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ENTRE TEORIA E EMPIRIA: A HISTÓRIA DOS CONCEITOS E A REFLEXIVIDADE DO SABER HISTÓRICO

Resenha do livro: FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier. . Historia conceptual en el Atlántico ibérico: Lenguajes, tiempos, revoluciones . Madrid: FCE, 2021 3.

Autor de referência nos campos da História dos Conceitos e do Pensamento Político, e fundador da rede de pesquisa Iberconceptos, o professor espanhol Javier Fernández Sebastián publicou, no ano de 2021, uma obra intitulada História conceptual em el Atlántico ibérico: lenguajes, tempos, revoluciones. Apresentando-se como uma depuração da trajetória de pesquisa do investigador, o livro estabelece, logo de partida, dois objetivos: um teórico, outro empírico. De um lado, busca avançar algumas considerações acerca das potencialidades do saber histórico de modo geral e da história dos conceitos em particular. Do outro, ambiciona oferecer algumas chaves para a interpretação do processo que levou à entrada do mundo ibérico na modernidade. Declaradamente tributário do pensamento do historiador alemão Reinhart Koselleck, o autor opera com um conceito de modernidade que a identifica à emergência de uma “nova maneira de estar no tempo” e de um marco de inteligibilidade que lhe corresponde.

O livro consiste em onze capítulos, os quais se subdividem em três partes. A primeira delas, intitulada “Perspectivas Teórico-Metodológicas”, ocupa-se do tema da historicidade no mundo moderno, e principia com um capítulo dedicado a apresentar as potencialidades do pensamento histórico de maneira ampla. Chamando a atenção para os usos distorcidos e perniciosos que frequentemente se fazem do passado, o autor argumenta que os maiores ganhos que se pode obter de seu estudo advém de uma abordagem que renuncie à tentação de moldá-lo aos valores do presente que o interpreta, buscando compreendê-lo em sua especificidade e alteridade. Tributária de Dilthey4 4 Dilthey, 1986. , Ortega y Gasset5 5 Ortega y Gasset, 2005. e Veyne6 6 Veyne, 2008. , e de coloração eminentemente historicista, a posição adotada enfatiza a qualidade de autoconhecimento do pensamento histórico. Isto porque, quando logramos reconstituir o passado em seus próprios termos, defrontamo-nos com um “país estranho”, um “outro” cuja diferença nos permite pôr em perspectiva nossos próprios valores. O capítulo seguinte dá continuidade a essa argumentação, mas o faz com relação à agenda historiográfica da chamada História dos Conceitos (Begriffsgeschichte). Na definição de Fernández Sebastián, essa se apresenta como um campo de estudo que se ocupa de compreender os marcos de inteligibilidade de épocas passadas por meio de uma reconstituição de sua própria linguagem e rede semântica. Assim figurada, a História dos Conceitos consiste na combinação de uma sensibilidade historicista refratária à hipótese de que existam ideias perenes e universais; com uma hermenêutica relacional, de inspiração gadameriana7 7 Gadamer, 2015. , que busca o significado das palavras em seus usos concretos no curso do tempo.

O terceiro capítulo - seguramente o mais importante na economia geral da obra -encampa uma tentativa de historicizar a própria agenda da história conceitual, buscando inscrevê-la nos processos mais amplos que lhe deram origem e significado. Extraindo suas premissas, uma vez mais, da teoria da modernidade de Koselleck8 8 Koselleck, 2014. , o capítulo dispõe que, durante o período que compreende o último quartel do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, o mundo ocidental foi acometido por transformações em ritmo acelerado, as quais deram origem a uma nova forma de se conceber e experimentar o tempo. A irrupção dessa modalidade temporal moderna operou, por sua vez, uma espécie de revolução epistêmica, da qual emergiu um novo marco de inteligibilidade, distinto de todos até então vigentes por sua forte sensibilidade histórica. Sob a vigência dessa dinâmica, a metafísica passou a ceder lugar à história, e o absoluto ao contingente.

Ora, que o nascimento da História como disciplina tenha se dado em meio a esse processo de historicização da consciência é um corolário que Koselleck já havia extraído dessa linha de análise9 9 Ibidem, 2006. . No entanto, Fernández vai além, argumentando que a História dos Conceitos - isto é, a própria matriz epistêmica e historiográfica esposada pela obra - foi, ela também, um produto do sobredito processo de historicização. Em última instância, a Begriffsgeschichte figura como uma inflexão da consciência histórica sobre si mesma, pois ao proceder à historicização de seu objeto - a linguagem e os regimes de conceitualização-, ela se faz capaz de apreender a contingência e a radical historicidade de seu próprio aparato categorial e analítico. Essas reflexões acerca da historicidade e as maneiras de se apreendê-la são arrematadas, no quarto e último capítulo da primeira parte, com uma série de proposições acerca do par conceitual modernidade/tradição.

Os dois capítulos que perfazem a segunda parte, chamada “El Atlântico Ibérico en la Modernidad EuroAmericana”, são, nas palavras do próprio autor, de natureza híbrida. Isso porque, embora desloquem o olhar para o objeto empírico de que se ocupa a obra - o Atlântico ibérico em sua transição para a modernidade-, seguem tendo uma boa dose de reflexões teórico-metodológicas. Apoiando-se nos volumosos achados de pesquisa da rede Iberconceptos, Fernández Sebastián avança considerações que visam subsidiar a compreensão da modalidade especificamente ibérica da modernidade. Dentre os pontos apresentados, destaco a proposição de que a transição do mundo ibérico rumo à modernidade se deu em uma cronologia que lhe é própria, e cujo principal ponto de virada foi o ano de 1808, o qual demarca o início da ocupação napoleônica da península Ibérica, e o cativeiro do Rei Fernando VII.

A terceira e mais vultosa parte do livro - “Lenguajes, Tiempos, Revoluciones” - dedica-se à transição propriamente dita. O capítulo VII se ocupa do processo em seus alvores e argumenta que esse se fez sentir, em um primeiro momento, como uma crise linguística, marcada por uma polissemia conflitiva e um dissenso em torno do significado das palavras. Conforme argumenta o autor, o transtorno da linguagem sinalizava a emergência de uma nova experiência do tempo e, por consequência, de um novo regime de conceitualização. Os três capítulos subsequentes ocupam-se da cultura política e linguística emergida desse intenso processo de transformação, cada qual abordando um de seus distintos aspectos: conceitos, metáforas e imaginário. Segundo a definição oferecida, o conceito corresponde à instância mais basilar e socialmente consolidada de mediação simbólica de uma determinada cultura, sendo o instrumento por meio do qual a experiência é tornada inteligível e comunicável. A metáfora presta-se a fins similares, mas distingue-se do conceito por ser um instrumento de mediação incipiente, que opera por meio da analogia. O imaginário, por sua vez, carece de uma definição precisa no corpo do texto e figura simplesmente como o conjunto dos demais elementos que compõe um marco de inteligibilidade.

Por fim, os últimos dois capítulos persistem no tema da modernidade ibero-americana, mas o atacam não mais pelo ângulo da linguagem, mas sim do tempo. Ponto culminante da argumentação desenvolvida no livro, são nessas páginas que o autor apresenta testemunhos que corroboram a hipótese de que uma nova temporalidade teria se instalado no Atlântico ibérico - temporalidade essa cujas duas principais características são um ritmo de aceleração constante e uma orientação para o futuro. Note-se, contudo, que o autor não ambiciona apresentar uma aferição quantitativa e mensurável dessa transformação. O que faz é apresentar a percepção que os homens e mulheres contemporâneos a essas mudanças tiveram de seu impacto sobre o contexto em tela.

Ao submeter a sensibilidade histórica de que dispomos no presente a uma análise histórico-crítica, o autor logra demonstrar que esse marco epistêmico, que hoje subsidia nossa leitura de todo o passado, é um produto do devir histórico desse mesmo passado. Afinal, como se argumenta ao longo do livro, nós só nos tornamos sensíveis à contingência do mundo humano (e aos regimes de conceptualização que o caracterizam) quando as revoluções políticas modernas fizeram emergir um novo marco de inteligibilidade sob a vigência do qual nós passamos da Ontologia à História. Essa aguçada e provocativa interpretação, que estabelece uma via de mão dupla entre a teoria e a empiria, tem por saldo a historicização da própria historicidade. Ora, ao proceder dessa forma, enfatizando que sua própria mirada analítica é um produto do objeto de análise de que se ocupa, o autor logra, em última instância, borrar a fronteira entre o sujeito e o objeto do conhecimento histórico.

Se o principal feito das primeiras modalidades de consciência histórica vigentes no século XIX foi a historicização da vida humana enquanto objeto de análise, o que hoje vemos com a História dos Conceitos é uma consciência histórica que se inflexiona sobre si mesma. O progressivo aguçamento da sensibilidade histórica nos tempos modernos, nos diz o autor, conduziu as sociedades ocidentais a um saber autorreflexivo, isto é, um saber que submete a si próprio à análise. Trocando em miúdos, a representação que Fernández Sebastián faz da História - e mais especificamente, da Begriffsgeschichte - é de um saber que já não aspira a uma validade epistemológica transcendental; que não se propõe observar o mundo pelos olhos de um sujeito cognoscente universal; mas que, pelo contrário, reconhece sua própria contingência e transitoriedade. Em suma, trata-se de um conhecimento histórico produzido na História, e não fora dela.

A teoria da História que emerge deste livro é, sem dúvida, muito sofisticada: radica-se em um amplo suporte documental, conta com coerência lógico-argumentativa e apresenta conclusões de amplíssimo alcance. Não obstante, ela não vem isenta de problemas. Em primeiro lugar porque há um paradoxo inerente a toda forma de historicismo. Em se tratando aqui de uma modalidade particularmente radical de historicismo, que não se exime nem mesmo de historicizar a si mesma, segue-se que essa tensão imanente se faz tão mais presente. Ao abandonar em definitivo a busca por critérios universais de validade epistemológica, estabelecendo que todas as formas alguma vez assumidas pelo pensamento humano são produtos históricos igualmente contingentes e específicos a seus respectivos contextos, o historicismo implicado neste livro acaba por tensionar suas próprias condições de aspirar à legitimidade epistêmica. Se a crítica histórica reconhece a transitoriedade de todos os marcos de inteligibilidade que toma como seu objeto, ela não pode deixar de assentir à afirmação de que suas próprias formulações são igualmente contingentes, relativas e sujeitas à caducidade. A bem da verdade, essa é uma questão que o próprio autor reconhece, e sobre a qual não se exime de discorrer no corpo do livro. No entanto, pertence àquela classe de problemas cujo reconhecimento não necessariamente implica uma solução.

Esse relativismo histórico-epistemológico se mostra particularmente problemático - quiçá mesmo contraproducente -, quando o autor se põe a refutar outras leituras da história. Em diversas passagens, Fernández Sebastián critica os usos “errôneos” ou “deformados” que se fizeram e continuam a fazer do passado. Ora, se se admite que não há um passado ontológico a ser apreendido, e que os critérios hermenêuticos para sua interpretação são relativos, sobre quais bases há de se fundar a crítica? Ao fim e ao cabo, tamanha é a solidez dos argumentos apresentados que as críticas acabam por convencer. Mas, se levamos as premissas do autor às últimas consequências, não parece haver diferença, do ponto de vista da legitimidade epistêmica, entre sua sofisticada historiografia e aqueles usos distorcidos e simplificantes do passado.

Por fim, fugindo a esse tema, há uma crítica a se fazer no que toca à definição do escopo do livro. Conforme consta do próprio título, a obra se propõe a investigar certas dinâmicas que dizem respeito ao Atlântico ibérico. No entanto, o contexto especificamente luso-americano é, no mais das vezes, bastante negligenciado. Quando aparece, a experiência brasileira e portuguesa figura como um caso suis generis, evocado para contrastar com o verdadeiro objeto do livro: o Atlântico hispano-americano. Essa marginalização do recorte lusófono, além de contrastar com o escopo pretendido pelo livro, mostra-se tão mais problemática quando se leva em conta que as mais recentes obras de história conceitual acerca do Brasil têm logrado demonstrar justamente o contrário. Isto é: que o Brasil integrou um mesmo campo de experiência revolucionária, comum à toda a América Ibérica (vide, por exemplo, a obra de João Paulo Pimenta10 10 Pimenta, 2017. ).

Que este livro seja digno de se tornar uma obra de referência para o campo da história do pensamento político no Atlântico hispânico parece-me fora de contenção. Afinal, trata-se da depuração do trabalho de investigação não só de um grande autor, mas de toda uma rede de pesquisa, que tem sido responsável pelos mais sistemáticos resultados no campo. Mais do que isso, no entanto, o livro se apresenta também como uma provocativa reflexão em teoria da História, convidando-nos a reconhecer que a integração da teoria com a empiria pode ser o caminho mais profícuo para pensar o estatuto da nossa disciplina daqui para frente.

Bibliografia

  • DILTHEY, Wilhelm. Crítica de la razón histórica Barcelona: Península, 1986.
  • FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (org). Diccionário político y social del mundo ibero-americano. La era de las revoluciones (1750-1850) Madrid: CEPC, 2009.
  • FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier. História Conceitual no Atlântico Ibérico. Linguagens, tempos, revoluções Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Ed. Hucitec, 2023.
  • FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier. Historia conceptual en el Atlántico ibérico: Lenguajes, tiempos, revoluciones Madrid: FCE, 2021.
  • GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica Petrópolis: Vozes, 2015.
  • KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: estudos sobre História Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
  • KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
  • ORTEGA Y GASSET, José. Obras Completas Madrid: Fundación Ortega y Gasset, 2005.
  • PIMENTA, João Paulo. Tempos e Espaços das Independências: A inserção do Brasil no mundo ocidental (1780-1830). São Paulo: Intermeios, 2017.
  • VEYNE, Paul. Como se escreve a História São Paulo: Edições 70, 2008.
  • 4
    Dilthey, 1986DILTHEY, Wilhelm. Crítica de la razón histórica. Barcelona: Península, 1986..
  • 5
    Ortega y Gasset, 2005.
  • 6
    Veyne, 2008.
  • 7
    Gadamer, 2015.
  • 8
    Koselleck, 2014.
  • 9
    Ibidem, 2006.
  • 10
    Pimenta, 2017.
  • 3
    Foi lançada também uma edição em língua portuguesa: Fernández Sebastián, 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    24 Ago 2023
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