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Contribuição à fisiopatologia da dor referida

Contribuição à fisiopatologia da dor referida

Alfred Auersperg

Professor extraordinário de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena

RESUMO E CONCLUSÕES

1. O fato de, em muitos casos, podermos atuar de modo decisivo sobre a dor profunda (a dor muscular) pelo bloqueio dos troncos nervasos cutâneos suprafasciais, prova que não existe separação radical entre as fibras nervosas aferentes das sensações superficiais e profundas da dor. 2. Teorias como a de Weiss e Davis, supondo residir a interdependência das sensações superficiais e profundas de dor num mecanismo de somação, numa sinapse comum, num "internuncial pool" comum, não são suficientes, pois, como demonstram nossas experiências, a dor muscular, após o bloqueio dos nervos cutâneos, desaparece antes que os limiares da sensibilidade dolorosa objetiva sofram qualquer alteração. Devemos, portanto, supor - para atender, ao mesmo tempo, à interdependência e à possibilidade do acometimento separado das sensações superficiais e profundas de dor - a existência de uma disposição específica do campo receptor. 3. Pelos exemplos que citamos - insuportabilidade do uso de chapéu pelos pacientes portadores de perturbações pós-comocionais, a possibilidade da síndrome pós-comocional integral ser influenciada pelo bloqueio dos troncos nervosos cutâneos do trigêmio ou dos occipitais - demonstramos a interdependência da dor referida com o conjunto das perturbações reguladoras neurovegetativas. 4. Considerada a fenomenologia das dôres referidas sob êste ponto de vista, compreende-se que devem falhar todos os esforços teóricos no sentido de encontrar uma hipótese fisiopatológica comum para todos os casos em que tais dores se apresentem; ainda mais, reconhecendo a interdependência entre tais dôres e o estado neurovegetativo individual - eminentemente variável - compreende-se o fundamento teórico da necessidade de tratamento especial para cada caso em particular.

SUMMARY AND CONCLUSIONS

The author studies the functional peripheral substract of myalgias after irritative alterations in nerve roots, plexuses and peripheral nerves. A case of gastrocnemius myalgia following a traumatism in the cauda equina is given as example. It is shown that novocain block of cutaneous nerves - therefore above the aponeurosis of the involved muscle - is sufficient to abolish muscular pain even before any change in the objective pain sensation threshold in the territory of the blocked nerve. Similar experiments are also given in cases of rheumatism and m cases of deep referred pain - according to Mackenzie's concept - caused by visceral disturbances. The author concludes: 1. Considering that very often it is possible to abolish deep pain (muscular pain) by blocking the suprafascialis cutaneous nerve trunks, the author concludes that afferent fibers conveying superficial and deep pain sensation are not completely separated. 2. The author does not believe satisfactory theories like Weis and Davis' assuming that the interdependence between superficial and deep pain sensation is a mechanism of summation in a common synapis or in a common inter-nuncial pool. The author's experiments show that after cutaneous nerve block muscular pain disappears before any change in the objective pain sensation thresholds; the author therefore supposes the existence of an especificai disposition of the receptor field in order to take into account botn the interdependence and the separate involvement of superficial and deep pain sensation. 3. Examples like the ones given (patients with post-commotional disturbances who cannot wear a hat, the beneficial effect on the complete post-commotional syndrome brought by the blockage of the cutaneous trunks of the trigeminal and occipital nerves) show the interdependence between referred pain and all the other autonomic troubles. 4. Considering the manifestation of referred pain under this viewpoint it may be easily understood why is faulty a physiopathological hypothesis intended to explain all the cases. Even-more, individual variations of the autonomic status stresses the necessity of a special treatment in each particular case.

ZUSAMMENFASSUNG

Gegenstand der Abhandlung ist das periphere Funktionssubstrat der Myalgie nach irritativer Schädigung der Wurzeln, des Plexus oder des Nervenstamms. Ein Fall von Myalgie der Musculi gastrocnemii nach Caudaverletzung wird zum Beispiel genommen. Es wird gezeigt, dass eine Blockierung der &uumlber die Fascie des Musculus gastrocnemius hinzie-henden sogenannten Hautnervenstámme Schmerz und Schmerzhaftig-keit des Muskels aufhebt bevor - mit den &uumlblichen klinischen Mitteln gepr&uumlft - die Schwellen des exteroceptiven Schmerzsinnes im Ver-sorgungsgebiet der blockierten Hautnerven eine Erhõhung der Schwellen-wert erkennen lassen. Auf ähnliche Erfahrungen bei rheumatisch, bzw., arthritisch bedingten Myalgien, bei tiefem &uumlbertragenen Schmerz vis-ceraler Erkrankungen nach Mackenzie wird hingewiesen. In der Diskussion werden die kritischen Folgerungen gegen&uumlber der Annahme einer radikalen morphologischen Trennung der den oberflächlichen und den tiefen Schmerz vermittelnden afferenten Fasern nach Sir Thomas Lewis, sowie gegen&uumlber der klassischen Summationstheorie der iibertragenen Schmerzen gezogen.

Até agora o emprêgo da expressão "dor referida" (referred pain, segundo o conceito da escola inglêsa) era restrito às dôres segmentares originando-se nas cavidades viscerais, quer pleural, quer peritoneal. Entretanto, provocando o aparecimento de dor referida pela irritação química de qualquer tecido fora do campo receptor superficial, as experiências de Lewis e Kellegren deram a êsse têrmo uma aplicação mais ampla. Nêsse sentido, as seguintes experiências, feitas por nós nos últimos anos, devem ser consideradas como contribuições a êsse vasto problema.

A mialgia é complicação muito freq&uumlente depois de lesões traumáticas das raízes, dos plexos e dos troncos nervosos; em tais eventualidades, a assim chamada causalgia de Weir Mitchell - síndrome de irritabilidade dos campos receptores superficiais - é menos freq&uumlente que a mialgia. Vejamos, por exemplo, o que acontece em um caso de lesão irritativa traumática da cauda eqüina: o doente permanece em decúbito, com as coxas e os joelhos fletidos; nota-se ligeira atrofia dos músculos; os reflexos aquileus se apresentam diminuídos ou mesmo ausentes; quanto à sensibilidade superficial, não há, nem hiperalgesia, nem hiperpatia, mas sim ligeira hipoalgesia nos dermatomas L5 a S3; o sintoma principal do quadro clínico é, no entanto, a dolorosidade dos músculos, principalmente dos gastrocnêmios, evidenciada pela pressão e pela distensão: há, pois, mialgia. Explorando o músculo meticulosamente, verifica-se que a dolorosidade à pressão não se espalha indiscriminadamente, mas parece seguir trajetos definidos; marcando esses trajetos com lapis dermográfico verifica-se que os limites traçados correspondem aos trajetos dos troncos nervosos dos nervos cutâneos. Nos casos de traumatismo da cauda eq&uumlina, o trajeto de distribuição da dolorosidade à pressão corresponde aos trajetos cutâneos dos nervos safeno, crural e peroneiro. Experimentando com corrente farádica, pode-se afirmar, pela diminuição do limiar de excitabilidade e pela distribuição das parestesias assim desencadeadas, que os trajetos dolorosos correspondem verdadeiramente aos nervos cutâneos suprafasciais. Injetando 1 cc de novocaína em cada ponto de perfuração da fáscia pelos nervos cutâneos, determina-se alívio quase imediato da dor muscular; ao mesmo tempo, a dolorosidade à pressão parece abolida. Esse efeito adinico se apresenta antes de qualquer alteração dos limiares da sensibilidade objetiva dolorosa aos estímulos superficiais nos campos de distribuição dos nervos bloqueados.

Animado por essa experiência, procuramos atuar sobre as dores em casos de úlcera do estômago ou duodeno, de colecistite, de apendicite e de volvo, pela injeção suprafascial de novocaina no ponto máximo da dor1 1 Experiências feitas ultimamente, no Serviço de Cirurgia do Prof. E. Vasconcelos, no Hospital das Clínicas da Fac. Med. Univ. São Paulo. ; na maioria desses casos, o efeito adinico se apresentou antes das alterações dos limiares da sensibilidade dolorosa exteroceptiva. Dessas observações, quero pôr em relevo dois fatos que contradizem os conceitos clássicos da fisiopatologia da dor: um desses fatos parece incompatível com o conceito clássico da lei da energia específica das sensações; o outro contradiz a hipótese explicativa clássica da dor referida, hipótese que procura explicar essa dor como conseq&uumlência do mecanismo fisiológico de somação.

1. O conceito clássico da lei da energia específica das sensações exige sistemas aferentes separados, não somente para cada modalidade, mas até para cada qualidade de sensação. Assim, as duas escolas moderníssimas sobre a dor - a escola do recém-falecido Sir Thomas Lewis e a escola de Harold Wolff - supõem a existência de fibras aferentes especiais e rigorosamente separadas para a mediação, tanto da dor superficial com caráter queimante, como da dor profunda com caráter de dolorosidade.

Nossas experiências, porém, demonstram o contrário. São exatamente os nervos superficiais - chamados nervos cutâneos - aqueles cujo bloqueio determina um alívio e, mesmo, a abolição da dor profunda, isto é, da dor miálgica. Essa dependência da dor profunda à condutibilidade dos nervos cutâneos mostrou-se como fato comum também nas dores originadas nas vísceras.

Teria esse fato escapado até agora às observações? Na realidade, ele foi assinalado, mas era interpretado de modo diferente ou, simplesmente, não era interpretado. Quanto à dor profunda dos membros - mialgia - existem observações concordantes com as nossas nos quadros banais do reumatismo muscular. Os anatomistas, desde Elliot, são concordes em que os chamados pontos musculares reumáticos, sede de fenômenos miálgicos, não mostram, em geral, ao exame histológico, nem nódulos fibrosos, nem cistos; eles resultam, provavelmente, apenas de contrações musculares locais. As localizações eletivas desses pontos reumático-miálgicos, ultimamente descritas por Fletcher, parecem, também, corresponder aos pontos em que os nervos segmentares perfuram as aponeuroses superficiais. Kelly mostrou que a infiltração novocaínica, superficial e suprafascial, dos pontos doloridos, faz desaparecer, imediata e completamente, tanto a dor, como o distúrbio funcional, em 60% dos casos.

Quanto às dores referidas condicionadas a perturbações viscerais, basta referir que, já na experiência primária de Weiss e Davis, a infiltração eficaz com novocaína não foi aplicada nos troncos nervosos segmentares nem nos músculos, mas sim, subcutâneamente, sobre os assim chamados pontos dolorosos máximos da parede abdominal.

A razão pela qual tais fatos não foram tomados em consideração, até agora, na teoria patogênica das dores profundas, talvez resida no fato anatômico de que os nervos da pele - na região do tronco, região que tem sido a mais utilizada para tais estudos - representam as ramificações mais periféricas dos nervos intercostais e, por isso, trafegam reunidos com as fibras profundas em um só tronco nervoso. Nos membros, porém, o decurso dos nervos cutâneos é completamente separado daquele dos troncos nervosos inervando os músculos.

2. O conceito da somação da dor referida é incompatível com o fato de que, em nossos casos, a dor espontânea e a dolorosidade aumentada já tinham cedido - quase imediatamente após a infiltração novocaínica - ao passo que a dor exteroceptiva, isto é, a dor produzida por um estímulo mecânico aplicado na região novocainizada, ainda não mostrava diminuição alguma. Esta influência diferente do bloqueio novocaínico sobre a sensibilidade dolorosa objetiva e a dolorosidade patológica, indica uma disposição especifica dos campos receptores desses fenômenos dolorosos.

Quanto ao caráter fisiológico dessa disposição específica, as seguintes experiências mostram ser admissível que a dor referida somente seja o efeito parcial de uma perturbação complexa do sistema nervoso vegetativo. Todo o médico que tem experiência clínica com doentes portadores de cefaléias, especialmente de cefaléias pós-comocionais, sabe que tais doentes não suportam a pressão do chapéu; nestas circunstâncias, aumentam, não somente a cefaléia, mas também a tontura, a vertigem e a náusea. Em muitos destes casos utilizamos uma infiltração dos nervos frontais e dos nervos occipitais, grande e pequeno; freq&uumlentemente, como resultado, não somente desapareciam as dores de cabeça, mas também a tontura e a náusea. Este exemplo, entre muitos outros, demonstra o nosso conceito de uma interdependência das dores referidas e dos outros sintomas, englobados todos na perturbação vegetativa integral.

Avenida Paulista, 920 - S ã o Paulo -

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    Experiências feitas ultimamente, no Serviço de Cirurgia do Prof. E. Vasconcelos, no Hospital das Clínicas da Fac. Med. Univ. São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1949
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