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Arqueologia da percepção: as videoinstalações de André Parente

Archeology of perception: video-installations of André Parente

Resumos

As imagens espacializadas das videoinstalações de André Parente apontam para o problema da visão e estabelecem analogias com os discursos e práticas do início do século XIX, interessados na visão subjetiva e na percepção não verídica do mundo. A percepção não verídica nas instalações de André Parente, entretanto, não exclui o corpo e nem mesmo a referência do presente atual. Tampouco afirma a mentira, o sonho ou a ficção como a dimensão subjetiva para a expressão na arte. Parente opta pela dimensão temporal da imagem como a fonte e o modelo para a subjetividade e a visão na atualidade.

arte contemporânea; videoinstalação; percepção; subjetividade; imersão


The spatialized images created by André Parente in his video-installations suggest the problem of vision and establish analogies to the theme as it appeared in discourses and practices from the beginning of the XIX century, with their interest in subjective vision and non-veridical perception of the world. The non- veridical perceptions in André Parente's installations, however, exclude neither the body nor the reference to present time. Those don't affirm the lie, the dream or fiction as the subjective dimension of expression in art. Parente chooses the temporal dimension of the image as source and model for today's subjectivity and vision.

contemporary art; video-installations; perception; subjectivity; imersion


TEXTOS / ENSAIOS

Arqueologia da percepção: as videoinstalações de André Parente

Archeology of perception: video-installations of André Parente

Luiz Cláudio da Costa

RESUMO

As imagens espacializadas das videoinstalações de André Parente apontam para o problema da visão e estabelecem analogias com os discursos e práticas do início do século XIX, interessados na visão subjetiva e na percepção não verídica do mundo. A percepção não verídica nas instalações de André Parente, entretanto, não exclui o corpo e nem mesmo a referência do presente atual. Tampouco afirma a mentira, o sonho ou a ficção como a dimensão subjetiva para a expressão na arte. Parente opta pela dimensão temporal da imagem como a fonte e o modelo para a subjetividade e a visão na atualidade.

Palavras-chave: arte contemporânea; videoinstalação; percepção; subjetividade; imersão

ABSTRACT

The spatialized images created by André Parente in his video-installations suggest the problem of vision and establish analogies to the theme as it appeared in discourses and practices from the beginning of the XIX century, with their interest in subjective vision and non-veridical perception of the world. The non- veridical perceptions in André Parente's installations, however, exclude neither the body nor the reference to present time. Those don't affirm the lie, the dream or fiction as the subjective dimension of expression in art. Parente chooses the temporal dimension of the image as source and model for today's subjectivity and vision.

Keywords: contemporary art; video-installations; perception; subjectivity; imersion

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Fundador do Núcleo de Tecnologia da Imagem da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, André Parente vem atuando como artista em linguagens híbridas que convergem o cinema, as novas mídias, bem como as artes visuais. Com um currículo extenso tanto na pesquisa universitária como nas artes, Parente tem diversos livros publicados que tratam do problema da imagem produzida tecnicamente. Como artista seu currículo apresenta várias exposições individuais e coletivas no Brasil e em países como França, Alemanha, México, Espanha, entre outros. Parente é detentor de prêmios importantes, como o Sérgio Motta de Arte e Tecnologia (2005), dois prêmios da Petrobrás (2004 e 2006) e, ainda, outro do Itaú Cultural (2002). O artista explora em sua produção o dispositivo cinematográfico em relação a um espectador nas condições do espaço de exposição da arte (o museu, a galeria, etc.). Segundo Philippe Dubois, o efeito-cinema causado pela emergência do cinema de exposição com suas imagens espacializadas coloca em evidência o lugar do espectador que deixa a "grande sala escura e comunitária" em troca de "uma visão mais individualizada", na brancura do espaço do museu.

As imagens espacializadas das instalações de vídeo de André Parente parecem colocar mesmo o tema da visão, mas operando um retorno ao problema tal como ele surgiu no início do século XIX: a visão subjetiva e a percepção não verídica do mundo. Os saberes, incluindo a arte, vivenciavam naquele momento uma crise da representação clássica, o que abriu caminho para as novas concepções da subjetividade. O observador específico do século XIX é efeito de uma rede heterogênea de relações sociais, discursivas, tecnológicas e institucionais. Segundo o historiador Jonathan Crary, o que surge de singular naquele momento é a emergência do corpo como um aparato fisiológico. Havia um papel produtivo do sujeito no processo da visão ainda que, uma experiência visual também pudesse ser produzida para o sujeito como ordem e força de um poder disciplinar. No início do século XIX, com os estudos da separação dos sentidos e da persistência da imagem na retina, a concepção do novo observador resulta numa visão subjetiva "sem necessária conexão com o ato de olhar".

As condições que fizeram surgir uma subjetividade moderna não são do final do século XIX, mas dos primeiros decênios. Assim, quando Manet apresentou suas telas "Almoço na relva" em 1863 e "Olympia" em 1865, quando Eadweard Muybridge produziu as primeiras fotografias de exposição rápida do galope de um cavalo em 1878 e, ainda, quando as primeiras imagens do cinema dos irmãos Lumière foram projetadas no Grand Café em Paris em 1895, as novas condições da percepção moderna já estavam solidificadas. O modelo da câmera obscura que havia servido para a constituição da subjetividade desde o século XVI entrara em crise definitivamente. A visão concebida no século XIX, designada por Jonathan Crary como "não verídica", é instalada no corpo como uma capacidade inata de ser afetada por sensações não necessariamente relacionadas ao referente. Esse modo da visão é a "condição de possibilidade para as experimentações artísticas do modernismo", ainda que a separação do referente viesse, aos poucos, a ser acompanhada de um afastamento do corpo, levando a arte moderna a culminar numa produção abstrata. A reação pós-moderna iria revelar um novo lugar para o corpo, especialmente, nas artes voltadas para o ambiente e o contexto, mas também na escultura, nos happenings e na performance.

A percepção não verídica nas instalações de André Parente não exclui o corpo e nem mesmo a referência do presente atual. Tampouco afirma a mentira, o sonho ou a ficção como a dimensão subjetiva para a arte. Parente opta pela dimensão temporal da imagem como a fonte e o modelo para a subjetividade e a visão na atualidade. Definida por Gilles Deleuze a partir das teorias de Henri Bergson, a imagem-tempo é essa em que se pode ver a cisão do passado e do presente. Ela exige um observador cuja atenção não depende apenas de suas funções motoras, na medida em que seu reconhecimento do mundo e das coisas percebidas não se prolonga num movimento como resposta do corpo, numa ação útil. O sujeito que percebe relaciona a imagem percebida a outras imagens virtuais e ausentes provenientes da memória, do passado. O tempo de que fala Deleuze não é o interior em nós, mas "a interioridade na qual estamos, vivemos e mudamos". Nas instalações de Parente, a imersão do corpo na interioridade do tempo é fundamental. A interatividade motora estabelece apenas o primeiro momento da relação corporal do espectador com o espaço e o tempo imediatos e atuais onde ele se encontra. Mas as imagens que ele vê diante de si no espaço produzem uma ausência que força a ativação de outro regime de percepção, outra relação do corpo com o mundo em volta. Imerso no espaço das imagens, o espectador as percebe como presenças fora de si, um fluxo que afeta seu corpo e o convoca a ver, numa perspectiva bifurcante, o tempo, este tempo.

É nesse sentido que o trabalho de André Parente necessita de imagens de arquivo do cinema, do discurso da História da Arte, da ficção, bem como da presença atual dos dispositivos de visão para produzir no espectador uma visão do tempo, uma experiência de imersão na interioridade do tempo, através de relações com o passado. Em 1980, André fez o filme Na Arte, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma (1980, 35mm, 18 min.) que documenta a exposição de Essila Paraíso, "A História da Arte" (FUNARTE, 1980). A exposição de Essila Paraíso elabora o estatuto do objeto de arte como mercadoria, através de objetos apropriados. A narração em voz over conta uma História da Arte contínua e linear a partir de objetos que atravessaram os tempos, começando no Egito, passando pela Grécia e pelo Renascimento, até chegar aos tempos modernos. A ironia ocorre quando percebemos que os objetos mostrados não são de fato obras de arte, mas artigos banais encontrados em qualquer mercado com estampas que reproduzem obras. Essas mercadorias não terão duração suficiente para contarem a história de si mesmas. Uma tal condição da arte fica sempre excluída das narrações da história, o que é explicitado no filme somente pelos objetos recolhidos por Essila Paraíso. Há, porém, outra ambiguidade, que aparece no título do filme, pois se por um lado na arte "nada se perde" no sentido de que as sensações da obra podem durar, por outro, "nada se perde" porque a arte passou a aceitar a condição temporal de seus objetos: "tudo se transforma". Com efeito, Na Arte, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, elaborada em 2006 como videoinstalação interativa, é uma variação do filme que já traduzia de forma criativa o trabalho de Essila Paraíso.

Marcel Duchamp parece ter condenado a obra de arte a uma efemeridade com seus ready-mades e desde as vanguardas a arte não mais acredita senão em efeitos sensíveis de duração limitada. Discutindo essa impermanência, Harold Rosenberg problematizou as questões radicais de Duchamp através da prática insistente da circulação de obras em reproduções. Talvez o que Rosenberg não computou em sua crítica sobre essa circulação é a imensa capacidade de sobrevida da obra de arte na contemporaneidade. Invertendo seu destino em direção à vida, a obra pode desdobrar-se em reproduções, traduzir suas imagens de um formato a outro e mudar o modo da recepção segundo o espaço expositivo, bem como transformar a relação do espectador com a obra segundo o suporte e o contexto em que é apresentada. A apropriação, a reprodução, a coleção, a tradução e a transferência multiplicam as atualizações possíveis da obra e permitem uma circulação, não diluindo seu "poder estimulante", ainda que o transformem. Essa potência de desdobramento da obra, transformando sua aparência e modo de recepção é algo constante na poética de Parente. Vários de seus trabalhos têm sido submetidos a transformações diferenciadas. Cito alguns: Curto-Circuito (1979, 35mm, preto e branco, 14 min.) foi originalmente produzido para apresentação em sala de cinema e se tornou uma vídeoinstalação em 2007 na exposição "Situação Cinema" (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro); O santo sem cabeça (2005, DV, 6,40 min.) virou vídeoinstalação em 2007 na exposição "Situação Cinema"; Circuladô (2007) já foi apresentado como vídeo, mas também como instalação interativa.

O passado aparece em outros trabalhos de André Parente. Belvedere (2010), videoinstalação feita a partir do lugar da exposição "Tempo-Matéria" (Museu de Arte Contemporânea, MAC-Niterói), era composta de duas partes. A primeira consistia de uma projeção da paisagem externa do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, criando a ilusão de que uma parede havia sido retirada para deixar a paisagem externa ser vista do interior da galeria sem janelas do Museu. A segunda parte mostrava uma série de fotografia do Belvedere da Estrada Rio-Petrópolis, cuja forma arquitetônica se assemelha a do MAC-Niterói. Algumas dessas imagens foram apropriadas da internet e mostravam um passado recente, mais glamuroso, da cidade do Rio de Janeiro. Outras tinham sido tiradas no presente e mostravam o Belvedere abandonado, degradado. A obra problematizava o presente e o passado do Belvedere de Petrópolis e a imagem atual do MAC, o Museu, seu espaço de exposição de arte. A visão, porém, suas ilusões e enganos, sua verdade e seu erro, era também um tema evidente em Belvedere.

Outros trabalhos de André Parente colocam o problema da história da percepção como um saber da visão, mas de modo a estabelecer uma espécie de arqueologia artística desse saber. O século XIX, época de muitas invenções de instrumentos de visão e de pesquisas científicas variadas voltadas para o assunto, mostra-se significante, na medida em que aquele momento fundara as bases da visão subjetiva moderna. Se tomarmos como parâmetro a instalação Circuladô apresentada na exposição "Vista a dos" (Buenos Aires, 2010), poderemos compreender melhor a argumentação. Consta no site do artista que o trabalho projetado em 2006 era "baseado no Zoetrope (a 'roda do diabo')". A contar pelo apelido dado por seu inventor (o que o artista enfatiza com as aspas), o zoetrope aludido é aquele desenvolvido em 1834 pelo inglês William George Homer que descreveu seu invento no livro Daedaleum, a new instrument of optical illusion. Vários outros instrumentos de ilusão ótica estavam aparecendo naquela primeira metade do século XIX, incluindo o phenakistiscope criado dois anos antes do Zoetrope pelo físico anatomista estudioso do problema da persistência da imagem na retina, o belga Joseph Plateau.

O século XIX parece de fato interessar ao artista, a ponto de levá-lo a criar também um instrumento de visão. Seu Visorama é, entretanto, um aparelho binocular que utiliza softwares para visualização de ambientes virtuais. Criado pelo artista com o auxílio de matemáticos pesquisadores do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), o Visorama é utilizado na exposição "Vista a dos" para a instalação Figuras na paisagem. Esse instrumento binocular de visualização permite que o artista construa diferentes instalações com conteúdos e montagens variadas. Em 2000, serviu à instalação Paisagem carioca, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mas também na exposição "Situação Cinema" com imagens autorreflexivas da montagem. Durante sua pesquisa de pós-doutorado, Parente concebeu outra instalação com seu aparelho binocular. Visorama-Lumière teria sido apresentada em 2005 na Maison Européenne de la Photographie se o aparelho não tivesse sofrido danos irreparáveis em sua chegada a Paris. A instalação Visorama-Lumière ainda espera a oportunidade de ser apresentada ao público. Com imagens dos irmãos inventores do cinematógrafo, Visorama-Lumière remete aos panoramas tão populares no século XIX, primeiramente produzidos com pinturas circulares e, logo em seguida, com fotografias. Louis Daguerre concebeu um desses espaços de espetáculos para visão panorâmica, o Diorama, antes mesmo de entrar para a história como um dos inventores da fotografia.

Figuras na Paisagem, originalmente apresentada em 2010, coloca mais explicitamente em evidência o problema da situação do observador. A observação da paisagem e a navegação dos ambientes apresentados são feitas através do dispositivo Visorama que permite a aproximação da imagem, bem como a ativação de vídeos e sons. Os principais ambientes são uma biblioteca e uma praia carioca. Em cada um desses ambientes pode-se ouvir alguns textos e narrativas de autores consagrados, dentre os quais Santo Agostinho, Macedonio Fernández, Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), Italo Calvino. Todos os trechos ouvidos tocam no tema do ato de ler ou de observar. A leitura, bem como a observação, é compreendida no trabalho como um ato produzido pelos olhos, mas que se diferencia da simples contemplação, na medida em que o ato de ler é uma análise das condições de observação, isto é, do lugar, da posição do sujeito observador. Ouvimos as palavras de Santo Agostinho descrevendo as leituras silenciosas de Ambrósio: "Quando lia, seus olhos percorriam as páginas e seu espírito penetrava-lhes o sentido, mas sua voz e sua língua repousavam". O trecho de Italo Cavino é ainda mais esclarecedor do problema envolvido no trabalho de Parente, pois trata da leitura do visível, da paisagem como objeto de observação. Nas palavras do narrador, o Sr. Palomar "pretende observar uma onda e observa-a". O personagem "não está contemplando, porque para a contemplação é necessário um temperamento adequado, um estado de espírito adequado e um conjunto de circunstâncias externas adequadas" e nenhuma dessas três condições podem ser verificadas no seu caso. A observação não pressupõe mais uma posição adequada diante da imagem, isso porque observar é antes fazer uma leitura da paisagem.

Em Figuras na paisagem, André Parente coloca seu espectador em duas situações possíveis. Numa delas, ele simplesmente olha através do binóculo, mas na outra o espectador olha aquilo que um outro vê através do binóculo, observando as aproximações e movimentos da imagem que o primeiro produz. Observar como um ato de leitura é ver vendo-se no ato mesmo de olhar. Outros trabalhos do artista tematizam esse "campo nocional" da figura na paisagem. O termo "figura" do título do trabalho é, numa abordagem, o corpo que se pode ver figurado na paisagem mostrada; noutra leitura, o termo significa a metáfora mesma do observador da paisagem. O trabalho mostra a consciência do artista sobre a relação entre a paisagem e a formação da subjetividade. A paisagem não é simplesmente uma parte da natureza, mas um conjunto de valores ordenados em uma visão que nada tem de natural. Perceber e sentir a natureza dependem de uma aprendizagem, o que no Ocidente tem uma genealogia que envolve a História da Arte, ainda que não unicamente. Como afirma Anne Cauquelin: "a tecnologia põe a paisagem a salvo de um retorno a uma natureza da qual ela, a paisagem, seria o equivalente exato". Parente expõe o artifício da paisagem como um constructo de formação de nossos modos de ver e de sentir.

Outro trabalho de Parente, Estereoscopia, mostra seu interesse por aquele século de invenções de aparelhos de visão, contexto de formação da subjetividade e da percepção modernas. Nesse trabalho, duas figuras num caminho de palmeiras se entreolham, um a cada vez, como na construção campo/contra-campo banalizada pelo cinema tradicional. O sujeito que vê é constituído por infinitas imagens daquele que é visto. A face daquele que olha no campo da imagem é uma repetição infinita de fragmentos da face daquele que é objeto da percepção do primeiro. Esse movimento de olhar e ser olhado, num sujeito que se bifurca transformando-se em um outro, ocorre continuamente pelo artifício do looping. Os limites do sujeito e do objeto ficam indeterminados no âmbito da percepção. Uma flutuação parece ocorrer na imagem. Entre o sujeito que percebe e o sujeito que é percebido há apenas um movimento infinito de idas e retornos na imobilidade dos lugares ou posições que se repetem e se alternam. Se o sujeito percebe de uma posição perspectivada, este lugar, na instalação de Parente, é instável, ora subjetivo, ora objetivo; um lugar concebido como espaço dinâmico e temporal onde ocorrem repetições e transformações.

O instrumento para visão estereoscópica foi inventado por Charles Wheatstone em 1838 e popularizada como máquina fotográfica estereoscópica por David Brewster, na segunda metade do século XIX, tornando-se um grande fenômeno de massa. A estereoscopia cria um efeito de relevo ou trimendimensionalidade, na medida em que envolve necessariamente a binocularidade e, consequentemente, a síntese de duas imagens díspares. Ainda que o título do trabalho de Parente remeta ao instrumento do século XIX, Estereoscopia tem referências também mais recentes. No âmbito da tecnologia, o artista percebe um vínculo com a imagem fractal, uma vez que o todo da imagem é constituído pela repetição de pequenos fragmentos. Mas a referência artística contemporânea pode ser encontrada em dois outros trabalhos conhecidos do público de arte no Brasil: Especular (1978), um vídeo de Letícia Parente, apresenta duas pessoas experimentando uma espécie de estetoscópio de dois lados, um objeto relacional semelhante àqueles propostos por Lygia Clark, especialmente, e Óculos, de 1968. Nos dois trabalhos históricos os participantes utilizam instrumentos pseudo-científicos com o objetivo de se renderem a experiências sonoras ou visuais compartilhadas. Na instalação de André Parente, não há um instrumento utilizado pelas figuras, mas os personagens repetem em variações diferenciadas a frase ouvida em Especular: "Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim dentro de você", "Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim do que eu estou ouvindo de você dentro de mim". Esses três trabalhos tematizam a subjetividade como produzida na relação com o outro e no fluxo indeterminável entre interioridade e exterioridade.

O que se percebe é que a referência ao século XIX nos trabalhos de André Parente só interessa na medida em que ela permite ao artista produzir outra imagem da subjetividade e novos modos de ver, pertinentes à contemporaneidade dos dispositivos digitais de produção de imagem. Por isso, suas referências se deslocam também na direção do cinema. O cinema está presente desde o início da carreira profissional do artista. Seus primeiros trabalhos foram feitos em super-8: A Morte da Galinha em Sabinopolis (1976), Mau-á (1977), Canoa Quebrada (1978) e Fome (1978). Em 1979, produziu um filme conceitual, em que o dispositivo cinematográfico e seu modo de dar a ver a imagem são refletidos. Os Sonacirema (anagrama perfeito de "os americanos") é descrito pelo próprio artista como um falso documentário, no qual "os espectadores são os verdadeiros objetos do filme". Ao contrário de seus trabalhos ulteriores, nesse filme não há qualquer imagem capturada pela câmera e, tampouco, montagem de moviola, pois o filme utiliza apenas pontas pretas e transparentes. O espectador recebe apenas a luz e a escuridão no ritmo proposto pelo filme. Parente também havia trabalhado com o portapack da Sony no final da década de 1970, produzindo dois vídeos com Letícia Parente, O Homem do Braço e o Braço do Homem e Onde. Mas a partir da década de 1990, seus vídeos mostram a contaminação de sua poética com o cinema de uma maneira decisiva. Em Extremidades do Vídeo, Christine Mello argumenta que a linguagem do vídeo, híbrida, impura e heterogênea, é hábil em recodificar experiências e manifestações criativas diversas. Na condição de uma linguagem de contaminação, o vídeo observa as pontas extremas, as zonas-limites e se interconecta com práticas variadas. As videoinstalações de André Parente parecem tender para um dos extremos dessa imagem em movimento, agregando-se ao cinema e, especialmente, à produção cinematográfica do pós-guerra, cujos personagens tornaram-se videntes, mais que agentes. As razões para a escolha dessa cinematografia moderna podem ser óbvias, mas vale ressaltar que o cinema clássico da primeira metade do século XX articulou imagens que pareciam retomar a representação mimética e reencarnar o papel da câmera obscura na concepção de uma visão transparente do mundo.

As imagens de Circuladô apresentam corpos em movimentos circulares contínuos e foram apropriadas do arquivo da cultura cinematográfica moderna do pós-guerra. Tecnologicamente elas remetem reflexivamente ao looping, procedimento bastante utilizado pelas instalações de vídeo contemporâneas, inclusive por Parente. Os personagens de Circuladô giram em experiências limites: a morte de Corisco do filme de Glauber Rocha Deus e o Diabo na terra do sol (1964); o transe de um praticante de surf do documentário de Bill Morrison Decasia. The State of Decay (2002); o delírio de Édipo no filme Édipo Rei (1967), de Pier Paolo Pasolini. O transe, a histeria, a loucura e a morte iminente são estados de perturbação da atenção muito constantes nas descrições dos psicólogos do século XIX. O problema da atenção está entrelaçado, embora não seja coincidente, com a história da visualidade do fim do século XIX. No postulado de W.

Wundt, o psicólogo alemão descreve "a atenção como uma das funções mais integrativas em um organismo". As teorias da época compreendem, no entanto, que para se alcançar a claridade e o foco restrito característicos da atenção "vários outros processos sensórios, motores e mentais eram inibidos". A atenção e a distração não eram consideradas como dois estados essencialmente diferentes, mas um processo dinâmico, um continuum de aumento e diminuição do foco de atenção. O fato é que o enfraquecimento da atenção e as formas de fragmentação e desagregação da percepção permitiam novas concepções da subjetividade. Se a atenção voluntária podia orientar as tarefas e comportamentos desenvolvidos, a atenção automática passiva incluía os estados de fantasia e devaneio. Na instalação Circuladô, as imagens - pelo menos as do cinema de Glauber Rocha e de Pasolini - pertencem ao regime de "subjetiva indireta livre" que o cineasta italiano descreveu em seu clássico artigo, "Cinema de poesia". No regime indireto livre da percepção cinematográfica não é mais possível a homogeneização do mundo objetivo percebido por um sujeito íntegro, na medida em que o ato discursivo afirma-se como "um sistema sempre heterogêneo, distante do equilíbrio". Agora a visão diferida se desdobra na visão de outros, superando o limite estável das posições do sujeito e do objeto. Circuladô encena essa visão heterogênea de sujeitos diferenciados ao apropriar-se das imagens de três cineastas e inseri-las no contexto da sua instalação.

Em Circuladô, umas imagens são documentais, outras, ficcionais. Mesmo que saibamos em qual gênero podemos classificá-las, essa função classificatória perdeu qualquer sentido. A verdade de Édipo, de Antônio das Mortes ou do praticante de surf, não está vinculada ao fato de ser ficção ou documentário. O transe dessas personagens leva a percepção dos limites objetivos à falência e permite que o sentido das imagens possa errar sem que exista um ponto de fuga fixo, um lugar correto para sua estabilização. Promovendo o transe das imagens, Parente estabelece uma contaminação dos dois gêneros de narrativa, ficção e documentário. Com efeito, de acordo com a lógica da visão clássica da identificação baseada em limites precisos, esses gêneros correspondem a dois modos de ver distintos, um subjetivo e ficcional, o outro, objetivo e documental. Pela lógica da contaminação, ao contrário, o transe funda uma nova subjetividade e, consequentemente, um novo modelo para a visão. Ver o mundo em sua referencialidade significa ativar a potência de uma imaginação não mimética que possa constituir descrições não verídicas do mundo. O transe dos personagens, o turbilhonamento das imagens, cria uma ausência do presente imediato, envolvendo o espectador em imagens virtuais do cinema moderno. Nessas ausências do presente, nessas rupturas ou perturbações da atenção, o sujeito espectador se transforma. Ele deixa o simples jogo sensório-motor da interatividade que com seu corpo aciona a manivela promovendo a interrupção ou substituição das imagens projetadas. Desse modo, a cada repetição automática da atividade interativa, o espectador vai perdendo seu lugar, sua posição, seu foco. Aos poucos, sua atenção torna-se instável, transitória, como a dos personagens. As condições de uma percepção não verídica estão constituídas. O mundo não é o objeto externo de uma visão interior. Não há espaço para a constituição de uma representação verídica. A visão, tampouco, se tornou autônoma e despregada da realidade referencial dos dispositivos como aquela do século XIX. A realidade referencial está ali presente e atual, relacionada ao corpo do espectador que interage com aqueles instrumentos a sua disposição, que age e atua como um operador de máquinas. Mas agora, atingido pela perturbação dos transes e loucuras, ele descobre um mundo entre o documento e a ficção. Entre esses dois modos genéricos da imagem, existe outra dimensão dinâmica e temporal de transformação contínua.

A perspectiva bifurcante da visão que propõe as vídeoinstalações de Parente fica ainda mais clara no trabalho Entre-Margens, onde o espectador se coloca entre duas imagens. Entre-Margens é uma instalação em que o espectador se coloca entre duas imagens. Numa delas, ele vê um rio; na outra, a terra. Uma pode remeter ao campo e, a outra, ao contra-campo. Mas quem olha? O corpo do observador, entre as duas imagens, é presente e atual, mas é a ausência o que ele pode ver nas duas imagens. Com efeito, se as águas do rio são o que se vê no campo de visão, o contra-campo não mostra o sujeito que as percebe. Esse não está na imagem, mas no exterior. Atual e presente, o espectador se dá conta de que ele é o exterior da imagem, aquilo que ela busca incessantemente entre suas margens. Na instalação ouvimos sussurrar o conto de João Guimarães Rosa, "A Terceira Margem do Rio", história de um pai que parte em uma canoa enquanto o filho, a irmã e a mãe ficam à espera de seu retorno. Mas é difícil ter clareza sobre o que ocorre de fato neste clássico conto da literatura moderna brasileira, pois como enuncia o narrador: "Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte". O pai do narrador "só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa". Essa é a descrição de um "tempo espera" em que tudo parece parar, onde o tempo que passa, também permanece. As duas imagens da instalação de Parente criam essa experiência para o espectador que está entre o fluxo das águas e a terra sólida. Nessa vídeoinstalação, o espectador não se constitui como uma interioridade, mas está no interior desse tempo. A solidez da terra se desmancha na panorâmica infinita. A paisagem se move. Entre o rio e a terra que fluidamente se transformam um no outro, o espectador, na instabilidade de sua perspectiva bifurcada, entre a terra e as águas, descobre a dimensão virtual de seu atual. Perceber é ter um corpo no presente, mas o presente é um tempo complexo, envolvido em presentes que passam e passados que permanecem. Enquanto o espectador olha para a projeção diante de seus olhos, aquela que ficou atrás de seu corpo já mudou. Esse estado repetitivo e fluido cria toda a instabilidade que constitui novos modos de perceber. Sua capacidade de ver torna-se potência de fabular nas brechas do presente.

A arqueologia da percepção que se percebe nos trabalhos de André Parente por conta de um retorno ao século XIX importa para articular uma descontinuidade no modo de ver da contemporaneidade em relação à visão moderna que se separou do corpo e fez ausentar o referente para construir suas imagens abstratas. Nos tempos pós-modernos o referente é considerado fundamental. André Parente reconhece a importância do corpo e do referente para a produção de suas vídeoinstalações, mas não retorna à noção de visão como interioridade de um sujeito, submetido ao modelo da câmera obscura e suas pretensões à transparência e objetividade. A visão não verídica das instalações de Parente pertence a um corpo que interage com o espaço instalativo e se vê imerso na interioridade do tempo. Esse é um corpo que não tem lugar fixo, como aquele da sala de cinema, mas um corpo que movendo-se pode relacionar-se com a imagem externa como sensações de seu corpo. Esse é um sujeito que começa por interagir de maneira motora e termina descobrindo o tempo virtual das imagens-tempo.

Bibliografia complementar

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Luiz Cláudio da Costa é graduado em Letras pela University of Northern Iowa, Estados Unidos e doutor em Comunicação/Cinema pela UFRJ. Professor do Instituto de Artes da UERJ, é atualmente o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ e vice-presidente da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes (ANPAP). Publicou os livros Cinema brasileiro, anos 60/70: dissimetria, oscilação e simulacro (Sete Letras, 2000), Dispositivos de registros na arte contemporânea (Contra Capa, 2009), Tempo-Matéria (Contra Capa, 2010). É membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas e da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (ANPAP) e pesquisador com bolsa PROCIÊNCIA (UERJ/FAPERJ).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    2011
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