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"Rêve parisien" em seqüência literária

Resumos

O texto desenvolve uma análise do poema das Flores do Mal "Rêve parisien" em suas relações com "La pente de la rêverie" de Victor Hugo e como anunciador de alguns poemas em prosa de Illuminations de Rimbaud que também têm por tema a cidade.

Baudelaire; tradução; poesia francesa


Le texte analyse un poème des Fleurs du Mal, "Rêve parisien" en établissant des relations avec "La pente de la rêverie" de Victor Hugo et avec quelques poèmes en prose des Illuminations de Rimbaud qui ont aussi la ville comme thème.

Baudelaire; traduction; poésie française


This text develops the analysis of the poem "Parisien dream", from Baudelaire’s Flowers of Evil, in its relationship with "The slope of reverie" by Victor Hugo, as a forerunner of some prose poems extracted from Rimbaud’s Illuminations, which also deal with the team of the city.

Baudelaire; translation; french poetry


"Rêve parisien" em seqüência literária

Gloria Carneiro do Amaral* * Professora livre-docente do Curso de Língua e literatura francesas. Especialista em literatura francesa do século XX e do século XIX e nas relações literárias entre França e Brasil. Publicação neste campo: Aclimatando Baudelaire ( São Paulo, Annablume, 1996), sobre poetas brasileiros (1870-1900) que apresentaram uma influência da poesia das Flores do Mal.

RESUMO

O texto desenvolve uma análise do poema das Flores do Mal "Rêve parisien" em suas relações com "La pente de la rêverie" de Victor Hugo e como anunciador de alguns poemas em prosa de Illuminations de Rimbaud que também têm por tema a cidade.

Palavras-chave: Baudelaire; tradução; poesia francesa.

ABSTRACT

This text develops the analysis of the poem "Parisien dream", from Baudelaire’s Flowers of Evil, in its relationship with "The slope of reverie" by Victor Hugo, as a forerunner of some prose poems extracted from Rimbaud’s Illuminations, which also deal with the team of the city.

Key words: Baudelaire; translation; french poetry.

RÉSUMÉ

Le texte analyse un poème des Fleurs du Mal, "Rêve parisien" en établissant des relations avec "La pente de la rêverie" de Victor Hugo et avec quelques poèmes en prose des Illuminations de Rimbaud qui ont aussi la ville comme thème.

Mots-clés: Baudelaire; traduction; poésie française.

"... viendront d’autres horribles travailleurs;

ils commenceront par les horizons où l’autre s’est affaissé!"*1 *1 (Carta de Rimbaud a Paul Demeny, 15 de maio de 1871.)

Baudelaire, no seu admirativo texto sobre Victor Hugo, que integra "Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains", cita apenas um poema, "La pente de la rêverie", escrito em 28 de maio de 1830 e que figura em Les feuilles d’automne. Uma citação pontual de uma obra que, na ocasião, 1861, já era bem ampla não deixa de despertar curiosidade: o que teria visto Baudelaire de tão particular neste poema, que, como ele mesmo reconhece, é si vieux en date (cerca de 30 anos, portanto), mas que ele continua a considerar um poème énivrant? A sedução, segundo nos justifica, residiria na "faculdade" poética de criar sugestão e mistério. Uma leitura mais atenta pode nos levar a possíveis repercussões "La pente de la rêverie" na poesia baudelairiana.

"La pente de la rêverie" mostra o poeta em vôos metafísicos que convergem para o encontro do espírito, assustado e enlevado, com a Eternidade.

Divide-se em quatro partes de dimensões muito diferentes:

– a primeira (10 versos) é uma apresentação da questão central do poema: "la pente", o declive que vai do mundo real ao mundo invisível, pode constituir uma viagem obscura e perigosa, adverte o poeta.

– a segunda (20 versos), a descrição do espaço doméstico onde ele se encontra: da janela aberta, vê o jardim e ouve as crianças brincando; e do espaço urbano: Paris e o Sena.

– a terceira (37 versos) evoca os amigos artistas, incluindo os ausentes e os mortos e, rapidamente, amplia-se para abarcar a humanidade, todos os seres vivos.

– a quarta (87 versos), a mais longa e importante, a rêverie, instala-se no binarismo do espaço e do tempo, buscando num movimento de amplitude abarcar todo o cosmos, de um pólo a outro e em todos os tempos.

Baudelaire não deve ter sido atraído de forma especial pelo espaço doméstico, freqüente na poesia hugoana, mas este se insere de imediato no urbano, Paris e o Sena. O rio permite a identificação do poeta ao elemento cósmico mais intensamente presente, a água:

La Seine ainsi que moi laissait son flot vermeil

Suivre nonchalamment sa pente, et le soleil

Faisait évaporer à la fois sur les grèves

L’eau du fleuve en brouillards et ma pensée en rêves!1

Em uníssono com a Natureza, o poeta segue seu curso, sua "pente", em direção ao oceano e como a água se evapora em névoa, o pensamento se alça em sonhos. A advertência inicial – nadar na superfície – adquire maior força e significado mais claro. Nessa trajetória de declive do mundo real até o invisível, o ser se arrisca a defrontar-se com um "enigma fatal". O mergulho na rêverie – palavra cara a Baudelaire – é temerário. A presença do mistério observada por ele adquire consistência e está presente na epígrafe em latim, "Obscuritate rerum verba soepe obscurantur", observação supostamente de um cronista inglês do século XVIII: "a obscuridade das coisas torna frequentemente as palavras obscuras".

Compõem, então, o poema, em insistente presença, imagens aquáticas, que, a partir do rio, se avolumam até uma identificação do Universo com o mar, até compor uma metáfora marítima do cosmos:

Oh! Cette double mer du temps et de l’espace

A conveniente metáfora do navio aparece na última estrofe, pois o ser humano pode assim se manter na superfície, respeitando a advertência feita no início.

O poema é farto em substantivos no plural, que configuram massas heteróclitas, ambicionando trazer o universo inteiro para o espaço poético. A palavra tout e suas flexões, empregada para designar blocos de universo aparece, significativamente, doze vezes ao longo dos 144 versos. De um pólo a outro, acidentes geográficos – cabos, vales, mares, campos – desfilam ante os olhos extasiados do poeta. Freqüentemente, na poesia hugoana, deparamo-nos com este processo ambicioso de trazer todo o universo para o espaço poético. A Natureza aqui não descreve pura e simplesmente um cenário, mas tem a função poética de criar metáforas para mostrar a situação do ser humano no cosmos, orquestrar o "magnífico repertório de analogias humanas e divinas" que tanto impressionou Baudelaire e compor a grandiosidade e a universalidade que ele via como fundamentais.

Como o autor das Flores do Mal se confessa seduzido pela carga de mistério de "La pente de la rêverie", é interessante ler com atenção a última estrofe, de doze versos, que mostra o poeta em espanto e deslumbramento diante da contemplação da Eternidade:

Oh! Cette double mer du temps et de l’espace

le navire humain toujours passe et repasse,

Je voulus la sonder, je voulus en toucher

Le sable, y regarder, y fouiller, y chercher,

Pour vous en rapporter quelque richesse étrange,

Et dire si son lit est de roche ou de fange.

Mon esprit plongea donc sous ce flot inconnu,

Au profond de l’abîme il nagea seul et nu,

Toujours de l’ineffable allant à l’invisible....

Soudain il s’en revint avec un cri terrible,

Ebloui, haletant, stupide, épouvanté,

Car il avait au fond trouvé l’eternité.

Mesmo se não soubéssemos da preferência em questão de Baudelaire, a leitura desta estrofe nos traria inequívocas identificações com mais de um poema das Flores do Mal.

Lembremos, por exemplo, "Élévation". Na primeira estrofe, à exceção de soleil, todos os substantivos estão no plural, configurando o universo, por cima do qual sobrevoa o espírito do poeta, como "um bom nadador"; embora esteja no ar e não haja nenhuma imagem de água... A motivação dos dois poetas é a mesma: entender a linguagem do cosmos.

Mais imediata ainda me parece a associação com "Le voyage". Embora não explicitada como no poema hugoano, le navire humain, a metáfora do navio para o ser humano é retomada através da Morte como capitão que o conduz através do "mar das Trevas". E, inequívoca a identificação dos últimos versos de ambos os poemas:

Car il avait au fond trouvé l’eternité. (Victor Hugo)

Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau! (Baudelaire)

Resvala-se o plágio, mas o timoneiro traça novos rumos: a mudança do encontro com a Eternidade para o encontro com o Novo caracteriza duas poéticas diferentes, a primeira de interesse que tende ao metafísico e a segunda, que navega nas águas de uma nova poesia.

Mas há outra vertente em "La pente de la rêverie". Paralelamente às imagens marítimas, outras massas, de natureza arquitetônica, em que elementos se aglomeram e se empilham para construir cidades antigas, Babilônias, Cartagos, Tebas, cujas "raças mortas" vivem no tempo gramatical da História, o passé simple: vinrent ouvrir les portes:

D’autres villes aux fronts étranges, inouïs,

Sépulcres ruinés des temps évanouis,

Pleines d’entassements, des tours des pyramides,

Baignant leurs pieds aux mers, leur tête aux cieux humides.

[.....................]

Les races mortes

De ces villes em deuil vinrent ouvrir les portes,

[.....................]

Alors, tours, aqueducs, pyramides, colonnes,

Je vis l’intérieur des vieilles Babylones,

Les Carthages, les Tyrs, les Thèbes, les Sions,

D’où sans cesse sortaient des générations.

[.......................]

................c’était comme un grand édifice

Formé d’entassements de siècles et de lieux;

Gostaria de recorrer, neste momento, ao inspirador ensaio de Jean-Pierre Richard sobre Victor Hugo,*2 *2 (RICHARD, J-P. "Hugo". Études sur le romantisme. Paris: Seuil, 1970. Coll. Points: 189.) no qual o crítico evoca a importância da imagem do caos na obra do poeta. Ela estaria ligada de forma intrínsica à sua visão da origem do mundo e seria também fonte de criação verbal. Embora o ensaio se concentre em Os miseráveis e "La pente de la rêverie" nem seja mencionado, algumas observações cabem como uma luva para o poema em questão:

Aucune structure ne s’affirme capable de lui [caos] conférer équilibre ou sens. Il a pour loi le refus de toute loi, pour architecture le déni même de l’architecture. Il peut apparaître alors comme une pure épiphanie du brut, comme le signe ou le résultat de la névrose de la quantité. Car l’amoncellement hystérisé du tas nous annonce en même temps sa chute, sa ruine. On sait que ce mythe de l’amoncellement croulant, ou de l’écroulement amoncelé, se donne chez Hugo un index obsessionnel: la tour de Babel.

Não há organização na composição do espaço do poema e elementos díspares se acumulam lado a lado; a palavra "entassements", aludida no texto crítico como amoncellement hystérisé du tas repete-se duas vezes: a primeira, ligada a elementos de arquitetura e a segunda, ao tempo e ao espaço. A função do desfilar dessas cidades é mostrar tempo e espaço históricos, a Humanidade na pujança do seu passado: cette Babel du monde, que Richard designa como "índice obsessivo" e cujas dimensões (inouïs) equivalem às da amplitude oceânica.

O verso sépulcres ruinés des temps évanouis, de ressonância baudelairiana, aponta, ao mesmo tempo, para um desmantelamento da arquitetura e para o tempo histórico, que se impõe ao longo desse declive de devaneio.

Ligada a essa vertente de paisagem urbana do poema hugoano declaradamente lido por Baudelaire, podemos colocar uma das peças que me parece situar-se entre as mais modernas das Flores do Mal, "Rêve parisien".

Se podemos constatar a afirmativa de Hugo, J’ai deux affaires dans ma vie, Paris et l’Océan... através do poema que estamos analisando, o tema da cidade liga-se muito mais a Baudelaire.

Talvez não seja inútil rever a trajetória deste novo tema que constitui os "Tableaux parisiens", com seus dezoito poemas, dos quais boa parte, como sabemos, foi composta entre as duas edições. O adjetivo parisiense aparecera já em 15/11/1857, na revista Le Présent; em 1859, "Les sept vieillards" e "Les petites vieilles" são publicados como "Fantômes parisiens" na Revue Contemporaine; em 1860, na mesma revista, o único poema que, no livro, conservará o adjetivo no título: "Rêve parisien".

O tema da urbes é, em geral, ligado à observação do flâneur, passeando pelo espaço urbano e registrando as impressões diretas do que vê na multidão. Mas a cidade, em sua materialidade, no seu corpo físico, aparece em geral, fragmentariamente, em flashes ou como cenário:

palais neufs, échafaudages, blocs,

quand je contemple, aux feux de gaz

La rue assourdissante autour de moi hurlait

O poema destaca-se do conjunto, por um lado, por girar em torno da arquitetura urbana, sem a presença da multidão. E também porque o partido adotado não é da observação e sim o do trabalho da "rainha das faculdades", a imaginação, correspondendo com exatidão à aspiração inicial de bâtir dans la nuit mes féeriques palais, anunciado em "Paysage". Aqui, o poeta é, literalmente, como ele próprio se nomeia, architecte de mes féeries.

O substantivo féeries implica a idéia de maravilhoso, de magia, do poder das fadas; designa também um espetáculo teatral que coloca no palco seres sobrenaturais e que apela para recursos cênicos do gênero dos atuais efeitos especiais. Ou seja: não se insere no real, podendo, neste contexto, aproximar-se do sentido de rêverie, empregado no poema de Victor Hugo, pois como nos promete o poeta no segundo verso, o que vamos ver não se inscreve no domínio do existente: Tel que jamais mortel n’en vit.

O adjetivo do título, não seria, digamos, o mot juste, pois não se trata de uma paisagem parisiense, e sim de uma paisagem sonhada, imaginada, aproximando-se mais da paisagem imaginativa que Baudelaire buscava –sem ter encontrado- nas obras do Salão de 1859, muito provavelmente o embrião da paisagem aqui construída:

Je regrette ces grands lacs qui représentent l’immobilité dans le désespoir, les immenses montagnes, escaliers de la planète vers le ciel, d’où tout ce qui paraissait grand paraît petit, les châteaux forts (oui, mon cynisme ira jusque-là), les abbayes crénélées qui se mirent dans les mornes étangs, les ponts gigantesques, les constructions ninivites, habités par le vertige, et enfin tout ce qu’il faudrait inventer, si tout cela n’existait pas!*3 *3 (BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1968: 418.)

Surge então uma paisagem nova, inventada, idealizada a seu gosto, através do sonho: le rêve, qui sépare et décompose, crée la nouveauté, conforme afirma em carta escrita a Alphonse de Calonne, logo depois de ter enviado o poema a Poulet Malassis.*4 *4 (Carta a Alphonse de Calonne, março de 1860.)

E que matéria constitui esse espaço feérico?

O poeta, conforme anuncia nos sétimo e oitavo versos, baniu o vegetal de sua república, por causa de sua irregularidade.

A visão que Baudelaire tem da Natureza – tomada aqui como paisagem, como cenário, é bem ilustrada por um curioso episódio que vale lembrar. Em 1853, Fernand Desnoyers organizou uma publicação de poemas em torno da floresta de Fontainebleau. Convidado, Baudelaire enviou os dois Crepúsculos, com a resposta que se segue e ajuda não só a entender o oitavo verso, mas também sua posição face a uma visão romântica da natureza:

Mon cher Desnoyers, vous me demandez des vers pour votre petit volume, des vers sur la Nature, n’est-ce pas? Sur les bois, les grands chênes, la verdure, les insectes, le soleil sans doute? Mais, vous savez bien que je suis incapabble de m’attendrir sur les végétaux et que mon âme est rebelle à cette singulière religion nouvelle, qui aura toujours, ce me semble, pour tout être spirituel je ne sais quoi de shocking. Je ne croirai jamais que l’âme de Dieu habite les plantes et que quand même elle y habiterait, je m’en soucierais médiocrément, et je considérerais la mienne comme d’un bien plus haut prix que celle des légumes sanctifiés. J’ai même toujours pensé qu’il y avait dans la Nature, florissante et rajeunie, quelque chose d’impudent et d’affligeant.

Dans l’impossibilité de vous satisfaire complètement, suivant les termes stricts du programme, je vous envoie des morceaux poétiques qui représentent à peu près la somme des rêveries dont je suis assaili aux heures crépusculaires. Dans le fond des bois, enfermé sous des voûtes semblables à celle des sacristies et des cathédrales, je pense à nos étonnantes villes, et la prodigieuse musique qui roule sur les sommets me semble la traduction des lamentations humaines.

Não é difícil entender que esses dois crepúsculos urbanos, sombrios, sem os tons róseos e avermelhados que se observa no poente tenham sido recusados, com a polida desculpa de que não havia mais espaço no volume.

Não é o único texto em que Baudelaire proclama seu ódio ao vegetal e o gosto por outro tipo de material. Em Any where out of the word, assim evoca Lisboa:

Cette ville est au bord de l’eau; on dit qu’elle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal qu’il arrache tous les arbres. Voilà un paysage selon ton goût; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et le liquide pour les réfléchir!

O desprezo pelo vegetal remete a uma tomada de posição estética bastante consciente. Baudelaire atribui à concepção do século XVIII que toma a Natureza como fonte de conhecimento e ensinamentos a origem dos erros relativos ao Belo. Em "Le peintre de la vie moderne", no ítem com o título curioso e aparentemente frívolo de "Eloge du maquillage", expõe esse ponto de vista, que se completa com a afirmativa de que a natureza é só um dicionário, cabendo ao artista elaborar o que apreende em imagens.

O vegetal é banido e suas formas substituídas por elementos arquitetônicos: non d’arbres, mais de colonnades (verso 21), analogia de formas já conhecida na poesia baudelairiana desde "Correspondances": un temple de vivants piliers/ forêts de symboles. Ou então uma associação de vegetação e espaços arquitetônicos como vemos no verso inicial de "Obsession": Grands bois, vous m’effrayez comme des cathédrales.

Essa urbes é construída de material frio e duro, metal e mármore, materiais parnasianos que se articulam numa imagem nada parnasiana, muito mais uma superação dessa estética que visa a descrição de um objeto real. De forma similar à qual, se utilizando da necrofilia do romantismo noir, ultrapassa-a e converte-a em novo através da sua superação em "Une charogne".

A água é elemento dominante e freqüente nas feerias baudelairianas, presente também nos delírios do "Mangeur d’opium": L’eau devient un élément obsédant. Na arquitetura deste sonho urbano, ela se espalha, invade quase todas as estrofes através das mais variadas formas: lagos, cascadas, cataratas, lençóis de água, ondas mágicas, enormes geleiras, Ganges. Inclusive as únicas figuras de contornos humanos – des naíades,/comme des femmes- são aquáticas.

O oceano natural, selvagem e rebelde da poesia hugoana é dominado e se artificializa: océan dompté, le liquide enchâssait sa gloire. É um líquido que se mineraliza, se cristaliza, transforma-se em blocos gelados que não podem derreter, pois o sol, tema e título da segunda peça desta série, na qual aparecia como "inimigo das cloroses" e descia benfazejo, como um poeta, sobre a cidade, está ausente como o vegetal. Sem ele, tudo se ilumina por um brilho próprio, un feu personnel.

Mesmo sem vegetal e sem o calor do sol, a paisagem fascina o poeta e é, inequivocamente, apresentada de forma positiva: l’image me ravit, peintre fier de mon génie, je savourais [...] l’énivrante monotonie; proliferam adjetivos positivos-éblouissantes, éblouies, inouïes- bem como substantivos de igual natureza –prodiges, merveilles.

Faz sentido, portanto, o adjetivo fastueux que classificava a paisagem na abertura do poema, em sua primeira versão, na carta a Malassis (13/03/1860):

De ce fastueux paysage,

Tel que mortel jamais n’en vit

No entanto, o adjetivo é substituído, na versão definitiva, por terrible, que reaparece na última estrofe, destoando do tom eufórico da contemplação da paisagem recém criada. E o que de tão terrível fecha a primeira parte? Um silêncio de eternidade.

Contrastando com a primeira parte de treze estrofes, a segunda, curta, duas estrofes, mergulha em negatividade e em trevas e o único som que se faz ouvir é o badalar do relógio que marca o tempo. O que de terrível se anuncia é o fim do sonho, instância atemporal, para bruscamente dar lugar à realidade. Um movimento de queda idêntico ao do poema em prosa, "La chambre doublé", em que o sonho também é interrompido por uma violenta intrusão da realidade.

Retomando os dois poemas, hugoano e baudelairiano, ressaltamos o ritmo comum da sucessão das imagens, em acumulação, em empilhamento (para manter o campo semântico dos textos –entassement, tas) dos elementos que compõe a figuração.

No primeiro, é o resultado da rêverie, do devaneio aludido no título que converge para um desmoronamento de caráter cósmico, em que espaço e tempo inserem-se numa reflexão de sentido metafísico, como mostra o último verso do poema, já citado:

Car il avait au fond trouvé l’eternité.

No segundo, o poeta vidente constrói um espaço urbano para seu deleite. Se, por um lado, a desconstrução da paisagem urbana no poema baudelairino tem sua origem nas massas da "Babel do mundo" hugoana, ambas igualmente apresentadas através de substantivos plurais em seqüência vertiginosa, por outro, Baudelaire desenha uma nova cidade, uma nova paisagem urbana, que ele procura construir através da imaginação, para suplantar a angústia que lhe causa o espetáculo de uma cidade em inexorável demolição, transformada em imenso canteiro de obras:

Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville

Change plus vite, hélàs! que le coeur d’un mortel)

Essa construção de uma nova paisagem urbana implica a busca de uma nova poética, como reivindica o poeta no último verso das Flores do Mal, também já citado e de estrutura semelhante ao verso hugoano:

Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!

Baudelaire, em lugar da eternidade, busca a modernidade numa urbes que se configura, não em modelos do passado, em Romas, Cartagos, Tebas ou Babilônias hugoanas, mas fragmentada, cubista. Exatamente por configurar uma cidade modernista que abre espaço para uma descrição nova do espaço urbano na poesia que "Revê parisien" parece-me, como disse no início deste artigo, seu poema mais moderno e que lança um olhar para a poesia que se segue.

Se Baudelaire expressa sua admiração a Victor Hugo, Rimbaud também declara a sua: Baudelaire est le premier voyant, roi des poètes, un vrai Dieu.

Essa reverência enfática manifesta-se, como sabemos, na "Lettre du voyant",*5 *5 (RIMBAUD, A. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1972. Ed. de la Pléiade: 251.) fundamental para entendermos várias perspectivas poéticas de Rimbaud. "Primeiro" pode ser entendido como o maior –a expressão seguinte nos confirma isso – mas também em um sentido seqüencial. Na sua "hora de literatura nova" a Demeny, o jovem poeta desenvolve uma visão da literatura como construção progressiva cujo horizonte é o desconhecido, que reclama novas formas:

Car il arrive à l’inconnu! Puisqu’il a cultivé son âme déjà riche, plus qu’aucun! Il arrive à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses visions, il les a vues! Qu’il crève dans son bondissement par les choses inouïes et innommables: viendront d’autres horribles travailleurs; ils commenceront par les horizons où l’autre s’est affaissé!

– La suite à six minutes –

Nessa ótica, pode-se dizer que a metáfora do «navio humano» hugoana é potencializada em "Le bateau ivre". Aliás, as notas da edição da Plêiade são fartas em identificações e apontam para outros poemas de Victor Hugo, como "Pleine mer" e "Plein ciel"; afirma-se inclusive que o símbolo do navio ligado à aventura humana já era banal.

O que não é banal é a forma como Rimbaud se apropria desse campo metafórico. Já a partir do momento em que converte o barco em enunciador poético; partido tão ousado que teria sido considerado inadequado por um dos poetas parnasianos, que aconselhou o jovem iniciante a lançar mão de uma mediação e não estabelecer abertamente a identificação. Como também não são banais as vertiginosas imagens criadas no poema.

Interessa-me, no entanto, lançar um olhar sobre três poemas de Illuminations, que têm o mesmo título "Ville", um no singular e outros dois no plural. Os comentaristas parecem muito voltados para saber se o modelo de cidade é ou não Londres; se o poeta está ou não criando uma cidade imaginária. Na verdade, a questão é secundária, pois se escolhermos a verossimilhança como ângulo de entrada, qualquer uma das duas opções será possível e ainda assim, os textos permanecerão desconcertantes.

No poema em que o título está no singular, o enunciador poético se faz presente enquanto integrante do universo urbano (je suis un éphémère et point trop mécontent citoyen d’une metrópole crue moderne), que se encontra na mesma perspectiva de observação do enunciador baudelairiano de "Paysage", na janela de seu quarto. O que observa está ligado aos seres (ces millions de gens, des spectres nouveaux) e alude a questões como a Morte e o Amor. A cidade, fisicamente, não se faz presente. O singular teria pertinência e tratar-se-ia de uma cidade especificamente? Talvez. Mas como mostra Antonio Candido, em se tratando de Rimbaud, o leitor – e o crítico – nunca têm certeza.*6 *6 (CANDIDO, A. "As transfusões de Rimbaud". Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993: 119 e 122.)

Outro é o partido adotado nos dois poemas com título no plural. O enunciador proclama, enfaticamente, logo no início: Ce sont des villes! De fato, é bom prevenir o leitor. Não que não haja elementos urbanos: há chalés, albergues, subúrbios, avenidas, parques, lojas. Há inclusive alusões a capitais européias: aussi élégant qu’une belle rue de Paris; aussi rares que les promeneurs d’un matin de dimanche à Londres; locaux vingt fois plus vastes que Hampton-Court. Mas não há uma descrição continuada que componha um cenário urbano, mesmo insólito como no poema de Baudelaire. O texto se articula numa sucessão de imagens, cujo sentido, em geral, se encerra numa só frase; na verdade, são flashes que se superpõem em ritmo intenso para criar, aqui também, um espaço imaginário – Libans de revê – e essencialmente fragmentário.

Mas esses flashes apresentam um desfilar de figuras insólitas, mitológicas, históricas, de Roland a Vênus, que, em vários momentos se superpõem aos elementos e espaços urbanos. O seu encadeamento não se faz através de uma lógica racional; sua articulação de sabor aleatório é um dos aspectos da poesia rimbaldiana que fez o gosto do surrealismo. Um exemplo que faz suceder elementos de construção e seres ilustra bem o espírito dos poemas:

Sur les passerelles de l’abîme et les toits des auberges l’ardeur du ciel pavoise les mâts. L’écroulement des aphotéoses rejoint les champs des hauteurs où les centauresses séraphiques évoluent parmi les avalanches.

A composição de um espaço urbano imaginário que se organiza num processo de fragmentação, se arquiteta em sucessão de blocos, observado no poema de Victor Hugo, repercute em "Rêve parisien", é potencializada nas Illuminations de Rimbaud, abrindo espaço para composições surrealistas. É a cadeia dos horribles travailleurs das inovações poéticas, passando o bastão.

Recebido em: 01/06/2007

Aprovado em: 30/06/07

  • *2 (RICHARD, J-P. "Hugo". Études sur le romantisme. Paris: Seuil, 1970. Coll. Points: 189.)
  • *3 (BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1968: 418.)
  • *5 (RIMBAUD, A. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1972. Ed. de la Pléiade: 251.)
  • *6 (CANDIDO, A. "As transfusões de Rimbaud". Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993: 119 e 122.)
  • *
    Professora livre-docente do Curso de Língua e literatura francesas. Especialista em literatura francesa do século XX e do século XIX e nas relações literárias entre França e Brasil. Publicação neste campo:
    Aclimatando Baudelaire ( São Paulo, Annablume, 1996), sobre poetas brasileiros (1870-1900) que apresentaram uma influência da poesia das
    Flores do Mal.
  • *1
    (Carta de Rimbaud a Paul Demeny, 15 de maio de 1871.)
  • *2
    (RICHARD, J-P. "Hugo".
    Études sur le romantisme. Paris: Seuil, 1970. Coll. Points: 189.)
  • *3
    (BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1968: 418.)
  • *4
    (Carta a Alphonse de Calonne, março de 1860.)
  • *5
    (RIMBAUD, A. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1972. Ed. de la Pléiade: 251.)
  • *6
    (CANDIDO, A. "As transfusões de Rimbaud".
    Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993: 119 e 122.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      30 Jun 2007
    • Recebido
      01 Jun 2007
    Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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