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Electra Tiranicida: Gênero na recepção de uma deliberação heroica na tragédia de Sófocles

Electra Tyrannicide: Gender in the Reception of a Heroic Deliberation in Sophocles’ Tragedy

Resumo:

No terceiro episódio da Electra de Sófocles, a heroína, acreditando que seu irmão Orestes está morto, tenta convencer sua irmã Crisótemis a participar de um plano de matar Egisto, em um discurso que retoma as honras públicas instituídas na Atenas do século V a.C. em homenagem ao casal tiranicida, Harmódio e Aristogíton, e, portanto, aproxima as duas irmãs da imagem de campeãs da democracia (v. 947-989). Este artigo compara o tratamento dado por Comentários contemporâneos à Electra de Sófocles a este discurso com estudos recentes da cidadania ateniense que fazem uso do gênero como ferramenta metodológica, no intuito de argumentar que a ideia da polis como um “clube de homens” depende muito mais de um estereótipo moderno sobre a política ateniense do que das evidências antigas disponíveis - um estereótipo que projeta concepções europeias do século XIX acerca do político sobre o contexto antigo e perpetua, no passado, uma dominação masculina supostamente universal. Nessa perspectiva, a atitude de Electra, certamente excepcional pela situação igualmente excepcional em que a heroína se encontra, longe de transgredir de um modo impressionante os papéis de gênero antigos, aponta para a importância da cidadania feminina na democracia ateniense.

Palavras-chave:
Tiranicídio; Electra de Sófocles; gênero; cidadania; democracia ateniense

Abstract:

At the third episode of Sophocles’ Electra, the heroine, believing that her brother Orestes is dead, invites her sister Chrisothemis to a plan to kill Aegisthus, in a speech that recalls fifth century Athenian’s public honors to the tyrannicide couple, Harmodius and Aristogiton, and thus presents the two sisters as a kind of democratic champions (v. 947-989). This paper compares the treatment given by contemporary Commentaries to Sophocles’ Electra to this speech with recent gender-oriented studies of Athenian citizenship, in order to argue that the idea of the ancient polis as a “man’s club” depends much more on a modern stereotype about Athenian politics than on the ancient evidence available to us - a stereotype that projects XIX century European conceptions of politics on the ancient context, and perpetuates backwards a supposedly universal masculine domination. In this light, Electra’s attitude, surely exceptional because of her equally exceptional situation, far from strikingly transgressing ancient gender-roles, points to the importance of female citizenship in democratic Athens.

Keywords:
tyrannicide; Sophocles’ Electra; gender; citizenship; Athenian democracy

Na Electra de Sófocles, Orestes chega em Argos com um plano arquitetado para garantir a vingança da morte de Agamêmnon; o relato da morte de Orestes, suportado por um objeto, uma urna funerária, facilita a execução do plano, assegurando o anonimato de Orestes até o momento exato de agir. Ao ter conhecimento deste relato enganoso, e ser enganada por ele, Electra profere, no terceiro episódio, as seguintes palavras à sua irmã, Crisótemis:

{ΗΛ.} Ἄκουε δή νυν ᾗ βεβούλευμαι τελεῖν.

παρουσίαν μὲν οἶσθα καὶ σύ που φίλων

ὡς οὔτις ἡμῖν ἐστιν, ἀλλ' Ἅιδης λαβὼν

ἀπεστέρηκε καὶ μόνα λελείμμεθον· 950

ἐγὼ δ' ἕως μὲν τὸν κασίγνητον βίῳ

θάλλοντ' ἔτ' εἰσήκουον, εἶχον ἐλπίδας

φόνου ποτ' αὐτὸν πράκτορ' ἵξεσθαι πατρός·

νῦν δ' ἡνίκ' οὐκέτ' ἔστιν, εἰς σὲ δὴ βλέπω,

ὅπως τὸν αὐτόχειρα πατρῴου φόνου 955

ξὺν τῇδ' ἀδελφῇ μὴ κατοκνήσεις κτανεῖν,

Αἴγισθον· οὐδὲν γάρ σε δεῖ κρύπτειν μ' ἔτι.

ποῖ γὰρ μενεῖς ῥᾴθυμος ἐς τίν' ἐλπίδων

βλέψασ' ἔτ' ὀρθήν; ᾗ πάρεστι μὲν στένειν

πλούτου πατρῴου κτῆσιν ἐστερημένῃ, 960

πάρεστι δ' ἀλγεῖν ἐς τοσόνδε τοῦ χρόνου

ἄλεκτρα γηράσκουσαν ἀνυμέναιά τε.

καὶ τῶνδε μέντοι μηκέτ' ἐλπίσῃς ὅπως

τεύξῃ ποτ'· οὐ γὰρ ὧδ' ἄβουλός ἐστ' ἀνὴρ

Αἴγισθος ὥστε σόν ποτ' ἢ κἀμὸν γένος 965

βλαστεῖν ἐᾶσαι, πημονὴν αὑτῷ σαφῆ.

ἀλλ' ἢν ἐπίσπῃ τοῖς ἐμοῖς βουλεύμασιν,

πρῶτον μὲν εὐσέβειαν ἐκ πατρὸς κάτω

θανόντος οἴσῃ τοῦ κασιγνήτου θ' ἅμα·

ἔπειτα δ', ὥσπερ ἐξέφυς, ἐλευθέρα 970

καλῇ τὸ λοιπὸν καὶ γάμων ἐπαξίων

τεύξῃ· φιλεῖ γὰρ πρὸς τὰ χρηστὰ πᾶς ὁρᾶν.

λόγων γε μὴν εὔκλειαν οὐχ ὁρᾷς ὅσην

σαυτῇ τε κἀμοὶ προσβαλεῖς πεισθεῖσ' ἐμοί;

τίς γάρ ποτ' ἀστῶν ἢ ξένων ἡμᾶς ἰδὼν 975

τοιοῖσδ' ἐπαίνοις οὐχὶ δεξιώσεται;

« ἴδεσθε τώδε τὼ κασιγνήτω, φίλοι,

ὣ τὸν πατρῷον οἶκον ἐξεσωσάτην,

ὣ τοῖσιν ἐχθροῖς εὖ βεβηκόσιν ποτέ,

ψυχῆς ἀφειδήσαντε προὐστήτην φόνου 980

τούτω φιλεῖν χρή, τώδε χρὴ πάντας σέβειν·

τώδ' ἔν θ' ἑορταῖς ἔν τε πανδήμῳ πόλει

τιμᾶν ἅπαντας οὕνεκ' ἀνδρείας χρεών.»

τοιαῦτά τοι νὼ πᾶς τις ἐξερεῖ βροτῶν,

ζώσαιν θανούσαιν θ' ὥστε μὴ 'κλιπεῖν κλέος. 985

ἀλλ', ὦ φίλη, πείσθητι, συμπόνει πατρί,

σύγκαμν' ἀδελφῷ, παῦσον ἐκ κακῶν ἐμέ,

παῦσον δὲ σαυτήν, τοῦτο γιγνώσκουσ’, ὅτι

ζῆν αἰσχρὸν αἰσχρῶς τοῖς καλῶς πεφυκόσιν.

Escuta, então, agora, como decidi fazer.

Tu também sabes que a proximidade de amigos

não temos nenhuma, mas Hades os pegou

e roubou, e ficamos, ambas, sozinhas. (950)

Eu, enquanto escutava que em vida

nosso irmão ainda vicejava, tinha esperança

de que ele um dia chegaria, vingador da morte do pai;

mas, agora, já que ele não mais existe, é para ti que olho:

àquele que com as mãos matou nosso pai, (955)

trata de não hesitar em, junto dessa tua irmã aqui, matá-lo,

Egisto... já não preciso mais esconder nada de ti.

Até quando permanecerás indiferente, com os olhos

em alguma esperança ainda reta? Tu podes lamentar

ter sido privada da posse da riqueza paterna; (960)

e podes sofrer ter amadurecido por todo esse tempo

sem leito nem canto nupcial.

E, tais coisas, não me venhas ter esperanças de que

jamais serão arranjadas: ele não é homem assim irrefletido,

Egisto, para permitir nascer a tua família, (965)

nem a minha, hostilidade contra ele evidente.

Mas, se seguires minhas decisões,

primeiro, respeito do pai lá em baixo

morto irás ganhar, e também do irmão;

depois, bem alinhada com tua linhagem, de livre (970)

serás chamada no futuro e arranjarás casamento digno,

já que todos amam buscar com os olhos quem é valoroso.

Não vês que bela reputação entre os palavreados

para ti e para mim dispararias, se te deixares persuadir?

Quem é que, cidadão ou estrangeiro, nos vendo, (975)

não nos saudará com esses elogios:

“Vede essas duas irmãs, meus caros,

que, ambas, a casa paterna salvaram;

que, ambas, contra inimigos então bem colocados,

arriscaram a vida e defrontaram a revanche da morte. (980)

Todos precisam amá-las, todos precisam venerá-las,

e, nas festas e entre o povo reunido na cidade,

todos precisam honrá-las por sua coragem.”

Essas coisas, cada um dos mortais irá dizê-las, de ti e de mim,

e, em vida ou em morte, a glória não nos abandonará. (985)

Mas, minha cara, deixa-te persuadir, sofre comigo pelo pai,

padece comigo pelo irmão, acaba com meus males,

acaba com os teus, e reconhece isso:

que uma vida ignóbil é ignóbil para os de alta linhagem.

(Soph., El., v. 947-989 Lloyd-Jones & Wilson (1992LLOYD, J.; WILSON, N. G. (1992). Sophoclis fabulae. Oxford: Oxford University Press.), trad. minha.)

No verso 975, a personagem de Electra faz uso de um “tis-speech” (τίς γάρ ποτ' ἀστῶν ἢ ξένων …, “Quem é que, cidadão ou estrangeiro...”), um discurso imaginado, proferido por uma pessoa anônima no futuro, estudado por Irene de Jong (1987DE JONG, I. (1987). The Voice of Anonymity: tis-Speeches in the Iliad. Eranos, v. 85, p. 69-84.) no âmbito da narratologia épica. Um discurso que pode projetar no futuro tanto uma imagem elogiosa - o ressoar do kleos, do renome -, quanto uma imagem condenável - o repercutir do psógos, da censura. A inserção dessa fala de Electra em uma tradição de celebração de feitos heroicos é mais um dos muitos exemplos que fazem de Sófocles um “Homero trágico”, como no título do artigo de Patricia Easterling (1984EASTERLING, P. (1984). The Tragic Homer. Bulletin of the Institute of Classical Studies, v. 31, p.1-8.). Mais especificamente, os comentadores do “discurso-tis” de Electra costumam evocar uma passagem da Ilíada, no Canto 7, em que Heitor, imaginando sair vitorioso do duelo em que irá enfrentar o melhor dos Aqueus, planeja devolver o corpo do inimigo e vê no túmulo deste uma fonte de seu kleos:

ὄφρά ἑ ταρχύσωσι κάρη κομόωντες Ἀχαιοί

σῆμά τέ οἱ χεύωσιν ἐπὶ πλατεῖ Ἑλλησπόντῳ.

καί ποτέ τις εἴπῃσι καὶ ὀψιγόνων ἀνθρώπων

νηῒ πολυκλήϊδι πλέων ἐπὶ οἴνοπα πόντον·

“ἀνδρὸς μὲν τόδε σῆμα πάλαι κατατεθνηῶτος,

ὅν ποτ' ἀριστεύοντα κατέκτανε φαίδιμος Ἕκτωρ”.

ὥς ποτέ τις ἐρέει· τὸ δ' ἐμὸν κλέος οὔ ποτ' ὀλεῖται.

“e erigirem um cenotáfio no largo Helesponto.

Um dia alguém dirá das gerações futuras,

Navegando em nau muito-calço sobre o mar vinoso:

‘Este é o cenotáfio de um varão que morreu no passado:

No dia em que exceleu, matou-o o insigne Heitor.’

Assim alguém dirá um dia, e a minha fama jamais perecerá.”

(Il., 7, 85-91,1 1 Exceto indicação contrária, o texto dos autores antigos foi retirado das edições utilizadas pelo TLG, Thesaurus Linguae Graecae® Digital Library. trad. Christian Werner (2018WERNER, C. (trad.) (2018). Homero. Ilíada. São Paulo, Ubu/ SESI-SP.), ligeiramente modificada)

No entanto, como observa Diane Juffras (1991JUFFRAS, D. (1991). Sophocles’ Electra 973-85 and Tyrannicide. Transactions of the American Philological Association, v. 121, p. 99-108., p.103), retomando um breve comentário de Georg Kaibel, o discurso projetado pela protagonista de Sófocles também manipula as convenções dos discursos projetados pelas personagens da épica: em Homero, as projeções de kleos se fazem a partir de um túmulo de um inimigo morto ou de uma pessoa próxima ao herói (por exemplo, Andrômaca no Canto 6 da Ilíada, versos 459-62, no futuro imaginado, viúva e chorando, desperta a lembrança de Heitor em um anônimo); na épica, os discursos-tis que projetam uma imagem do próprio falante costumam antecipar censura (cf. Il. 8, 68-150). Além disso, como observa Jan Coenraad Kamerbeek (1974KAMERBEEK, J. C. (1974). The Plays of Sophocles Commentaries. V: The Electra. Leiden, Brill., p. 132) o discurso projetado por Electra remete a um epitáfio laudatório, e, como nota Patrick J. Finglass (2007FINGLASS, P. (2007). Sophocles’ Electra. Cambridge Classical Texts and Commentaries v. 44. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 406), o emprego do dual, raro em textos poéticos pós-homéricos, tem atestações epigráficas em dialeto ático, inclusive com o feminino em -ω tal como o masculino. A provável referência na passagem à linguagem das inscrições é relacionada por Juffras (1991JUFFRAS, D. (1991). Sophocles’ Electra 973-85 and Tyrannicide. Transactions of the American Philological Association, v. 121, p. 99-108., p. 103) com mais dois aspectos que afastam as palavras de Electra de seus modelos homéricos: 1) o kleos que não abandonará as irmãs no verso 985 irá se espalhar estejam elas vivas ou mortas (ζώσαιν θανούσαιν); 2) o suporte desse kleos não é, como em Homero, a própria tradição poética, mas honras “nas festas e entre o povo reunido na cidade” (τώδ' ἔν θ' ἑορταῖς ἔν τε πανδήμῳ πόλει, v. 982); 3) o emprego do verbo δεξιóομαι, lit. “elevar a mão direita para saudar”, no verso 976, pode remeter ao costume antigo de saudar e tocar as estátuas. A partir daí, Juffras propõe que o modelo do kleos de Electra evoca as celebrações e o grupo de estátuas que honravam, na Ágora da Atenas do século V a.C., os tiranicidas Harmódio e Aristogíton.

Tais estátuas foram objeto do excelente estudo de Vincent Azoulay (2014AZOULAY, V. (2014). Les Tyrannicides d’Athènes. Vie et mort de deux statues. Paris, Seuil.), que oferece uma abordagem biográfica das mesmas. Temos conhecimento do assassinato de Hiparco, filho de Pisístrato, por passagens de Heródoto (5, 55-57), Tucídides (6, 53,3 - 6, 59, 2), Pseudo-Platão (Hipparch. 228b-229d) e Pseudo-Aristóteles (Ath. 17, 3 -19, 1). Todos esses autores se contrapõem à “versão popular” da propaganda ateniense, que situa, no assassinato ocorrido durante a procissão das Grandes Panateneias de 514, o fim da tirania pisistratida na cidade. Tucídides se compraz em mostrar que o assassinato não se concebeu em nome da cidade, mas por causa de uma intriga amorosa. Aristogíton era erasta do jovem Harmódio, que recusa os avanços de Hiparco, irmão de Hípias, o verdadeiro tirano no poder. Para se vingar, Hiparco fez com que a irmã de Harmódio fosse convidada para ocupar a posição de kanephoros, “portadora do cesto”, na procissão das Panateneias - posto reservado às jovens não casadas de famílias da elite -, mas, em seguida, ela é mandada embora por não ser digna do posto; e seria para vingar esta desonra que, no dia da procissão, Harmódio e Aristogíton se dirigem ao encontro de Hípias, que, acompanhado de sua escolta, organizava a marcha do cortejo em honra de Palas Atena no Cerâmico; porém, com medo por ver um de seus próprios cúmplices conversando com Hípias, os dois voltam e encontram Hiparco, que matam na mesma hora. Harmódio morre logo em seguida e Aristogíton é capturado e castigado.

Entre os anos de 510 e 480, os Atenienses ergueram na Ágora o grupo estatuário em honra de Harmódio e Aristogíton, esculpido por Antenor. Mas quando Xerxes, guiado por Hípias, ataca Atenas em 480, o grupo é roubado pelo exército do Grande Rei. Pouco tempo depois, em 477/6, o demos ateniense ergue um novo grupo estatuário, desta vez obra de Crítio e Nesiotes. A inscrição gravada na base deste segundo grupo foi encontrada por escavações na Ágora ateniense em 1936: o epigrama, em estado fragmentário, foi atribuído a Simônides de Ceos, (fr. I FGE; para comentários detalhados sobre o epigrama, ver, Azoulay, 2014AZOULAY, V. (2014). Les Tyrannicides d’Athènes. Vie et mort de deux statues. Paris, Seuil., p. 58-59; Brose, 2007BROSE, R. (2007). Os fragmentos atenienses de Simônides. Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, São Paulo., p. 16-54). Durante o século V a.C., o esquema figurativo do grupo estatuário aparece nos vasos utilizados nos banquetes da elite ateniense (Azoulay, 2014AZOULAY, V. (2014). Les Tyrannicides d’Athènes. Vie et mort de deux statues. Paris, Seuil., p. 69-80), ocasião em que também era cantado o skolion, a “canção de banquete”, em honra da dupla tiranicida (PMG 893-896). Um dos fragmentos que nos chegou dessa canção menciona justamente, como o verso 985 do discurso de Electra (ζώσαιν θανούσαιν θ' ὥστε μὴ 'κλιπεῖν κλέος, “quer em vida, quer em morte, a glória não nos abandonará), a extensão do kleos de Harmódio e Aristogíton: αἰεὶ σφῷν κλέος ἔσσεται κατ' αἶαν (“sempre ambos terão glória sobre a terra’, PMG 986, v. 1).

Em seu estudo, Azoulay justifica a abordagem biográfica das estátuas dos tiranicidas enfatizando o agenciamento das efígies: “os dois grupos estatuários contribuíram de forma ativa em modelar a cultura política ateniense, participando da criação de um sistema de valores compartilhados em torno da defesa da pátria e do necessário sacrifício por sua liberdade” (2014AZOULAY, V. (2014). Les Tyrannicides d’Athènes. Vie et mort de deux statues. Paris, Seuil., p. 18). Tal agenciamento também se vincula às práticas com que as efígies interagem: estátuas na Atenas clássica - sejam elas cultuais, funerárias, honoríficas -, não são objetos inertes, mas podem ser transportadas, vestidas, coroadas e destinatárias de oferendas; não são objetos inertes e, muito menos, objetos mudos: sendo a leitura na Antiguidade quase sempre uma leitura em voz alta (cf. Thomas, 2005THOMAS, R. (2005). Letramento e oralidade na Grécia Antiga. Tradução de Raul Fiker. São Paulo, Odysseus., p. 18-19), as inscrições gravadas sobre os objetos falam com quem entra em contato com elas. A referência às estátuas na fala de Electra em Sófocles, proposta por Juffras, se torna mais clara justamente pela interatividade das estátuas: daí o já mencionado verbo δεξιόομαι remeter a um aperto de mão entre o passante e a estátua; daí, também, o jogo estabelecido pelo particípio ἰδών, “vendo”, no verso 975, e pelo imperativo ἴδεσθε, “vede”, no verso 977, que adquirem a mesma duplicidade que caracteriza as estátuas: o que o passante anônimo vê, e convida os outros a também ver, pode ser tanto as duas irmãs em pessoa quanto as estátuas imaginadas em homenagem a elas (Juffras, 1991JUFFRAS, D. (1991). Sophocles’ Electra 973-85 and Tyrannicide. Transactions of the American Philological Association, v. 121, p. 99-108., p. 104).

No fim do século V a. C., com a assimilação dos golpes oligárquicos de 411 e 404 a tiranias no discurso cívico ateniense, as estátuas dos tiranicidas têm sua popularidade intensificada. Em 409, o demos ateniense aprova um decreto proposto por Demofanto (IG I3 502); o decreto é citado por Andócides no discurso Sobre os mistérios (96-98):

Νόμος. Ἔδοξε τῇ βουλῇ καὶ τῷ δήμῳ. Αἰαντὶς ἐπρυτάνευε, Κλειγένης ἐγραμμάτευε, Βοηθὸς ἐπεστάτει. Τάδε Δημόφαντος συνέγραψεν. Ἄρχει χρόνος τοῦδε τοῦ ψηφίσματος ἡ βουλὴ οἱ πεντακόσιοι <οἱ> λαχόντες τῷ κυάμῳ, οἷς Κλειγένης πρῶτος ἐγραμμάτευεν. Ἐάν τις δημοκρατίαν καταλύῃ τὴν Ἀθήνησιν, ἢ ἀρχήν τινα ἄρχῃ καταλελυμένης τῆς δημοκρατίας, πολέμιος ἔστω Ἀθηναίων καὶ νηποινεὶ τεθνάτω, καὶ τὰ χρήματα αὐτοῦ δημόσια ἔστω, καὶ τῆς θεοῦ τὸ ἐπιδέκατον· ὁ δὲ ἀποκτείνας τὸν ταῦτα ποιήσαντα καὶ ὁ συμβουλεύσας ὅσιος ἔστω καὶ εὐαγής.

Ὀμόσαι δ' Ἀθηναίους ἅπαντας καθ' ἱερῶν τελείων, κατὰ φυλὰς καὶ κατὰ δήμους, ἀποκτενεῖν τὸν ταῦτα ποιήσαντα. Ὁ δὲ ὅρκος ἔστω ὅδε· “κτενῶ καὶ λόγῳ καὶ ἔργῳ καὶ ψήφῳ καὶ τῇ ἐμαυτοῦ χειρί, ἂν δυνατὸς ὦ, ὃς ἂν καταλύσῃ τὴν δημοκρατίαν τὴν Ἀθήνησι. [...]2 2 Nesta citação, [...] indica um recorte meu, e não lacunas no texto antigo. Ἐὰν δέ τις κτείνων τινὰ τούτων ἀποθάνῃ ἢ ἐπιχειρῶν, εὖ ποιήσω αὐτόν τε καὶ τοὺς παῖδας τοὺς ἐκείνου καθάπερ Ἁρμόδιόν τε καὶ Ἀριστογείτονα καὶ τοὺς ἀπογόνους αὐτῶν. [...].

Ταῦτα δὲ ὀμοσάντων Ἀθηναῖοι πάντες καθ' ἱερῶν τελείων, τὸν νόμιμον ὅρκον, πρὸ Διονυσίων· καὶ ἐπεύχεσθαι εὐορκοῦντι μὲν εἶναι πολλὰ καὶ ἀγαθά, ἐπιορκοῦντι δ' ἐξώλη αὐτὸν εἶναι καὶ γένος.

Lei. Foi decidido pelo conselho e pelo povo. A tribo Aiantís exercia a pritania. Cleígenes era secretário. Boetos era epístata. Esta foi a proposição de Demofanto. Este decreto data do conselho dos quinhentos designados por sorteio para o qual Cleígenes foi secretário. Se alguém subverter a democracia ateniense, ou exercer alguma magistratura enquanto a democracia tiver sido subvertida, deverá ser considerado um inimigo dos Atenienses e poderá ser morto impunemente, e suas propriedades devem ser confiscadas pelo povo, com um décimo para a deusa; aquele que assassinar ou auxiliar a planejar o assassinato de quem fizer tais coisas, deverá ser considerado puro e sem mácula.

Todos os Atenienses devem, sobre sacrifícios perfeitos, por tribo e por distrito, jurar assassinar quem fizer tais coisas. O juramento deve ser este: “Eu devo matar, por palavra e por ato, por voto e pela minha própria mão, se eu for capaz, quem quer que subverta a democracia em Atenas. [...] Se alguém morrer enquanto o mata ou tenta matá-lo, devo fazer-lhe bem, a ele e a seus descendentes, tal como a Harmódio e Aristogíton, e os seus descendentes [...]”. Todos os Atenienses devem jurar este juramento sobre sacrifícios perfeitos antes das Dionisíacas; e devem fazer preces para que aquele que mantiver seu juramento tenha muitas coisas boas, mas aquele que perjurar deve ser destruído, ele mesmo e sua família.

(Andoc., De myst., 96-98, tradução minha).

O juramento foi provavelmente integrado no ano de 409 às cerimônias realizadas no teatro de Dioniso imediatamente antes dos concursos musicais que acolhiam as performances trágicas (cf. Wilson, 2009WILSON, P. (2009). Tragic Honours and Democracy: Neglected Evidence for the Politics of the Athenian Dionysia. The Classical Quarterly, v. 59, p. 8-29.). Não nos chegou nenhuma evidência externa que torne possível datar a Electra de Sófocles com precisão. Com base na pouco fiável análise estilística, os helenistas costumam situar Electra na produção sofocliana entre Filoctetes, encenada em 409, e Édipo em Colono, encenada em 406/5 (cf. Dunn; Lomiento; Gentili, 2019DUNN, F.; LOMIENTO, L; GENTILLI, B. (2019). Sofocle: Elettra. Introduzione e commento di Francis Dunn, testo critico a cura di Liana Lomiento, traduzione di Bruno Gentili. Milano, Fondazione Lorenzo Valla/ Mondadori., p. XXIX-XXX). No entanto, mesmo que seja impossível determinar se a Electra antecede ou não o decreto de Demofanto, a questão das datas não altera a constatação de que, no discurso imaginado por Electra nos versos 947-989 da tragédia, a heroína constrói, para a dupla que forma com Crisótemis, uma imagem de “campeãs da democracia”, prevendo honras “nas festas e entre o povo reunido na cidade” (τώδ' ἔν θ' ἑορταῖς ἔν τε πανδήμῳ πόλει, v. 983) graças à “coragem”, ou “virilidade” (ἀνδρείας, v. 983), das duas irmãs.

Na peça, o discurso de Electra não persuade Crisótemis. Em resposta ao plano tiranicida de Electra, Crisótemis a interpela: “Tu não vês? És uma mulher, não um homem/ e tua força é menor que a dos adversários” (οὐκ εἰσορᾷς; γυνὴ μὲν οὐδ' ἀνὴρ ἔφυς,/ σθένεις δ' ἔλασσον τῶν ἐναντίων χερί, v. 997-998). Esta reação de Crisótemis nada tem de surpreendente. Como Ismena em Antígona ou Tecmessa em Ájax, a irmã de Electra é uma coadjuvante da protagonista que se contrapõe à sua argumentação. O que, no entanto, surpreende, é a autoridade que três Comentários à Electra de Sófocles, publicados no século XXI d.C., conferem à fala de Crisótemis. Concentro-me, aqui, nestes Comentários não apenas por economia de tempo, mas sobretudo porque são instrumentos de trabalho imprescindíveis para pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam ao texto de Sófocles, e tendem a ser presença obrigatória nas bibliografias de estudos contemporâneos sobre a peça, ao passo que toda pesquisa sobre Electra precisa fazer uma seleção da miríade de textos que compõem a fortuna crítica sofocliana.

Dos três Comentários, o de Jenny March (2001MARCH, J. (2001). Sophocles’ Electra. Edited with introduction, translation and commentary. Warminster, Aris & Phillips.) é o menos problemático. A autora, que adota a proposta de Juffras sobre a referência às estátuas dos tiranicidas e defende uma leitura “otimista” da peça, no comentário ao verso 997, remete à fala de Ismena nos versos 61-62 da Antígona de Sófocles - “Precisamos ter em mente isso: que somos mulheres, que não lutamos contra homens” (ἀλλ' ἐννοεῖν χρὴ τοῦτο μὲν γυναῖχ' ὅτι/ ἔφυμεν, ὡς πρὸς ἄνδρας οὐ μαχουμένα) - e cita o comentário de Andrew Brown à Antígona, publicado na mesma coleção: “Podemos ter certeza de que poucos homens na audiência de Sófocles teriam questionado a validade disso em algum momento” (Brown apudMarch, 2001MARCH, J. (2001). Sophocles’ Electra. Edited with introduction, translation and commentary. Warminster, Aris & Phillips., p. 200). Eu disse menos problemático porque o comentário de March se refere à fala de Crisótemis, não à de Electra. Finglass (2007FINGLASS, P. (2007). Sophocles’ Electra. Cambridge Classical Texts and Commentaries v. 44. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 403), por sua vez, abre o comentário aos versos 973-985, ou seja, ao “discurso-tis” de Electra, com uma referência à sempre-citada passagem da oração fúnebre de Péricles em Tucídides (2, 45,2) sobre a melhor reputação de uma mulher ser o silêncio sobre ela; mesmo admitindo que “esta não era a palavra final sobre o assunto” (Finglass, 2007FINGLASS, P. (2007). Sophocles’ Electra. Cambridge Classical Texts and Commentaries v. 44. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 403), ele conclui o comentário da seguinte maneira:

Assim, a grande visão de Electra abrange heróis da literatura e da vida real: mas o que torna essa visão impressionante (striking) é sua aplicação a um par de mulheres. É difícil imaginar a provável resposta da audiência - ou um prospecto menos provável para apelar para Crisótemis (Finglass, 2007FINGLASS, P. (2007). Sophocles’ Electra. Cambridge Classical Texts and Commentaries v. 44. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 404).

Já Francis Dunn, em comentário aos versos 975-985, novamente à fala de Electra, observa o seguinte:

Electra quer a ajuda de sua irmã no assassinato de Egisto e faz um apelo à glória que obterão por sua ‘coragem viril’, pelo que seu próprio plano é inverossímil e seu argumento central configura o cenário implausível de duas jovens mulheres que são celebradas por todos devido à sua qualidade viril (2019DUNN, F.; LOMIENTO, L; GENTILLI, B. (2019). Sofocle: Elettra. Introduzione e commento di Francis Dunn, testo critico a cura di Liana Lomiento, traduzione di Bruno Gentili. Milano, Fondazione Lorenzo Valla/ Mondadori., p. 291-292).

Que fique explícito: não se trata, aqui, de acusar individualmente nenhum dos autores dos comentários. Trata-se, antes, de mostrar o peso de um estereótipo. Ou melhor, o peso de um estereótipo antigo sobre a reputação das mulheres em um estereótipo moderno sobre a cidade antiga. A pergunta, que faz eco aos trabalhos de Violaine Sebillotte Cuchet (2015SEBILLOTTE CUCHET, V. (2015). Cidadãos e cidadãs na cidade grega clássica: onde atua o gênero? Revista Tempo, v. 21, n. 38, p. 1-20.; 2016SEBILLOTTE CUCHET, V. (2016). Women and the Economic History of the Ancient Greek World: Still a Challenge for Gender Studies, in LION. B,; MICHEL, C. The Role of Women in Work and Society in the Ancient Near East. Studies in Ancient Near Eastern Records, v. 13, Boston-Berlin, De Gruyter, 2016, p. 543-563, para as referências. Disponível emhttps://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01387030. Acessado em 10/2/2021.
https://halshs.archives-ouvertes.fr/hals...
; 2018aSEBILLOTTE CUCHET, V. (2018a). Gender Studies et domination masculine. Les citoyennes de l’Athènes classique, un défi pour l’historien des institutions. Cahiers du Centre Gustave Glotz. Disponível em http://hal-paris1.archives-ouvertes.fr/halshs-01956493/fr/]. Acessado em 10/2/2021.; 2018bSEBILLOTTE CUCHET, V. (2018b). Quais direitos políticos para as cidadãs da Atenas clássica? Hélade, v. 4, n. 1, p. 143-158.), é: por que os helenistas tomam o estereótipo de gênero veiculado na oração fúnebre de Péricles em Tucídides de forma ingênua, sem atentar para a distância entre a norma estereotipada e as práticas sociais? (sobre essa distância, ver, entre outros, Winkler, 1990WINKLER, J. (1990). The Constraints of Desire. The Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece. New York/London, Routledge., p. 5-8; Boehringer, 2005BOEHRINGER, S. (2005). Sexe, genre, sexualité: mode d’emploi (dans l’Antiquité). Kentron, v. 21, p. 89-90., p. 89-90).

Ora, para permanecer no campo de figurações estatuárias, o espaço público ateniense não era um espaço exclusivamente masculino; além disso, como observa Marta Mega de Andrade:

Entre 400 e 375 a.C., louvores derivados de arete e sophrosyne são direcionados indistintamente a homens e mulheres, assim como diversas outras fórmulas (como “alcançou o termo de todas as virtudes”, ou “desceu ao antro de Perséfone”). E não posso encerrar a questão afirmando que para um homem e para uma mulher, arete e sophrosyne diziam coisas diferentes. Pois, de fato, na paisagem funerária o provável usuário, consumidor, leitor dos monumentos vê a mesma coisa. (Andrade, 2011ANDRADE, M. M. (2011). O espaço funerário: comemorações privadas e exposição pública das mulheres em Atenas (séculos VI-IV a.C.). Revista Brasileira de História, v. 31, n. 61, p. 185-208., p. 201).

É possível objetar, e não sem certa razão, que os comentários à Electra sofocliana concernem especificamente a reivindicação de honras graças à “virilidade” das irmãs. Porém, antes de me voltar para a questão da excepcionalidade das circunstâncias em que Electra se encontra na peça de Sófocles, é importante convocar os trabalhos recentes que, por meio do gênero como ferramenta metodológica, reconfiguram a imagem da cidadania grega antiga. O primeiro capítulo do livro de Josine Blok intitula-se justamente “Repensando a cidadania ateniense” (Blok, 2017BLOK, J. (2017). Citizenship in Classical Athens. Cambridge, Cambridge University Press., p. 1-46). Nele, Blok contrasta a definição de cidadania formulada por Aristóteles na Política com os argumentos proferidos por Euxíteo, no discurso de Demóstenes Contra Eubulides, em que Euxíteo se defende de uma acusação de não ser cidadão. Se a definição aristotélica (Pol. 1275a 22-24) privilegia a participação nos julgamentos e magistraturas, Euxíteo - e nenhuma outra pessoa nos discursos da oratória ática do período clássico que nos chegaram - jamais menciona ter participado como jurado de algum processo ou alguma atuação na assembleia como comprovação de cidadania; ele se esforça em demonstrar que é filho de pai e mãe atenienses legítimos, e cita o fato de ter sido eleito no seu demos para ser um dos candidatos ao sorteio que designaria o sacerdote de Héracles. A definição aristotélica, por suas próprias pretensões teóricas, busca ser aplicável a todas as cidades gregas e, por isso, não corresponde, na prática, à definição de cidade nenhuma. E, como argumenta Violaine Sebillotte Cuchet (2018SEBILLOTTE CUCHET, V. (2018a). Gender Studies et domination masculine. Les citoyennes de l’Athènes classique, un défi pour l’historien des institutions. Cahiers du Centre Gustave Glotz. Disponível em http://hal-paris1.archives-ouvertes.fr/halshs-01956493/fr/]. Acessado em 10/2/2021.a, p. 8), se aplicada às práticas atenienses, a definição teórica de Aristóteles não excluiria da cidadania somente as mulheres, mas também os cidadãos homens economicamente menos favorecidos que tinham menor participação efetiva nos tribunais e assembleias da polis. O que está em jogo aqui é se a definição teórica e institucional de Aristóteles tem o mesmo peso na antiguidade que adquiriu na modernidade; como escreve Blok:

Para o liberalismo do século XIX em particular, a concepção de Aristóteles do cidadão se encaixava muito bem com a imagem do cidadão político. Que em muitas poleis antigas apenas homens livres com alguma riqueza entrassem na categoria do cidadão se adequava ao princípio liberal vigente de um eleitorado restrito. Para os homens da classe governante, a ideia de cidadania como uma participação política compartilhada por iguais livres e exercida pela troca de turnos no governar e ser governado correspondia às suas próprias experiências (2017BLOK, J. (2017). Citizenship in Classical Athens. Cambridge, Cambridge University Press., p. 39).

Voltando ao plano tiranicida de Electra em Sófocles, se admitimos que a cidadania ateniense se flexionava em gênero - πολίτης/ πολῖτις, ἀστή/ἀστός (ver a análise detalhada de Blok, 2017BLOK, J. (2017). Citizenship in Classical Athens. Cambridge, Cambridge University Press., p. 147-186) - e se admitirmos que a visibilidade nos espaços públicos da polis não era uma exclusividade masculina, a decisão de Electra se revela menos “impressionante” do que quando confrontada com uma polis concebida como “um clube de homens”. De certo, a decisão viril de Electra é excepcional, mas essa excepcionalidade decorre da situação em que a heroína se encontra ao acreditar no estratagema da morte de Orestes. Como sugere Helen Foley:

não parece improvável que na Ática clássica, como no Mediterrâneo rural moderno, se percebesse como função de uma filha sobrevivente (ao menos nos mitos e na imaginação cultural, se não ainda mais na realidade) o agir na ausência de todos os parentes masculinos. (2001FOLEY, H. (2001). Female Acts in Greek Tragedy. Princeton, Princeton University Press., p. 161).

Além disso, contra o argumento de Crisótemis, adotado automaticamente por Finglass e Dunn em seus respectivos comentários, de que Electra não dispõe da força física necessária para realizar o plano, vale lembrar que, desde o prólogo da peça, o plano de vingança traçado por Orestes segue as recomendações de Apolo de agir sem exército nem armas, mas sozinho e por dolo (v. 35-37); vale lembrar que, no estásimo seguinte à cena em que Electra não persuade Crisótemis, o coro, formado por mulheres de alta linhagem de Argos, elogia a nobreza de Electra (v. 1081-1095); vale lembrar que a motivação de Orestes para revelar sua identidade à irmã, no episódio seguinte, é sua reação diante da situação de Electra: interpelando-a como “presença destruída com falta de distinções e sacrilégios (Ὦ σῶμ' ἀτίμως κἀθέως ἐφθαρμένον, v. 1181), o jovem Orestes se choca com o fato de sua irmã ter sido criada sem perspectiva de casamento (Φεῦ τῆς ἀνύμφου δυσμόρου τε σῆς τροφῆς, v. 1183); e vale lembrar que a própria Electra diz viver servindo como escrava os assassinos de seu pai (τοῖσδε δουλεύω βίᾳ, v. 1193). Na perspectiva da prole de Agamêmnon, Clitemnestra e Egisto agem como tiranos também por transgredirem os costumes ao tratar as jovens de alta linhagem como servas.

Ora, a descrição da situação excepcional de Electra na cena de reconhecimento dos irmãos - anunciada no final do prólogo (v. 77-82), mas mantida em suspense até o quarto episódio - insiste na falta de perspectiva de casamento e retoma precisamente a argumentação de Electra no discurso-tis (v. 958-967). E, aqui, é imprescindível lembrar que uma oposição entre “público” e “privado” (ou “Estado” e “família”) remete muito mais a certas sociedades modernas do que às cidades gregas antigas: em Atenas, como em outras cidades, as estruturas de pertencimento à polis se utilizam de um léxico do parentesco; as famílias atenienses eram agrupadas em fratrias, associações que regulavam o nascimento de atenienses legítimos (de ambos os sexos), tanto pela reconhecimento das crianças nascidas, quanto pelo reconhecimento dos casamentos de seus membros, anualmente apresentados no festival das Apaturias3 3 A participação na festa das Apaturias, que integra os calendários cívico-religiosos de diversas cidades jônicas, funcionaria, assim, como o equivalente de uma “certidão” de nascimento ou de casamento. (sobre a importância do - e as analogias com o - parentesco no molde das solidariedades cívicas atenienses, cf. Blok, 2017BLOK, J. (2017). Citizenship in Classical Athens. Cambridge, Cambridge University Press., p. 100-138). Se, nas falas de Orestes durante a cena de reconhecimento em Sófocles, a ausência de noivado (anymphos) se vincula a uma destruição que se realiza de modo atimos e atheos (lit. sem time, “estima social” ou “distinção,” e sem divindade, i.e. sem considerar os laços de uma linhagem com os cultos que garantem a prosperidade da polis), e se, em seu discurso-tis, Electra se queixa de ter sido desprovida das posses paternas e da possibilidade de um casamento por Egisto, é justamente porque o casamento das filhas de Agamêmnon é uma questão política em Argos. O plano tiranicida da heroína iludida pelo plano de Orestes é a fala de uma princesa disposta a arriscar a vida em nome da responsabilidade social e política de não deixar morrer sua linhagem, atualizada pela ideologia democrática ateniense do século V a. C., que, como vimos, garante honras públicas aos tiranicidas.

Deste modo, novamente contra o argumento de Crisótemis nos versos 997-998, vale lembrar que Electra, logo após descobrir que seu irmão não está morto, mas vivo em Argos planejando a vingança, dá a notícia às mulheres que compõem o coro interpelando-as na qualidade de politides, “cidadãs” (1227), no feminino; vale lembrar que no kommos, no diálogo lírico em que cantam Electra e Orestes logo em seguida, quando Electra afirma não considerar digno temer Clitemnestra, Orestes responde que “também nas mulheres Ares habita” (κἀν γυναιξὶν ὡς Ἄρης/ ἔνεστιν, v. 1243-1244); vale lembrar, por último, que após o assassinato de Egisto, a peça se encerra com apenas três versos do coro que celebram a ἐλευθερία, a liberdade política, da descendência de Atreu (v. 1508-1510), sem referências explícitas à perseguição de Orestes pelas Erínias, divindades responsáveis por vingar o sangue derramando no interior das famílias. Como se, em Sófocles, a reconfiguração do matricídio em tiranicídio, garantisse, do mesmo modo que no decreto de Damofanto, que o assassino seja considerado puro (hosios) e sem mácula (euages)4 4 A proposta de uma reconfiguração do matricídio em tiranicídio na peça de Sófocles se vincula a uma interpretação “otimista” da peça; para um resumo das leituras “otimistas” e “pessimistas” de Electra, ver Finglass 2007, 8-10; MacLeod, 2001, p. 4-20. .

Para concluir, se a “virada pragmática” nas Humanidades e Ciências Sociais em geral, e nos estudos de gênero em particular, nos convida a considerar os implícitos discursivos ao analisar os textos, as perguntas “quem diz o quê para quem? a partir de qual lugar? e em qual circunstância?” devem ser dirigidas não somente aos textos antigos, às fontes, mas igualmente aos estudos modernos que comentam tais textos. O construto moderno da total exclusão feminina do político acaba por excluir as mulheres não apenas das instituições políticas a que de fato elas não tinham acesso - tribunais e assembleias - mas também, equivocadamente, das práticas sociais da polis que definem a cidadania na concepção antiga do termo. E, no jogo de espelhos que fazem da Grécia antiga este passado ideal que pode ser considerado um verdadeiro mito de fundação do Ocidente, a polis antiga concebida como “clube de homens” amplia e perpetua retroativamente uma concepção do político liberal e moderna em uma ilusão de continuidade projetada por séculos.

Bibliografia

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  • 1
    Exceto indicação contrária, o texto dos autores antigos foi retirado das edições utilizadas pelo TLG, Thesaurus Linguae Graecae® Digital Library.
  • 2
    Nesta citação, [...] indica um recorte meu, e não lacunas no texto antigo.
  • 3
    A participação na festa das Apaturias, que integra os calendários cívico-religiosos de diversas cidades jônicas, funcionaria, assim, como o equivalente de uma “certidão” de nascimento ou de casamento.
  • 4
    A proposta de uma reconfiguração do matricídio em tiranicídio na peça de Sófocles se vincula a uma interpretação “otimista” da peça; para um resumo das leituras “otimistas” e “pessimistas” de Electra, ver Finglass 2007FINGLASS, P. (2007). Sophocles’ Electra. Cambridge Classical Texts and Commentaries v. 44. Cambridge, Cambridge University Press ., 8-10; MacLeod, 2001MACLEOD, L. (2001). Dolos and Dike in Sophokles’ Elektra. Leiden, Brill ., p. 4-20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
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