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A medicina psicossomática na infância

CONFERÊNCIAS

Psiquiatra da Secção de Higiene Mental do Serviço de Saúde Escolar

Conceitos fundamentais da prática médica têm sofrido modificações importantes nas últimas décadas, pois a medicina deixou de considerar as doenças como simples entidades, com formulários terapêuticos estandartizados, para se orientar para o indivíduo total, vendo-o com a psique e o soma intimamente ligados e em constante interação. Imensa literatura já existe demonstrando a existência de desordens nos vários aparelhos da economia relacionados diretamente com a tensão emocional, a ansiedade e o medo. A infância é, talvez, o período que permite observar os melhores exemplos desta nova concepção médica.

O movimento psicossomático adquiriu ainda maior precisão ao demonstrar a necessidade de ser o indivíduo considerado também como parte da família e da sociedade, quer quando doente, quer quando são. Ampliou-se, assim, o campo de ação da medicina, que do estudo individualizado dos órgãos, passou à investigação do indivíduo total em função no meio em que vive. O médico moderno, ao lado dos conhecimentos sobre o funcionamento físico, deve conhecer alguma coisa do funcionamento mental do organismo humano para diagnosticar e tratar seus pacientes de maneira integral. Cada setor da medicina tem procurado salientar este ponto de vista; cabe, porém, ao psiquiatra orientar a familiarização com este importante aspecto da saúde e da doença.

Os complicados processos do funcionamento mental revelam-se pela personalidade. Há muito tem sido aceito que a personalidade tem relações estreitas com a doença e a saúde, porém, tais relações eram consideradas como intangíveis e difíceis de serem avaliadas cientificamente. Cinco séculos antes de Cristo, Sócrates elogiava a sabedoria dos médicos da Trácia, por compreenderem e aplicarem o princípio de que o corpo não pode ser aliviado de sintomas, sem primeiro estar curado o espírito. Platão estabelecia: "Se queres que funcione bem o corpo e a cabeça, deves começar por sanar a alma". E, em outra parte de seus diálogos, insistia: "Pois, a maior falha no tratamento das enfermidades consiste no fato de existir médico para o corpo e médico para a alma, apesar do corpo ser inseparável do espírito". São de Platão, ainda, estas palavras: "E precisamente os médicos gregos menosprezam isso e somente por esta razão menosprezam muitíssimas enfermidades, pois nunca consideram a totalidade. É para a totalidade que deveriam dedicar seus cuidados, porque quando o todo sofre é impossível que a parte esteja sã". Assim, já existia a medicina psicossomática desde a antigüidade e o pensamento filosófico, base de nossa ciência atual, já mostrava a inexistência da separação entre a mente e o soma, e a necessidade do estudo da personalidade em função do organismo total. Hodiernamente, quando os fenômenos e os mecanismos psicológicos são conhecidos pela medicina científica, a consideração da personalidade nos problemas médicos conquistou lugar importante. Do ponto de vista da fisiologia, Pavlov, Cannon e Crile, dentre outros, demonstraram os efeitos das emoções sobre a função do organismo, ao mesmo passo que os psicologistas, tendo Freud como pioneiro, revelaram como os diversos elementos emocionais são encontrados na estrutura da personalidade.

Sempre foi empiricamente aceito que um paciente é mais sugestionável que outro; que um é mais sensível ao desconforto físico; que, muitas vezes, situações emocionais podem encobrir certos sintomas ou certas doenças. Contudo, só recentemente é que foi demonstrado que os fatores emocionais devem ser cuidadosamente considerados no diagnóstico, prognóstico e tratamento de muitas condições encontradas na prática diária.

O médico clínico e, em particular, o pediatra, está constantemente em contacto com seres humanos cuja personalidade se encontra em forma rudimentar e em fase de estruturação, como é a personalidade infantil. O número de problemas de ordem puramente psicológica na infância é grande e não menor é o dos de natureza psicossomática, que revelam desordens somáticas dependentes em grande parte de fatores emocionais ou distúrbios geralmente considerados como pertencentes, totalmente, ao terreno da "doença física", tendo ligações com o sistema nervoso vegetativo ou com fatores psicológicos. Uma análise minuciosa poderá, na maioria das vezes, revelar ligações de tais desordens com o desenvolvimento emocional da criança, o qual se processa conjuntamente com o desenvolvimento psicossexual; este, em sua evolução, passa pelas formas de expressão libidinal - oral, analsádica, fálica - e a solução da relação pais-criança, isto é, a resolução da situação de Édipo, determinando o tipo de personalidade, o caráter e os padrões de comportamento para todas as situações da vida futura. Do processo normal de desenvolvimento resulta uma personalidade eficiente, feliz e sadia. Mas, nem todas as pessoas atingem a idade adulta com estas qualidades. Muitas apresentam distúrbios psicossomáticos, desajustamentos de toda a ordem, neuroses, psicoses e delinqüências.

Situações que afetam o desenvolvimento emocional da criança

A causa dos desvios da personalidade é encontrada no desenvolvimento emocional anormal da criança, secundário, em geral, às dificuldades da evolução psicossexual. Os fatores que, na maioria das vezes, agem no sentido de produzir este mau desenvolvimento, interferindo, assim, no curso normal do crescimento emocional, podem ser classificados, esquematicamente, em três grupos:

1 - Influência de situações familiais desorganizadas. O desenvolvimento psicossexual da criança depende da presença de seus dois pais, nos quais ela poderá exprimir e satisfazer suas necessidades instintivas de amor e de ódio. O rapaz necessita da presença de uma mulher que o encoraje nas manifestações de desejo e de amor, e que lhe corresponda de maneira normal. A menina, pelas mesmas razões, precisa da presença de um homem em seu lar. Além disso, o rapaz, diante de um homem adulto, terá oportunidade para exprimir seus sentimentos de ódio, ciúmes e antagonismos. E, pela presença do pai e atitude bondosa deste, ele será forçado a temperar sua fúria e ódio com amor e respeito; aprenderá, assim, a manejar sua ambivalência - conflito entre o amor e o ódio para a mesma pessoa - conflito que, se não for resolvido satisfatoriamente, causará grandes dificuldades em suas relações na vida adulta. Os impulsos agressivos na criança devem encontrar uma barreira de amor, em pessoa do mesmo sexo, pois a pessoa odiada forçará a orientação desses impulsos para o mundo externo, onde eles servirão para vencer as dificuldades da vida.

2 - Influência de atitudes adversas, patologias e prejudiciais à formação da personalidade da criança. Mesmo que ambos os pais estejam presentes, o desenvolvimento da criança pode sofrer em virtude das atitudes adversas ou mesmo doentias de seus pais. Tais atitudes são principalmente as de rejeição, superproteção e indulgência, bastante conhecidas.

Existem, praticamente, dois tipos de pais, cujas atitudes determinam dificuldades no desenvolvimento psicossexual de seus filhos: o pai cruel e severo e o pai fraco. Em relação às atitudes do pai severo e cruel, o menino se torna incapaz de exprimir qualquer antagonismo ou agressão, pois isto determinaria punição. O menino suprime todas as manifestações agressivas, muito embora estas acumulem-se e aumentem com as desnecessárias restrições que sofre de seu pai. Este, ou pelos seus ódios inconscientes ou em virtude de suas atitudes sadísticas, tem prazer em privar e inibir o menino, atormentando-o, ridicularizando-o e, depois, punindo-o, quando o pequeno, perdendo a paciência, encoleriza-se. Muito rapidamente a criança aprende a resguardar-se destas atitudes hostis, por todos os meios possíveis e a submeter-se sem revanche. A constante tensão de sua agressividade inibida força-a, entretanto, a defender-se para sofrer menos. Como solução, a criança ou torna-se passiva e não agressiva ou tenta tirar prazer das crueldades de seu pai, tomando-o como objeto de amor e procurando conseguir sua atenção e interesse pela punição; psiquicamente, ela torna-se ou um neurótico obcessivo ou uma personalidade homossexual passiva. Para que estas atitudes sejam consideradas prejudiciais, não é preciso que sejam tão violentas a ponto de exigir a presença da polícia. As constantes críticas, as freqüentes repreensões, as punições fáceis ou as humilhações aos esforços das crianças, muitas vezes, associadas ao elogio a outras, as comuns ridicularizações e importunações, as exigências excessivas de obediência irrestrita, são atitudes que embaraçam o desenvolvimento da criança e assentam as bases para a neurose infantil e para os desajustamentos do adulto. De tais situações originam-se os graves distúrbios do caráter e algumas formas de delinqüência.

O pai fraco produz exatamente, o mesmo resultado. O menino não pode exprimir seu antagonismo contra um pai que é excessivamente bom e constantemente êle se sente molestado pela devoção do pai; a agressividade deve ser suprimida e a mesma tensão é acumulada como quando o pai é severo. Do mesmo modo, as atitudes maternas prejudicam o desenvolvimento da menina.

3 - Estímulo excessivo ao desenvolvimento sexual da criança determinado pelas seduções sexuais pelos pais, adultos ou outras crianças mais velhas. As seduções são de dois tipos: indiretas e diretas. As conseqüências das seduções indiretas são observadas na moça devotada a seu pai ou no rapaz dedicado a sua mãe. Estes jovens, quando crianças, foram selecionados pelos pais do sexo oposto, como objetos de amor. O pai sequioso de amor para sua própria vida, mima sua filha, devota-se totalmente à mesma e vê com ciúmes o interesse dela por qualquer homem dentro ou fora do círculo familial. O constante contacto físico e as constantes demonstrações de amor pelo pai estimulam a sexualidade da menina; mas seus desejos sexuais assim estimulados nunca são satisfeitos; a vida da menina torna-se um constante desapontamento e, gradualmente, ela desenvolve ódio a seu pai, ódio que tem de suprimir e, quando este recalque se torna intolerável, ela geralmente adoece. O mesmo acontece com a mãe excessivamente devotada a seu filho, lavando-o, vestindo-o, dormindo com ele além da época habitual, despertando assim fortes desejos sexuais no rapaz, desejos que ela não satisfará; estas mães, em geral, não admitem que seus filhos, quando já crescidos, manifestem idéias amorosas por outra mulher ou manifestem idéias de casamento.

Outro tipo de sedução ocorre quando a criança tem permissão para dormir na cama ou no quarto dos pais e testemunha relações sexuais. Esta visão a superestimula sexualmente, e se isso ocorre antes de genitalização da libido, pode causar genitalização prematura, tornando-a sexualmente precoce e envolvida em graves conflitos nessa fase da sua vida. Em interessante trabalho sobre a epilepsia infantil, Rascovski1 1 . Rascovski, A. - Consideraciones psícoanaliticas sobre la situación actual estimulante en 116 casos de epilepsia infantil. Rev. Psicoanálisis (Buenos Aires), 2: 626-640, 1945. mostrou que o fato das crianças dormirem na cama dos pais constituiu fator convulsivante em 116 crianças epilépticas por ele estudadas.

Seduções sexuais verdadeiras pelos pais, adultos ou crianças mais velhas produzem uma precocidade de desenvolvimento sexual e um urgente desejo, antes de haver possibilidade de satisfação real. Muitas vezes, a sedução é dolorosa e de tal modo aterrorizante que os sentimentos sexuais precocemente despertados ficam para todo o resto da vida associados aos sentimentos de dor e terror.

Em virtude de todas estas situações ou acontecimentos traumáticos para a criança, esta poderá apresentar distúrbios que irão desde a leve irritabilidade até aos sintomas orgânicos de ordem emocional e às desordens de comportamento. Estes distúrbios, entretanto, durante o crescimento da criança poderão modificar-se ou mesmo desaparecer, dando a impressão de que elas se livraram dos mesmos. Muito tempo depois, surgindo uma situação crítica na vida do indivíduo e não sendo possível a resolução pela sua personalidade mal formada, o único recurso será a doença psíquica ou os sintomas orgânicos, com suas raízes emocionais bem evidentes. Eis a razão de serem os sintomas infantis integralmente estudados e tratados.

Distúrbios da alimentação nas crianças - Dentre as mais freqüentes desordens emocionais encontradas em crianças estão as do apetite e as de ingestão e digestão de alimentos. Pode-se mesmo dizer que quase toda a criança teve algum distúrbio emocional da alimentação, mais ou menos evidente, até a idade de 7 anos. Desde a mais tenra idade podem ser observados os efeitos emocionais sobre o apetite. Sibylle Escalona2 2 . Escalona, S. K. - Feeding disturbances in very young children. Am. J. Orthopsvchiat., 15: 76-80 (janeiro) 1945. registra observações de desordens emocionais da alimentação em crianças de menos de 4 semanas, nas quais a recusa ao seio materno, sem causa física demonstrável, relacionava-se com a atitude e conduta de suas mães. Muitas mães seguravam as crianças muito apertadamente ou trêmulas ou movendo-se inquietamente; outras mostravam-se excessivamente excitáveis e tensas. O ensino direto sobre a maneira de cuidar da criança nem sempre era suficiente, porém, uma psicoterapia superficial, dando ensejo a essas mães para que falassem de seus sentimentos e sofrimentos, trazia uma melhora no trato da criança. Outra observação interessante desta autora foi a de que crianças de 4 meses, muitas vezes, mostravam desgosto por suco de tomate e que esta atitude relacionava-se com as atitudes de sentimentos expressivos de desgosto por esses alimentos, manifestados por quem os administrava. Muitas outras interesantes manifestações de desordens alimentares foram estudadas por Sibylle Escalona que, de maneira geral, conclui que as crianças muito jovens, quando em íntimo contacto com um adulto, absorvem o estado emocional desse adulto e respondem ao mesmo de maneira caraterística. Idênticas observações foram feitas por Dorothy BurHngham, Anna Freud e Margaret Ribble. Escalona sugere que tais desordens de alimentação em crianças tão pequenas podem servir como indicador sensível do ajustamento geral.

Cada criança, como cada adulto, tem o seu tipo de apetite. Este tipo de apetite provavelmente possui uma base constitucional, dependendo das complexas reações fisicoquímicas; atualmente pouco é sabido acerca da causa destas diferenças. É suficiente dizer que as crianças diferem na intensidade do apetite e na quantidade de alimentos consumida em cada refeição ou no espaço de um dia (algumas crianças comem mais em uma refeição e muito pouco nas outras). Muitos pais não compreendem que este é o ritmo normal para a criança e preocupam-se ou porque a criança não come mais, ou porque elas não comem a mesma quantidade em cada refeição. São assim levados a induzir a criança a comer mais e, à hora da refeição, trava-se uma luta em que os pais tentam forçar a alimentação da criança, além do que ela necessita. Isto acontece muitas vezes com os pais cujas crianças são constitucionalmente magras e de pequeno peso. A mãe procura, então, "encher" a criança de alimentos e, não raro, esta superalimentação determina regorgitação e verdadeiros distúrbios do apetite e da digestão. Em muitos casos esta superalimentação é o resultado da falta de compreensão dos pais sobre o assunto. Um estudo do grau do apetite inato à criança e a completa discussão da situação nessa base com a mãe, a auxiliará a corrigir o erro. Em alguns exemplos, entretanto, tal processo é sem valor, porque o principal interesse e prazer dos pais centraliza-se em torno do alimento. Em um caso, a criança alimentava-se suficientemente para o seu pequeno apetite, mas isto não satisfazia sua mãe, que enchia a criança até que ela regorgitasse e, mesmo assim, alimentava-a de novo. Esta mãe era uma mulher cujo principal interesse estava no apetite e no ato de comer; dizer-lhe que não superalimentasse seu filho era inútil e, quando ela tentou seguir este conselho, começou a ver na criança uma série de pequenos sintomas como resultado da subalimentação. Do estudo de sua própria vida ficou evidente que ela tinha forte necessidade emocional de superalimentar as pessoas, isto é, ela era superficialmente uma mulher normal mas, na realidade, sofria de sério distúrbio neurótico cujo sintoma presente era esta necessidade de superalimentar.

O problema da anorexia infantil é complexo e dentre as causas mais comuns, estão as emocionais, dependentes das atitudes dos pais ou responsáveis. Lembramos, apenas, a higiene física mal orientada, as alterações transitórias da rotina da criança, as circunstâncias que despertam medo, ansiedade, raiva, culpa ou excessiva alegria, as situações adversas ou de superproteção e de rejeição, como fatores mais freqüentes nos distúrbios do apetite da criança. Não desejamos fazer um estudo detalhado de todos os fatores causais dos distúrbios emocionais do apetite na criança, mas queremos salientar que, quando uma criança não tiver moléstia orgânica e apresentar um distúrbio de apetite, esta desordem não é primária, mas apenas sintomática de alguma perturbação emocional. Diante disso, prescrever somente um tônico para o apetite é o mesmo que indicar apenas um antipirético para um caso de apendicite aguda; com um tratamento desta ordem, o paciente portador da apendicite provavelmente morrerá. Igualmente, no caso da criança, apesar dela não morrer, a prescrição do tônico fará com que o desajustamento emocional continue e torne o seu ajustamento prejudicado para toda a vida futura. Para exemplificar as relações das desordens do apetite com os fatores emocionais e o meio mais eficiente de tratamento, citamos o seguinte caso:

R. M., branca, brasileira, com 8 anos de idade. A criança não come, é muito nervosa, roi unhas, urina na cama, tem medo de sair e ficar sozinha. A família consta do casal e dois filhos, sendo a paciente a primogênita. O pai é calmo, alegre, carinhoso para com os filhos, porém, discute freqüentemente com a esposa em virtude de sua indulgência para com os filhos. É, esta, uma mulher nervosa, angustiada, inquieta-se muito com os filhos, não os deixa ficar sozinhos; preocupa-se muito com a recusa de alimento da filha, irrita-se com sua enurese noturna, castiga-a, humilha-a por isso, repreende-a por roer unhas, ameaça-a de ir-se embora. O ambiente afetivo do lar é, assim, prejudicado pela ansiedade mórbida da mãe. A paciente nada revelou de anormal ao exame clínico, mostran-do-se de boa compleição física. O exame psicológico revelou certa dificuldade de compreensão, evidenciada pelos testes Binet-Simon (Q.T. = 83). É menina irritada, impaciente, exibicionista; gosta de recitar, dansar, passear; é curiosa, desembaraçada, sociável. Medrosa, teme o escuro e a solidão. Queixa-se de não ter fome, sofre dores no estômago e nos intestinos; tem o hábito de roer unhas, mastigar lápis e borracha. Mantém-se sempre presa à mãe, temendo que esta a abanáone. Tem ciúmes do irmão caçula, considerando-o preferido dos pais. Pede freqüentemente à mãe que a carregue ao colo e a embale. Conclusão - Vemos que os problemas da paciente representam sintomas de regressão a uma fase infantil em que os prazeres psicossexuais ligados à fase oral são rememorados: inapetência, roer unhas, mastigar lápis e borracha, enurese, perturbações gastrointestinais, ao lado dos desejos de ser carregada ao colo e embalada. Os fatores determinantes desta regressão da personalidade acham-se evidentes nas atitudes da mãe neurótica, ansiosa, ameaçadora constante de rejeição à paciente. Resolução - Por intermédio da visitadora social psiquiátrica e de entrevistas psiquiátricas com a mãe, foi conseguido melhor ajustamento de personalidade desta e, conseqüentemente, a abolição de suas atitudes angustiosas, de suas ameaças, das humilhações, da focalização do problema alimentar, das repreensões constantes. De outro lado, um programa de socialização e de incentivo à independência da menina foi posto em prática, através de parques infantis, diversões e recreações. Com tal programa, não só o problema alimentar como os demais desapareceram rapidamente.

Muitos casos, entretanto, não são resolvidos pela higiene geral, nem pela correção ambiental, residindo os motivos dos distúrbios da criança profundamente arranjados nas camadas inconscientes de sua personalidade; em tais casos somente a psicoterapia direta e às vezes, a psicoterapia analítica é capaz de resolvê-los.

Distúrbios digestivos do tipo gástrico - Distúrbios digestivos com náuseas e vômitos são manifestações muito comuns e, muitas vezes, constituem o quadro sintomatológico da histeria de conversão. Os vômitos psicogenéticos são comuns em crianças de todas as idades e representam um exemplo ilustrativo do funcionamento psicobiológico do ser humano. A ausência de qualquer moléstia somática responsável pelos vômitos freqüentes em uma criança forçosamente atrai a atenção do pediatra para a sua natureza psicogenética. Algumas caraterísticas, entretanto, devem ser lembradas para o diagnóstico, tais como: 1 - A facilidade com que o paciente vomita; 2 - A falta de relação do vômito com a quantidade de alimento ingerido; 3 - O fato de certos alimentos, às vezes, extravagantes, serem retidos; 4 - A diferença com que os pacientes toleram os vômitos; 5 - A espantosa tolerância do organismo a despeito da redução alimentar; 6 - A freqüente dependência a fatores externos ou situações intrapsíquicas; 7 - A presença de outros sintomas psíquicos relacionados ou não com os vômitos.

Inúmeras são as situações em que os vômitos psicogenéticos aparecem e variados são os propósitos psicológicos. Assim, um tipo muito comum é o observado em crianças como reação às exigências de trabalhos escolares além de suas capacidades. Uma criança intelectualmente incapaz de acompanhar o grau escolar que freqüenta pode desenvolver ódio à escola e tornar-se tão desgostosa que a simples lembrança da escola provoca-lhe náuseas e vômitos. Muitas vezes, são elas movidas pelo mecanismo de chamar a atenção de seus pais, por sentirem-se rejeitadas afetivamente. O vômito torna-se, assim, um processo com o qual o paciente consegue dominar e aterrorizar a família, exprimindo sua revolta pelo abandono afetivo em que vive. O caso relatado a seguir mostra claramente como uma criança pôde reconquistar a afetividade materna, ameaçada pelo aparecimento de uma nova criança.

M. G., 9 anos, branca, aluna do 2.° ano de grupo escolar. Há 4 anos sofre de vômitos que duram dois a três dias seguidos, sem poder alimentar-se de cousa alguma; surgem todas as semanas, passando então a apresentá-los dia e noite, por dois ou três dias seguidos. A família consta de 4 pessoas: os pais, a paciente, que é primogênita, e uma irmã de 4 anos. Vivem em relativa harmonia e regular situação econômica. Apesar de haver acomodações suficientes, a paciente ainda dorme em cama individual no quarto dos pais. A mãe é mulher excessivamente ansiosa, queixosa de sua situação de infelicidade, lamentando-se continuamente do estado de saúde da filha, considerando-a incurável e fazendo toda a série de perguntas sobre os sintomas. Aponta a filha como vítima incurável, salienta os sintomas, exagerando-os, pedindo para ambas, ela e a filha, o apoio de todos. Vive inteiramente dedicada ao trato da filha. Acompanha-a em todos os lugares, inclusive na escola. Leva constantemente um lanche onde quer que vá, pois, "precisa alimentar a filha", "ela poderá ficar fraca e cair" (sic). Refere que tais sintomas da paciente são conseqüências de amigdalectomia sem anestesia, feita um mês antes dos mesmos. Coincidiu com o aparecimento dos sintomas, o nascimento da irmã. A paciente apresenta um estado físico de desnutrição e de anemia hipocrômica. Os exames de laboratório não revelaram qualquer alteração orgânica. Vive em total dependência materna, sem qualquer recreação, sem companheiras de diversões, sem qualquer ocupação e demonstrando um temperamento submisso, tímido, retraído. Tem mau aproveitamento escolar. Revela dificuldade de compreensão evidenciada pelos testes Binet-Simon (Q.I. = 81). Trata-se de menina portadora de vômitos psicogenéticos, em que se presume tenham sido fatores determinantes o nascimento da irmã e o trauma cirúrgico, um determinando sentimentos de rejeição e outro de punição, sendo os vômitos o tipo de reação psíquica, capaz de reunir não só o meio de atrair a atenção e afeição de todos da casa, evidenciando os seus sentimentos hostis aos pais, como também o de punição por apresentá-los, embora num plano inconsciente. O caso em questão está sendo objeto de tratamento, que tem consistido em entrevistas psiquiátricas freqüentes com a mãe e um programa, para a paciente, de socialização, recreação, diversões e independência. Deverá ir em breve para uma colônia de férias, para o que a paciente tem demonstrado bastante interesse. Trata-se de um caso recente, no qual a orientação psicológica ajustada e psicoterapia na mãe, já produziram eficientes resultados.

Aspectos psiquiátricos da obesidade em crianças - A obesidade parece ser condição exclusivamente somática, sendo freqüentemente salientados os fatores psicológicos que interferem no seu ajustamento. As crianças obesas sentem muitas vezes o ridículo produzido pelo seu estado físico, a ponto de muitas delas retirarem-se das atividades sociais e chegarem a desenvolver um tipo de comportamento isolado, passivo, tímido e hipersensível. Isto, porém, é condição secundária à obesidade.

O histórico da vida e do ambiente familial de muitas crianças obesas tem mostrado, porém, que suas dificuldades de ajustamento são anteriores às conseqüências da obesidade; estas observações sugerem que fatores psicológicos exercem importante papel no desenvolvimento da obesidade em crianças. Dentre os autores que se têm dedicado aos aspectos psicossomáticos da obesidade, citamos Hilde Bruch3 3 . Bruch, H. - Psychiatric aspects of obesity in children. Am. J. Psychiat., 99: 752-757 (março) 1943. 4. Bruch, H. - The Fröhlich syndrome. Am. J. Dis. Child., 58: 1282, 1939. , a qual, baseada no estudo de mais de 200 crianças obesas, de 2 a 13 anos de idade, muitas delas suspeitas de sofrerem desordens endócrinas como hipotireoidismo, hipopituitarismo, mau desenvolvimento sexual ou disfunção glandular, e embora reconheça a participação dos fatores endócrinos, julga que tais fatores não fossem primários, tendo o estudo da relação pais-criança se mostrado tão importante quanto as causas orgânicas.

Em geral, as atitudes de indulgência e de posse pela mãe criam íntima relação de dependência que é ameaçada pelo progressivo crescimento e maturidade da criança. São perigos que a mãe tenta evitar dominando as necessidades físicas da criança e tornando-a desamparada sem ela. Do mesmo modo, o mundo externo é um perigo que tem de ser excluído. Muitas crianças não têm permissão para se associarem com outras, e suas mães vivem angustiadas pela segurança física e moral de suas crianças quando não estão sob suas vistas. Medidas protetoras de longo alcance são utilizadas para proteger a mãe contra a angústia de seus próprios medos, com completo desprezo dos desejos e do desenvolvimento pessoal da criança. Assim, as atividades comuns para uma criança obesa são pesadas, difíceis, pelo significado de ameaça e medo, em cada acontecimento diário.

As influências ambientais, embora inibam a expressão espontânea, não explicam por si sós porque a criança se torna obesa. O comportamento submisso e passivo, entretanto, toma participação passiva na formação do sintoma. A superalimentação, a inatividade e o exagerado tamanho corporal, principais sintomas da obesidade, têm um valor funcional definido para a criança obesa. Conduzida por tensão interna e ansiedade, ela utiliza-se de excessiva alimentação e isolamento, para aliviar seus sentimentos de insegurança e insignificância. É grande a literatura sobre este assunto. Há cerca de um ano, Rascovsky, psicanalista argentino, dissertou entre nós, sobre a matéria, ilustrando-a com grande material clínico.

Desordens das funções motoras - Existem vários tipos de desordens das funções motoras. Das mais comuns é a limitação completa ou parcial de determinada função motora; exemplo típico é o da paralisia ou paresia histérica, caraterizando o quadro clínico da histeria de conversão.

O estudo da histeria de conversão é de grande interesse não só pela freqüência, como pela sintomatologia que deu motivo ao aparecimento de inúmeras teorias explicativas da sua etiologia. Lembramos, por exemplo, os estudos da escola francesa, ainda no começo deste século, citando-se dentre eles os de Charcot, Bernheim e Janet, cujas idéias somatógenas persistem ainda no espírito dos mais conservadores. A histeria de conversão carateriza-se pelas alterações da personalidade e pelas perturbações somáticas. Os seus sintomas são, pois, os mais variados possíveis, existindo poucos sintomas de moléstia orgânica que a histeria não possa simular.

Os fenômenos motores em crianças não são raros, ocorrendo em todas as idades, desde a mais precoce, e manifestando-se, com mais freqüência, sob a forma de paralisias e paresias dos membros. Para ilustrar, relataremos um caso:

M. I., com menos de 3 anos de idade, apresentou vários tipos de paralisias, que tiveram vários diagnósticos, como os de tetania e esnasmofilia; levada ao neurologista, foi por este enviada ao nosso consultório. A história era a seguinte: Estando em casa dos avós paternos, passou uns dias entristecida e, a seguir, apresentou dificuldades no andar, que se processava arrastando as pernas enrijecidas. Ao mesmo tempo, tinha as mãos "paralisadas", mantendo-as fechadas, com exceção do polegar e do indicador de cada uma das mãos, que se moviam e lhe permitiam segurar objetos e alimentar-se. Estes sintomas perduraram por cerca de 15 dias, porém, os dedos paralisados alternavam-se na sintomatologia, sendo, em certos dias, o indicador, em outros, o anular. Após essa quinzena, voltou para sua própria casa, onde todos os sintomas desapareceram. Logo a seguir, entretanto, chega à sua casa a avó que viera auxiliar a mãe grávida. Imediatamente, a paciente voltou a apresentar a sintomatologia anterior. Dos dados colhidos, principalmente através do estudo ambiental, apurou-se o seguinte: A família, de ótimo nível cultural e boa situação econômica, constituia-se dos pais e duas filhas: a paciente, de 3 anos incompletos, e sua irmã de 4 anos; residiam, ainda, na mesma habitação, duas moças sem interferência na educação das crianças e, eventualmente, os avós passavam aí alguns períodos. A casa possuia acomodações regulares. Não havia suficiente espaço, nem quintal para recreio de crianças. A afetividade dos pais era dividida entre os filhos da seguinte maneira, salientada abertamente por ambos: a primogênita era a preferida do pai e a paciente o era da mãe. Em tudo faziam semelhante divisão, isto é, quanto aos afetos, quanto aos presentes, aos passeios. A paciente, até então, vivera sob inteira dependência, mimos e super-proteção materna, sendo constantemente acariciada e carregada ao colo. Achando-se sua mãe grávida, os cuidados e a atenção para com a paciente foram, pouco a pouco, sendo retirados. Com o aproximar dos últimos meses de gestação, sua avó materna chamou a atenção de sua mãe por carregá-la ao colo, fazendo-lhe ver os perigos de um abortamento pelo esforço. Foi quando, logo a seguir, a paciente veio a apresentar os sintomas somáticos que desapareceram e reapareceram, respectivamente, com a ausência e a presença da avó. Uma orientação psicológica do lar, compreendendo principalmente a abolição da divisão de afetos aos filhos, um programa de recreação e de socialização da criança diversões junto com ambos os pais e anulação da interferência da avó, foi suficiente para o desaparecimento rápido dos sintomas e reajustamento da personalidade da criança.

Paralisias, fenômenos viscerais, distúrbios vasomotores, sintomas psíquicos, são comuns. Entre crianças escolares, esses sintomas, em geral, frustros e passageiros, servem, muitas vezes, como mecanismo de fuga para escapar às dificuldades. Caso ilustrativo do valor do reajustamento psíquico da criança como elemento básico no desaparecimento dos sintomas é o seguinte:

W. G., 6 anos, brasileiro, pré-escolar. Foi enviado à clínica de orientação infantil pelo seu médico particular, por apresentar há 6 meses, paralisia na perna direita e não ter apresentado melhoras pelos tratamentos efetuados (aplicações elétricas galvanofarádicas, convulsoterapia cardiazólica, piretoterapia e toda a série de tônicos gerais). A família consta dos pais e o paciente, que é filho único. Habitam residência de vila, contendo um quarto e cozinha. O paciente dorme em cama individual no mesmo quarto dos pais. As condições econômicas são regulares para o tipo de vida. Há aparente harmonia entre os cônjuges. O pai, eventualmente, embriaga-se, sem, entretanto, promover cenas desagradáveis, o que é tolerado pela esposa. O paciente ressente-se disso e muitas vezes solicita ao pai que não mais o faça. O pai em geral é calmo, pouco apegado ao paciente. A mãe é excessivamente ansiosa, estando sempre a se lamentar em presença do filho e dos estranhos. Alarma-se, impressiona-se e chora muito facilmente. O paciente é sadio e teve ótimo desenvolvimento. Sua primeira doença foi sarampo, há 6 meses. Datam desta época seus atuais distúrbios. Após a convalescença, em que sua mãe dedicou o máximo de atenções possíveis, começou a apresentar distúrbios da marcha caraterizados por claudicação e arrastamento da perna direita, que se mostrava pendente e batendo a planta do pé forçadamente no chão. A mãe alarmou-se, recorreu a inúmeros médicos, comentou a moléstia com todos os conhecidos, amigos e parentes, lamentando-se constantemente, chorando e atraindo para si a piedade e a atenção de todos. A marcha do paciente modificou-se de várias maneiras e, ao vir à clínica, apresentava as caraterísticas da marcha de Todd. Os exames clínicos e neurológicos não revelaram sinais de natureza orgânica. Ao exame psiquiátrico, observa-se que é um menino ativo e inteligente, porém, hiperemotivo e sob evidente superdependência materna, a ponto de não permitir o exame sem ter a mãe ao lado. Demonstrou ter desenvolvimento normal da inteligência (Q.I. = 105 aos testes de Binet-Simon). Conclusão - Trata-se de um menino mimado, filho único, superprotegido e dependente da ansiedade materna, sentindo-se, entretanto, desprezado e escorraçado pelas atitudes adversas do pai, alcoolista. Seus sintomas, próprios da histeria de conversão, são mantidos por um mecanismo de chamar a atenção do pai, segundo o mecanismo psicológico inconscientemente sugerido pela mãe que o utiliza. Sugestões - Orientar os pais no sentido de desprezarem os sintomas de natureza histérica, suprimir as atenções exageradas para com o paciente, proporcionar-lhe recreação, socialização e diversões suficientes e tratá-lo naturalmente, sem mimos e sem escorraçamentos. Psicoterapia para a mãe. Evolução - A mãe foi alvo de intensa psicoterapia feita pelo psiquiatra. O paciente foi retirado provisoriamente do lar, sendo mandado a passeio a Santos. Durante esse período, o lar foi reorientado e a mãe melhorada em suas manifestações mórbidas. Os sintomas do paciente, que foram resistentes a toda sorte de choques e tratamentos físicos, em tempo curto desapareceram total e duradouramente, pois, desde 1944, quando foi iniciada esta observação, até recentemente, nada mais apresentou, estando cursando a escola com grande proveito.

Inúmeros são os casos em que os sintomas somáticos apresentados por crianças têm origem em perturbações emocionais. O tratamento depreendido pelas observações clínicas e constituído em reajustar a personalidade infantil é, na maioria dos casos, suficiente para curá-las. Casos há, entretanto, que só a psicoterapia direta sobre a criança ou o tratamento psicoterápico dos pais, consegue a resolução destes problemas.

Dentre as desordens das funções motoras, poderíamos ainda determo-nos no estudo dos tiques psicogenéticos, sabido que a motilidade tem uma influência equilibradora do desenvolvimento emocional da criança; o desenvolvimento normal da função motora parece facilitar a integração satisfatória da personalidade total. De maneira geral, podemos dizer serem os tiques o resultado do conflito entre a necessidade primária ou secundariamente aumentada da atividade motora, e a interferência ambiental. A necessidade primariamente aumentada é o resultado do fator motor constitucional; a necessidade secundariamente aumentada é o resultado da restrição à liberdade da criança e estímulos exagerados, provenientes do ambiente. A falta de canalização da energia motora na locomoção, na atividade recreativa e ocupacional, tem-se mostrado na grande maioria dos casos a base etiológica dos tiques5 5 . Mahler, M. S., Luke, J. A. e Daltroff, W. - Clinical and follow-up study of the tic syndrome in children. Am. J. Orthopsychiat., 15: 631-647 (outubro) 1945. Mahler, M. S. e Rangell, L. - A psychosomatic study of maladie des tics (Gilles De La Tourette's disease). Psychiatric Quartely, 17: 4, 579-603 (outubro). 1943. . Deixamos de ilustrar estas afirmações, por serem sobejamente conhecidas. Igualmente, não focalizaremos os distúrbios psicossomáticos do aparelho urinário, no qual se observa um dos problemas psicossomáticos dos mais freqüentes, como o da enurese de que já tratamos em outra publicação6 6 . Arruda, J. - Contribuição ao estudo clínico da enurese na criança. Rev. Paulista Med., 28: 373-421 (junho) 1946. .

Para finalizar, teceremos algumas considerações gerais sobre o tratamento das desordens psicogênicas em crianças, salientando, apenas, alguns pontos práticos e algumas das dificuldades que são encontradas freqüentemente. Primeiramente, entretanto, diremos algumas palavras sobre os métodos comuns de exame.

Quando uma criança é levada ao médico por causa de algum problema psicológico de ajustamento, embora o sintoma seja aparentemente de origem somática, é sempre preferível que sejam entrevistados primeiro os pais sem a criança, a fim de se conseguir uma história completa da moléstia atual e da vida da criança. A seguir, deve-se entrevistar o paciente, procurando estabelecer uma relação amável e confidencial com a criança para compreender seu problema e sua vida, segundo o ponto de vista dela. Estas entrevistas isoladas têm, entretanto, a desvantagem de atrair a atenção e amedrontar a criança, que, certamente, comprende que seus pais estão falando dela com um estranho cuja profissão, conforme sua experiência, trata de assuntos de nascimento, morte, doença e sofrimento. Isto acontece quando são elas portadoras de sintomas considerados pelos pais, como maus, perigosos, e, em virtude dos quais já têm sido punidas e amedrontadas. Mesmo assim, a entrevista deve ser isolada e, ao terminar a tomada de toda a história contada pelos pais, podemos dizer à criança: "já ouvi toda a história de seus pais, agora quero ouvir a sua". O estudo psicossomático da criança compreende uma investigação física e uma análise psicológica, sociável e psiquiátrica.

A história deve incluir dados relacionados com certas fases da vida da criança: 1 - Os sintomas atuais, suas caraterísticas, suas modificações e sua história básica. É importante que sejam obtidos em detalhe as ocorrências na vida da família durante o ano que precedeu o sintoma. 2 - Dados detalhados da vida atual da criança devem ser reunidos, compreendendo seu comportamento para com cada pai, seus irmãos, outros adultos da família ou não, para com seus companheiros na escola e na vizinhança; seu aproveitamento escolar, seus brinquedos, seus interesses, suas reações para com a sua rotina geral da vida. 3 - Dados detalhados relativos às atitudes para com a criança, dos vizinhos da escola, dos seus companheiros, dos seus irmãos e dos seus pais. Todos esses dados são facilmente obtidos, através da observação direta das situaçõe ambientais em que vive a criança, pela visitadora social psiquiátrica. O médico, entretanto, pode obtê-la, não pelo questionário direto aos pais, mas pela impressão conseguida segundo a forma, a maneira com que falam da criança e suas atividades ou pela maneira com que a comparam com os irmãos ou outras crianças. Verificaremos, assim, se o pai ou a mãe, ou se ambos, são: a) dominadores; b) excessivamente ansiosos em relação aos alimentos, hábitos sexuais, asseio, hábitos de rotina, linguagem, brinquedos; c) se rejeitam a criança; d) se são ambivalentes; e) compulsivos; f) excessivamente disciplinadores ou muito condescendentes. 4 - Cuidadoso inquérito deve ser feito quanto às reações dos pais para com a concepção, a saúde da mãe durante a gravidez, medos em relação à saúde, inteligência ou sexo da criança esperada. As reações diante do nascimento, os planos e as expectativas de ambos os pais durante a gravidez e o primeiro ano de vida da criança. É bem sabido que, se um ou ambos os pais aborrecem-se com a concepção, se é tentado o aborto, se a mãe é muito doente durante a gravidez, se não quer ver a criança depois do nascimento, se recusa cuidá-la diretamente ou indiretamente por ter pouco leite, a criança está sendo rejeitada. 5 - Dados detalhados sobre o desenvolvimento da criança, principalmente as circunstâncias de sua vida e respectivas reações durante os vários estágios de crescimento, tais como: durante o estágio oral (duração da amamentação, época e método do desmame, atos de chupar dedo e roer unhas), a fase anal (como e quando os hábitos de toilette foram instituídos e a reação da criança), e a fase fálica (presença ou ausência de masturbação, atitudes dos pais em face disso, curiosidade sexual), os infortúnios de sua vida (mortes, deserções, mudanças), as suas moléstias, o desenvolvimento psicomotor (épocas de falar, andar, vestir-se só, comer só, tipo de linguagem).

Todas estas informações devem ser obtidas sugerindo aos pais que falem livremente tudo que posam pensar sobre a criança. Depois de conseguida toda a história, a criança será entrevistada. A finalidade desta entrevista é conseguir a primeira impressão sobre a criança e ouvir sua história e suas dificuldades. Alguns obstáculos surgem muitas vezes, impedindo a expansividade da criança. Assim, na primeira entrevista, a criança sempre se mostra medrosa e procura dar respostas que agradem ao médico. Outras vezes, ela mostra grande pânico e não quer entrar sozinha no consultório. Assustam-se as crianças, em geral, com os instrumentos de exame. Todas estas dificuldades podem ser resolvidas com as atitudes afáveis, de confiança por parte do médico, que inicialmente deve colocá-la à vontade e aliviá-la de seus temores. Deixá-la manejar os instrumentos de exame antes de serem utilizados e não abordar diretamente os seus problemas reais. Os exames de laboratório devem ser limitados aos extritamente indispensáveis.

Procedido o exame, o médico é possuidor de grande número de dados, suficientes para conduzí-lo ao diagnóstico integral da personalidade, dos problemas de ajustamento e da moléstia física; terá, assim, probabilidades de conhecer a psico-patologia, isto é, compreender o que causou a moléstia, o que a está mantendo ativa e porque foi desenvolvido o tipo particular de sintoma. Diante disso, o médico está em melhores condições para discutir, com os pais, o diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Considerações gerais sobre os processos terapêuticos

Nos comentários que fizemos sobre alguns dos problemas psicossomáticos, já nos referimos de maneira resumida sobre alguns processos terapêuticos, ficando evidente que os mais comuns são: 1) a modificação do ambiente; 2) os processos psicoterápicos diretos.

Modificação do ambiente - A modificação do ambiente visa diminuir as pressões adversas das atitudes e da conduta de pessoas contra as quais a criança poderá reagir patològicamente, substituindo-as por outras mais apropriadas ao processo normal de crescimento. Temos, então, que lidar com a conduta e as atitudes, não da criança, mas de seus pais, parentes, professores e instrutores, com os quais ela está em constante contacio. Tais atitudes prejudiciais à criança podem ser conseqüências do desconhecimento de que determinadas atitudes sejam prejudiciais. É o caso, por exemplo, de pais que consideram certos hábitos das crianças - como o de chupar os dedos - como maus, perigosos e resultantes de má educação. O esclarecimento, a instrução destes pais. trará uma modificação ambiental benéfica para a criança. Outras vezes, porém, as atitudes dos adultos resultam de suas próprias dificuldades. Sabemos que muitas pessoas não mostram sintomas evidentes de neuroses, mas podem ser portadoras de neuroses que fazem parte de seu caráter; as manifestações de sua moléstia não se revelam com dificuldades flagrantes em suas próprias vidas mas nas suas atitudes para com as outras pessoas, freqüentemente para com seus filhos ou dependentes.

Assim se explicam as atitudes de rejeição, superproteção e indulgência para com as crianças que representam o símbolo contra os quais os pais exprimem sua irritação, seu ódio contra seu companheiro matrimonial, seus superiores, colegas ou parentes. Conscientemente ou não, reconhecem ou não este fato, e, se o reconhecem, são incapazes de se controlar ou desculpam-se, alegando que o comportamento da criança justifica tais atitudes. Torna-se necessário, então, que o médico ou a visitadora psiquiátrica consiga de tais pais o desenvolvimento de confiança e segurança, tornando-se acessíveis à orientação. Muitas vezes, o técnico obtém essa confiança e o paciente, por identificação às atitudes do orientador, sem seu próprio conhecimento, começa a modificar sua atitude para com a criança. Ouvindo atentamente os pais, auxiliando-os a resolverem os seus próprios problemas, o médico pode conseguir suprimir muitas das atitudes prejudiciais às crianças. Se, entretanto, as atitudes são francamente neuróticas, só um tratamento especializado pode ter utilidade. Na impossibilidade de conseguir modificação nas atitudes dos pais ou adultos, pode-se recorrer à retirada da criança durante grande parte do dia, em semi-internatos ou parques infantis. A colocação em lares adotivos ou colégios pode constituir outro meio de ataque aos problemas emocionais. Não pedemos nos estender em assunto tão complexo e extenso, nesta já tão longa exposição. Desejamos reservar ainda tempo para ligeiras considerações sobre a psicoterapia.

Os métodos psicoterapêuticos para as crianças são os mesmos empregados para adultos, sendo três os tipos principais: sugestão e persuasão; reeducação; psicanálise.

A sugestão e persuasão podem ser usadas para remover os sintonias; não influem, porém, nos conflitos básicos. Seus sucessos dependem da relação emocional desenvolvida entre o médico e a criança. A criança chega a amar o médico e, por meio deste amor e dependência, ela pode ser persuadida a desistir de seus sintomas.

A reeducação é o método mais útil para o pediatra e o prático geral. Sua eficiência depende, também, da relação amável e confidencial entre o médico e a criança. Quando a criança compreender que o médico é um amigo confiante e um sábio conselheiro, começará a consultá-lo sobre seus problemas. Quando isto acontece, o papel do médico é o de encorajá-la a falar sobre todos os aspectos do problema, ouvindo-os atenta e comprensivamente, sem qualquer atitude crítica. Esta verbalização dos problemas pela criança constitui, talvez, a parte mais importante da terapêutica. Se a criança apresentar certos desconhecimentos ou possuir idéias erradas, o médico poderá esclarecê-la, falar-lhe sobre os sentimentos e as idéias desviadas da realidade. Nunca, entretanto, condenar ou punir. Embora isto pareça ser inútil ou um processo inadequado, a experiência tem mostrado os importantes benefícios para as crianças com leves conflitos neuróticos.

A psicanálise é um método curativo de tratamento. Consiste em tornar conscientes os conflitos inconscientes e auxiliar a resolução dos mesmos, colocando-os sob o governo do ego. Requer o serviço de um analista especializado, por 4 a 6 dias por semana, e durante longo tempo. Não pode ser aplicada por quem não tenha prática indispensável. Derivados da psicanálise, possuímos, hoje, certo número de processos terapêuticos de meritório valor, cuja descrição não cabe aqui. Citamos, por exemplo, a terapêutica pelo jogo ou brinquedo (play therapy), a psicoterapia em grupo para pais ou para crianças, psicodrama e vários outros.

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Conferência realizada na Secção de Pediatria da Associação Paulista de Medicina, em 19-9-946.

  • A medicina psicossomática na infância

    Joy Arruda
  • 1
    . Rascovski, A. - Consideraciones psícoanaliticas sobre la situación actual estimulante en 116 casos de epilepsia infantil. Rev. Psicoanálisis (Buenos Aires),
    2: 626-640, 1945.
  • 2
    . Escalona, S. K. - Feeding disturbances in very young children. Am. J. Orthopsvchiat.,
    15: 76-80 (janeiro) 1945.
  • 3
    . Bruch, H. - Psychiatric aspects of obesity in children. Am. J. Psychiat.,
    99: 752-757 (março) 1943.
    4. Bruch, H. - The Fröhlich syndrome. Am. J. Dis. Child.,
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  • 5
    . Mahler, M. S., Luke, J. A. e Daltroff, W. - Clinical and follow-up study of the tic syndrome in children. Am. J. Orthopsychiat.,
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    17: 4, 579-603 (outubro). 1943.
  • 6
    . Arruda, J. - Contribuição ao estudo clínico da enurese na criança. Rev. Paulista Med.,
    28: 373-421 (junho) 1946.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1947
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