos. Os membros inferiores apresentavam-se simetricamente edemaciados, a pele apresentava lesões hipocrômicas com superfície áspera e mixedema pré-tibial, indicativo de dermopatia por doença de Graves.


Os exames complementares mostravam TSH de 0,01 μUI/ml (valor de referência [VR] = 0,3 a 5,0 μUI/ml) e tiroxina livre de 5,6 ng/ml (VR = 0,75 a 1,8 ng/ml), tendo sido ambos mensurados por quimioluminescência. A pesquisa do Thyroid Stimulating Hormone Receptor Antibody (TRAb), mensurado por radioimunoensaio, revelou um valor de 99,5% (inibição maior que 10% é considerado positivo). A dosagem da antitireoperoxidase (anti-TPO) feita pela quimioluminescência evidenciou 65UI/ml (VR = até 35UI/ml). A investigação da imunodeficiência mostrou a imunoglobulina A (IgA) sérica de 13,0 mg/dl (VR = 29,0 a 270,0 mg/dl) e IgA salivar de 1,13 mg/dl (VR = 9 a 38 mg/dl) compatível com o diagnóstico de deficiência seletiva de IgA. A tipagem dos linfócitos, feita por meio da procura de linfócitos T(CD3) e B(CD19), não mostrou alterações. A dosagem do IGF-I mostrou-se normal, com o valor de 96,5 ng/ml (VR = 80 a 438 ng/dl). O cálcio sérico iônico de 1,23 mmol/L (VR= 1,0 a 1,32 mmlo/L), o fósforo de 5,1 mg/dl (VR = 3,1 a 6,6 mg/dl) e o PTH molécula intacta de 49,9 pg/ml (VR = 12 a 65 pg/ml) estavam dentro da normalidade. O ecoDopplercardiograma e a avaliação otorrinolaringológica do palato e dos seios da face feita por nasofibroscopia não mostraram alterações. Realizou-se tomografia de tórax em razão das pneumonias de repetição, evidenciando áreas discretas de bronquiectasias e timo sem alterações.

A pesquisa molecular, solicitada diante da fácies típica do paciente, feita por meio da polymerase chain reaction (PCR), evidenciou perda da heterozigosidade por deleção na região crítica 22q11.2. A técnica de PCR empregada utilizou a detecção de três marcadores polimórficos do cromossomo 22, relacionados à região crítica: D22S264, D22S941, D22S944.

A conduta terapêutica instituída para o tratamento do hipertireoidismo incluiu propiltiouracil (250 mg/dia divididos em três tomadas) e propranolol (20 mg duas vezes por dia), além de adotar-se conduta profilática para a deficiência de IgA, compreendendo a antibioticoprofilaxia com rodízio trimestral de amoxicilina, amoxicilina com clavulanato e azitromicina. Após um ano de evolução, o paciente apresentou ganho na velocidade de crescimento, com estatura atual de 138,5 cm (P25-50) na idade de 11 anos e 10 meses e melhora no rendimento escolar. O propranolol foi suspenso após três meses. Atualmente, o paciente se mantém em uso de propiltiouracil e a avaliação da função tireoidea encontra-se normal, estando o paciente assintomático e sem quadros infecciosos. O TRAb, agora realizado por eletroquimioluminescência, se mantém positivo com o valor de 2,69 UI/L (VR = até 1,75 UI/L).

DISCUSSÃO

O variado espectro clínico da SD22q11.2 caracteriza-se pelo acometimento sistêmico. Mais de cem achados clínicos, tanto físicos como comportamentais, já foram relatados, entretanto, nenhuma das alterações ocorre com 100% de frequência, indicando não haver manifestações obrigatórias ou patognomônicas para a síndrome (13). Em razão da grande variabilidade clínica, faz-se necessário um bom acompanhamento clínico e laboratorial (1). A fim de identificar o grupo de crianças com o maior risco para a SD22q11.2, Wilson e cols. (14) propuseram a unificação desse grande número de doenças, o que levou à criação, em 1993, do acrônimo CATCH 22 (Conotruncal heart defect, Abnormal face, T-cell deficiency, Clefting, e Hypocalcemia), decorrente de uma anormalidade no cromossomo 22. Entretanto, tal acrônimo foi rejeitado por muitos geneticistas clínicos, sendo preferível a nomenclatura atual proposta por Basset e cols. em 1998 (15): síndrome de deleção do 22q11.2. De qualquer forma, as alterações compreendidas pelo acrônimo CATCH 22 são as principais manifestações clínicas que requerem a pesquisa molecular da SD22q11.2.

Vale também mencionar que a deleção da região 22q11.2 também se relaciona à forma autossômica dominante da síndrome de Opitz G/BBB, cujo fenótipo é representado principalmente por alterações faciais como hipertelorismo ocular, telecanto; fendas labiopalatinas, laríngeas e esofagianas, cardiopatias congênitas e anomalias geniturinárias, especialmente hipospádia (16).

As doenças envolvidas na SD22q11.2 apresentam anomalias congênitas decorrentes de defeitos no desenvolvimento dos arcos faríngeos, principalmente relacionados a disgenesias das terceira e quarta bolsas faríngeas, responsáveis pela formação da paratireoide, timo e tireoide, sendo as apresentações mais comuns nessas síndromes o hipotireoidismo e o hipoparatireoidismo (17).

Os achados dismorfológicos do paciente relatado, principalmente da fácies compatível com a síndrome velocardiofacial, além da fala hipernasal, conduziram à pesquisa da deleção do 22q11.2, confirmando o diagnóstico. Anomalias congênitas cardíacas, encontradas em aproximadamente 85% dos casos com a síndrome velocardiofacial, não foram evidenciadas no presente paciente.

A metodologia adotada para o diagnóstico da deleção 22q11.2 foi o teste PCR utilizando três marcadores altamente polimórficos que abrangem a deleção mais frequente de 3Mb na região crítica envolvida na SD22q11.2, conforme Pereira e cols. (18). Nesse mesmo trabalho, os autores evidenciaram uma especificidade de 98% do exame de PCR em detectar a heterozigosidade dos marcadores polimórficos na população geral. As vantagens desse método em relação ao FISH (fluorescence in situ hybridization), segundo Kariyazono e cols., são principalmente a rapidez da obtenção do resultado e o baixo custo do exame (19). Esses mesmos autores também afirmam que a pesquisa de marcadores polimórficos por meio de PCR para a região crítica 22q11.2 pode apresentar 99,7% de correlação estatística com o FISH para a mesma região.

A deficiência de IgA, a imunodeficiência mais comum conhecida entre os seres humanos, foi encontrada em 13% dos pacientes com SD22q11.2, mostrando uma prevalência muito superior à encontrada na população geral (20), que é de aproximadamente 1:700 nascidos vivos (21). Com base nessas informações e nos dados de seu estudo, Smith (20) enfatiza, considerando uma razão das chances (odds ratio) de 14,20 (P < 0,0001) para a manifestação da deficiência de IgA na SD22q11.2, a importância do rastreamento dessa condição para o controle e seguimento dos portadores da deleção.

Assim como outras imunodeficiências, a deficiência de IgA, além de predispor a infecções de vias aéreas, atopia e a infecções do trato gastrointestinal (20), sabidamente relaciona-se à manifestação de distúrbios autoimunes. As primeiras explicações para essa associação baseavam-se na hipótese de que os baixos níveis de IgA, pela perda de seletividade de absorção intestinal, favoreceriam o contato com antígenos, o que, de certa forma, aumentaria a exposição ambiental do indivíduo. Estudos mais recentes, contudo, consideram que uma série de fatores imunológicos ainda não compreendidos é importante para que essa relação ocorra. Além disso, cabe-nos ressaltar que vários estudos demonstram a relação da deficiência de IgA, sem associação a outras síndromes, a diversas doenças autoimunes, principalmente reumatológicas, sendo, porém, a apresentação associada à doença de Graves um evento incomum (22-24).

Desordens autoimunes, como a púrpura trombocitopênica idiopática, a anemia hemolítica autoimune, a artrite crônica juvenil, o diabetes mellitus tipo I e o hipotireoidismo, já foram relatadas em associação à SD22q11.2 (5,6). Na presente revisão, encontraram-se na literatura apenas dezesseis casos semelhantes associando a SD22q11.2 à doença de Graves (5,10,25-30). A tabela 1 mostra o sumário dos 16 casos já relatados somados à presente descrição. O trabalho de Jawad e cols. (31) estimou que aproximadamente 9% dos pacientes portadores da SD22q11.2 possuem distúrbios autoimunes. Dessa maneira, o presente relato é compatível com os achados da literatura e reforçam essa associação.

Em pacientes com SD22q11.2 e doença de Graves foi identificado também um comportamento diferente em relação aos marcadores de autoimunidade comuns à doença. Kawame e cols. (26), Kawamura e cols. (27) e Gosselin (29) relataram casos da doença de Graves associados à positividade do TRAb, evento que ocorreu no presente relato. Levando em consideração a apresentação atípica da SD22q11.2 e o fato de se tratar de um caso isolado, não se pode rejeitar a ideia de Kawame e cols. (26), que acreditam na menor representatividade do TRAb para o diagnóstico da doença de Graves nesse contexto sindrômico. A análise dos casos relatados que disponibilizavam a dosagem dos anticorpos antitireoidianos (14 casos) somados ao nosso (n = 15) mostra que o TRAb só se fez presente em cinco deles (33,3%), o que de fato é bem inferior aos 90% de positividade esperados na doença de Graves (32).

Assim como Kawame e cols. (26), os autores do presente trabalho acreditam na hipótese de que a combinação da deficiência de linfócitos T com suscetibilidade genética e com os estímulos ambientais apropriados favorece a manifestação dos distúrbios autoimunes no portador da SD22q11.2. Os trabalhos encontrados na literatura têm sugerido que a disfunção dos linfócitos T predispõe à desregulação do sistema imune e às doenças autoimunes. Etzioni e Pollack (33), em relato de doenças autoimunes associadas à SD22q11.2, acreditam que a deficiência de linfócitos T supressores, resultando em um aumento da relação T helper/supressoras, é um fator primordial à patogênese da autoimunidade. Sgarbi e Maciel (34), em artigo de revisão, apontam entre diversos fatores envolvidos a importância do linfócito T helper 2 na patogênese da própria doença de Graves sem associação com outros distúrbios.

De acordo com o conhecimento a respeito da doença de Graves na SD22q11.2, sugerimos que, mesmo com pouca força epidemiológica, essa associação não seja considerada uma coincidência. Levando em consideração que a incidência da doença de Graves é estimada em torno de 17,7 a cada 100 mil pessoas (35), a observação obtida no The Children's Hospital, na Filadélfia, onde se diagnosticou um caso de doença de Graves em um total de 352 pacientes com SD22q11.2, deve ser valorizada, já que esses resultados demonstram uma incidência 16 vezes maior do que aquela encontrada na população geral (30). Choi e cols. (30), em artigo de revisão sobre as manifestações endócrinas na SD22q11.2, em 2005, obtiveram uma incidência para doença de Graves de 1,6% (1 caso), no seu grupo de estudo, que contava com 61 pacientes portadores da SD22q11.2.

Devemos ainda fazer duas ressalvas quanto às diferenças entre a apresentação clássica da doença de Graves com aquela associada à SD22q11.2: a união dos casos relatados nos mostra que 29,4% (n = 5) ocorreram em indivíduos do sexo masculino e que 23,5% (n = 4) ocorreram em pré-escolares ou escolares; apresentações atípicas para uma doença que acomete cinco vezes mais meninas do que meninos e é muito pouco frequente nos menores de 5 anos (36-38). Diante dessas diferenças na apresentação, considerando ainda o padrão atípico da positividade do TRAb, propõe-se a ideia de que a doença de Graves, quando inserida no contexto da SD22q11.2, receba, de alguma forma, influência da referida deleção na sua patogênese.

Além do mais, ao se observar o momento em que os relatos associando a SD22q11.2 à doença de Graves foram feitos, incluindo a presente descrição, constata-se que 94,1% (n=16) foram descritos nos últimos 13 anos. Esse aumento da frequência das descrições dessa associação, em uma doença que tem suas primeiras descrições feitas nas décadas de 1950-60 (3), fortalece a ideia de que esta seja uma síndrome com o fenótipo ainda em expansão e que já permite a inclusão da doença de Graves no espectro clínico da SD22q11.2.

Dessa forma, conclui-se que o estudo do presente relato, aliado à literatura nacional e internacional, mostra que a deficiência de IgA e a SD22q11.2 favorecem a ocorrência de desordens autoimunes como a doença de Graves. Consideramos que a doença de Graves seja mais uma das manifestações que devem ser reconhecidas na SD22q11.2, devendo ser sempre alvo de suspeita por parte da equipe de saúde que assiste os pacientes com SD22q11.2. Considerando que a microdeleção 22q11.2 é a mais frequente na população entre as microdeleções em cromossomos humanos, variando de 1:3000 a 1:4000 indivíduos afetados, os médicos responsáveis por esses pacientes devem estar atentos às manifestações do hipertireoidismo, devendo buscá-las desde a infância, seja pelo acompanhamento clínico ou pelo rastreamento laboratorial.

Declaração: os autores declaram não haver conflitos de interesse científico neste estudo.

Recebido em 18/Dez/2009

Aceito em 15/Jul/2010

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  • Correspondência para:
    João Miguel de Almeida Silva
    Curso de Medicina, UniFOA
    Rua Paulo Erlei Alves Abrantes, 1.325
    27240-560 - Volta Redonda, Rio de Janeiro, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      18 Dez 2009
    • Aceito
      15 Jul 2010
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