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DESTINOS DA PULSÃO INVOCANTE NA DIREÇÃO DA ANÁLISE

DESTINATIONS OF THE INVOCATIVE PULSION IN THE DIRECTION OF ANALYSIS

RESUMO:

Parte-se da premissa da importância da pulsão invocante em relação ao retorno em direção ao eu e a reversão no contrário como uma função de torção no nível do Outro. Objetiva-se mostrar como esse movimento pulsional orienta a direção da análise, pois está na base das intervenções do analista. O artigo traz duas vinhetas clínicas que tentam operar no campo da torção do significante e da voz através da operação de chiffonnage. Conclui-se que o significante novo oriundo da intervenção do analista é guiado por uma torção no nível da voz, produzindo um efeito significativo na direção da análise.

Palavras-chave:
pulsão invocante; destinos da pulsão; intervenção do analista; direção da análise

Abstract:

It starts from the premise of the importance of the invocative pulsion in relation to the return towards the self and the reversal to the contrary as a function of torsion at the level of the Other. The objective is to show how this pulsional movement guides the direction of analysis, as it is at the base of the analyst’s interventions. The article brings two clinical vignettes that try to operate in the field of the torsion of the signifier and the voice through the chiffonnage operation. It is concluded that the new signifier arising from the analyst’s intervention is guided by a torsion at the voice level, producing a significant effect in the direction of the analysis.

Keywords:
invocative pulsion; destinations of pulsion; analyst intervention; direction of analysis

INTRODUÇÃO

Freud (1915/1996), em seu célebre artigo metapsicológico sobre a pulsão e seus destinos, define quatro destinos pulsionais, a saber, recalque, sublimação, retorno em direção ao eu e reversão no contrário. No que concerne à pulsão invocante, ainda que Freud não a tenha tomado em consideração, pois isso foi um acréscimo lacaniano à teoria psicanalítica, podemos concebê-la inscrita nesses quatro destinos. Neste artigo, por uma questão de foco, iremos nos concentrar em dois destinos pulsionais (retorno em direção ao eu e reversão no contrário) para desenvolver os desdobramentos da pulsão invocante na direção da análise.

A REVERSÃO NO CONTRÁRIO

Freud (1915/1996) situa a pulsão como ativa, pois, por sua própria força constante, ela não poderia ser passiva. Então, a pulsão sempre é ativa; quando ela está passiva é porque já sofreu um de seus destinos, que é a reversão no contrário. Desse modo, quando Freud expõe os três tempos da pulsão - ativo, passivo e reflexivo -, poderíamos resumir em um só tempo que é o ativo, os outros dois já são a reversão no contrário. Com relação ao terceiro tempo, o reflexivo, ele é na verdade um tempo ativo, pois o sujeito busca ativamente uma forma ou um fim passivo. Por isso mesmo, em francês também se diz que é uma passivação (passivation).

No que tange à pulsão invocante, temos os três tempos: o ativo, o passivo e o reflexivo - respectivamente, escutar/ouvir, ser escutado/ouvido e se fazer escutar/ouvir. Aqui começam algumas diferenças da pulsão invocante em relação às outras pulsões, pois, se as pulsões orais, anais e escópicas possuem uma única zona erógena, na pulsão invocante temos duas zonas erógenas: o ouvido e a boca. Desse modo, os três tempos da pulsão se aplicam tanto ao escutar/ouvir, ser escutado/ouvido e se fazer escutar/ouvir, como também àquele referente à boca como zona erógena: chamar, ser chamado, se fazer chamar. O fato de haver duas bordas erógenas e não somente uma implica na presença do Outro, pois justamente se o sujeito fala, emite uma voz, ainda que seja um grito, isso está endereçado a alguém, diferentemente do olhar, por exemplo, em que alguém pode simplesmente olhar para algo, contemplar uma paisagem ou alguma coisa que está a sua frente. A voz porta esse endereçamento ao Outro, e, para a psicanálise, isso tem um valor clínico muito importante, na medida em que nossa prática se desenrola a partir de um sujeito que nos dá sua voz, nos endereça alguma forma de chamado. Então, essas duas zonas erógenas (a boca e o ouvido) implicam a presença do sujeito e do Outro, o que vai produzir efeitos no próximo destino pulsional que iremos abordar. Essa diferença na zona pulsional pode ser demonstrada da seguinte forma.

Figura 1
Esquema do circuito pulsional proposto por Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. (O Seminário, 11)).

Figura 2
Esquema do circuito da pulsão invocante proposto por Porge (2012).

RETORNO EM DIREÇÃO AO PRÓPRIO EU DO SUJEITO

Nas demais pulsões, como demonstrado no esquema anterior, há apenas uma zona erógena, de modo que o circuito pulsional se estabelece de forma a circundar a borda da zona erógena, contornar o objeto e retornar em direção ao sujeito. Isso quer dizer que a satisfação pulsional, ainda que parcial, não está situada no objeto, não é o objeto que produz o prazer. Não é o seio, por exemplo, que gera a satisfação; se fosse assim, ele não poderia ser substituído pela chupeta, pelo dedo ou qualquer outra coisa que o bebê coloca na boca em busca de prazer. A satisfação pulsional está na própria excitação da zona erógena, em que o objeto é apenas contornado. Por isso mesmo, dizemos que se trata de um objeto a, ou seja, de um objeto inapreensível, um objeto marcado desde sempre como falta, que se constitui como perdido, diferentemente de um objeto que alguém tem e depois perde e sente saudades do objeto perdido.

No que se refere à pulsão invocante, como foi dito, há duas zonas erógenas: a boca daquele que emite a voz e o ouvido daquele para quem essa voz é direcionada. Nesse sentido, temos a boca do sujeito e o ouvido do Outro. Então, outra diferença da pulsão invocante é o seu direcionamento ao Outro, ou seja, não somente são duas zonas erógenas, mas uma delas se situa no campo do Outro, e isso implica que a voz vá nessa direção. A voz, diferentemente do olhar, não retorna para o sujeito, mas vai em direção ao Outro. Podemos considerar que há, sim, um retorno para o sujeito, como mostra a direção da seta do circuito pulsional invocante, no esquema extraído do livro Voix de l´echo de Erik Porge (2012PORGE, E. Voix de l´écho. Paris: Éditions Érés, 2012.). Mas, antes disso, esse circuito pulsional passa pelo campo do Outro, onde ocorre uma torção, uma inversão no contrário. Desse modo, a inversão se dá no campo do Outro, ou, melhor dizendo, a inversão se dá em uma torção da escuta do Outro. Esse esquema parece recuperar uma citação lacaniana bem conhecida: “[...] o emissor recebe do receptor sua própria mensagem sob forma invertida [...]” (LACAN, 1953/1998, p. 299). Estaria aí nessa afirmação lacaniana o efeito dos destinos da pulsão invocante de uma forma muito precoce no ensino de Lacan, sem que ele mesmo tivesse tido essa intenção ou feito essa relação?

Essa pergunta é uma de nossas apostas nesse trabalho, ou seja, o fato de o sujeito receber do Outro sua própria mensagem de uma forma invertida aponta, para nós, dois eixos importantes que derivam de dois destinos da pulsão invocante: 1) que o circuito da pulsão invocante não retorna para o sujeito sem antes ir em direção ao Outro, encontrando a escuta do Outro; e, 2) na escuta do Outro, ocorre uma inversão, uma torção que irá retornar para o sujeito. Ainda que Lacan tenha feito essa afirmação em um texto dos anos 50, Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise (LACAN, 1953/1998), em um momento do seu ensino em que predominava certa primazia do campo simbólico e o reinado da teoria do significante advindo de sua articulação com a Linguística, mesmo assim podemos encontrar nessa afirmação as marcas dos destinos pulsionais invocantes, principalmente esse endereçamento ao Outro e também a inversão no campo do Outro. Ainda que Lacan fale, nessa citação, em mensagem e esteja se referindo ao campo da constituição do sujeito, podemos também encontrar aí, além das marcas da pulsão invocante, uma orientação para a clínica psicanalítica, no sentido de que esse Outro é o analista, para quem uma voz é endereçada e uma torção é esperada como efeito da intervenção psicanalítica.

A INTERVENÇÃO/INVERSÃO DO ANALISTA

A intervenção do analista se produz no campo do Outro, no sentido de que o analista é esse Outro para quem a voz é direcionada, pois, no fim das contas, é com o objeto pulsional voz que ele trabalha; ainda que este esteja recalcado e/ou sublimado, o analista trabalha com a voz. É nesse campo da escuta que irá se desenvolver sua intervenção, que aqui estamos situando nesse ponto da inversão. Talvez nosso interlocutor poderia questionar: toda intervenção do analista é uma inversão? Em um sentido mais amplo, sim, pois ninguém busca uma análise para ouvir do analista aquilo que ele já sabe, no sentido de que o analista traz algo de diferente, traz um saber que está no analisante, mas esse o desconhece. Em outras palavras, o analista faz emergir um saber que o analisante sabe, mas não sabe que sabe. Essa é a inversão que o analista produz no discurso do analisante. É claro que há várias formas de intervir para a produção desse efeito. É nesse ponto que a pulsão invocante entra como uma marca estrutural dessa inversão, pois, do ponto de vista pulsional, esse endereçamento ao Outro e a torção no campo do Outro têm relação com a pulsão invocante, justamente essa que nos parece tão própria e tão próxima da prática psicanalítica e da constituição do sujeito. Lacan (1964/1988) já havia marcado essa proximidade quando diz que, de todas as pulsões, a pulsão invocante é a mais próxima da experiência inconsciente.

No primeiro parágrafo do texto Lituraterra, Lacan assevera: “a aliteração nos lábios, a inversão no ouvido” (LACAN, 2003LACAN, J. Lituraterra. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003., p. 15). Essa frase, que nos parece tão solta no início do texto Lituraterre, dá, em nossa leitura, um indicativo importante da prática psicanalítica, pois, no momento em que o sujeito fala, ele diz aliterações, não necessariamente enquanto essa figura de linguagem, mas no sentido de que não falamos coisas claras e articuladas, que, ao falar, nos perdemos nas palavras, produzimos aliterações, vocalizações, isso é próprio do ser falante, um “ser de balbucio” para utilizar a expressão de Pascal Quignard (1968)QUIGNARD, P. L´être de balbuciement. Paris: Mercure de France, 1968.. Desse modo, na zona erógena da boca, encontramos as aliterações e, no campo do Outro, que na prática psicanalítica envolve o analista nesse lugar, encontramos a inversão no ouvido, ou seja, encontramos a escuta psicanalítica produzindo aí uma inversão. Para além desse traço do destino da pulsão invocante no desenrolar da clínica psicanalítica, também vale a pena remarcar que boa parte dessas intervenções do analista se dá no campo do sonoro com os jogos homofônicos, com os restos vocálicos, com aliterações, com algumas torções de onde se produzem os significantes.

Isso parece ir ao encontro de outra passagem do ensino de Lacan, mais exatamente no Seminário 23, quando ele dá uma definição de significante: “vemos muito bem que o significante se reduz aí ao que ele é, ao equívoco, a uma torção de voz” (LACAN, 1975/2007LACAN, J. O sinthoma (1975). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O Seminário, 23), p. 92). Nessa passagem, percebemos como o significante se reduz a uma torção de voz, ou seja, essa torção ou inversão no campo do Outro é o que produz o significante. Acreditamos que isso pode ser concebido no sentido da constituição do sujeito, mas também como uma orientação clínica para o analista. Nessa direção, o analista trabalha em uma análise com o significante, e esse não se dá sem uma torção da voz. Mesmo se consideramos o trabalho do analista em um campo simbólico, em que predominam o significante e sua interpretação, mesmo aí, encontramos as marcas de um real da voz. A voz não está totalmente recalcada ou sublimada, por isso mesmo pode seguir por outros destinos pulsionais. Na fala, há uma voz a ser escutada pelo analista. Ou seja, a clínica psicanalítica se faz pelo trabalho com o significante, em uma vertente imaginário-simbólica, e pela voz e suas torções na vertente do real. Talvez seja justamente nesse ponto da torção da voz que podemos perguntar por que Lacan, ao final de seu ensino, opera tanto com as assonâncias, dissonâncias, jogos homofônicos, sonoridades; enfim, nesse momento, parece que Lacan trabalha muito mais escutando a voz em sua sonoridade, timbre, ritmo, que o sentido da palavra. Trata-se de uma intervenção na fonemática do sujeito, no ponto da fonação que faz o sujeito ressoar (résonner), muito mais do que raciocinar (raisonner), produzindo aí na intervenção alguma coisa para além da consonância da linguagem.

UMA TORÇÃO NO NÍVEL DO SIGNIFICANTE

Para concebermos efetivamente esses desdobramentos na clínica psicanalítica, proponho trazer um extrato clínico que me parece mais ligado ao campo do significante, em uma interpretação via simbólico, embora esteja aí também presente o efeito da torção e do jogo homofônico que se passa na intervenção.

Trata-se de um homem, professor universitário, que procura análise porque se sente esgotado com o trabalho; diz não suportar mais as demandas da universidade, as intrigas com os colegas e o excesso de trabalho. Por várias vezes, diz que se sente um escravo, que fica aprisionado no trabalho. No decorrer das sessões, diz que costuma preparar suas aulas de um modo muito minucioso, prepara as anotações com muita precisão, o que lhe toma bastante tempo e um gasto enorme de energia. Mesmo quando leciona a mesma disciplina em vários semestres ou anos, ainda assim, costuma reorganizar e preparar o material a cada vez. Ele reclama muito desse modo de operar, pois é algo que o fatiga demasiadamente e lhe tira a energia para outras atividades da vida universitária. Nosso paciente não é um jovem professor, inexperiente ou com pouco conhecimento em sua matéria, muito pelo contrário, é alguém que fez uma carreira universitária, com mestrado e doutorado, e uma ampla experiência acadêmica com mais de 30 anos em docência. Alguém que já ocupou cargos importantes na universidade e também orienta trabalhos de mestrado e doutorado. Ao longo da análise, fomos questionando esse modus operandis, em que tudo tem que ser muito preparado. Por que não poderia ele confiar mais em sua trajetória e em seu saber na hora de transmiti-lo? Por que teria que preparar tanto as notas como se fosse um aprendiz? As sessões se desenrolam nessa direção, até que, em uma determinada sessão, ele a inicia dizendo que, naquela semana, algo de diferente havia se passado: ele entrou em sala de aula sem haver preparado nada. Eis que o analista então perguntou: E como foi? Ele responde: Foi uma boa lição. O analista então pontua: uma abolição? Esse momento parece ter sido um marco em relação a esse sintoma ligado ao trabalho, pois, a partir daí, sua relação com o trabalho começa a mudar, cessam-se as queixas, ele se envolve cada vez mais em outras atividades, passa não mais a preparar exaustivamente suas aulas e começa a ter muito reconhecimento por seus pares, colegas, docentes e discentes. Acreditamos que houve não somente a cura do sintoma, mas ali nesse lugar se produziu uma transformação subjetiva, em que aquilo que gerava o sintoma, começa a gerar um outro tipo de gozo, não mais aquele ligado ao sintoma, mas um gozo da vida, um gozo produtivo, que libertou o sujeito de sua escravidão.

O caso em questão nos mostra certa torção que se passa no campo do Outro, do analista, nesse caso, em que vemos aí alguma marca da pulsão invocante, na medida em que há uma voz, enquanto chamado (apelo/demanda), endereçada ao Outro e uma torção na escuta desse Outro. Essa torção, ainda que se passe no campo do significante, é uma marca estrutural do destino pulsional invocante, ou seja, essa inversão no nível do significante não se dá sem a voz; ela é um efeito da torção da voz. Nessa intervenção, podemos perceber que não há um lapso, pois, neste, a torção já acontece no momento de sua execução, ou seja, o sujeito intenciona dizer algo e diz outra coisa, temos aí uma inversão na emissão mesma do lapso. Nesse fragmento clínico, não houve um lapso, o analisante diz exatamente aquilo que gostaria de dizer, ou seja, que a experiência foi uma boa lição. Cabe destacar que essa expressão é bem popular, polissêmica e de uso corrente na língua portuguesa, pois a utilizamos em vários contextos, podendo tanto significar que foi uma boa aula como também uma lição de vida, uma experiência significativa.

A inversão está na interpretação do analista, em que se destaca, como mencionamos - e isso é nossa aposta -, alguma marca da pulsão invocante, essa que se direciona ao Outro e que sofre uma torção no nível do Outro. Nesse caso, o analista não opera necessariamente com a voz, apesar de jogar com o sonoro, de fazer deslocamentos homofônicos, mas com o significante, produzindo um significante novo, que quebra com a cadeia sintomática e introduz uma nova discursividade, uma outra articulação do sujeito com aquilo que produzia sintoma, passando a produzir aí outra coisa. O modo de intervenção do analista mostra uma forma de operar com o significante, pois onde havia o significante uma boa lição, ali se faz soar um outro significante - uma abolição -, extremamente emblemático para o sujeito. O significante uma abolição surge através da torção de uma boa lição, quebrando com o sentido sintomático da escravidão. No nosso entender, essa intervenção marca bem uma passagem, uma transformação de um significante que representa o sujeito para se tornar uma palavra comum do léxico linguístico ou um significante no sentido estritamente linguístico do termo.

Poderíamos dizer que essa torção no campo sonoro, não necessariamente com a voz, mas com um efeito dela, poderia ter uma relação com a definição que Lacan dá ao significante no Seminário 23: “o significante se reduz [...] a uma torção de voz” (LACAN, 1975/2007LACAN, J. O sinthoma (1975). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O Seminário, 23), p. 92). O fragmento aponta então para um fazer soar outra coisa, um significante novo, que corta o fluxo sonífero do discurso, pois, para Lacan, na classe de 19/04/1977 do Seminário 24, “um discurso é sempre adormecedor, salvo quando não se o compreende - então desperta [...] o despertar é o real sob seu aspecto do impossível, que não se escreve senão com força ou pela força” (LACAN, 1977LACAN, J. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre (1977). Seminário inédito. (Le Séminaire, 24), tradução nossa). O despertar então é para o sem sentido, tal como Freud (1900/1996FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)) advertia que o despertar não era o acordar, uma vez que a vida de vigília pode ser muito sonífera, mas que o despertar acontecia diante do real onírico. O significante abolição desperta o sujeito e quebra o significante sintomático da escravidão, aquele que o sujeito tanto se queixava em sua análise.

A intervenção em cena também aponta para a chiffonnage, que é introduzida por Lacan (1977LACAN, J. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre (1977). Seminário inédito. (Le Séminaire, 24)) no Seminário 24 como um amarrotamento, enrugamento da palavra, tentando estropiá-la. Na classe de 17/05/77 do referido seminário, ele esclarece que esta operatória “[...] consiste em se servir de uma palavra para fazer um outro uso que aquele pelo qual ela é feita”. (LACAN, 1977LACAN, J. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre (1977). Seminário inédito. (Le Séminaire, 24), tradução nossa). A palavra chiffonnage vem de chiffonner, que significa amarrotar, enrugar, [froisser], também significando comprimir, submeter a uma pressão violenta. Pode-se também levar em consideração derivativa a palavra chiffon, que significa trapo velho, farrapo (amarrotado, sem dúvida). Para além das etimologias e origens da palavra, a utilização que Lacan faz do termo é uma referência ao modo do analista incidir na sessão, em que se trata de amarrotar a palavra. Em uma incisão breve, repentina, o analista faz jorrar desse amarrotamento um significante novo, “[...] um significante que não teria, tal como o real, nenhuma espécie de sentido [...] isso seria fecundo [...] um meio de sideração, em todo caso” (LACAN, 1977LACAN, J. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre (1977). Seminário inédito. (Le Séminaire, 24), tradução nossa). A chiffonnage tenta expropriar o sentido da palavra ao invés de dar-lhe outro - tal como faz a metáfora no seu processo de substituição - por isso essa intervenção em forma de jorro repentino; e não as longas “intervenções” (quase sempre explicativas) do analista.

Neste momento, o leitor poderia questionar: afinal, não seria um outro sentido que tomou o lugar do primeiro? Na vinheta apresentada, a intervenção substituiu o significante uma boa lição por uma abolição; ou seja, não estaria aí uma substituição (sintomática), uma re-significação ao modo das psicoterapias que inflam o sujeito de significações e (re)significações? Ao nosso entender, não. Não há nenhum sentido em tornar o trabalho, que ele sempre amou, uma escravidão; isso é um sentido que o sujeito construiu. O sujeito implantou e implementou esse sentido, fazendo do seu amado trabalho uma escravidão incrementada por um supereu insatisfeito, sempre lhe cobrando e exigindo mais ainda, para fazer referência ao Seminário 20 Encore, de Lacan (1972-1973/1985LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. (O Seminário, 20)). Esse é um sentido atribuído pelo sujeito na medida em que ele encontra o seu gozo. Esse gozo é com o sentido do sintoma, aquilo que faz com que o sujeito se agarre em seu sintoma sem querer curá-lo. O sujeito implantava a dialética hegeliana do senhor e do escravo, em que o trabalho representava o senhor, enquanto o próprio sujeito, o escravo, havendo neste sujeito um gozo ao assumir tal posição subserviente, um gozo podre com esse sintoma que o escraviza. O que faz a análise com isso? Tenta quebrar com esse gozo. A intervenção colocada na forma interrogativa - Uma abolição? - tenta fazer soar um significante outro, não para dar mais uma significação na vida do sujeito, isso seria contribuir com a solidificação de um sentido sintomático. A forma interrogativa é justamente para colocar em xeque o suposto gozo desse grande Outro chamado trabalho, que tudo pode e que ao sujeito só resta se escravizar. É uma tentativa de desfazer esse sentido, mostrar a ele que há um sem sentido nisso que ele tanto alimenta. Cabe questionar o analisante por que ele precisa tanto sustentar que o trabalho o escraviza; acreditar nesse gozo do Outro é a forma que ele faz para se escravizar. É necessário atravessar esse fantasma para que esse sintoma cesse de escravizar o sujeito. Em resumo, aqui também encontramos uma transformação e não uma substituição, ou seja, não se trata de substituir um significante por outro, naquilo que seria a (re)significação, mas de transformar o significante para que ele possa produzir outra coisa que não o sentido.

UMA TORÇÃO NO NÍVEL DA VOZ

Proponho apresentar, nesse momento, outro fragmento clínico que parece ter operado mais no campo da voz, na medida em que o sentido ficou derradeiramente excluído, e a voz resta como algo do significante que não contribui para os efeitos de significação, tal como a definição de Jacques-Allan Miller (1988MILLER, J-A. Jacques Lacan et la voix. In: MILLER, J-A. La voix: colloque d’Ivry. Paris: La Lysimaque, 1988.).

Trata-se de um jovem de dezoito anos encaminhado para análise pelos seus pais. A queixa dos pais era a de que o filho não se interessava por nada: não gostava de estudar, não queria trabalhar, não tinha namorada, não saía de casa, ficava apenas jogando no computador. Na primeira entrevista com o jovem, este diz que gosta mesmo de games. No entanto, ao pronunciar a palavra inglesa, de uso muito corrente no português falado no Brasil, acentua fortemente a primeira sílaba. Na escuta do analista, isso pareceu soar homofonicamente como se tivesse dito gay-me. O analista, em sua intervenção, somente reproduz a frase dita pelo jovem - Gosta de games! -, mantendo a mesma acentuação fonética e também jogando com a homófona e inventiva expressão gay-me. O paciente, ainda não analisante, lança um olhar de surpresa sobre o analista, arregalando os olhos ao escutar o eco de sua própria enunciação. Podemos inclusive recuperar a já citada passagem de Lacan em que “[...] o emissor recebe do receptor sua própria mensagem sob forma invertida [...]”(LACAN, 1953/1998LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998., p. 299). Trata-se de algum modo da “inversão” de sua voz, do eco de sua própria fonação que retorna para o sujeito, que recebe do Outro não sua mensagem, propriamente dita, mas o eco de sua voz.

O analista, retomando o caso, pergunta ao paciente por que ele arregala os olhos quando ouve a palavra gay-me. Em uma resposta que tenta desconversar, ele simplesmente diz: Não, por nada! Depois de algumas entrevistas, e de muita inibição, declara que sente um forte desejo sexual por homens, que não sente nada por moças e que gosta de rapazes, apesar de nunca ter tido uma experiência homossexual; tampouco, é claro, havia tido uma experiência heterossexual. Enfim, ele gostava de gay-me. Diante disso, parece ser clara a queixa dos pais de que ele não se interessava por nada que não fossem jogos no computador. Ele não conseguia demonstrar seus verdadeiros desejos (sexuais), diante disso, apagava todos os outros desejos e interesses, aparentando certa apatia ou desinteresse por quase todas as coisas da vida, salvo o game/gay-me. Diante desse desinteresse alarmante, surge a preocupação dos pais. O jogo homofônico, que aparece já na primeira entrevista, mostra o amarrotamento da palavra e a emersão da homofonia.

Fazer a palavra soar ao pé da letra aponta para uma intervenção em análise que faz com que as palavras não representem apenas significados, mas que o significante possa ser enrugado e estendido, para que a letra, e não o significante, venha à tona como forma de tilintar uma outra coisa, ecos de uma voz que não cessa de não se inscrever. Um dos propósitos de Lacan, no Seminário 23, é tomar Finnegans Wake como um artifício joyceano capaz de mostrar a operação com a letra no campo da prática psicanalítica. Em outras palavras, Lacan toma Finnegans para mostrar que aquilo que Joyce fez com a(s) língua(s) é o que o analista pode fazer com a fala do sujeito em análise. Em suma, Lacan recomenda: “Leiam esse livro [Finnegans], não há uma única palavra nele que não seja feita [...] de três ou quatro palavras que, pelo seu uso, faíscam, cintilam. Sem dúvida, é fascinante, ainda que, na verdade, o sentido, [...] aí se perca” (LACAN, 1975/2007LACAN, J. O sinthoma (1975). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O Seminário, 23), p. 160).

Dessa citação, pode-se depreender: (i) que em cada palavra podem haver várias, ou seja, toda palavra pode ser uma palavra-valise. O termo palavra-valise não está, necessariamente, sendo utilizado em seu sentido clássico, aquele inaugurado por Lewis Carroll (1865/1999CARROLL, L. Alice no país das maravilhas (1865). Porto Alegre: L&PM, 1999.) e desenvolvido por Deleuze (1969/2000FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5)) na Lógica do sentido, em que ela representa a formação de uma palavra a partir de outras duas ou três. Aqui se trata somente de demonstrar como toda palavra pode ser uma valise, em que há outras palavras dentro dela; (ii) que o uso das palavras fazem-nas faiscar; e (iii) que o sentido fica perdido. É em um atrito sonoro que as palavras largam faíscas, produzindo outro som, desabonado do sentido. Aí está uma forma de fazer violência com a linguagem, escutando-a em sua fonação. O tilintar da palavra games quebra com o seu sentido original, aquele referente aos jogos eletrônicos, e, no lugar desse sentido fechado e único, vem uma polissemia polifônica, na qual os sentidos são dissipados nas fonias. Não se trata da construção de outros sentidos, como pode parecer no fragmento, mas das dissipações desses sentidos em muitos outros, como uma quebra com o game, como forma de tirar o sujeito desse único e “espetacular” universo.

Nessa chiffonage com a linguagem, surgia um significante novo, que não é a mesma coisa que um novo significante, pois o novo significante é mais um para compor a cadeia significante, fazendo uma seriação. Já o significante novo diz respeito ao efeito do ato analítico, pode ser o efeito de torção da voz, em que surge um significante que não é oriundo do discurso, mas desse achatamento do som, ao modo das crianças, que criam e brincam de forma inventiva repetindo o som de uma mesma palavra até que ela perca o seu sentido, ou que o término da palavra faça coalescência com o início da mesma. Nesse achatamento da chiffonnage, a palavra perde seu estatuto simbólico e um real toma conta. Se um significante novo entra para compor a cadeia significante, ele provoca quebra e ruptura no discurso emanado dessa cadeia. No fragmento clínico exposto anteriormente, essa quebra no discurso aparece com o significante (novo) gay-me, algo que se confirma diante do olhar de surpresa do paciente sobre o analista ao escutar um espelho de sua própria fonação. Nesse ponto, não se trata de uma construção em análise, de uma argumentação ou de qualquer outra intervenção explicativa ou interpretativa, mas de um ato analítico que coloca uma posição implicativa ao provocar o rompimento com o sentido adormecedor e com a palavra apaziguadora. O significante novo perturba, irrompe, quebra a sonífera cadeia discursiva.

O efeito dessas intervenções é libertador, libera o sujeito para poder viver fora dos muros do sintoma ou para começar efetivamente a tratar um sintoma ou uma inibição como parece ter sido o que se passou em gay-me. Talvez esteja aí a aposta de Lacan sobre Joyce, pois este soube inventar com as palavras, soube fazer ali com a letra. Harari (2002HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002., p. 290) enfatiza que Joyce fez uma obra, no sentido de um saber produzido, inventivo e, principalmente, um efeito libertador; afinal, uma obra é aquilo que se desprende de seu inventor. A poiética está aí para mostrar isso, que não basta inventar, é necessário fazer dessa invenção uma obra, ou seja, liberá-la para o mundo. Esse é um dos efeitos dessas intervenções: poder liberar o gozo do sintoma para que o sujeito possa gozar da vida, sem perdas de gozo, reduções e aniquilações, mas transformações desse gozo. É necessário fazer com que o gozo com o sentido sintomático deixe de parasitar o sujeito, que o gozo possa ser libertado para poder circular e operar na vida do sujeito.

A PULSÃO INVOCANTE NA DIREÇÃO DA ANÁLISE

O sujeito também fica libertado para poder gozar da vida, sem a escravidão a esse Outro que ele próprio criou de modo ilusório e infinito. O grande Outro cai enquanto consistência e isso está colocado no título do Seminário 16: De um Outro ao outro, no qual o sujeito passa da suposta e imaginária consistência do grande Outro para uma queda dessa figura e a colocação de um pequeno outro, tão próximo e castrado quanto o próprio sujeito. Com a queda desse Outro consistente e a identificação com um semblante de objeto a, o sujeito não precisa mais do Outro e do a que lhe servia como causa de desejo, pois identificado com o objeto a, ele (o sujeito) próprio pode ser causa de seu desejo, sustentando suas perdas e suportando a dor em existir, sem receitas miraculosas, elixires do amor e do diabo ou curas fantásticas. Assim, é possível suportar o mal-estar e fazer algo com isso.

Desse modo, o ponto que queremos enfatizar como conclusão dessa reflexão é que a pulsão invocante desempenha um papel importante na direção da análise, pois marcamos dois de seus destinos: a direção ao Outro e a torção no nível do Outro. Essas duas características dos destinos pulsionais invocantes nos mostram uma direção de fim de análise. Temos que pontuar que não entendemos o fim de análise como algo apoteótico e triunfante, digno de um herói de contos épicos, mas como fins possíveis, parciais, relativos à cura do sintoma e às transformações subjetivas nesse lugar que gerava o sintoma. Dessa forma, os destinos pulsionais nos mostram que o sujeito, ao fim da análise, consegue se endereçar mais fortemente em relação ao outro, tomando esse outro como um par, um parceiro em que as relações sexuais sejam possíveis. Não a relação sexual como o encaixe perfeito entre dois seres, essa não existe, mas uma relação com esse par, uma relação possível na medida em que esse outro é um outro sujeito, tão castrado quanto ele e não um grande Outro dotado de uma suposta consistência imaginária e ilusória.

Lacan (1958/1998LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998.) expõe que, ao final de uma análise, se produz um analista, ou seja, se produz alguém menos narcisista, alguém que estaria mais preocupado com sua falta a ser do que em seu ser. Alguém que poderia suportar, ainda que de forma parcial e relativa, o des-ser, o deixar de ser, como é a função do analista. Se, no fim de análise, se produz um analista, se produz alguém com esses traços pontuados pelo próprio Lacan (1958/1998LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998.) como pertinentes à função de analista. Desse modo, nos interessa essa ponte que podemos fazer entre as características dos destinos pulsionais invocantes, seus efeitos na intervenção analítica e a condução para uma transformação do sujeito que o tornaria mais voltado para o outro, nesse movimento de queda do grande Outro e de uma posição menos narcísica, mais coerente com esse des-ser, menos ocupado e preocupado com o seu ser e mais voltado a sua falta a ser, realizando finalmente essa posição subjetiva de analista, ou seja, aquele que se produz ao fim de uma análise.

REFERÊNCIAS

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  • FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)
  • HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan Salvador: Ágalma; Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.
  • LACAN, J. A direção da cura e princípios de seu poder (1958). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
  • LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998.
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  • LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. (O Seminário, 20)
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  • LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. (O Seminário, 11)
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  • MILLER, J-A. Jacques Lacan et la voix. In: MILLER, J-A. La voix: colloque d’Ivry. Paris: La Lysimaque, 1988.
  • PORGE, E. Voix de l´écho Paris: Éditions Érés, 2012.
  • QUIGNARD, P. L´être de balbuciement Paris: Mercure de France, 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2021
  • Aceito
    16 Out 2021
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