Resumo
Proponho neste artigo descrever a atuação do naturalista e astrônomo paulista Lacerda e Almeida em uma expedição ao sul do continente africano. Formado em Matemática, na Universidade de Coimbra reformada do último quartel dos anos de 1700, percorreu e descreveu os interiores do Brasil e da África nesse mesmo período, a mando da Coroa. Após o imediato fim da sua última missão, foi ignorado pela administração imperial e pelas instituições acadêmicas das quais era membro. Não obstante, depois de décadas de esquecimento, seus escritos e suas ações ganharam importância entre historiadores de Portugal e do Brasil, a partir do momento em que foram propagandeadas por instituições de cunho colonialista, como a Sociedade de Geografia de Lisboa e a Junta de Investigações Coloniais. Tentarei historiar sua viagem, assim como analisar a construção historiográfica de sua figura como colonizador a serviço do Império luso-brasileiro, privilegiando a análise de seus diários originais, depositados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Palavras-chave:
Império luso-brasileiro; História da colonização portuguesa na África; História da África; História da Universidade
Abstract
This paper describes the work of naturalist and astronomer Lacerda e Almeida, born in São Paulo. With a degree in Mathematics from the University of Coimbra, which was renovated in the late-1700s, he toured and described the inland of Brazil and Africa during the same period, at the behest of the Crown. Once his mission accomplished, Lacerda e Almeida was forgotten by the imperial administration and academic institutions of which he was a member. Nevertheless, after being ignored for decades, his writings and actions gained importance among Portuguese and Brazilian historians, as they were propagandized by colonialist institutions, such as the Sociedade de Geografia de Lisboa and the Junta Colonial de Investigações. Hence, this essay tries to historicize his journeys and his construction as a colonizer at the service of the Portuguese-Brazilian Empire, privileging his original diaries, available at the National Library of Rio de Janeiro.
Keywords:
Portuguese-Brazilian Empire; History of Portuguese colonization in Africa; African History; History of University
1. Lacerda e Almeida: primeiras tentativas de se praticar o cientismo no Império
Ao longo do século XVIII, a Coroa Portuguesa organizou expedições para se conhecer melhor suas terras do além-mar. Nessas incursões investigativas, o Estado fora o determinador de trajetos, selecionador e contratador dos exploradores, posicionando-se como um dos principais subvencionadores. Concomitante, a Academia das Ciências de Lisboa fez alguns desses agentes estatais seus sócios-correspondentes, e quis incorporar ao seu arquivo as informações colhidas3 3 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à independência do Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 49-59. . Dentre os sócios-correspondentes, o paulista Francisco José de Lacerda e Almeida (1753-1798) foi distinguido por historiografia especializada como o primeiro cientista que percorreu a região africana do Império, tentando atravessá-la de leste a oeste, de Moçambique à Angola.
Vários outros naturalistas, seus contemporâneos e igualmente de origem luso-brasileira, tiveram na época mais poder de influência nos vários campos científicos, assim como os percursos deles como viajantes foram registrados com mais abnegação pela historiografia luso-brasileira. Poderíamos citar Manuel Arruda da Câmara, Alexandre Rodrigues Ferreira, frei Veloso e José Bonifácio de Andrada e Silva, para ficarmos nesses, apenas. Contudo, o que nos chama a atenção foi, especificamente, o fato da eleição de Lacerda e Almeida como fundador de um campo de conhecimento para a colonização por parte de alguns historiadores do século XX - envolvidos diretamente com a expansão do poderio imperial português e lotados em instituições dedicadas ao ultramar, como, por exemplo, a Agência Geral das Colônias.
Nascido em São Paulo, Lacerda se trasladou a Portugal no início da vida adulta para cursar a Universidade de Coimbra, instituição que havia passado por uma reforma curricular e estrutural profunda na era pombalina, e que recebia um maior número de matrículas de nascidos da colônia americana. Estaria, assim, inserido num ambiente que estava de acordo com os desígnios ilustrados e a racionalidade científica4 4 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005. .
Lacerda se formou no novo curso de Matemática da Universidade de Lisboa na década de 1770. Na sequência, foi participante de expedições de demarcação de fronteiras entre as Américas Portuguesa e Espanhola. No retorno à metrópole, em 1790, assumiu o cargo estatal de professor de matemática na Companhia (Escola) dos Guardas-Marinhas, onde foi promovido a 1º tenente do mar. Quando atingiu o posto de capitão de fragata foi nomeado, em 1797, governador dos Rios de Sena, pelo ministro Dom Rodrigo de Sousa Coutinho (Conde de Linhares). Esse é o exato momento em que é admitido como sócio-correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.
Na África deveria repetir parte da missão que havia executado na América, de avançar sobre a hinterland desconhecida, cruzando a região austral de leste a oeste e produzindo informações para posterior ocupação imperial. Contudo, não logrou êxito em completar a viagem, falecendo sem chegar a percorrer metade do trajeto proposto.
Em 1873, Francisco Adolfo de Varnhagen escreveu um artigo na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em que propunha reabilitar brasileiros “ilustres pelas Armas, Letras e Virtudes”, mesmo antes da existência da pátria, identificando como um desses “ilustres” o próprio Lacerda, caracterizado como astrônomo. Pois que esse personagem histórico, após percorrer o interior do Brasil, mudou-se para Lisboa, mas tendo um “gênio afeito à vida ativa” e que “não podia conformar-se com a monótona permanência em uma cidade de tão pouca animação como era então a metrópole portuguesa”, pediu ao ministro e secretário do Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos para voltar ao sertão5 5 VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Biografia dos brasileiros ilustres por armas, letras, virtudes, etc.: Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XXXVI, 1ª parte, p. 181, 1873. . O artigo do Barão de Porto Seguro conclamava à publicação dos diários relacionados à África, algo que não ocorrera até o momento:
Essa publicação virá também porventura a mostrar como se o Dr. Lacerda não tivesse infelizmente falecido na empresa, as ciências geográficas poderiam ter possuído meio século antes muitos dos esclarecimentos e observações astronômicas que elas vieram a dever ao Dr. Livingstone.6 6 Ibidem, p. 184.
A Agência Geral das Colônias - instituição científica do século XX ligada ao Ministério das Colônias da República Portuguesa - publicou os diários faltantes em 1926 no seu Boletim. O almirante Gago Coutinho - dirigente e pesquisador da Agência Geral das Colônias - na apresentação afirma que: “De entre os antigos viajantes portugueses, que exploraram o interior do continente africano, o mais famoso foi, sem dúvida, o Dr. Francisco de Lacerda e Almeida […]”. Cita que em seus diários e cartas estão dados astronômicos, o que daria um cariz científico ao descrito pelo desbravador, abonando-lhe a titulação de “o primeiro astrônomo diplomado que visitou o centro do continente africano”7 7 COUTINHO, Gago. Nota explicativa. In: ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Travessia da África. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1926, p. 3. .
Sérgio Buarque de Holanda afiançou a ele o lugar de iniciador, no Brasil, das grandes expedições de caráter científico: “Restringindo-se à observação direta dos fatos e à concisa narração do que testemunhava durante suas viagens, Lacerda nunca se deixa levar por critérios fáceis ou por soluções simplistas”8 8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota-prefácio: biografia. In: ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e Almeida. Diários de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. XVII. . Oliveira Marques vem fazer-nos conhecer - nas poucas linhas que usa para escrever sobre a história da colônia de Moçambique desde o Renascimento até as Revoluções Liberais, em obra que é referência nos estudos do colonialismo português - a ocorrência da expedição que partiu do Tete em 1798, alinhando-o ao rol de governadores-gerais importantes da região9 9 MARQUES, António Henrique Rodrigo de Oliveira. História de Portugal: do Renascimento às Revoluções Liberais. 10. ed. Lisboa: Palas, 1984, v. II, p. 435. .
Quirino da Fonseca num livro que organizou para homenagear o naturalista, qualifica-o como herói, indicando também ser “o pioneiro verdadeiramente científico dessa obra de exploração […] quanto à audácia, perseverança, retidão e saber como geógrafo”10 10 FONSECA, Quirino da. Um drama no sertão: tentativa de travessia de África em 1798. Famalicão: Minerva, de Gaspar Pinto e Irmão, 1936, p. 10. . Aliás, esse historiador da primeira metade do século XX, na transcrição que faz dos diários do coimbrão intitulado Um drama no sertão, enfatiza a integridade portuguesa nesse homem diante de colonos corruptos, chegando a ensinar aos traficantes de Moçambique a honestidade11 11 Ibidem, p. 43. . Fonseca diferencia as experiências de Lacerda com as de antecessores, chamando os últimos de naturalistas e a Almeida de geógrafo12 12 Ibidem, p. 21. .
Maria Emília Madeira Santos escreve o seguinte sobre o paulista, já após o fim do Estado Novo português:
Em maio de 1797 partia de Lisboa com destino à África o primeiro cientista-explorador geográfico. Pode dizer-se que estamos perante o tipo desse explorador polivalente que se fora preparando ao longo do século XVIII. Moldado na Universidade de Coimbra, Lacerda e Almeida muniu-se dos mais modernos instrumentos destinados a observações e medidas exatas. […] Durante a viagem vemo-lo ocupado em observar os eclipses dos satélites de Júpiter, ao mesmo tempo que punha os seus conhecimentos ao serviço das populações. Em Tete, ensinou a fazer sabão e anil e exemplificou o tratamento a dar ao açúcar. Era o cientismo em atividade prática em pleno sertão: a ciência tudo resolvia! Esta foi a primeira exploração africana planejada e organizada em Lisboa precedida de um estudo e cuidadosamente apetrechada.13 13 SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. 2. ed. Lisboa: IICT, 1978, p. 186-187.
Corroborando a compreensão de que qualificava de natureza científica o que fora escrito pelo paulista de fins do século XVIII, o conterrâneo Sérgio Buarque de Holanda chega a afirmar que a leitura dos diários de Lacerda e Almeida são pouco atrativos, não tendo por ambições o de se ter o grande público como leitor, mas eram endereçados às autoridades e, quiçá, às instituições científicas, com objetivos de instruir e informar14 14 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota-prefácio… Op. Cit., p. XVI. . Por isso, ao lê-los, seriam observadas intenções que não parecem somente ser de acúmulo de conhecimento para uma ciência strictu sensu.
Pois que, de acordo com esses especialistas em colonialismo citados, o luso-brasileiro seria um dos mais importantes exploradores da história da África portuguesa. Indo além, ele teria uma escrita complexa, que foi além das descrições simplórias que até então existiam, sendo o fundador de uma escola científica colonial em Portugal. Nele se incidiria o início do ápice de uma tradição de longa data, introduzindo uma nova forma de olhar a África: menos aventureira, mercantilista e beligerante, que deixava de lado a simplória curiosidade. Detinha intenções mais qualificadas, detalhistas e de valores superiores aos de seus antecessores, sendo ele o resultado de um amadurecimento intelectual de uma geração, e atrelado ao progresso universal.
2. Primeira etapa da viagem: apreciações de um naturalista versus atitudes de governador
Este artigo se debruça sobre duas versões dos diários da expedição de Lacerda e Almeida: uma publicada em Portugal pela Agência Geral das Colônias (1926), que editou apenas a segunda parte intitulada Instruções e diário da viagem da vila de Tete, capital dos rios da Sena para o interior da África; e outra brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Holanda (1944HOLANDA, Sergio Buarque de. Nota-prefacio: biografia. In: ALMEIDA, Francisco Jose de Lacerda e. Diarios de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.) - que incluiu a primeira parte dos diários completos não encontrados na versão portuguesa, após consulta aos manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro -, cujo título é Diário de Viagem de Moçambique para os rios de Sena. Descreveremos e analisaremos a trágica ida ao sul da África portuguesa usando essas duas versões.
Por parte do explorador feito governador dos Rios de Sena, já de início mostravam-se interesses mais atrelados às explorações de riquezas, à dominação territorial e à efetivação de controles populacionais, apoiando-se nas inclinações utilitárias das viagens filosóficas e de interesses da Coroa, ao contrário de projeções feitas a posteriori sobre a atuação do luso-paulista, as que o qualificavam como um naturalista atuando em nome de um cientismo puro. Corroborando essa tese, iniciamos transcrevendo a seguir trecho do começo do diário, o qual mostra a incumbência dada ao explorador de buscar caminhos que alcançassem rapidamente, e de maneira segura, o centro da África:
[…] poder-se tirar do centro da mesma África, por meio do comércio com os seus habitantes, as utilidades, que o terreno, e a indústria podem dar, além da principal causa, que move Sua Majestade a fazer tão grande despesa, qual vem a ser, a redução daqueles infiéis ao grêmio da Igreja.15 15 ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diários de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 10.
Como as outras expedições feitas por Lacerda e Almeida dentro do território da América meridional - onde se objetivava demarcar domínios lusitanos sobre a Espanha, fornecedora de base informacional à execução do Tratado de Santo Ildefonso -, a ida à África do experimentado agente imperial parecia seguir o mesmo guião, com intenções de fortalecimento geopolítico. O objetivo principal seria o de arrecadar informações geográficas físicas para uma posterior ocupação do centro austral africano, o que ficasse no meio dos já ocupados litorais angolanos e moçambicanos. Influenciado pelo espectro imperial luso-americano do século XVIII, parece, pelo início do diário, que se intencionava repetir na África o planejamento de uma posterior expansão colonial, inclusive se aproveitando da ausência de outras potências europeias nessa região do globo.
Não obstante, não se repetiu o logro americano do explorador. E os diários nos apresentam uma fracassada missão. Já no início, após descrever as dificuldades de se chegar por mar ao porto da vila de Quilimane e de ressaltar o descuido com a pecuária (com inúmeras mortes de gado devido a carrapatos e pragas desconhecidas), há escândalo com o estado de insalubridade da região, principalmente por conta dos poços artesianos serem verdadeiros lodaçais: com água cor de leite, cheio de insetos e viveiros de sapos “Tudo isso concorre para produzir nos homens sezões, febres biliosas, podres, disenterias, catarrais, enfim moléstias provenientes da podridão. A sarna é geral e se conserva por meses”16 16 Ibidem, p. 132. . Ocorre, inclusive, nos primeiros dias, o adoecer e falecimento de sua esposa17 17 Ibidem, p. 145-146. .
Na vila de Sena, situada na margem do rio Zambeze e uma das localidades do início da longa jornada, Lacerda e Almeida se dedicou a descrever sociabilidades antagônicas ao que deveria ser um espaço de multiplicação da maneira de ser portuguesa, advertindo sobre a permanência de um quadro social temerário à civilização cristã e ao poder imperial.
Assim o permita este Senhor todo poderoso, pois na verdade esta é uma vila de levantados, desobedientes, e malcriados e de inimigos recíprocos do Estado e de Deus, de supersticiosos no último grau de perfeição, de invejosos, de ladrões, enfim um distrito onde se acham todos os vícios e nenhuma virtude.18 18 Ibidem, p. 147-148.
São apontados como os principais culpados de tal situação calamitosa os próprios capitães-generais, representantes da Coroa e seus subalternos, imbuídos de ambição exacerbada, agindo normalmente na ilegalidade e na exploração da população local. Acrescenta ainda a tirania descabida desses responsáveis pelas vilas e localidades, pouco afeitos em organizar e/ou sustentar a obediência ao poder imperial19 19 Ibidem, p. 148-151. , como no caso do sargento-mor de milícias José Gomes Monteiro. Esse senhor, famoso por sua fortuna, era casado, mas mantinha-se amancebado com outra mulher, também comprometida maritalmente, o que veio a lhe ser punido com o degredo a Manica. A repetição do delito, denunciado pela esposa, ocasionou sua prisão. Monteiro já acostumado à corrupção dos governantes enviados por Lisboa, intentou sua soltura com um pagamento de cinco mil cruzados ao novo governador.
Como o dito sargento-mor não foi atendido nos muitos requerimentos que me fez para ser solto debaixo de frívolos pretextos, recorreu às poderosas armas que raras vezes deixam de alcançar vitórias e mandou-me oferecer 5.000 cruzados em bom ouro. Oh! Meu Deus! Só eu posso avaliar a alegria e o prazer em que nada meu coração, não só porque no íntimo dele desprezei e desprezo com horror semelhante proposta. […] Os moradores de Tete depois que souberam da dita prisão exclamaram: - Pois não foi solto este homem que tem quarenta portas? (isto é, 40.000 cruzados). […] Eis aqui o como correm as coisas destes Rios, e agora é que decifro o enigma daqueles que me diziam: se você não tirar dos Rios de Sena 40.000 para 50.000 cruzados no primeiro ano não tem juízo. Eu os tiraria com efeito se quisesse, não digo somente de fazer injustiças, bastava vender a mesma justiça, pois as ofertas são muitas, mas já se vão desenganando comigo.20 20 Ibidem, p. 155.
Além da prática corrente da corrupção, havia indignação com a adesão de europeus e crioulos às práticas religiosas de origem local. “Este erro se tem propagado entre os portugueses, de forma que o maior número lhe dá crédito e praticam o mesmo que fazem os cafres”21 21 Ibidem, p. 156. . Desprezo pela Igreja cristã, crença em adivinhações, feitiçaria, subordinação a preceitos de sacerdotes politeístas, poligamia e outras situações presenciadas, davam a sensação ao racional governador de que os colonizadores constituíram uma forma própria e caótica de religiosidade.
[…] João Manuel […] é um monstro, um homem abominável, e se fosse possível merecia ser reduzido a átomos. Eu li em uma devassa que se tirou sobre o crime que o fez fugir para o rei do Baroé, arrombando a cadeia, o depoimento de duas testemunhas, que juraram também que ele todos os anos fazia sacrifícios humanos, servindo de vítimas cafres, no princípio e fim das sementeiras, para que elas medrassem e rendessem bem. É provável que ele aprendesse dos outros este abominável rito e não dos cafres, pois não tenho ouvido dizer que eles executem esta barbaridade.22 22 Ibidem, p. 157.
Diante das formas como se organizava a mão de obra, Lacerda e Almeida denunciava os exageros e o absurdo dos usos do estatuto da escravidão, pois se dava sobre indivíduos que no seu modo de ver não deveriam estar nessa condição. Caçados por negociantes ou por devedores de tributos a régulos, que obrigavam os devedores a ressarci-los com pessoas escravizadas, estabelecia-se um comércio desregulado e cruel23 23 Ibidem, p. 163-165. .
Devo contudo dar aos cafres a justiça que lhes pertence: eles são homens fortíssimos, robustos, e de uma paciência e sofrimento incríveis. Quem poderá resistir a um trabalho de dias e violentíssimos. […] Eles contudo o sofrem sem murmurar, e também as bordoadas com ânimo alegre. […] Evitei quanto pude maltratá-los, e o consegui […].24 24 Ibidem, p. 167.
Em detrimento de uma atuação científica que se baseava na apreciação descompromissada das terras e gentes da África austral, ele fora convocado pela comunidade local para ser administrador de conflitos, a mediar e governar antagonismos seculares do colonialismo português.
Na Vila de Sena, a 3 de janeiro de 1798, Lacerda tentou resolver um crime de roubo com assassinato perpetrados por dois Botungas sobre a esposa do crioulo Afonso José Fernandes. Este, apesar de desconhecer os nomes dos autores, acusava a fuga dos assassinos às terras do reino Sazua, rogando, portanto, que o novo governador agisse em seu nome, já que sozinho não conseguiria se vingar. Diante do ocorrido o governador-cientista não via “outro expediente mais oportuno e pacífico que o de mandar um pequeno donativo ao mesmo rei [Macombe de Sazua], pedindo-lhe que entregasse os culpados”25 25 ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e apud MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda e Almeida: travessias científicas e povos na África Central (1797-1884). Dissertação (Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1997, p. 41. . E se a ordem do governador não fosse obedecida pelo soba, dever-se-ia agarrar “algum príncipe parente […] ou declarar-se guerra […] fazendo certo ao rei que ele seria responsável a compensar-lhes pelos bens dos malfeitores acusados nos seus distritos”26 26 Ibidem, p. 41. .
É da justiça que se tratava a incumbência solicitada pelos locais ao enviado por Lisboa; e foi no conflito entre a vila e o sertão que se deveria intervir antes de se efetuar qualquer entrada. A pressão da vila sobre Lacerda foi a de se comprar do rei Sazua ou sequestrar um parente seu ou, até mesmo, exterminá-lo, caso não se alcançasse o que era reconhecido como a justiça crioula, que deveria se impor aos preceitos do agente imperial.
O mesmo rei Sazua, no dia 08 de janeiro 1798, foi também, diante do governador-cientista, pedir o perdão de um protegido seu, João Manuel Pereira, já condenado.
[…] atendendo a ser o dito João Manoel, protegido do mesmo rei, e sobretudo em contemplação da boa paz, harmonia, e livre passagem que o mesmo rei tem dado aos portugueses, que passam para Manica, e da promessa que novamente ratifica de proceder sempre do mesmo modo, e de castigar os delinquentes seus vassalos, que forem contra as suas ordens, representaria a sua majestade pela sua Real Junta do Crime para obter ao dito João Manoel, a graça de poder voltar com o salvo conduto à vila, tratar da sua justificação e livramento, sendo-lhe livre voltar às terras do dito rei quando o queira fazer, depois do seu livramento, se o conseguir.27 27 Ibidem, p. 38.
O régulo ainda chama a atenção de um acordo anteriormente estabelecido com representantes do Estado metropolitano, fazendo recordar de uma suposta aliança do poder imperial com os nativos. O líder Sazua parecia reforçar um tipo de normatização da repartição dos poderes, baseada na troca de favores, em que os dois tipos de autoridade se interagiam, dividindo a conservação do mando sobre súditos nativos e crioulos, numa divisão territorial em que o governador tenta reinar sobre a cidade e o régulo governa o sertão, numa fronteira justaposta pelo colonialismo secular.
Lacerda e Almeida encontrou uma maneira tradicional de exercício do poder que não concordava. Afastada de uma governança racionalmente determinada por normas claras e reconhecidas pelas partes, o que se experienciou foi a instabilidade das regras de convivência entre os líderes de origem local e os enviados por Lisboa. O que definia o permitido e o proibido era fluido e de pouca previsibilidade, dependendo muito da habilidade de cada um dos representantes metropolitanos designados. Mais que um roteiro pronto sobre como mandar em terras ultramarinas, via-se a pessoalidade e a improvisação na atuação governativa. Daí que o sucesso tinha mais a ver com a vivência em cada um dos cantos das colônias, do que algo uníssono e imposto. Para os desígnios governativos nos Rios de Sena parece que o guião das viagens filosóficas ainda ficava a dever.
3. Segunda etapa da viagem: tragédia de um cientista no sertão africano
O tal aspecto importante de Lacerda e Almeida apregoado por historiadores citados na primeira parte deste artigo, o cientismo calcado em conhecimentos astronômicos - o qual Lacerda empregou para descrever, na primeira parte dos diários, a localização das vilas por onde vai passando, justamente na região mais habitada e conhecida pelos europeus - é usado pelo desbravador apenas em um momento, quando surge a insegurança diante do desconhecimento sobre os caminhos a se trilhar, substituto do silêncio dos povos locais com relação às entradas no sertão no início do empreendimento, rumo ao desconhecido:
[…] pessoa alguma que me desse a mais ligeira ideia e noções de coisa alguma que me pudesse fazer resolver sobre o caminho mais trilhado, e menos sujeito às hostilidades […]. Partindo da dita vila do Zumbo por ser o estabelecimento que temos mais para o interior d’África, servindo-me de guia as observações astronômicas, verdadeiros práticos das estradas […].28 28 ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Travessia da África. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1926.
Depois desse trecho não encontraremos, na segunda parte do diário, nenhuma citação sequer sobre usos de instrumentos de localização ou qualquer dado geográfico, dando-nos a impressão de superfluidade do cientismo.
Num momento crucial da expedição - na etapa de ultrapassagem da região dos Rios de Sena, desde a vila de Tete, em direção ao interior desconhecido pela colonização portuguesa - Lacerda e Almeida agradece a Deus pela chegada do sertão de um grupo de embaixadores do rei Cazembe, que o informam dos caminhos, os quais posteriormente foram desenhados num mapa por ele feito naqueles dias, e depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
De certo modo, o conhecimento astronômico prévio fora deixado de lado pelo próprio “cientista”, e posto como última alternativa de deslocamento, sendo ainda necessária a população local para se conhecer as entradas no continente29 29 Ibidem, p. 17. . Até mesmo o mapa não daria autonomia nas andanças do geógrafo, e o que fora aprendido nas salas de aula de Coimbra, assim como a experiência nas expedições no Brasil, não bastariam para “dominar o sertão”, num ambiente onde se necessitou de habilidades que dessem conta da lida com o improviso e o inesperado, como veremos ao longo das próximas páginas.
Seguindo para uma hinterland, um dos primeiros obstes logo na saída da vila de Tete foram os abusos dos comerciantes crioulos, como podemos perceber a seguir:
[…] o coronel de milícias de Manica, Jerônimo Pereira […] foi muito vilão, não só porque vendeu o fato por um exorbitantíssimo preço, como porquê […], esperando todos que o fato fosse singular, em atenção ao seu altíssimo preço, sucedeu pelo contrário, pois é o pior que se tem visto nestes rios […].30 30 Ibidem, p. 18.
Desse comerciante Lacerda determinou que se abrissem obrigatoriamente seus armazéns e tomassem os fatos melhores e necessários para sua expedição31 31 Ibidem, p. 19. . Não houve trato construído, tampouco habilidade em negociar com os detentores de mercancias.
Adversidades imensas ocorreram na convocação dos carregadores e na manutenção deles na expedição. Um dos motivos relatados seria o da própria empreitada, tida como de impossível conclusão e que assustava aos próprios habitantes da região32 32 Ibidem, p. 21. . Para iniciá-la, incorreu-se na derrama, ou seja, a captura obrigatória de escravizados dos senhores em nome da Coroa, e, também, indicou-se que se cassassem as autorizações (mercês) para os resistentes e sabotadores crioulos que sonegassem cativos33 33 Ibidem, p. 25. .
Diante do rechaço dos senhores e da falta de gente devido à carestia por qual passava a região no período, Lacerda e Almeida indicou o apoio de uma única comerciante crioula de nome D. Francisca Josefa de Moura e Menezes, viúva de dois ex-governadores, que ele convencera a ceder alguns de seus escravizados.
De acordo com uma carta de um morador dos Rios de Sena, enviada às autoridades competentes na metrópole, Lacerda, após a morte de sua esposa, casa-se com a sobrinha de Dona Francisca Josefa, com o intuito de poder ter mais recursos para a entrada. “Os poucos que sabem desse casamento o condenam, e desaprovam em alta voz; porém eu não direi tal porque penetro os fins dele”34 34 ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e apud MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda… Op. Cit., p. 54. . O signatário defende a atitude do governador, que o fez para cumprir seu objetivo que era ter escravizados suficientes para atravessar a África, já que os necessitava como carregadores. “Viu também que a casa de Dona Francisca possuía perto de dois mil escravos, que todos o conheciam seu senhor, se ele nela casasse, e que levariam a timbre acompanhá-lo […] Isto pois é a real causa de seu casamento”35 35 Ibidem, p. 56. .
Apesar da aliança com Dona Francisca, o drama do exercício de alteridade se impõe ao cotidiano. Já no primeiro dia de jornada fugiram alguns carregadores, seguidos de mais trinta no segundo, alguns deles de uma senhora crioula, que de acordo com o escrito no diário, cedera seus escravizados de malgrado e de maneira obrigatória36 36 ALMEIDA, Francisco José de Almeida e. Travessia… Op. Cit., p. 24. . No quarto dia mais 34 se vão, mesmo com Lacerda não dormindo, apreensivo com as evasões37 37 Ibidem, p. 27. :
Dia 10 [de julho de 1798] Pois de noite fugiram 52. Esta deserção tão grande, e impossibilidade em que quase me punha de seguir viagem, me pôs em grande amargura, e agora neste instante me dão parte que fugiram mais 37. Quem tiver conhecimento do meu gênio ativo, e obediente às ordens de Sua Majestade, avalie a minha aflição; mas todavia me faça a justiça de me julgar ainda com muito ânimo, e seguir avante, e retroceder quando já absolutamente não poder ser de outra forma.38 38 Ibidem, p. 31.
A falta de carregadores, que se evadiam, fazia com que constantemente se deixasse carga pelo caminho. Vai se descrevendo, pouco a pouco, uma deprimente priorização do que se devia abandonar, assim como o que se perdia, devido ao desaparecimento das cargas junto com os carregadores. “Assim como os navegantes em um rijo temporal arrojam cargas ao mar para não naufragarem, ou ficarem soçobrados, assim fiz eu neste dia, para não ficar encalhado, diminuindo cargas”39 39 Ibidem, p. 26. .
Os carregadores empacavam quando menos se esperava e, constantemente, afrontavam os mandos do governador-cientista, negando-se a partir na hora ou dia determinados. Ocorria, também, de chantagearem em troca de melhores pagamentos, que na maioria das vezes eram feitos com objetos, que seriam úteis no contato com populações e seus sobas que ainda viriam, como roupas, por exemplo40 40 Ibidem, p. 33. .
Percebe-se, além da falta de autoridade, certa ignorância de como se organizavam as populações a se comandar, esperando que eles percebessem, não se sabe como, de que tinham obrigações com a rainha de Portugal. “Mas a experiência de pouco tempo me tem mostrado, que no mesmo instante fazem o contrário do que prometem, como homens que vivem inteiramente entregues à lei divina, ou humana, que reprima os estímulos da nossa vontade e liberdade”41 41 Ibidem, p. 34. .
Entre os militares recrutados para a expedição, havia, igualmente, abatimento constante e descrédito com a missão. O episódio do abandono de cargas trouxe reclamações dos soldados e oficiais, com o governador-cientista tendo que constantemente reforçar sua autoridade e o ânimo da tropa42 42 Ibidem, p. 26. . Ao mesmo tempo, na inibição aos roubos, alguns militares mostraram-se ineficientes. Numa ordem para atirar nas pernas de qualquer ladrão capturado, na tarde do dia 18 de julho, Lacerda relata que “pôs em execução a dita ordem; porém penso que o soldado errou o tiro (não é novidade)”43 43 Ibidem, p. 36. .
Num motim perpetrado por um dos capitães, no dia 19 de julho, incentivou-se os carregadores de D. Francisca de Moura e Menezes a fugirem - justamente os que se mostravam mais fiéis à expedição. Esses cativos denunciaram o capitão amotinador, que foi apenas repreendido44 44 Ibidem, p. 38. . Oito dias depois, após uma arremetida de salteadores Maraves, Lacerda e Almeida despediu um sargento-mor de ordenanças, por ter sido pusilânime durante um ataque em que esteve cercado por dias45 45 Ibidem, p. 45. .
A ausência de autoridade pareceu uma constante da expedição do governador, mostrada também nas determinações dos carregadores em fazer paradas constantes e longas, de acordo com crendices e tradições, contrárias à lógica de uma expedição de longa duração.
Dia 11 - Foi preciso fazer alto pelas 10 horas e um quarto; porque os cafres costumam passar a noite neste lugar, como se me explicou um oficial da comitiva. Se a água estivesse muito distante dele, era forçoso com efeito parar; porém podendo-se seguir mais avante, sem que todavia se fizesse jornada longa, só porque os cafres costumam aqui ficar, é este um caso, e uma razão que desespera e tira algum tempo de vida, considerando, que se aumenta a despesa, que talvez nos venha a faltar recurso para comprarmos mantimentos, pelo risco, e toda a probabilidade bem fundada, que tenho de invernarmos dentro da África, e sobretudo pelo receio, que tenho, de que neste ano não me seja possível dar inteira execução às ordens de Sua Majestade46 46 Ibidem, p. 50. .
Nos dias 28, 29 e 30 de julho é registrado que Lacerda e Almeida adoece. Diante da inutilidade dos médicos da expedição em ajudar na sua cura, ele se automedica. “minha moléstia cresceu de forma, […] e não tive outro remédio, que recorrer à Água da Inglaterra47 47 Bebida a base de quinino que ajudava a combater os sintomas da malária (paludismo). contra os votos dos médicos […] os quais apenas sabem ler”. E segue, na descrição do diário, maldizendo os agentes de saúde da comitiva: “Para eles não há mais que três moléstias neste mundo, que vêm a ser: constipação, mordexim [cólera] e fraqueza”48 48 Ibidem, p. 47. . Aliás, as enfermidades serão a constância, sendo que entre março e agosto, por exemplo, acometeram-lhe quatro febrões49 49 Ibidem, p. 63. . E no dia 15 de setembro novamente50 50 Ibidem, p. 75. .
Os erros das informações geográficas de outros desbravadores e da população local sobre as regiões percorridas, do mesmo modo, vão aparecendo com o tempo, fazendo com que Lacerda se sentisse enganado e percebesse a inutilidade de todo o conhecimento e experiência que acumulara como estudante e expedicionário.
Se eu tivesse trazido em minha companhia os livros de geografia que deixei em Tete, hoje imitava ao barbeiro Nunes, e ao abade… quando reduziram a cinzas o Amadis de Gaula, e o livro da cavalaria de D. Quixote, queimando-os também, em castigo de seus autores, por terem desfigurado a face do orbe terráqueo.51 51 Ibidem, p. 72.
Com o tempo cresce a irritação do geógrafo com as festas e bebedeiras dos carregadores, sendo essa outra situação que provocava atrasos. “[…] quando passei pela povoação do Caperapande, os achei nas suas bacanais […]. A povoação parecia um inferno, e os Muizas os demônios. Este dia em que se juntam para beber Pombe52 52 Destilado típico do Zambeze. , é dia de gala”53 53 Ibidem, p. 64. .
A natureza vai dificultando pouco a pouco a viagem, enquanto mais se internava, tendo-se a impressão de desorientação e ruína. As longas jornadas para se encontrar água salobra, os terrenos pantanosos, os incêndios, a mata que vai se fechando, o calor de dia intermediados por frio da noite.
[…] além de tudo isto as minhas indisposições, febres […]. Se pelo menos houvesse caça que suprisse a falta do milho, aves e pássaros pequenos, que lisonjeassem nossos ouvidos com o seu canto, não se teria feito esta travessia tão enfadonha. Há três dias que temos andado muito para o poente: nunca supus, que houvesse de chegar tão perto da equinocial54 54 Ibidem, p. 68. .
Dia 18 de outubro de 1798 Lacerda e Almeida faleceu. No seu lugar foi nomeado como condutor (pelo próprio governador-cientista, antes mesmo de seu falecimento) o padre Francisco João Pinto, que retorna com o que restou da expedição ao Tete, sem menos dificuldades.
Em nenhum momento do diário, encontram-se trechos que descrevam o uso de guias locais ou de trocas de pedidos de informações com quem se encontrava, a não ser no início, como já relatado. Ao par com a desconfiança crescente, devido aos obstes à entrada, parece que reinava uma certa altivez em poder saber sozinho como funcionava tudo. Os delírios científicos do teórico o faziam se afastar dos cognominados “cafres” e “práticos”.
[…] o pasmo em que me põe a conformidade, que acho no modo de pensar dos cafres como de alguns brancos, que me acompanham, e me foram inculcados, como inteligentes nos usos e costumes cafreares, me fazem uma efervescência no sangue, que não posso dulcificar com a reflexão, e uso da razão tal qual Deus me deu, pois olho para o futuro: a inteligência dos usos e costumes de se jactam estes chamados práticos, eu ainda não descobri neles outra mais, do que terem adotado os seus usos, costumes, religião, superstição, e todos os seus abomináveis vícios, que unidos aos próprios se fazem detestáveis.55 55 Ibidem, p. 50.
O diário realça as incapacidades dos que já viviam na África, em detrimento daquele que vinha de fora com um saber que se considerava universal. Contudo, ao fazermos uma leitura crítica, transpareceu a inépcia do dito cientista em perceber as sociabilidades e a natureza distintas do que havia conhecido nos livros lidos na metrópole, assim como nas expedições feitas anteriormente pela América portuguesa. O que se percebe é uma descrição baseada em generalizações de conceitos e paradigmas importados, que o impossibilitavam de conhecer o que vinha se apresentando de diferente, numa imposição de um a priori sobre os povos. Partiu-se de um hermético saber, em que os outros eram percebidos como culturalmente fechados, portadores de tradicionalismos inúteis e descabidos.
Importa-nos mais, aqui, perceber justamente a visão e a interação de Lacerda com os colonos, os crioulos e a hierarquia colonial, do que o incluir como referência para o campo da história da ciência. No que tange à relação dele com seu superior, o governador de Moçambique Francisco Guedes de Carvalho e Meneses da Costa, parece que fora muito difícil qualquer tipo de vínculo desde o início. Numa carta do capitão-general Francisco da Costa ao seu substituto, na qual descrevia a expedição de travessia da África, há reclamos sobre a maneira muito autônoma de Lacerda e Almeida na sua atuação como governador e expedicionário, justo com quem se esperava mais obediência, já que Lacerda era encarado como um subalterno56 56 ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e apud MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda… Op. Cit., p. 140. . Na mesma missiva, o governador Costa indicou como deveria ser o expedicionário ideal para tal empreitada, em contraponto ao malogrado “cientista insubordinado”:
Um homem feito mercador sem aparato com negros carregadores da fazenda de comércio, e que soubesse a língua, munido de uma bússola e um sextante para determinar a posição dos lugares em uma derrota, porque em tal caso o julgaria feiticeiro, e obrigado a purgar um crime execrando entre eles, seria a que em semelhantes expedições faria melhor progresso e este mesmo não deixaria de ser com passos lentos.57 57 Ibidem, p. 142.
De acordo com Francisco da Costa, portanto, o “cientista” foi identificado como inapto. Em contraponto, podemos perceber pelas afirmações descritas anteriormente, que seriam habilidades necessárias para um representante do Império a posse de sapiência específica que facilitasse o trato com as populações do sertão, baseada na capacidade de percepção e julgamento da alteridade. Ademais, deveriam ser aptidões a parcimônia na exposição das opiniões, além, obviamente, da predisposição em abrir comunicação aberta com os locais. Esses seriam os predicados de um agente estatal colonizador, algo ignorado na curta existência do paulista na experiência africana.
4. Da quimera expedicionária no ultramar: Lacerda e Almeida como herói
Ao reapresentarmos a memória de Lacerda e Almeida neste artigo, gostaríamos de conjecturar sobre um construto ainda débil de um conhecimento dedicado à colonização em finais do século XVIII, em discordância ao que alguns historiadores citados na primeira parte nos quiseram fazer crer. Ao mesmo tempo, queremos confirmar a hipótese de que aos que percorreram a África em nome de Portugal, tanto da mesma época assim como os que o fizeram posteriormente, participaram sim de uma espécie de filogenia da formatação de um conhecimento específico dedicado a mudar a forma como a Europa colonizaria o sul da África e outros territórios.
Lacerda e Almeida e seus sucessores expedicionários seriam uma espécie de “experimentadores” de nova epistemologia, contribuintes informacionais mais do que não se devia fazer, por onde não se podia percorrer e de como não se deveria portar. Suas descrições e suas biografias, se conhecidas, poderiam amparar a organização de um discurso de poder imperial, como uma espécie de espelho que escancarasse imperfeições nas atuações e que pudesse remeter em aprimoramentos.
Um dos grandes aprendizados da viagem fracassada de costa a costa africana deveria ser a de que uma metodologia para colonizar não se produziria na metrópole, mas se engendraria no vis a vis colonial, compreendendo-se que seria uma teoria surgida em meio aos embates cotidianos de quem resistia ao Império, colocando em movimento um processo de dominação efetiva do cotidiano ultramarino e na relação direta com os colonizados. Já se encontrava imberbe um conhecimento que se propunha a categorizar alteridades enxergadas - inclusive as dos próprios compatriotas que há muito tempo viviam fora. A questão era perceber isso e colocar em prática nas relações de dominação dos colonizadores sobre os colonizados.
E quais seriam os “defeitos refletidos no espelho”, enxergados no diário da Travessia que obstaram o controle da alteridade naquele momento? Reforçamos a ideia de que não se pode considerar essa dita viagem como exitosa. Foi um embate infecundo de um homem contra um continente inteiro. As sabotagens dos comerciantes crioulos, as constantes fugas dos carregadores, os roubos, os ataques de grupos locais, a fome, as doenças, os motins dos militares que acompanhavam, até o falecimento de Lacerda e Almeida, somente demonstrava a fragilidade da colonização.
A malograda “primeira expedição científica portuguesa” encerrava-se em descrições em que apenas se reforçaram dados que já eram de conhecimento público e notório: a precariedade da vida econômica das populações que iam sendo encontradas; definições não muito precisas de lugares que pudessem deter riquezas minerais; a não chegada ao outro lado da África. Por fim, repetia-se, com constância, que os habitantes locais eram ladrões, preguiçosos ou se escondiam no mato, e que não entendiam, como se devesse ser de forma natural, os valores e as razões imperiais de Portugal.
Uma das maiores desgraças que considero poder acontecer ao homem é o tratar com pessoas a quem falta o senso comum, e têm absolutamente indiferença para o bem, e para o mal; só o sentem quando o sofrem, e finalmente não se deixam vencer da razão. Eu estou neste caso a respeito dos cafres. Não há razão que os convença, que devemos marchar unidos quanto for possível, para podermos resistir aos inimigos, que se nos quiserem opor, e evitar os roubos; que devemos sair mais cedo para adiantarmos a marcha, afim de que se não acabe a caixa militar, e depois venhamos a cair na última necessidade, etc.58 58 ALMEIDA, Francisco José de Almeida e. Travessia… Op. Cit., p. 44-45.
Nos diários que analisamos tudo podia caber, desde que respeitasse o calendário preconcebido; ou melhor, obedecesse a toada de um cotidiano da viagem filosófica previamente concebido. Ao final, o que foi registrado ia ao encontro do artificialismo constituído como pressuposto das classificações naturalistas, deixando de lado premeditadamente a complexidade das realidades, numa cegueira diante das experiências. Ou seja, as diversas leituras dos historiadores que estabeleceram o diário de viagem do paulista desbravador como a gênese do discurso sobre a colonização acobertaram, em realidade, a fragilidade dos dispositivos imperiais na região do interior da África portuguesa
Apesar da expedição de cruzamento do continente africano de 1798 ter carregado a ambição de criar uma narrativa que vinculasse a realidade africana que fosse encontrada em enunciados imperiais, os diários deram vazão ao acaso, ao não planejado. Descrições, classificações e julgamentos homogeneizadores foram barrados em discurso pela experiência.
No mais, a travessia glorificada anos depois em grandiosidade pelos que intentavam constituir uma tradição colonial de Portugal pareceu mais pertencer ao grupo de viagens anteriores que tiveram poucos resultados práticos, tendo como diferencial os requintes de escrita do diário, e com a entrada em cena de um douto, que não foi além do reforço do apedeutismo sobre a África. O acadêmico-governador teve e manteve uma relação pueril com a gente e as terras, longe de estabelecer uma interação com o cotidiano local, colocando-se em externalidade, incorrendo numa não compreensão do local, e pondo-se em conflitos com quase todos que iam junto ou que encontrava, acarretando o ostracismo e sua morte.
Ressalta-se aqui, ainda, a memória de outra expedição de ida à contracosta por agentes estatais que viriam em seguida, incumbidos de repetir e terminar a missão de Lacerda e Almeida. Um deles foi outro governador do Tete e dos Rios de Sena, Manuel de Vasconcelos e Cirne, que em 1829 num ofício ao secretário dos Negócios da Marinha e do Ultramar escreveu o seguinte:
Vossa Excelência me recomenda nas minhas instruções o entrelaçamento e descobrimento das riquezas do império do Cazembe e também o da Araguangua, o que o Ministro de Sua Majestade há tantos anos tem tendo em vista, a ponto que mandou até para se intentar essa descoberta em governador desta Rios de Sena o sábio Dr. Lacerda, o qual com grandes trabalhos intentando-a, depois de longínquas viagens e privações horrorosas conseguiu descobri-lo, mas lá mesmo morreu, o que fez baldar todos os seus interessantes trabalhos, pois nada apareceu, pelas desordens que suscitaram a sua morte no interior de África. E tendo-se feito a mesma recomendação ao meu antecessor o brigadeiro Brotero, este requereu ao governador Botelho e à Real Junta da Fazenda para se lhe darem as despesas necessárias para tão útil e acreditada descoberta; mas este porque tinha como inimigo capital ao dito governador Botelho, este a nada quis atender não obstante as Ordens Régias, e nada lhe concedeu; de cujo despotismo queixando-se o dito Brotero ao Exm.º Sr. Ministro de Estado, foram novas ordens para se suprir da Real Fazenda com as despesas precisas para a dita descoberta, a qual ordem achando-a já morto tudo ficou em nada.59 59 CIRNE, Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos e. Ofício dirigido por Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos e Cirne ao encarregado dos Negócios da Marinha e Ultramar. In: SANTANA, Francisco. Documentação avulsa moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1964, p. 1074-1075.
Este fora o governador que organizou a expedição de José Maria Correia Monteiro e António Pedroso Gamito (1831-32), outra que se apresenta no rol das mais importantes pela historiografia da Expansão Portuguesa. De acordo com Oliveira Marques60 60 MARQUES, A. H. Oliveira. Organização geral. In: ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill (Coord.). Nova história da expansão portuguesa: o Império africano (1825-1890). Lisboa: Estampa, 1998, p. 135. , esses expedicionários também deram importância à experiência de entrada de Lacerda e Almeida pelo uso dos mapas dele nos caminhos que ele trilhou até o Cazembe.
O próprio Gamito, no seu diário publicado em 1853, ressaltou a relevância da expedição do antigo governador dizendo-se continuador de tal obra, mas não cita o uso de mapas61 61 GAMITO, António. O Muata Cazembe e os povos Maraves, Chevas, Muizas, Muembas, Lundas e outros da África Austral: diário da expedição portuguesa comandada pelo major Monteiro e dirigida àquele imperador nos anos de 1831 e 1832. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1937, p. 9. . Afirma sim as dificuldades de serem achados os caminhos e das poucas informações que detinha, assim como quase nada para se nortear: “[…] E dos indivíduos que sabiam ler e escrever eram os dois comandantes. De instrumentos de observação, apenas uma agulha de marear foi entregue ao comandante, e nada mais, nem ao menos um óculo”62 62 Ibidem, p. 12. . Com relação aos mapas, o qual pudesse ser justamente o artefato científico strictu sensu, não se tinha conhecimento.
Ainda, gostaríamos de nos debruçar mais detalhadamente sobre a publicação dos diários. Parece não haver muitos registros de consultas ao longo do século XIX. Primeiro, porque estavam depositados na então longínqua Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro ou resguardados e esquecidos na Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios do Ultramar.
Uma possível exceção estaria numa das obras do historiador Visconde de Santarém63 63 Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa (1791-1856) foi ministro do Reino, da Marinha e do Ultramar, e dos Negócios Estrangeiros. Foi declarado por Armando Cortesão como o inventor do termo cartografia, estando em igual credibilidade no campo da geografia a Alexander von Humboldt - cf. CORTESÃO, Armando. History of Portuguese Cartography. Coimbra: Junta de Investigações Ultramarinas, 1969, p. 26. , durante a primeira metade do século XIX. Na tentativa de reconstituir os caminhos por onde se fortaleceu a ordem discursiva do pioneirismo lusitano, acabou por se dedicar a organizar e publicar a cartografia marítima portuguesa desde o século XV, assim como das suas hinterlands, fabricadas por seus navegadores e exploradores. Parte dessa cartografia e as descrições saíam publicadas nos Anais Marítimos Coloniais, na altura em que o Marquês Sá da Bandeira promovia ações de fortalecimento da política ultramarina no próprio Estado português. Fora nesse periódico, justamente, em que houve o primeiro resgate da memória da viagem de Lacerda e Almeida para um público metropolitano. A segunda parte do diário foi publicada em espaço não oficial dos Anais, no número 7 da década de 1840. Mas sem os mapas. Após isso, eles passaram alguns anos sem serem conhecidos ou lembrados.
Gago Coutinho64 64 COUTINHO, Gago. Nota… Op. Cit., p. 7-8. afirma que até o ano de 1889 os diários não haviam sido postos à disposição do grande público. Antes disso, na Grã-Bretanha, no ano de 1873, o desbravador Richard Burton publicou os diários pela Real Sociedade de Geografia de Londres, mas apenas a primeira parte, justo a que não descrevia os sertões desconhecidos65 65 ROYAL GEOGRAPHICAL SOCIETY (Great Britain). The Lands of Cazembe: Lacerda’s Journey to Cazembe in 1798. Translated and annotated by Captain Burton… Also Journey of the Pombeiros P. J. Batista, and Amaro José, across Africa from Angola to Tette on the Zambeze. Translated by B. A. Beadle and a Résumé os f the Journey of M. M. Monteiro and Gamito by Dr. C. T. Blake. London: John Murray, 1873. .
O diário desta viagem foi publicado em 1889, pelo Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, sem indicação da origem do manuscrito original. É provável que essa origem seja alguma cópia, existente à data nos arquivos do Ministério, e agora entregue na Biblioteca Nacional de Lisboa. Mas o diário original assinado pelo Dr. Lacerda existe cuidadosamente arquivado [entre] os manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. […] datado da Secretaria da Sociedade Real Marítima, em 11 de novembro de 1799, remetendo ao Ministro da Marinha, Sousa Coutinho, (Conde de Linhares), o original do diário de Lacerda […], acompanhado do “mapa competente da referida derrota”. Este mapa, lamentavelmente, não se sabe onde está […]. É natural que o diário, de que me estou ocupando, tivesse feito parte da coleção de muitos milhares de manuscritos vendidos em Lisboa em 1895, quando se fez leilão da Biblioteca do Conde de Linhares. No respectivo catálogo, que corre impresso, encontram-se só referências gerais dos manuscritos da coleção […]. E, contudo, existe uma cópia desse mapa, a qual me foi permitido estudar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro […]. São 23 folhas muito bem conservadas, de papel de desenho, marcado a água com a data 1799. Elas não foram, portanto, desenhadas pelo Dr. Lacerda, falecido em 1798; foram naturalmente copiadas do borrão do seu itinerário, que este viajante ia desenhando durante a viagem.66 66 COUTINHO, Gago. Nota… Op. Cit., p. 7-8.
Estamos rememorando a trajetória de um personagem histórico que teve papel relevante no estabelecimento de um conhecimento sobre as colônias africanas, que teve sua plenitude no século XX. Entretanto, era desconhecida a sua atuação pormenorizadamente, já que o acesso aos diários era restrito e não havia notícia dos mapas. Mesmo assim se insistiu de que fora ele uma base de informações para outros que correram a África posteriormente.
No final do século XIX, encontramos outros historiadores que relativizaram a importância da expedição. Pinheiro Chagas, mesmo dando ressalvas da sapiência de Lacerda e Almeida, indica a relevância superior da expedição dos pombeiros negros Pedro João Batista e Amaro José, a mando do governador Saldanha Gama, pois esses sim alcançaram a costa oriental da África Austral saindo de Angola: “Os dois pretos angolenses, apesar de infinitas demoras, chegaram em 1811 a Moçambique, e voltaram trazendo cartas do governador”67 67 CHAGAS, Pinheiro. Os portugueses na África, Ásia, América e Oceania ou História cronológica dos descobrimentos, navegações, viagens, explorações e conquistas dos portugueses nos países ultramarinos: desde o princípio do século XV (tomo VIII - 1811 a 1890). Lisboa: Livraria de A. M. Pereira, 1890, p. 9. .
Contemporaneamente, Sérgio Campos Matos, num artigo que reflete acerca da historiografia portuguesa sobre os descobrimentos no século XIX, indica-nos que o discurso inicial que entoou o pioneirismo português na Europa com relação às navegações ao sul do continente, e a elaboração de um conhecimento de cariz científico para o achamento das terras de além-mar, está localizado no secretário da Academia das Ciências Francisco Garção Stockler (1759-1829), reforçando-se a ideia da reunião de um grupo de navegadores na “Companhia de Homens Sábios”, em que se teria gerado uma propensão portuguesa a sempre constituir e usar conhecimentos específicos de como colonizar nas navegações e demais ações ultramarinas, confirmando serem eles os precursores dessa matéria - isso inserido num contexto de uma proto-competividade entre nações europeias sobre territórios e caminhos africanos.
Num tempo em que a atenção das elites britânicas e francesas se voltava para África, abria-se um “programa” de investigação […] que iria dominar todo o século, e em especial o seu segundo quartel: a da fundamentação histórica dos direitos de Portugal a administrar diversos pontos do litoral africano […], em litígio com potências coloniais dotadas de recursos muito superiores.68 68 MATOS, Sérgio Campos de. Consciência histórica e nacionalismo. Lisboa: Horizonte, 2008, p. 52-53.
Contudo, não podemos afirmar que o ultramar já tivesse alcançado relevo em meio aos estudos acadêmicos portugueses antes de 1875, até a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa, e as imposições externas advindas do novo período de reconfiguração territorial dos Impérios. Voltando ao próprio Matos, ele defende a existência do que poderíamos chamar de imperativos epistemológicos mais ligados a temáticas de dentro do território metropolitano em grande parte do século XIX, localizados nos estudos de Alexandre Herculano e Antero de Quental, os quais enfatizavam, por exemplo, o jesuitismo, o municipalismo e a formação medieval da Nação. Isso faz com que ocorresse um ocaso, após Visconde de Santarém, na produção historiográfica - e, por que não, de outras áreas de conhecimento - voltada ao ultramar69 69 Ibidem, p. 60. .
Lacerda e Almeida fez parte da equipe que teve como missão o mapeamento das fronteiras das colônias portuguesas na América, após o tratado de Santo Ildefonso. Ademais, era descritor dos territórios num discurso mais ao gosto do geopolítico, com a dupla função de perceber as riquezas a se explorar, e os povos a se dominar, liderando uma tentativa de missão de tomada do interior em nome da Coroa.
Ou seja, não se pode sobremaneira incluí-lo numa perspectiva de êxito imperial, a não ser a posteriori numa construção de memória institucional, buscando-se uma tradição redentora e justificadora dentro de um determinado campo de conhecimento que se pretendia hegemônico. Parece-nos que o mais importante dos diários de Lacerda relaciona-se aos preceitos da governança da colônia, que teriam como foco o aparato estatal europeu. O que podemos perceber, em realidade, seria uma espécie de gênese do sentido da organização das ações colonizatória décadas depois, como vemos a seguir:
Concluo este diário dizendo que me parecia muito necessário que Sua Majestade se servisse mandar para estes rios algum ministro de vara branca, contando que fosse homem que respeitasse as leis, temesse a Deus e ao Rei, e finalmente tivesse todas as circunstâncias que devem ter os homens públicos, e tivesse autoridade para acabar todos os pleitos presentes sumariamente; tomasse contas exatas dos bens dos órfãos e ausentes e sumariamente decidisse, assim como também dos testamentos, que tudo isso está na última miséria, porque de outra forma ficam as coisas nos mesmos termos em que estão, sem saberem requerer as partes de sua justiça, por falta de quem os encaminhe nas suas causas. Deveria ter também bom ordenado com o qual pudesse transportar-se, e viver independente, pois a não ser assim será melhor que o não haja. Os juízes ordinários destas vilas são ignorantíssimos, apaixonados, e não há um só homem letrado que os encaminhe e dirija. Daqui vem fazerem eles, e seus escrivães, o que querem, e o que qualquer pessoa lhe manda. Eles por ignorância ou por medo, põem verbas nos livros das notas, porque uma das partes lhes pede que assim o façam, e repentinamente fica desfeito um solene contrato com prejuízo da fazenda da outra parte interessada.70 70 ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Op. Cit., 1944, p. 173-174.
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5
VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Biografia dos brasileiros ilustres por armas, letras, virtudes, etc.: Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XXXVI, 1ª parte, p. 181, 1873.
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6
Ibidem, p. 184.
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7
COUTINHO, Gago. Nota explicativa. In: ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Travessia da África. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1926, p. 3.
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8
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota-prefácio: biografia. In: ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e Almeida. Diários de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. XVII.
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9
MARQUES, António Henrique Rodrigo de Oliveira. História de Portugal: do Renascimento às Revoluções Liberais. 10. ed. Lisboa: Palas, 1984, v. II, p. 435.
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10
FONSECA, Quirino da. Um drama no sertão: tentativa de travessia de África em 1798. Famalicão: Minerva, de Gaspar Pinto e Irmão, 1936, p. 10.
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11
Ibidem, p. 43.
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12
Ibidem, p. 21.
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13
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. 2. ed. Lisboa: IICT, 1978, p. 186-187.
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14
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota-prefácio… Op. Cit., p. XVI.
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15
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diários de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 10.
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16
Ibidem, p. 132.
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17
Ibidem, p. 145-146.
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18
Ibidem, p. 147-148.
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19
Ibidem, p. 148-151.
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20
Ibidem, p. 155.
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21
Ibidem, p. 156.
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22
Ibidem, p. 157.
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23
Ibidem, p. 163-165.
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24
Ibidem, p. 167.
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25
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e apud MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda e Almeida: travessias científicas e povos na África Central (1797-1884). Dissertação (Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1997, p. 41.
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26
Ibidem, p. 41.
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27
Ibidem, p. 38.
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28
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Travessia da África. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1926.
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29
Ibidem, p. 17.
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30
Ibidem, p. 18.
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31
Ibidem, p. 19.
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32
Ibidem, p. 21.
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33
Ibidem, p. 25.
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34
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e apud MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda… Op. Cit., p. 54.
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35
Ibidem, p. 56.
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36
ALMEIDA, Francisco José de Almeida e. Travessia… Op. Cit., p. 24.
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37
Ibidem, p. 27.
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38
Ibidem, p. 31.
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39
Ibidem, p. 26.
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40
Ibidem, p. 33.
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41
Ibidem, p. 34.
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42
Ibidem, p. 26.
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43
Ibidem, p. 36.
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44
Ibidem, p. 38.
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45
Ibidem, p. 45.
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46
Ibidem, p. 50.
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47
Bebida a base de quinino que ajudava a combater os sintomas da malária (paludismo).
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48
Ibidem, p. 47.
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49
Ibidem, p. 63.
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50
Ibidem, p. 75.
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51
Ibidem, p. 72.
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52
Destilado típico do Zambeze.
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53
Ibidem, p. 64.
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54
Ibidem, p. 68.
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55
Ibidem, p. 50.
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56
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e apud MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro. Francisco José de Lacerda… Op. Cit., p. 140.
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57
Ibidem, p. 142.
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58
ALMEIDA, Francisco José de Almeida e. Travessia… Op. Cit., p. 44-45.
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59
CIRNE, Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos e. Ofício dirigido por Manuel Joaquim Mendes de Vasconcelos e Cirne ao encarregado dos Negócios da Marinha e Ultramar. In: SANTANA, Francisco. Documentação avulsa moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1964, p. 1074-1075.
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60
MARQUES, A. H. Oliveira. Organização geral. In: ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill (Coord.). Nova história da expansão portuguesa: o Império africano (1825-1890). Lisboa: Estampa, 1998, p. 135.
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61
GAMITO, António. O Muata Cazembe e os povos Maraves, Chevas, Muizas, Muembas, Lundas e outros da África Austral: diário da expedição portuguesa comandada pelo major Monteiro e dirigida àquele imperador nos anos de 1831 e 1832. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1937, p. 9.
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62
Ibidem, p. 12.
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63
Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa (1791-1856) foi ministro do Reino, da Marinha e do Ultramar, e dos Negócios Estrangeiros. Foi declarado por Armando Cortesão como o inventor do termo cartografia, estando em igual credibilidade no campo da geografia a Alexander von Humboldt - cf. CORTESÃO, Armando. History of Portuguese Cartography. Coimbra: Junta de Investigações Ultramarinas, 1969, p. 26.
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64
COUTINHO, Gago. Nota… Op. Cit., p. 7-8.
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65
ROYAL GEOGRAPHICAL SOCIETY (Great Britain). The Lands of Cazembe: Lacerda’s Journey to Cazembe in 1798. Translated and annotated by Captain Burton… Also Journey of the Pombeiros P. J. Batista, and Amaro José, across Africa from Angola to Tette on the Zambeze. Translated by B. A. Beadle and a Résumé os f the Journey of M. M. Monteiro and Gamito by Dr. C. T. Blake. London: John Murray, 1873.
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66
COUTINHO, Gago. Nota… Op. Cit., p. 7-8.
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67
CHAGAS, Pinheiro. Os portugueses na África, Ásia, América e Oceania ou História cronológica dos descobrimentos, navegações, viagens, explorações e conquistas dos portugueses nos países ultramarinos: desde o princípio do século XV (tomo VIII - 1811 a 1890). Lisboa: Livraria de A. M. Pereira, 1890, p. 9.
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68
MATOS, Sérgio Campos de. Consciência histórica e nacionalismo. Lisboa: Horizonte, 2008, p. 52-53.
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69
Ibidem, p. 60.
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70
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Op. Cit., 1944, p. 173-174.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Maio 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
26 Ago 2020 -
Aceito
16 Jul 2021