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Adolescência e psicose

RESENHAS

Angela Pequeno

Psicanalista, membro da Delegação Geral-Natal da Escola Brasileira de Psicanálise; doutora em Ciências da Saúde (Área de Concentração em Psicanálise) pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. E-mail:angelapequeno@uol.com.br

Adolescência e psicose

Edson Saggese, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000, 160 p.

Adolescência e psicose é fruto de uma reflexão teórica profunda e matizada e de uma prática psicanalítica de mais de vinte anos com adolescentes.

No primeiro capítulo, intitulado "Sujeito, psicose e psicanálise", Saggese retraça o caminho que leva das concepções antigas acerca da loucura até a construção, pela psiquiatria e pela psicanálise, do conceito de psicose. Partindo das primeiras referências à loucura na Grécia antiga, o autor localiza em Hipócrates o ponto de origem da concepção organicista que marcará a psiquiatria até os dias de hoje. Com a formação da sociedade moderna, o entendimento da loucura como possessão demoníaca na Idade Média cristã cede lugar ao grande encarceramento do século XVII.

No século XVIII, visando à recuperação dos sujeitos irracionais e improdutivos, surge a psiquiatria moderna. Dá-se então a medicalização da loucura, concebida doravante como doença mental. Tomando a seu cargo a tarefa de observar a forma que assumem os diversos distúrbios, a psiquiatria se constitui enquanto clínica do olhar. A partir daí, o complexo campo do pensamento psiquiátrico vai sendo construído no embate das tensões que se estabelecem entre concepções diversas. Um eixo ao longo do qual esse debate se processa consiste na controvérsia entre o organicismo e a psicopatologia.

Do ponto de vista do organicismo, a sistematização das doenças mentais como unidades nosológicas chegou a seu apogeu com Kraepelin. Com base em critérios clínico-evolutivos, ele definiu a demência precoce que, com o nome de esquizofrenia, constitui até hoje a psicose sobre a qual se concentra o interesse dos psiquiatras.

A sistematização de Kraepelin vai ser criticada por dois outros grandes autores da psiquiatria: Jaspers e Bleuler. O primeiro questiona a validade do conceito de unidade nosológica. E elabora os conceitos de reação, processo e desenvolvimento, que lhe permitem estudar, no plano dos fenômenos patológicos, a ação da psicogênese. Já Bleuler, que sofreu a influência da teoria freudiana veiculada por Jung, redefine a demência precoce sob o nome de esquizofrenia a partir de critérios psicopatológicos e não mais clínico-evolutivos.

Saggese nos mostra como, apesar da aparente prevalência que a psicopatologia adquire com Jaspers e Bleuler, permanece a concepção de um substrato orgânico no qual se encontraria a determinação última da doença mental.

Nos tempos atuais, acentua-se o predomínio do organicismo na psiquiatria, sob a forma do determinismo neuroquímico do comportamento. O DSM III e o DSM IV assumem uma postura ateórica, recusando simultaneamente os critérios etiológicos e psicopatológicos em prol de critérios objetivos de avaliação. Propõem que esta seja feita, não mais a partir do conceito de entidade nosológica, mas de uma distribuição sindrômica dos transtornos mentais.

Tendo percorrido o campo do saber consagrado pela psiquiatria, o autor conclui que nenhum código psiquiátrico jamais conseguiu dar uma definição precisa e abrangente da loucura. No dizer de Lima Barreto, a loucura pode ser "uma porção de cousas diferentes" (p. 25).

Saggese passa então a relacionar três pensadores cuja aproximação surpreenderia um leitor não versado em psicanálise: Descartes, Freud e Schreber.

Foi Descartes quem primeiro formulou as questões acerca da verdade e da certeza, sobre as quais Freud e Schreber iriam se debruçar. Com isso, ele estaria descortinando "um tema fundamental da loucura, a busca de um ponto de certeza" (p. 30).

Freud inverte a perspectiva psiquiátrica acerca da loucura. Para a psiquiatria, a loucura é desrazão, contra-senso, erro, e a verdade se encontra do lado do médico. A psicanálise se afasta dessa perspectiva ao demonstrar que o delírio é portador da verdade do sujeito. Ou seja, entre o louco Schreber e o saber psiquiátrico, Freud dá razão àquele.

Saggese traça uma evolução do pensamento psicanalítico acerca da psicose, percorrendo de forma condensada os principais textos freudianos em que ele se elabora. Interessa-lhe acompanhar as transformações das concepções nosológicas freudianas desde seu ponto de origem, quando a paranóia fazia parte do grupo das neuropsicoses de defesa, até a constituição do conceito estritamente psicanalítico de psicose. Interessa-lhe também a questão acerca do mecanismo específico da psicose, para a qual Lacan veio trazer uma resposta, dando um estatuto conceitual à Verwerfung freudiana, propondo sua tradução como foraclusão e discernindo seu ponto de incidência: o significante do Nome-do-Pai.

Após cernir o conceito de sujeito para a psiquiatria e para a psicanálise, Saggese passa a se ocupar da adolescência e das questões que ela suscita. É assim que, no segundo capítulo, intitulado "Adolescência, sociedade e indivíduo", constrói cuidadosamente o conceito de adolescência com o qual irá trabalhar.

É esse o momento em que o autor se detém na consideração do contexto social e histórico. A abordagem do tema sob ângulos costumeiramente negligenciados pelo pensamento psicologizante vem enriquecer sua análise e constitui, a meu ver, o ponto forte de seu trabalho. Seus comentários são importantes para pensar o mundo em que vivemos e para situar, no interior desse mundo disperso e paradoxal, a crise específica do adolescente.

A adolescência é uma etapa da vida do sujeito, mas é ela própria datada historicamente. Ao traçar as linhas gerais dessa história, Saggese escapa ao risco de naturalizar conceitos como família, sociedade e a própria adolescência.

Como demonstrou Ariès, em quem Saggese se baseia nesse ponto de sua pesquisa, a moderna noção de família e o sentimento de infância surgem a partir do século XVIII. Com a delimitação entre a infância e a vida adulta, vai se efetuando a constituição de um período intermediário, de passagem entre ambas, o que se verifica de forma mais acentuada no século XIX. Assim, é abusivo falar em adolescência nas sociedades tradicionais, na medida que a travessia da puberdade é nelas marcada e sustentada por ritos.

Com a separação entre o público e o privado, decorrente da constituição do estado moderno, a família nuclear subsiste como único reduto do privado e o extrafamiliar torna-se uma terra incógnita. A família, não mais unidade econômica mas espaço da afetividade, sofre um isolamento que aumenta progressivamente em relação ao espaço extrafamiliar, onde se dão as relações de trabalho.

A crise é da família ou da sociabilidade contemporânea? — indaga Saggese, inclinando-se pela segunda alternativa. Ou seja, a crise da família se insere no bojo de uma crise mais ampla; e a adolescência só se caracteriza como um período de crise no interior das sociedades modernas.

Para entender a crise da sociabilidade contemporânea em sua relação com a adolescência, é necessário analisar um valor fundamental que surge com o advento da modernidade: o individualismo. Nesse ponto, Saggese retoma os estudos de Louis Dumont, que demonstrou que se conceber como indivíduo é um fato socialmente condicionado. Nas sociedades tradicionais, holistas, predomina a hierarquia; na sociedade moderna, surge o indivíduo como valor preponderante.

O conceito psicanalítico de identificação é crucial para se compreender o que está em jogo na chamada crise de identidade do adolescente. A identificação não se reduz à identidade, que seria a igualdade de uma coisa consigo própria. Ao contrário disso, "para a psicanálise a questão da identidade — ou da sua irremediável falta — remete à incompletude, à discordância do sujeito consigo mesmo" (p. 79).

Saggese critica autores como Erickson que, com base em uma suposta capacidade de síntese do eu, privilegiam a noção de identidade em detrimento do conceito psicanalítico de identificação. A identificação tampouco pode ser confundida com o uso do termo no sentido comum. Em outras palavras, identificação não é imitação. É nesse ponto que faz intervir a distinção psicanalítica entre as vertentes simbólica e imaginária da identificação.

Tecendo comentários a referências da ordem da cultura que ilustram a diferença entre as duas vertentes da identificação, Saggese destaca ser uma dessas referências bastante atual: os comentários de Zizek a respeito do personagem de Woody Allen em Sonhos de um sedutor; a outra é um clássico de nossa literatura: o conto O espelho, de Machado de Assis, que o autor analisa.

Passa então a examinar o conceito de traço unário, que unifica, para cada sujeito, o conjunto dos significantes. Na constituição do traço unário, o que opera é a modalidade de identificação que Freud denomina primária — a identificação ao Pai. Nesse ponto, Saggese faz intervir a distinção entre as três vertentes do pai — real, simbólica e imaginária — apontando a importância da segunda para a constituição do sujeito do inconsciente.

A tarefa do adolescente, "de integrar-se no campo sócio-simbólico, testa sua capacidade de resposta desde o plano da identificação simbólica fundante" (p. 83). Essa afirmação prepara o caminho para a discussão da psicose na adolescência.

No terceiro e último capítulo, "Adolescência e psicose", após ter trabalhado nos dois anteriores cada um desses campos, o autor passa a fazer articulações no interior da interseção que eles determinam.

É nessa etapa da construção de seu estudo que ele pode trazer à luz aquilo que é uma das marcas distintivas desse livro sobre a adolescência: sua rica experiência clínica. Os nove casos apresentados constituem, mais do que ilustrações da teoria, o ponto de origem de reflexões acerca desta e da própria clínica. Os dizeres dos adolescentes são eloqüentes e extremamente precisos, e os relatos muitas vezes assumem um tom poético, dando origem a comentários que são, de fato, recomendações valiosas para os profissionais que trabalham com adolescentes.

Na construção dos casos clínicos, todos os elementos desenvolvidos nos dois capítulos precedentes se integram. A reflexão acerca do contexto sócio-histórico se faz presente a cada passo. Quanto à psicanálise, embora recorra a alguns comentadores, a principal referência do autor é a obra de Freud e Lacan.

O diagnóstico estrutural da psicose se fundamenta no reconhecimento da operação do mecanismo que Lacan denominou a foraclusão do Nome-do-Pai. Se, como já vimos, o pensamento desenvolvido neste livro escapa aos riscos do psicologismo ao ampliar o âmbito de sua análise, ele tampouco incorre no historicismo, por fazer da abordagem estrutural o contraponto da análise sócio-histórica.

Saggese toma como ponto de partida algumas das questões que a clínica do adolescente coloca e as soluções que foram propostas para elas. Se a adolescência é uma fase crítica do desenvolvimento, mas também um período propício à eclosão de quadros psicopatológicos, onde traçar a fronteira entre o normal e o patológico no que concerne ao adolescente?

Essa pergunta encontra uma saída confortável na concepção segundo a qual existiria, entre a neurose e a psicose, uma estrutura borderline. Saggese examina os traços mais gerais do chamado paciente borderline, para concluir que ela só é concebível pensando-se o ego como instância sintética da personalidade, ou seja, afastando-se por completo da concepção freudiana das relações de dependência do eu. A estrutura borderline seria "uma solução teórica frágil para explicar as fragilidades da condição adolescente", conclui (p. 98).

No que diz respeito ao diagnóstico de psicose na adolescência, a posição do autor é de cautela. Essa recomendação, válida para qualquer sujeito, assume um peso especial quando se trata de um adolescente, pois o diagnóstico e as condutas que dele resultam podem desempenhar uma função decisiva para o seu futuro. Saggese chama a atenção, com muita pertinência, para os efeitos da denominação sobre um adolescente, o que aponta para um viés específico da responsabilidade dos profissionais — não apenas o psicanalista — que acompanham esses sujeitos.

Embora o diagnóstico de estrutura, que necessariamente inclui o analista, seja de inestimável valia para que este não se deixe levar pela apresentação fenomênica de um caso, o conceito de estrutura não deve se tornar uma camisa-de-força teórica. Nesse ponto, Saggese apresenta exemplos nos quais a apresentação dos sintomas poderia facilmente conduzir um observador menos avisado a um diagnóstico de psicose. Em um desses casos, em que os sintomas tomavam uma forma particularmente regressiva e bizarra, o fator decisivo para o diagnóstico de neurose foi a transferência.

Após trabalhar alguns mecanismos que permitem a manutenção de uma aparente normalidade no período anterior ao surto — a personalidade "como se" proposta por Helen Deutsch, a fachada obsessivo-compulsiva descrita por Bychowski e as bengalas imaginárias das quais fala Lacan —, Saggese passa a analisar as circunstâncias do desencadeamento da psicose. Para cada sujeito, a foraclusão do Nome-do-Pai ficará evidenciada em articulação com as vicissitudes de sua história e seu processo singular de travessia da adolescência.

A concepção de que a psicose na adolescência é uma travessia que não pôde se completar — travessia desse período intermediário entre a infância e a vida adulta que se constitui com o advento da modernidade — encontra expressão nos escritos de um dos sujeitos que proporcionam o material clínico deste livro e que também nos ensina quanto ao lugar que o psicanalista pode vir a ocupar para um adolescente psicótico. Com suas palavras, encerro esta resenha.

"Uma pessoa que entra na adolescência é como se estivesse andando sobre um abismo, uma ponte invisível. Então se a pessoa cai no abismo ela precisa de alguém que lhe jogue uma corda e a tire do abismo, ela não consegue sair do abismo sozinha." (p. 140)

Recebido em 19/2/2002.

Aprovado em 11/3/2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
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