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Diabetes gestacional: persistem as controvérsias

perspectivas

Diabetes Gestacional: Persistem as Controvérsias

Anelise I. Nogueira

Andréa S. Fontenele

Regina A. de Aguiar

Serviço de Endocrinologia (AIN,ASF),

Departamento de Clínica Médica e

Pré-natal de Alto-Risco (RAA),

Departamento de Ginecologia e

Obstetrícia, Hospital das Clínicas da

Universidade Federal de Minas

Gerais, Belo Horizonte, MG.

Recebido em: 31/08/98

Revisado em: 08/04/99

Aceito em: 09/04/99

O DIABETES GESTACIONAL (DG) é definido como uma intolerância aos carboidratos de gravidade variável primariamente diagnosticada durante a gravidez. Esta definição admite a possibilidade de que a intolerância aos carboidratos já estivesse presente, mas não diagnosticada, antes da gestação (1,24). Até o momento atual ainda não foi realizado um estudo adequadamente padronizado com o objetivo de demonstrar qual o teste ideal para o rastreamento e diagnóstico do DG (10,11,22,28).

O teste de rastreamento é realizado para identificar a população de alto risco para desenvolver o diabetes na gestação. Ele difere do teste diagnóstico que realmente identifica as gestantes portadoras de DG (9,15). As dúvidas em relação ao rastreamento são antigas. No passado, apenas as gestantes com história familiar de diabetes, glicosúria, filhos com peso ao nascimento superior a 4 kg e parto com natimortos de causa não esclarecida, eram submetidas ao teste de diagnóstico. Observou-se, contudo, que a história isoladamente teve sensibilidade de 56% para o diagnóstico de DG (16).

Atualmente são aceitos dois métodos de rastreamento e diagnóstico do DG, ou seja, um que é adotado pela Associação Americana de Diabetes, proposto pelo "National Diabetes Data Group" (NDDG) (1,5,16,20,24) e outro preconizado pela Organização Mundial da Saúde (2,7,18). O primeiro é o preferido por cerca de 75% dos obstetras americanos e o segundo, muito difundido entre os europeus.

A Associação Americana de Diabetes (ADA) e o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia apoiam o teste proposto pelo "NDDG", que se baseia nos trabalhos de O'Sullivan e Mahan (1964), preconizando o rastreamento de todas as mulheres, entre 24 e 28 semanas de gestação, utilizando para o mesmo, a glicemia de 1 hora após 50 gramas de dextrosol. Caso a glicemia seja maior ou igual a 140 mg/dl, deve-se, então, realizar um teste oral de tolerância a glicose com 100 gramas de dextrosol, com os seguintes valores de referência: jejum até 105 mg/dl, 1 hora até 190 mg/dl, 2 horas até 165 mg/dl e 3 horas até 145 mg/dl. Dois ou mais valores iguais ou maiores que os descritos acima, confirmam o diagnóstico de DG, enquanto um valor alterado é diagnóstico de intolerância aos carboidratos da gravidez. Há, porém, inúmeras controvérsias em relação a estes parâmetros (3,5,6,10-13,17,21,22,28-32):

quais gestantes devem ser rastreadas?

quais os valores de corte do rastreamento?

qual a época de realização do rastreamento?

o rastreamento pode ser utilizado como diagnóstico?

quais os valores limítrofes da curva? como realizar a curva?

Alguns estudos (1,21,25,29-31) têm demonstrado que rastrear mulheres sem fatores de risco seria desnecessário pela baixa prevalência de DG neste grupo, com custo muito elevado para o sistema de saúde. Desta forma, preconizam que o teste não seja universal e, sim, baseado na presença de dois ou mais fatores de risco. São consideradas de baixo risco para desenvolver o DG1, aquelas gestantes pertencentes a um grupo étnico com baixa prevalência de DG; aquelas sem história de diabetes em parentes de primeiro grau; idade menor que 25 anos, peso normal antes da gravidez; ausência de história de DG; passado obstétrico favorável (1,16).

Tanto o valor de corte do rastreamento, quanto os valores da curva são questionados por alguns autores (3,5,6,11-13,22,25,32). Sugere-se adotar para o rastreamento valores de corte mais baixos: entre 130 e 135 mg/dl e, caso haja dois ou mais fatores de risco, o valor de 125 mg/dl. Quanto aos valores da curva, as divergências também são inúmeras. Classicamente, a mais comentada é aquela de Carpenter e Coustan, que sugerem valores bem mais baixos do que os atualmente adotados pela ADA, ou seja, jejum: 95 mg/dl, 1 hora: 180 mg/dl, 2 horas: 155 mg/dl e 3 horas: 140 mg/dl. No 4th Workshop-Conference em DG, recomendou-se a adoção dos valores acima, para interpretação do TOTG, realizado após a ingestão de 100 gramas de dextrosol (1,4,16).

As gestantes consideradas de alto risco para desenvolver DG devem ser rastreadas já na primeira consulta de pré-natal, conforme vem sendo preconizado por alguns autores (16,17,28) que seguem as orientações da ADA, sempre com a repetição do exame entre 24 e 28 semanas de gestação no caso de negatividade do teste inicial. Há também aqueles que defendem a repetição do teste com 32 semanas de gestação, naquelas gestantes consideradas de alto risco, caso os anteriores sejam negativos (5).

Outros autores (13), também seguidores das orientações da ADA, consideram que o teste de rastreamento tem valor diagnóstico, variando apenas o nível de corte, sendo preconizado por alguns o nível de 140 mg/dl (12), enquanto outros (3,13) utilizam valores entre 186 mg/dl e 216 mg/dl. Estes valores dispensariam a realização da curva.

Não bastassem tantas controvérsias dentro da ADA, resta ainda o fato de que a Organização Mundial de Saúde aplica e preconiza outro método de rastreamento e diagnóstico do DG (2,7,14,16,18,19,23,25). Neste esquema, a glicemia de jejum deve ser realizada no início do pré-natal; se >126 mg/dl, em duas ocasiões, é estabelecido o diagnóstico de DG; valores entre 110 e 126 mg/dl, indicam a realização do teste oral de tolerância a glicose (TOTG), com 75g de. dextrosol. Isto significa que, se o valor da 2ª hora estiver maior ou igual a 140 mg/dl, é estabelecido o diagnóstico de DG. Se as glicemias em jejum estiverem abaixo de 110 mg/dl, o TOTG deverá ser realizado entre 24 e 28 semanas de gestação, adotando-se também os mesmos critérios.

Aqui, também, há inúmeras controvérsias:

Alguns autores preconizam que o diagnóstico de DG seja realizado com glicemia 2 horas após 75g de dextrosol, com valores maiores que 140 mg/dl (11,14);

Alguns preconizam outros valores de corte para glicemia de jejum: se o nível em jejum for maior ou igual a 90 mg/dl em duas ocasiões, é firmado o diagnóstico de DG (18), outros níveis para glicemia de jejum também são sugeridos: 105, 110 e até mesmo 140 mg/dl (3,11);

Consenso Brasileiro de Diabetes Gestacional preconiza um rastreamento precoce, utilizando a glicemia de jejum (23,26) já na primeira consulta de pré-natal: glicemia de jejum maior ou igual a 85 mg/dl serve como rastreamento pois, nesta situação, indica-se o TOTG, de 2 horas, realizado com 75g de dextrosol. Os parâmetros utilizados para o teste são aqueles adotados pela WHO, ou seja uma glicemia da segunda hora maior ou igual a 140 mg/dl é diagnóstico de DG. Nestas pacientes indica-se também a realização de glicemia de jejum novamente com 20 semanas, seguindo-se as recomendações acima. No caso de glicemia de jejum <85 mg/dl, o teste deve ser realizado entre 24 e 28 semanas de gestação e repetido com 32 semanas em pacientes com mais fatores de risco para DG.

Apesar de tantas controvérsias, sabe-se que o DG é uma entidade clínica que coloca em risco o feto e o recém-nascido. Sabe-se, também, que a médio e longo prazo poderá acarretar em obesidade e risco de diabetes tipo 2 para estas crianças (27,28). Além disto, é preditor de diabetes tipo 2 para estas mulheres (8,28). Portanto, é fundamental a busca do exame de realização racional para o rastreamento e diagnóstico doDG(1,16).

Como se afirmou anteriormente, do ponto de vista conceitual, um teste de rastreamento pretende identificar junto à população geral um grupo de pessoas de risco elevado para o desenvolvimento de uma determinada doença. Todo teste de rastreamento alterado deve ser seguido de um teste diagnóstico. As características básicas de um bom teste de rastreamento são basicamente: simplicidade, custo reduzido, boa tolerância, boa sensibilidade e reprodutibilidade.

Ao escolher um teste para ser utilizado na prática clínica, o profissional deve estar sempre atento às características específicas de cada um deles, tendo em mente as suas vantagens e limitações. Todo teste "novo" deve ser introduzido na clínica diária após ter seus resultados validados por protocolos de pesquisa eticamente conduzidos. Além disso, é importante que o profissional procure estar sempre atento às novas orientações e modificações no processo de rastreamento e diagnóstico do DG, buscando o objetivo comum que é garantir um bom prognóstico materno e perinatal (16,28).

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Prof. Leonardo Maurício Diniz, pelo apoio na execução deste trabalho.

Endereço para correspondência:

Anelise I. Nogueira

Av. Alfredo Balena, 189 - 15o andar, sala 1501

30130-100 Belo Horizonte, MG

Fax:(031) 274-4331

E-mail: anelise@pobox.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 1999
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