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Reflexões sobre a metodologia na pesquisa em ortopedia e traumatologia

ARTIGO DE REVISÃO

Reflexões sobre a metodologia na pesquisa em ortopedia e traumatologia

William Dias Belangero

Prof. Dr. Chefe do Departamento de ortopedia e Traumatologia. Faculdade de Ciências Médicas - UNICAMP

"Contra o positivismo que pára perante os fenômenos e diz: 'Há apenas fatos', eu digo: 'Ao contrário, fatos é o que não há: há apenas interpretações' "

(Nietzche)

Seguindo a tendência geral de expansão do conhecimento, a produção científica da área médica tem se ampliado intensamente nas últimas décadas, tornando exaustiva a atualização permanente do conhecimento. No entanto, se o número de informações cresce vertiginosamente, a aquisição destas também tem sido intensamente facilitada pelos meios atuais de comunicação via internet.

Este ritmo de desenvolvimento parece ser paralelo à idéia da medicina Baseada em evidência, que foi concretizada em 1992 por Dr. Iain Chalmers em Oxford (UK), com a criação da "Colaboração Cochrane", que tem como objetivo realizar, auxiliar e disseminar revisões sistemáticas de intervenções em saúde.

Este tipo de abordagem permite que se avalie claramente a eficácia de estudos realizados previamente, selecionados por critérios de validade, mas que não puderam chegar isoladamente a conclusões definitivas por terem casuística insuficiente. Assim, adicionando-se casuística de estudos diferentes, mas comparáveis, e aplicando-se rigorosos critérios estatísticos, podem ser obtidas conclusões confiáveis que resultarão em recomendações definitivas de conduta. o conhecimento deste metodologia de trabalho estimula por um lado a realização de estudos prospectivos de boa qualidade científica e, por outro, a utilização deste método como ferramenta de grande potência na definição de condutas ainda questionáveis.

Surge então a questão de como proceder para se obter resultados de boa qualidade metodológica na área cirúrgica, onde os estudos prospectivos, randomizados, com grupo controle, são normalmente impraticáveis do ponto de vista ético. Por outro lado, os estudos retrospectivos têm pouca possibilidade de se tornarem fonte de resultados confiáveis. isto acontece porque a casuística não é conduzida segundo objetivos pr[é-determinados, sendo sempre passível de crítica pela subjetividade, mesmo que não intencional, da seleção dos casos e da análise dos resultados. estes estudos, mesmo quando realizados com grande casuística, têm sido considerados de nível científico insuficiente para garantir uma recomendação terapêutica. Desta forma, todos os esforços deveriam ser dirigidos para que o desenvolvimento de uma hipótese fosse realizado sempre através de estudos prospectivos. Mesmo não sendo possível observarem-se todos os critérios metodológicos ideais, é possível melhorar a qualidade dos resultados seguindo algumas estratégias, que serão descritas a seguir.

O primeiro passo em qualquer pesquisa científica é a definição do tema e dos objetivos gerais e específicos. Se o pesquisador estiver inserido em um grupo com linha de pesquisa, provavelmente as bases teóricas e os questionamentos relativos ao tema da linha já serão de domínio do grupo e, assim, os objetivos serão decorrência natural dos estudos anteriores. No entanto, quando não for este o caso, o pesquisador deverá realizar ampla revisão da literatura com a finalidade de buscar os aspectos polêmicos, ou ainda não definidos, que sustentem a relevância da pesquisa e orientem na definição dos objetivos. Após esta fase, deve-se definir a população e o método a ser empregado para se atingir os objetivos propostos. Não é raro se encontrar publicação que simplesmente informa o número de pacientes estudados durante um determinado período sem, no entanto, fazer referência clara não só ao universo de onde estes foram retirados, como também dos critérios utilizados na inclusão e/ou exclusão dos mesmos.

A definição do tamanho da amostra é outra variável pouco considerada e muitas vezes estimada sem critérios. A rigor, ela deveria ser estimada previamente, tendo em conta o tipo do procedimento, a variabilidade dos resultados e, quando necessário, dever-se-ia lançar mão de estudos estatísticos para a sua definição. Se o resultado deste cálculo atingir valores impraticáveis, ou impossíveis de serem atingidos em um período de estudo viável, o pesquisador poderá optar por realizar um projeto com perspectivas duvidosas, ou propor a composição conjunta da casuística com outro serviço. esta última opção deverá prever ampla discussão de todo o protocolo, com ênfase na técnicas cirúrgica, na experiência prática dos profissionais envolvidos e na análise dos resultados obtidos em serviços distintos.

Vale ressaltar que a análise estatística é, via de regra, importante, principalmente quando as diferenças não são evidentes, podendo-se até pressupor que esta ferramenta acabe sendo tão mais necessária quanto pior for o planejamento inicial do estudo. Nos trabalhos que envolvem o fator técnico, representado pela habilidade, experiência do cirurgião e até condições materiais da instituição, deve-se ter em mente que estas variáveis podem ser minimizadas com o aumento da casuística, com o treinamento prévio em animais ou em cadáveres. É óbvio que se no estudo existirem cirurgiões com diferentes graus de experiência, ou que estejam em níveis distintos da curva de aprendizagem da técnica, isto deve ser mencionado na metodologia e pesado na análise dos resultados.

Do ponto de vista científico, o relato dos resultados obtidos em função de escalas-padrão ou de comparações com o pré-operatório, têm menor valor do que quando estes são definidos em função de metas previamente estabelecidas. A tendência atual é que esta meta leve em consideração não apenas o resultado do procedimento ortopédico, mas também a repercussão deste na qualidade de vida e na readaptação do paciente ao meio sócio-econômico. Assim, outros critérios devem ser considerados para que se possa julgar com mais subsídios se o procedimento, além de ter sido bom para o "fêmur", foi também eficaz para o paciente. Como por exemplo pode-se citar as cirurgias realizadas nas crianças com malformações congênitas que, muitas vezes, têm como única finalidade a manutenção do membro com função discutível sem considerar o elevado custo psíquico social do tratamento.

A utilização do grupo controle confere maior qualidade e confiabilidade no resultado da pesquisa, já que raramente estes estudos podem ser randomizados a nunca são duplo cego. Por outro lado, nessa especialidade também é impossível utilizar-se do grupo controle ideal, que é aquele no qual o paciente é acompanhado sem ser submetido ao tratamento. A alternativa que pode ser adotada é a de se empregar o "grupo controle histórico" que, no entanto, está sujeito a crítica por não incluir pacientes com as mesmas condições de seleção do estudo atual, além de ter sido realizado em um outro momento histórico. Por outro lado, se o objetivo for comparar os resultados obtidos através de diferentes técnicas de tratamento sobre uma mesma doença, podem ser realizados estudos concomitantes em uma ou em mais instituições, observando-se os critérios quanto à seleção dos casos e análise dos resultados. Esta prática, pouco utilizada em nosso meio, deveria ser estimulada, visto que traria benefício a todos os grupos envolvidos, que poderiam produzir estudos com maior aceitação e penetração no meio científico.

Para se obter uma análise neutra e imparcial dos resultados, pode-se também solicitar o auxílio de outros especialistas que não tiveram participação ativa na fase de seleção ou na fase de intervenção do estudo.

Ainda com relação aos resultados, a perda do acompanhamento clínico motivada pelas características migratórias da população, pelas condições sócio-econômicas, pelas grandes distâncias do nosso território, entre outras, devem sempre que possível ser diferenciadas das perdas produzidas pelos maus resultados. É óbvio que quanto maior for a perda da população inicial, mais comprometido ficará o estudo e suas conclusões. Cabe ao pesquisador o uso do seu senso crítico e, principalmente, dos seus princípios, para que não existam dúvidas sobre a realidade dos dados. a análise final, se feita em função dos pacientes ou do número de casos, deve ser definida no início do estudo para se evitar tendenciosidade. A influência da perda de casos pode ser minimizada pelo uso de tabelas de sobrevivência e pelo tempo de seguimento, que demonstrarão o cuidado e a visão crítica do pesquisador. Por fim, deve-se ter em mente que nesta fase nenhum valor de significância resiste a uma metodologia mal feita. E o encontro do p. 0,01 não pode cegar o leitor dos aspectos básicos que construíram todo o estudo.

A discussão dos resultados deverá ser feita em função dos dados atualizados da literatura, enfatizando os aspectos de originalidade e, principalmente, analisando os maus resultados, já que as suas causas sempre são os determinantes mais importantes na revisão e modificação dos procedimentos estudados.

Cercando-se do maior número possível de critérios, pode-se obter, mesmo em estudos não controlados, resultados de boa qualidade científica. deve-se ter em mente que por trás de todo estudo há, além da curiosidade científica, o objetivo da sua divulgação e da aplicação dos seus resultados para o bem-estar do paciente, que é o fecho do ciclo do pesquisador da área clínico cirúrgica.

Para finalizar, as reflexões apresentadas só poderão ter repercussão na medida que os editores e os revisores das publicações científicas exijam qualidade metodológica nos trabalhos aceitos para divulgação. Além disso, fica a sugestão de que este assunto, tão importante para o desenvolvimento com qualidade desta área médica, seja tema a ser amplamente abordado nos encontros científicos da nossa especialidade.

REFERÊNCIA

• ATALLAH, A.N. & CASTRO, A.A.: Medicina baseada em evidencias: o elo entre a boa ciência e a boa prática clínica. www.epm.br/cochrane/ebm.htm, 29/03/2000

• GARTLAND, J.J.: Orthopaedic clinical research. J. Bone Jt. Surg., 70(A) 9: 1357-1371, 1988.

• MURRAY, D.W.; BULSTRODE, C.J.K. & CAN, A..: Survival analysis of joint replacements. J. Bone Jt. surg, 75(B): 697-705, 1993.

• PYNSENT, P.B.; FAIRBANK, J.C.T & CAN, A.J.: Assessment methodology in orthopaedics. Butterworth Heinemann, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2001
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