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Da oferta à recusa: sobre os desaparecimentos imaginários do Monumento às Bandeiras

From offer to refusal: on the imaginary disappearances of the Monument to the Bandeiras

De la oferta al rechazo: sobre las desapariciones imaginarias del Monumento a las Bandeiras

Resumo

Este artigo discute aspectos dos discursos que acompanharam a proposição do projeto do Monumento às Bandeiras por Victor Brecheret, em 1920, e a inauguração da obra, em 1953, destacando dois pontos: por um lado, a percepção do monumento como oferta dos paulistas à nação brasileira; por outro, a cena de sua destruição, imaginada por Oswald de Andrade cerca de um ano depois da primeira apresentação do projeto. Partindo dessa discussão, investigo como a imaginação de sua destruição ou de seu desaparecimento se projeta novamente sobre o monumento desde os anos 1970, agora com a obra já concretizada, a partir tanto de trabalhos de artistas contemporâneos quanto de uma intervenção realizada diretamente sobre a escultura em 2013.

Palavras-Chave:
Modernismo brasileiro; Victor Brecheret; Monumento às Bandeiras; Arte contemporânea brasileira;

Abstract

This paper examines aspects of the discourses that followed Victor Brecheret’s project proposal for the Monument to the Bandeiras, in 1920, and its inauguration, in 1953, highlighting two points: on the one hand, the perception of the monument as an offer from São Paulo inhabitants to the nation; on the other, the scene of its destruction, imagined by Oswald de Andrade one year after the project was presented. Based on this discussion, the text investigates how its imagined destruction or disappearance has been projected onto the monument since the 1970s, the work now completed, from works by contemporary artists and a direct intervention on the sculpture in 2013.

Keywords:
Brazilian modernism; Victor Brecheret; Monument to the Bandeiras; Brazilian contemporary art

Resumen

Este artículo aborda los discursos que derivaron del proyecto Monumento a las Bandeiras, de Victor Brecheret, en 1920, y la inauguración de la obra en 1953, destacando dos puntos: la percepción del monumento como una oferta de São Paulo a la nación brasileña; y el escenario de su destrucción, imaginado por Oswald de Andrade aproximadamente un año después de la primera presentación del proyecto. Esta discusión sirve de base para examinar cómo la destrucción imaginada del monumento o su desaparición se proyecta otra vez en él durante los años 1970, pero ahora con la concreción de la obra, a partir de trabajos de artistas contemporáneos y de la intervención realizada de manera directa en la escultura en 2013.

Palabras Clave:
Modernismo brasileño; Victor Brecheret; Monumento a las Bandeiras; Arte contemporâneo brasileño

Nos anos que antecederam a celebração do Centenário da Independência do Brasil, os futuros modernistas de São Paulo compunham um dos grupos existentes na cidade que se empenhavam em imaginar propostas para uma inserção gloriosa dos paulistas nos festejos2 2 Assinando sob o pseudônimo Aristophanes, Menotti Del Picchia, um dos futuros modernistas, escreveu, em 29 janeiro de 1920: “São Paulo, que está no fastígio glorioso de todas as suas forças, necessita, em 1922, dar uma impressão apoteótica do seu progresso e cultura” (DEL PICCHIA, 1983, p. 64). . Um episódio importante desse processo se consagrou na historiografia do modernismo paulista como tendo sido a “descoberta” de Victor Brecheret, que aconteceu justamente em razão de um evento ligado ao Centenário, a exposição das maquetes inscritas no concurso do monumento à Independência, realizada no início de 1920, no Palácio das Indústrias. Ao visitar a mostra, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e Helios Seelinger teriam tomado conhecimento de que um escultor recém-chegado de uma temporada de estudos na Itália havia instalado ateliê em uma das salas do edifício e resolveram conhecê-lo3 3 O episódio é descrito em BRITO, (1974, p. 107). . Dentro de poucos meses, Brecheret se tornaria o centro de uma verdadeira campanha em prol da modernidade de suas esculturas, que incluiu desde a publicação de artigos monográficos na recém-lançada revista Papel e Tinta, ilustrados com fotografias de suas obras, até a defesa sistemática na imprensa local de que o estado e a prefeitura de São Paulo deveriam incentivar a produção do escultor, adquirindo ou encomendando obras suas para os espaços públicos da capital.4 4 Ver, por exemplo: artigos “Crônica social: Brecheret” (15 jan. 1920) e “Brecheret” (26 fev. 1920), republicados em DEL PICCHIA (1983, pp. 62-63 e 85-89); ANDRADE (1920); IVAN (1920a; 1920b).

O processo de elevação de Brecheret à linha de frente, no campo da arte, do grupo que em breve se afirmaria como a vanguarda “futurista” e depois “modernista”5 5 Para uma discussão sobre o uso desses termos pelo grupo paulista, cf. FABRIS (1994). teve seu ponto culminante em julho de 1920, quando uma comissão formada por Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia, José Lannes, Oswald de Andrade e Léo Vaz organizou a exibição da maquete que havia encomendado ao artista para um monumento às bandeiras a ser erguido em São Paulo. Pensado como uma oferta paulista à pátria brasileira, em homenagem ao que se entendia ser a principal contribuição de São Paulo à história do país, o projeto de Brecheret, se viesse a ser concretizado para o Centenário da Independência, em 1922, seria também a primeira grande vitória pública do grupo que havia se reunido depois da mostra de Anita Malfatti, em 1917, para defender a urgência de renovação dos debates e valores estéticos prezados pelas elites culturais paulistas6 6 No artigo “Questões de arte”, publicado em plena ofensiva “futurista” de 1921, Oswald de Andrade usa a maquete do Monumento às Bandeiras como exemplo para criticar aqueles que acusavam o artista de inépcia na execução da anatomia de suas figuras: “Não se compreende, por exemplo, que ele [Brecheret] faça cavalos e homens com o pescoço desmesurado, ciclópicos de força majestosa e rápida, sem molezas ventrais nem detalhes orgânicos desvalorizadores. Chegam diversos imbecis a crer que Brecheret não sabe que os cavalos e os homens que andam pelas ruas são diferentes dos que ele plasma. E dizem: ‘Mas onde já se viu uma perna desse tamanho, um pescoço desmedido assim, aquele pé está violento demais’ […] Aqueles Bandeirantes que seriam, sem a força desmesurada dos seus músculos tensos, sem a caminhada heroica dos seus passos? uma procissão idiota de nus familiares” (ANDRADE, 1921c, p. 5). Oswald deixava claro que o que estava em jogo na escultura de Brecheret era sua força expressiva, e não sua aderência à realidade visível, como esperavam os críticos. . O projeto era ainda uma resposta e um contraponto à intenção manifestada pela comunidade portuguesa em São Paulo de igualmente comissionar um monumento às bandeiras. Ao abordar a existência desse outro projeto, Menotti Del Picchia foi enfático na defesa de que as bandeiras eram obra dos paulistas e cabia somente a estes a prerrogativa de erguer um monumento em homenagem a elas: “A escolha do motivo ‘As Bandeiras’ da parte dos portugueses não é de todo feliz. Esse monumento deve pertencer aos paulistas: é o seu maior e mais sagrado patrimônio de glória” (DEL PICCHIA, 1920DEL PICCHIA, Menotti. Dois monumentos: os paulistas e os portugueses renderão uma homenagem a S. Paulo. A Gazeta, São Paulo, 28 jun. 1920, p. 1., p.1).

Ainda que a ideia não fosse original - a urgência de um monumento que celebrasse as bandeiras em São Paulo já havia sido apontada antes - e que o projeto de Brecheret não fosse nem o primeiro, nem o único, começava assim o processo que levou à inauguração, mais de três décadas depois, do Monumento às Bandeiras que conhecemos hoje, ocupando uma praça situada entre a Avenida Pedro Álvares Cabral e a Avenida Brasil, em uma das entradas do Parque Ibirapuera7 7 Desde pelo menos 1911, o engenheiro Adolfo Augusto Pinto já apontava a ausência de uma homenagem aos bandeirantes na capital paulista (cf. CHIARELLI, 2019). Em 1920, além do projeto dos portugueses e do primeiro projeto de Brecheret, o escultor italiano Nicola Rollo também havia sido encarregado da realização de um monumento em homenagem aos bandeirantes, previsto para ocupar o primeiro lance de escadarias em frente ao Museu Paulista, como parte das comemorações do centenário da Independência. No entanto, somente em 1923 um modelo em barro do projeto Heroísmo dos bandeirantes foi aprovado por Washington Luís, então presidente do Estado. O estouro da Revolução de 1924 obrigou o artista a deixar a cidade e o impossibilitou de manter os cuidados necessários à manutenção do modelo em barro. Isso, somado à falta de apoio do governo Carlos de Campos com o término do conflito, levou Rollo a abandonar o projeto (cf. KUNIGK, 2001, pp. 107-133). .

SUSCIPE!

A apresentação ao público paulistano da primeira maquete produzida por Brecheret para o Monumento às Bandeiras foi acompanhada da divulgação de um memorial assinado pelo próprio artista, possivelmente inspirado por Menotti Del Picchia, membro da comissão formada para elaborar a proposta (Cf. BATISTA, 1985BATISTA, Marta Rossetti. Bandeiras de Brecheret : história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985., p. 26). Na transcrição do memorial publicada na revista Papel e Tinta, acompanhada de uma fotografia da maquete e de uma breve nota introdutória, já está presente a afirmação de que a obra era “oferecida à Pátria pelos paulistas”.

Alguns trechos do memorial não deixam dúvida do sentido nacional que se projetava para o monumento (Figura 1). Ao descrever, por exemplo, o simbolismo do grupo central, o texto afirma ser a representação de “um impulso do Gênio da nacionalidade nascente, alargando e fixando o solo sagrado de uma Pátria” (BRECHERET, 1920BRECHERET, Victor. Ars: Monumento das bandeiras, Papel e tinta: ilustração brasileira, ano 1, n. 3, São Paulo, jul. 1920.). Mais do que a representação de algum episódio específico que teria feito parte da “epopéia” bandeirante, a opção do projeto foi “exprimir, na harmonia do seu conjunto, unificados em bloco, toda a audácia, o heroísmo, a abnegação, a força expandida em desvendar e integralizar o arcabouço geográfico da Pátria” (Ibidem). Dessa opção por enfatizar a força plástica de uma ideia, mais do que a representação de personalidades, surge o elemento principal da composição: “um grupo central vencendo as insídias, guiado pelos seus Gênios, encaminhando-se para a Terra conquistada, a fértil e eterna pátria brasileira!” (Ibidem).

FIGURA 1
Detalhe da revista Papel e tinta: ilustração brasileira (ano 1, n. 3, São Paulo e Rio de Janeiro, jul. 1920). Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo.

Embora o projeto não represente nenhum bandeirante específico, ao detalhar os elementos que compõem o grupo, o texto se refere aos “Gênios” que guiam a massa processional do alto de seus cavalos como “os Paes Leme, os Antonio Pires, os Borba Gato (…) seres titânicos, dignas expressões viris dos sertanistas de S. Paulo” (Ibidem). Ou seja, a conquista da Terra e a integridade do “arcabouço geográfico da Pátria” eram a grande obra dos paulistas e era essa narrativa que os “herdeiros” dos bandeirantes ofertavam à pátria no centenário de sua independência.

A ideia do Monumento às Bandeiras como oferta dos paulistas à nação tem talvez o seu momento mais ostensivamente ufanista, e revelador das profundas raízes coloniais do pensamento ao qual a obra dá corpo, na oração-poema declamada por Guilherme de Almeida durante a solenidade de inauguração do monumento e da praça Armando de Salles Oliveira, em 25 de janeiro de 1953. Os versos são precedidos de um preâmbulo em que o poeta homenageia Salles Oliveira, louvado como um bandeirante da cultura e do civismo que alargou “um meridiano de arbítrio que lhe estreitava a Pátria”, (A ORAÇÃO-POEMA, 1953, p. 7) referência ao Estado Novo. Na sequência, o texto apresenta uma metáfora sugestiva para se referir à praça que agora levava o nome do governador paulista que, em 1936, havia retomado a ideia de construção do monumento. Inspirando-se no formato oval da praça, Guilherme de Almeida a compara ao prato sagrado sobre o qual, na liturgia católica, consagra-se as hóstias: “esta praça pública é, neste instante, a patena ritual de um simbólico ofertório” (A ORAÇÃO-POEMA,1953, p. 7). Naquele “fragmento de chão paulista”, o “corpo místico” que se ofertava em sacrifício não era o de Cristo, mas o próprio corpo de São Paulo, representado ali pelos blocos esculpidos de granito paulista transportados de Mauá.8 8 Além do granito paulista que dá corpo às figuras do Monumento às Bandeiras, cogitou-se ainda a ideia de transportar para um sarcófago em sua base os restos mortais do bandeirante Fernão Dias Paes Leme, que desde 1922 jazem na nave principal da igreja do Mosteiro de São Bento. Com isso, o corpo simbólico do monumento se ergueria sobre o corpo real de um bandeirante. A ideia não foi concretizada, mas ficou registrada nas memórias de Cassiano Ricardo, figura central para a retomada do projeto em 1936. Cf. RICARDO (1970, p. 99).

O preâmbulo é concluído com a seguinte invocação:

‘Suscipe!’ Recebe, Povo Bandeirante, os Bandeirantes! Na vigília-de-armas do IV Centenário da Cidade de São Paulo - ano 399 da Fundação - aí estão eles, hóspedes primeiros e primaciais, de volta à sua velha Piratininga: e não mais desfigurados pela jornada, mas transfigurados pela Arte. (Ibidem, p. 7)

Chama atenção, nesse trecho, o uso da locução latina “Suscipe!”, parte da oração “Suscipe Sancte Pater”, pronunciada pelos sacerdotes durante a celebração da missa católica romana ao oferecerem as hóstias para consagração. A mesma locução abre também a “Contemplação para alcançar o amor”, nos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola, oração célebre entre os jesuítas.9 9 Cf. Suscipe em WORCESTER (2017). Ao exclamar “Suscipe!” diante do monumento, Guilherme de Almeida não apenas reforçava uma analogia com o ritual do ofertório católico, como também vinculava sua oração-poema à tradição jesuítica, base sobre a qual se fundaram a colonização espiritual do planalto de Piratininga no século XVI e a própria cidade de São Paulo. Ao acreditar que pronunciava uma palavra de união, convocando uma relação de reciprocidade entre aqueles que ofertavam e aqueles que recebiam, o poeta na verdade recolocava em cena e atualizava o discurso colonial.

O preâmbulo dá o tom da oração-poema e indica o motivo do verso que se repete, abrindo cada estrofe: “Voltaram os Bandeirantes!”. A cada repetição, o poema canta aspectos que marcaram as biografias de alguns bandeirantes mais célebres, porém sem nomeá-los. Fernão Dias Paes Leme, por exemplo, é lembrado pela referência às esmeraldas que passou a vida buscando; Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, por suas incursões no sertão goiano e pela lenda de ter incendiado as águas dos rios; Domingos Jorge Velho, pela campanha militar que liderou para “abater” o Quilombo dos Palmares10 10 Voltaram os Bandeirantes! / Voltou o que as caatingas do Nordeste/ semeou de cidades e fazendas,/ e abateu o quilombo de Palmares…/ Voltaram os Bandeirantes!/ Voltou do enigma do sertão goiano/ o “diabo velho” que incendiou as águas/ na luta longa do devassamento… Voltaram os Bandeirantes!/ Voltou aquele sonhador do sonho/ verde das esmeraldas fabulosas/ sumidas no sumir do Sumidouro… (A ORAÇÃO-POEMA, 1953, p. 7). . Esse era o ofertório paulista à nação, que termina glorificando a obra de Brecheret e situando seus bandeirantes de granito na posição de numes tutelares de São Paulo:

Voltaram os Bandeirantes

talhados na rocha viva

que a Arte paralisou

num ritmo de Eternidade!

Bem-vindos os Bandeirantes!

Bem-vindos pela Fé,

bem-vindos pela Força,

bem-vindos pelo Amor,

bem-vindos pelo Ideal:

Fé, Força, Amor, Ideal

que são a nossa herança

inalienável e única!

Deuses Lares de pedra

Penates de granito,

ó Numes tutelares

velai, velai por nós!

(Ibidem, p. 7)

Enquanto os políticos da União Democrática Nacional, que discursaram antes na solenidade de inauguração, buscavam sequestrar o monumento para sua campanha antigetulista, Guilherme de Almeida apresentava seu louvor à Fé, à Força, ao Amor e ao Ideal, valores que ele acreditava terem movido os bandeirantes eternizados no granito de Mauá talhado pelos operários italianos, espanhóis, portugueses e brasileiros dirigidos por Brecheret11 11 Sobre os trabalhos da Oficina de Cantaria A. Incerpi e Cia., que venceu a concorrência para executar a escultura em granito sob supervisão de Brecheret, ver o capítulo “A construção”, em BATISTA (1985). . A oração-poema sintetiza a atmosfera ideológica que dominou os anos de preparação para as celebrações do IV Centenário de São Paulo, quando uma comissão formada em convênio entre Estado e Município, presidida pelo empresário Francisco Matarazzo Sobrinho, idealizador do Museu de Arte Moderna de São Paulo e de suas Bienais, promoveu em cerca de quatro anos de atividades uma autêntica “missão civilizatória” moderna na cidade, cujo maior testemunho são os pavilhões projetados por Oscar Niemeyer para a Exposição e Feira Internacional do IV Centenário no Parque Ibirapuera e celebrados à época como os maiores do mundo em área expositiva12 12 Sobre as comemorações do IV Centenário, sua dimensão de “missão civilizadora” moderna e sua vinculação ao mito do bandeirante, cf. ARRUDA (2015, pp. 61-87) e MARINS (1999). Para uma análise da falência daquela missão tendo o Parque Ibirapuera como objeto, cf. CURI (2018). . Era, portanto, um período de idealismo e de fé no futuro para aqueles que estavam no comando da economia, da política e da cultura da metrópole paulistana naquele momento. E que seguiam percebendo a si mesmos, como nos anos 1920, não somente como herdeiros, mas como os novos e modernos bandeirantes.

Facho Vacilante, Raça Decadente

Neste ponto, volto aos anos 1920 para verificar como um dos membros da comissão responsável pela proposição do Monumento às Bandeiras, Oswald de Andrade, acrescentou à retórica grandiloquente que já naquela época se derramava sobre o projeto uma nota, senão dissonante, ao menos em tom menor. Para encontrar essa nota será preciso um desvio em relação às fontes mais diretamente ligadas ao que se pode entender como realidade histórica do Monumento às Bandeiras, duas delas discutidas acima. Será preciso um desvio para o campo da ficção, mais especificamente para uma cena do seu romance Os condenados (Trilogia do Exílio).

A cena integra o terceiro volume da trilogia, intitulado A escada e publicado em 1934, mas já havia aparecido no jornal Correio Paulistano em 1921, sob o título “Primeira Gente”. Na versão em livro, o escritor fez algumas alterações importantes no texto, embora o acontecimento que interessa aqui esteja presente nas duas versões. Não é o caso de examinar em detalhe o enredo do romance, mas é particularmente importante destacar que ele se desenrola no período que antecede a celebração do Centenário da Independência, especialmente a partir do segundo volume, A estrela de absinto, como fica claro no seguinte trecho:

São Paulo tumultuava na expectativa das festas do Centenário. Artistas brasileiros, recém-chegados da Europa, armavam ateliers ao seu lado, no Palácio das Indústrias, agora em rápido acabamento. No pavilhão térreo, alinhavam-se as maquetes do concurso para o Monumento do Ipiranga. Havia uma pulsação desconhecida nos meios artísticos da cidade. Fundavam-se revistas, lançavam-se nomes, formavam-se grupos. ( ANDRADE, 2003 ANDRADE, Oswald de. Os condenados: a trilogia do exílio. 4. ed. São Paulo: Globo, 2003. , p. 185)

Nesse ambiente aparece o personagem que protagoniza os dois últimos volumes da trilogia, Jorge d’Alvelos. Inspirado em Victor Brecheret, Jorge não apenas é escultor, como tem seu ateliê instalado em uma sala no Palácio das Indústrias, assim como Brecheret havia feito ao retornar de Roma, em 1919.13 13 Cabe lembrar que o escultor italiano Nicola Rollo, encarregado da realização das esculturas que decoram o Palácio das Indústrias, também mantinha ateliê nas dependências do edifício desde que este estava ainda em fase de construção, e ocupou-o para essa finalidade mesmo depois da inauguração oficial do palácio, em 1924 (cf. KUNIGK, op. cit., pp. 94-107). No entanto, como Oswald de Andrade em nenhum momento menciona Rollo em seus textos, pode-se assumir que o personagem é de fato inspirado em Victor Brecheret.

Os projetos de esculturas nos quais trabalha constituem elemento importante da ambientação de diversas cenas do romance. As peças participam e reverberam o sentimento de angústia que dominava o personagem, atormentado pelo ciúme que nutria por sua amante, Alma, amplificado por uma suspeita de traição. As esculturas são objeto das reações violentas de Jorge diante do drama emocional que vivia, e seu trabalho artístico se mescla à condição fragmentária e cindida de sua vida interior e a espelha.

É em meio ao arco tumultuoso da história de Jorge d’Alvelos que o narrador introduz uma cena na qual é possível identificar uma referência ao projeto do Monumento às Bandeiras de Brecheret.14 14 Para as citações do trecho, utilizo a versão publicada em jornal em 1921. As alterações na versão em livro serão comentadas a seguir. Ela descreve a visita ao ateliê de Jorge de um grupo, “os artistas da cidade”, descrito da seguinte maneira:

Alguns, já maduros, aceitos em rodas pasmas, outros na angústia de lutas incompreendidas, aumentadas pelas misérias dos seus lares convulsos, os demais boêmios imprecisos, revoltados à toa - todos sob o íncubo de um chicote de maldições e desastres. (Idem,1921a, p. 1)

A curiosidade dos visitantes obriga o escultor a lhes mostrar um projeto no qual trabalhava, em que tentava “na greda úmida do Brasil fazer a caminhada estupenda das superstições raciais” (Ibidem, p. 1). O parágrafo que descreve a obra alude ao movimento de procissão guiada por cavaleiros que se observa na maquete de Brecheret para o monumento:

E num ritmo de cavalos sobre-humanos, achatou-se na prancheta, lívida como a terra, comprida como a terra, a procissão de cruzes, bandeiras, maternidades, moléstias15 15 O caráter “titânico” dos cavalos, as bandeiras e as doenças são elementos do primeiro projeto do Monumento às Bandeiras, citados no memorial publicado junto com a reprodução fotográfica da maquete na revista Papel e Tinta (n. 3, São Paulo, jul. 1920). , êxtases incubados, santidades recolhidas, destrezas paralíticas - toda a verdade trágica da primeira gente emigrada para o degredo verde dos Tapuias, com bentinhos, franciscanos e rosários, sob um céu lírico, por um mar insensato, num delírio nômade. (Ibidem, p. 1)

Diante daquele grupo de artistas, todos entusiastas do escultor, Jorge d’Alvelos reflete sobre o que eles representavam enquanto descendentes daquela “primeira gente” que ele tentava fixar na escultura:

Fitando os terrosos, os amarelos bisnetos vivos dos conquistadores, curvos sob o defeito longo dos defeitos domésticos, dos fetiches da honra, dos amuletos sentimentais, da fidalguia bastarda e da glória suspeita dos navegadores e dos bandeirantes, Jorge d’Alvelos sentiu sua obra apequenada e pálida (…) E na seriedade dos olhos onde se confessavam todos os crimes, todas as covardias, todas as vontades falhadas, mas também os martírios anônimos, todas as resignações michelangeolescas, todas as tentativas de vitórias fecundas, o escultor viu passar uma imperecível promessa de milagres contentes. (Ibidem, p. 1)

O narrador descreve a reflexão de Jorge d’Alvelos sobre o grupo de artistas herdeiros daquela “primeira gente” cuja história ele tentava representar em sua maquete:

Eram, com exceções, decaídos filhos de famílias de nome, estabelecidas no continente num estouvamento de fidalguia, estendendo o sacro domínio em nome de Deus e d’El-Rey por gentes e escravos, campos e serras. O Império dera-lhes baronatos, a terra fácil dera-lhes ouro. E, no país de assombros, se haviam vinculado a preconceitos tentaculares de glória paroquiana, feudais senhores de chapelão e barba, gerando numa sexualidade redobrada pelo degredo, rebentos inúteis e pomposos, falhos rombudos de orgulho nativo, pedaços anacrônicos de média-idade portuguesa. O tempo trouxera a liberação dos negros, as novas imigrações e a República. E a terra cansara de dar a moeda rubra na ponta verde dos velhos cafezais. (Ibidem, p. 1)

Aquelas “novas imigrações”, continua o narrador, chegavam ao país “sem o trambolho dos brasões, o lastro pesado das fidalguias ilógicas, o aluvião [sic] dos bentinhos caseiros, das guinés morais, dos atavismos líricos, das canseiras históricas” (Ibidem, p. 1). Desse confronto entre os descendentes paulistas e as “novas imigrações” resultava, portanto, o “apequenamento” que Jorge d’Alvelos sentia em sua obra. Depois que os visitantes o deixam novamente só no ateliê, eis a solução que o artista encontra para esse conflito: “Ergueu-se da cadeira, andou e, numa confiança comovida, fez desmoronar da extensa prancheta, numa bola informe e ruiva sobre o chão do atelier, o passado crepuscular de seu povo” (Ibidem, p. 1). Com isso, o Monumento às Bandeiras encontrava, no espaço da narrativa ficcional e mais de três décadas antes de sua inauguração, uma primeira cena de destruição imaginária.

Nesse ponto, pode-se sugerir que os significados simbólicos dessa destruição, em 1921, quando a cena foi veiculada pela primeira vez no Correio Paulistano, e em 1934, quando o livro foi publicado, são diferentes. E algo dessa diferença pode ser vislumbrado ao se verificar que, entre as duas versões, três dos quatro parágrafos que antecedem o desfecho da cena foram suprimidos. Em 1921, depois de mencionar que a “geração do Centenário” - a geração de 1922, cujos representantes eram aquelas figuras que visitavam o ateliê do escultor - havia sido a primeira a sentir o estalar da crise econômica introduzida pelo “combate cego com as novas estirpes, vindas já depois da guerra e da revolução bolchevista” (Ibidem, p. 1), o narrador prossegue com a seguinte reflexão, suprimida da versão em livro:

Nos artistas nativos fixara-se a primeira consciência e a primeira esperança reacionária. Num drama de soluços, eles abandonavam o seio materno para se entregar avidamente às sublimizadas sugestões de um tempo novo numa América nova.

Eram eles os que haviam estado ali, - o artista compreendia - os enxovalhados portadores dos primeiros fachos vacilantes.

Jorge d’Alvelos, votado por circunstâncias pessoais, libertara-se cedo e definitivamente voltara integralizado dentro da moral convulsa dos seus pares avançados e da estética ciclópica do seu tempo vulcânico. Pressentira, na nula romaria a Telhados Novos, a vitória a carabina dos recém-chegados sobre os velhos povoadores, que se incorporavam afinal à escalada definitiva de país inconquistado. E vira num e outro tipo de elegância combativa os primeiros liberados da moral de penumbra que sufocava a nação numa longa, numa inglória, numa tétrica feitiçaria. (Ibidem, p. 1)

Por esse trecho, é possível perceber que o que levou Jorge d’Alvelos a destruir a maquete, na cena publicada em 1921, foi a percepção de que ela não fazia justiça à condição ambivalente e complexa que assumia, naquele momento, o fenômeno histórico das bandeiras e a figura do bandeirante, ambos passando por um processo de reinvenção. No discurso de Oswald de Andrade, isso é notável no artigo “Reforma literária”, em que o escritor propõe um exame de consciência àqueles que se escandalizavam com o que ele denomina um “movimento espontâneo na direção de uma nova mentalidade citadina e racial” (Idem, 1921b, p. 3),16 16 Mais adiante, será discutido como a relação entre a modernização de São Paulo e o surgimento dessa nova mentalidade já vinha sendo objeto de reflexão do escritor no discurso em homenagem a Menotti Del Picchia. ou seja, o futurismo paulista. Para ele, a questão citadina e a questão racial se mesclavam, como mostra o trecho seguinte, em que ele aponta o erro daqueles que censuravam os inovadores:

[os críticos dos inovadores] estão fora da psicologia do telégrafo sem fios, do aeroplano, da estrada empedrada de automóveis e o seu armário de musas move fantasmas longínquos e torvos num João Minhoca decaído em velhos plágios façanhudos. Respeitemo-los. Mas que eles também respeitem o surto divino da metrópole cosmopolita - evoluída de séculos em cinquenta anos de “entradas” comovidas, onde se debateram, para amálgamas finais, canções de todos os idiomas, êxtases de todos os passados, generosidades e ímpetos de todas as migrações. (Ibidem, p. 3)

A modernização no campo das comunicações e do espaço urbano aparece conjugada ao caráter de “metrópole cosmopolita” assumido por São Paulo entre 1870 e 1920, com a presença e a contribuição dos imigrantes que a ela se integravam; um caráter sustentado pela própria história da cidade, como sugere a analogia entre a imigração e as “entradas” dos bandeirantes. Por isso, a questão racial no Brasil seria, segundo Oswald, sobretudo uma questão paulista: “O resto do país, se continuar conosco, mover-se-á, como o corpo que obedece, empós do nosso caminho, da nossa ação, da nossa vontade” (Ibidem, p. 3).

Tendo conectado a questão da modernização urbana com a questão racial, estava preparado o terreno para a defesa do caráter futurista que se projetava na situação econômica e cultural de São Paulo. Oswald prossegue:

Nunca nenhuma aglomeração humana esteve tão fatalizada a futurismos de atividade, de indústria, de história e de arte como a aglomeração paulista. Que somos nós, forçadamente, iniludivelmente, senão futuristas - povo de mil origens, arribado em mil barcos, com desastres e ânsias? (Ibidem, p. 3)

O processo histórico da imigração e da convivência entre povos de origens diversas, de que a São Paulo daqueles anos aparecia como produto e exemplo bem-sucedido, parece ser entendido como um aspecto do próprio futuro da sociedade moderna, ao menos no Brasil.

Mais adiante, continuando essa linha argumentativa, o escritor se pergunta sobre as origens dos antepassados paulistas: “Qual é a pátria dos nossos antepassados? Quem vigorará para a pesquisa: os Silveira, os Choueri, os Pampini, os Delcourt, os Brown, os Fusijama?” (Ibidem, p. 3). Ele especula sobre que tipo de emoção poderia despertar em uma criança filha de imigrantes a história aprendida nas escolas sobre a libertação de negros escravizados, quando no passado de sua família estariam presentes antes “a imigração dolorosa e a lenta conquista de um solo aberto a todas as devassas laboriosas” (Ibidem, p. 3). Percebe-se, com isso, que Oswald de Andrade não quer vincular a nenhuma cultura específica e, com isso, também a nenhuma etnia específica, a possibilidade de uma arte que fosse expressão da “raça paulista”, uma “raça” cosmopolita, constituída por um “povo de mil origens”.

Parte da construção ideológica da noção de “raça paulista” feita por Oswald de Andrade compreendia um movimento de liberação em relação ao passado, liberação dos “cativeiros idos”, das histórias que “os velhos cantaram” e que aos novos restaria aturar. Imbuído desse objetivo de destacamento em relação ao passado rumo ao futurismo a que a “raça paulista” estaria destinada, ele recalca a história da escravidão no país17 17 Em O futurismo paulista, Annateresa Fabris já observara esse movimento do texto de Oswald de Andrade (FABRIS, 1994, p. 79). , na verdade uma realidade histórica, naqueles anos como hoje, ainda longe de pertencer ao passado. Concluindo o texto, o escritor defende que somente a liberação ante “o choro senil dos infecundos”, referindo-se aqui aos “passadistas” em geral, poderia fazer com que a indústria e o comércio, assim como a literatura e a arte de São Paulo, representassem “um alto papel e uma alta missão” (Ibidem, p. 4).

As ideias apresentadas por Oswald de Andrade em “Reforma literária”, como já foi apontado por Fabris (1994FABRIS, Annateresa. O futurismo paulista: hipóteses para os estudos da chegada da vanguarda ao Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1994.), apresentam pontos de contato com o teor da defesa que Menotti Del Picchia vinha fazendo, em suas colunas do jornal Correio Paulistano e em outras colaborações a jornais, do movimento que se esboçava em São Paulo, desde o princípio de 1920, com o intuito de promover uma renovação intelectual. Em “A nossa raça…”, publicado no Correio Paulistano em 12 de março daquele ano, o escritor sugere que a situação racial no Brasil naquele momento se configurava como “um xadrez de nacionalidades”, de onde o “verdadeiro brasileiro” emergiria como um “tipo humano novo”, que relegaria à condição de “ficção literária” os caboclos e caiçaras. Estes seriam ainda “morfológica e psicologicamente caiçaras”, mas “oriundos de alemães, de italianos, de espanhóis e até de turcos!” (DEL PICCHIA, 1983DEL PICCHIA, Menotti. O gedeão do modernismo: 1920/22 / Introdução, seleção e organização Yoshie Sakiyama Barreirinhas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1983., pp. 97-98). Eis como o escritor descreve o fenômeno de “fixação” racial que percebia no país:

O nosso cosmopolitismo toma o caráter de uma fixação definitiva, os rebentos da nossa civilização de acampamento nacionalizaram-na integralmente. A voz atávica não os desabrasileiriza mais; por um fenômeno social digno de nota, um jacobinismo intransigente radica esses frutos de outras raças em nosso solo, de forma a constituírem eles o extrato vivo da nossa nacionalidade (…) Essa mescla heteróclita e tumultuária é, pois, o que devemos chamar atualmente nossa raça. ( DEL PICCHIA, 1983 DEL PICCHIA, Menotti. O gedeão do modernismo: 1920/22 / Introdução, seleção e organização Yoshie Sakiyama Barreirinhas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1983. , p. 97)

De modo semelhante a Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia projeta no restante do país o seu “paulistanismo internacionalista” (CASTRO, 2008, p. 57), ao qual não faltará o apelo à figura do bandeirante, mas que busca integrar a ela o imigrante como protagonista de um novo bandeirantismo.18 18 Para uma análise abrangente das crônicas de Menotti Del Picchia na década de 1920, cf. CASTRO, (2008).

A fabricação da ideia de “raça paulista” não foi, evidentemente, um movimento iniciado pelo grupo de futuros modernistas que se reuniu em torno de Brecheret. Trata-se de um processo em elaboração desde o final do século XIX e que, durante a formação daquele grupo, se desdobrava social e ideologicamente, difundindo-se pelo campo da produção intelectual paulista, tendo no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (especialmente em sua revista) e no Museu Paulista dois importantes marcos institucionais. Os futuristas de São Paulo, e, como visto acima, Oswald de Andrade entre eles, integravam-se, à sua maneira, a esse movimento ideológico em processo.19 19 Sobre a invenção histórica do bandeirante no âmbito da literatura e das instituições dedicadas à pesquisa histórica em São Paulo, entre 1870 e 1940, cf. FERREIRA (2002).

Além da pesquisa genealógica sobre os descendentes dos primeiros habitantes de São Paulo, a ideia de “raça paulista” que se formulava naquele momento incluía também uma dimensão psicológica. Buscava-se a definição do que seriam os traços característicos da psicologia do povo paulista, que incluía agora também a presença nova dos imigrantes que chegavam desde a segunda metade do século XIX. A figura do bandeirante surge então como “símbolo aglutinador” dessa “nova raça” que se inventava, marcada pelos “mesmos predicados dos primeiros habitantes de São Paulo - igualmente mestiços -, isto é, era arrojada, eficiente e amante do progresso”. (BREFE, 2005BREFE, Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional, 1917-1945. São Paulo: Editora Unesp, 2005., pp. 197-198)

Tal imagem do bandeirante como símbolo dos atributos da “raça paulista”, que aparece nos discursos de Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, pode ser entendida como o fundamento ideológico que justificaria o papel pioneiro daquele grupo de intelectuais que se formara em São Paulo com o objetivo de promover a renovação intelectual e artística no país.

Voltando à cena do romance Os condenados, a posição de Oswald em 1921 sugere que a monumentalização da história das bandeiras não deveria servir apenas de lastro simbólico para orgulho de uma “estirpe” paulista decadente, aferrada a “preconceitos tentaculares de glória paroquiana”, que ansiava pela exaltação de seus antepassados heroicos. Ela precisava mostrar que a “geração do Centenário”, com todas as contradições e falhas que carregava, era quem esboçava uma primeira reação àquela decadência, promovida em conjunto com as “novas estirpes” imigrantes. Só assim um monumento às bandeiras encontraria a sua atualidade histórica, na visão do escritor.

A destruição simbólica da maquete na cena publicada em 1921 era um posicionamento de Oswald em relação ao mito do bandeirante, em consonância com sua perspectiva, naquele momento, a respeito da questão racial no Brasil. Ele entendia que o povo paulista era um “povo de mil origens” e “iniludivelmente” futurista, o exemplo a ser seguido pelo restante do país. O bandeirante futurista não poderia, portanto, ser apenas uma exaltação do passado “heroico” das bandeiras lideradas pelos mamelucos paulistas, um símbolo aglutinador apenas para seus herdeiros, os paulistas de quatrocentos anos. Ele deveria conter também o “facho vacilante” de um futuro que seria construído não mais pelos orgulhosos “descendentes” dos sertanistas, mas por seus “filhos pródigos” e pelos imigrantes.

Na década de 1930, porém, a posição do escritor a respeito tanto daquela “geração do Centenário” quanto da questão racial havia assumido outros contornos. Uma modificação introduzida na cena da destruição da maquete, quando da publicação em livro, pode ser entendida como um índice desse movimento de autocrítica. No trecho que, em 1921, saiu como “O Império dera-lhes baronatos, a terra fácil dera-lhes ouro”, em 1934 aparece da seguinte maneira: “O Império dera-lhes baronatos, a terra trabalhada pelos negros dera-lhes ouro” (ANDRADE, 2003ANDRADE, Oswald de. Os condenados: a trilogia do exílio. 4. ed. São Paulo: Globo, 2003., p. 296, grifos meus). Trata-se de um pequeno detalhe, mas também de uma revisão crítica, pois a riqueza da terra não é mais vista como dádiva, e sim como produto do trabalho dos negros escravizados. De modo que, em 1934, a ideia original do Monumento às Bandeiras era falha também nesse aspecto, pois, se havia reservado aos indígenas a condição de “guarda do monumento”, o memorial publicado em 1920 em momento algum faz qualquer alusão aos negros.20 20 Na versão final do monumento, retomada em 1936, Brecheret incluiu, entre as figuras do grupo que segue os dois cavaleiros, alguns homens negros, dentro também de uma nova concepção para o projeto, que eliminava os elementos arquitetônicos (escadaria e plinto) e situava o monumento ao nível do chão, como se emergisse do solo.

Em suma, a destruição da maquete do monumento no romance é produto da desolação de Jorge d’Alvelos diante da “incapacidade de representar, de uma maneira menos unívoca, o percurso histórico de um povo distinto em várias etnias, vidas pregressas e contrastantes realidades sociais no presente” (FERREIRA, 2002FERREIRA, Antonio Celso. A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Editora Unesp , 2002., p. 354). Tanto em 1921 quanto em 1934, Oswald de Andrade parecia desconfiar que o projeto do Monumento às Bandeiras fracassava enquanto representação de um povo e de uma pátria. É importante, porém, não confundir essa desconfiança com uma posição contrária à execução do monumento. Embora tenha manifestado restrições a respeito da solução final adotada por Brecheret, até onde se sabe Oswald nunca negou a realização da obra.21 21 Em um manuscrito sem data, possivelmente posterior a 1948, republicado na coletânea Estética e política, Oswald de Andrade faz diversas críticas a Brecheret e afirma que o Monumento às Bandeiras “evidentemente não pode ter a pureza do de 22” (ANDRADE, 2011, p. 227). Ainda assim, foi ele possivelmente o primeiro a introduzir, como parte da realidade histórica do monumento - e aqui considero a ficção como parte dessa realidade -, a sombra de sua destruição.

Da Sombra ao Mausoléu

A sombra é o elemento principal da instalação Monudentro, de Regina Silveira, apresentada pela primeira vez na mostra A trama do gosto, realizada pela Fundação Bienal de São Paulo, em 1987 (Figura 2). Nela, a silhueta distorcida do Monumento às Bandeiras se projeta como uma sombra sobre as cinco paredes de uma sala hexagonal construída no segundo andar do Pavilhão Ciccillo Matarazzo. A sala, no entanto, estava vazia, exceto pela presença de um tapete de grama artificial no piso, posicionado junto às paredes. De modo que a sombra nas paredes era projetada por um objeto ausente, estratégia que a artista vinha explorando já havia alguns anos.22 22 Ao comentar a primeira obra da série In Absentia, realizada em 1982, a artista afirma: “Pensei em um objeto ausente, que era o cavalete de pintura, e nessa sombra projetada que invadia dois planos (chão e parede), como funciona uma sombra real. Pensei que isso daria um lugar privilegiado para o olhar, que era de onde se perceberia que estava faltando o cavalete gerador da sombra” (SILVEIRA, 1995, pp. 109-110).

FIGURA 2
Regina Silveira, Monudentro, 1987SILVEIRA, Regina. Monudentro, Folha Avenida Urbe, ano 1, n. 1, p. 23, 25 jan.-22 fev. 1987.. Vinil adesivo, 160 m2. Vista da instalação na mostra “Trama do Gosto” (1987), Fundação Bienal de São Paulo.

O texto da artista no catálogo da mostra aponta a memória perceptiva do monumento como um elemento importante do projeto, destacando a separação entre signo e referência:

Mas o significado pretendido não deriva apenas da questão do lugar do olho que sincroniza, ao deslocar-se, as diversas deformações da silhueta. Também importa a memória perceptiva do monumento, para as inevitáveis comparações entre o real e sua representação. Neste caso, a ênfase está no arrancamento do signo, transferido para o interior de um edifício onde, mais abstrato e hiperartificializado, se separa de sua referência no parque. ( SILVEIRA, 1987 SILVEIRA, Regina. Monudentro, Folha Avenida Urbe, ano 1, n. 1, p. 23, 25 jan.-22 fev. 1987. , p. 23)

Ainda que o interesse de Regina Silveira fosse capturar os espectadores em uma espécie de armadilha visual, o formato da sala e a presença da grama artificial circundando o espaço central vazio suscitam uma relação imaginária com a praça Armando de Salles Oliveira, instigada pela própria sombra do monumento. Monudentro parece convidar os espectadores a produzir uma imagem mental da simbólica patena ritual da oração-poema de Guilherme de Almeida, mas uma imagem na qual o pesado ofertório colonial do corpo paulista de granito está ausente. Ao separar a sombra do monumento de sua referência, a instalação suscita a imaginação do desaparecimento físico da obra de Brecheret, cujo único rastro seria, paradoxalmente, sua própria sombra.

Essa não era a primeira vez que Regina Silveira trabalhava a partir da imagem do Monumento às Bandeiras.23 23 Conforme a artista explica no texto de apresentação do projeto, a silhueta de Monudentro foi desenhada a partir de uma fotografia do Monumento às Bandeiras. Nas séries Publicações On/Off 2 (1973), e Brazil Today: Natural Beauties (1977), fotografias do monumento aparecem associadas a outros elementos, fazendo com que as séries possam ser lidas como uma espécie de complemento à desaparição imaginária sugerida por Monudentro. A imagem que integra Publicações On/Off 2 recebe inclusive o título de “Proposta para Monudentro”.

Assim como as demais fotomontagens da série, “Proposta para Monudentro” é impressa em offset e se apropria de uma fotografia que exibe uma vista lateral do Monumento às Bandeiras à média distância. A imagem, no entanto, aparece em um cenário completamente diferente do Parque Ibirapuera, inserida no meio de um cemitério de automóveis e cercada por carcaças de carros. É interessante observar como nessa imagem, em específico, é o monumento que parece ter sido deslocado de seu ambiente para o meio do cemitério de automóveis, ao passo que, em outras imagens da série, como a que exibe uma vista do Vale do Anhangabaú, as carcaças de carros é que são deslocadas para o ambiente que compõe o fundo da imagem.

Em uma das imagens de Brazil Today, Natural Beauties (Figura 3), a artista se apropria de um cartão postal que exibe a mesma clássica vista lateral do monumento, dessa vez tendo a vegetação do parque e um céu azul ao fundo. Em primeiro plano, por meio da serigrafia, Regina Silveira sobrepõe um recorte fotográfico com imagens de carcaças de automóveis empilhadas. Uma leitura possível dessa sobreposição seria a de uma catástrofe automobilística de proporções monumentais, em que dezenas de carros colidem no entroncamento das avenidas Brigadeiro Luís Antônio, Brasil e Pedro Álvares Cabral. Mas a estrutura formal da composição também permite pensar que o Monumento às Bandeiras se encontra no topo da pilha de automóveis, como se fosse mais uma carcaça depositada em algum ferro velho da cidade, após ter sido retirado da praça Armando de Salles Oliveira, assim como em “Proposta para Monudentro”. É nesse sentido que esses dois trabalhos podem ser lidos como complementos de Monudentro, pois apontam um deslocamento imaginário do monumento do local onde está desde 1953.

FIGURA 3
Regina Silveira, Brazil Today, Natural Beauties, 1977. Serigrafia sobre cartão postal, 10,5 x 15 cm.

Os trabalhos comentados acima levam a pensar sobre a falência ou sobre as ruínas de um projeto de modernidade brasileira simbolizado pelo Monumento às Bandeiras, uma obra que levou três décadas para ser realizada, proposta durante um primeiro impulso futurista em 1920 e inaugurada às vésperas do IV Centenário de São Paulo, no auge de um segundo impulso futurista, que se apoiava sobre o primeiro - Brecheret sendo o vínculo histórico entre os dois impulsos - para se lançar a iniciativas ainda mais ambiciosas, como a criação do Museu de Arte Moderna (1948) e das Bienais de São Paulo (1951). Na instalação Monudentro, a sombra dessa modernidade futurista da primeira metade do século XX aparece como um índice de uma ausência de realidade, a assombrar aqueles que se movem no vazio deixado por sua desaparição. Em “Proposta para Monudentro” e na série Brazil Today, Natural Beauties, a modernidade futurista simbolizada pelo monumento aparece como uma ruína removida para um desmanche.24 24 Uma interpretação da série Brazil Today como um todo, articulando seus quatro volumes de cartões-postais encadernados (Brazilian Birds, The Cities, Indians From Brazil e Natural Beauties), enquanto crítica à falência do projeto de modernização brasileira entre os anos 1950 e 1970 pode ser encontrada em CHIARELLI (2004, pp. 130-134).

A ruína ou a falência de projetos para São Paulo, mesmo aqueles que chegaram a ser realizados e se tornaram espaços importantes da cidade, é objeto da pesquisa que resultou em Projeto São Paulo, de Fernando Piola. O projeto foi exibido pela primeira vez em 2010PIOLA, Fernando. Projeto São Paulo. São Paulo: Edição do autor, 2010. como uma intervenção-exposição na Cripta Imperial do Monumento à Independência. A instalação é composta por um conjunto de urnas de mármore contendo materiais de pesquisa relacionados a projetos de edifícios, conjuntos arquitetônicos, reformas urbanas e monumentos imaginados para ocupar espaços na cidade de São Paulo, mas que foram modificados, realizados parcialmente ou nunca executados.

Cada urna é dedicada a um projeto específico, e na urna correspondente ao “Projeto Bandeiras” (Figura 4) encontram-se reproduções de três imagens da maquete do Monumento às Bandeiras (duas imagens da versão de 1920 e uma da versão de 1936) e reproduções de dois projetos, ambos de 1936, indicando a localização do monumento no plano de avenidas da cidade e a configuração da praça que o abrigaria na entrada do Ibirapuera.

FIGURA 4
Fernando Piola, Projeto São Paulo, 2010PIOLA, Fernando. Projeto São Paulo. São Paulo: Edição do autor, 2010.. Fotografias em cores sobre papel montadas em acrílico e acondicionadas em caixa de mármore com gravação em baixo relevo feita a laser.

Quase todas as urnas têm o padrão de medida, sendo a única exceção a urna “Tempo Paulista”, um pouco mais larga. Nela estão apresentados cartões postais ligados a lugares ou eventos marcantes da narrativa oficial da história de São Paulo, como o quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, pertencente à coleção do Museu Paulista; o próprio edifício do Museu Paulista (1885-1890), idealizado pelo arquiteto italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi; o monumento à Fundação da cidade de São Paulo, no Pateo do Colégio; a Praça da Sé, com o Marco Zero e a catedral em construção; o Palácio Campos Elíseos, na Avenida Rio Branco, inaugurado em 1899, que foi sede do Governo do Estado e residência oficial do governador até 1967, quando foram transferidas para o Palácio dos Bandeirantes.

Cada urna traz uma gravação a laser no mármore, quase imperceptível, com o título dos projetos. A única urna que não apresenta referências aos projetos é a urna “Projeto São Paulo”, exibida um pouco mais afastada dos grupos de urnas. Diferente das outras, essa urna possui um espelho fixado na parte interna da tampa. No espelho está gravada a palavra “Projeto”, enquanto no fundo da parte interna está gravada a palavra “São Paulo”. Trata-se, portanto, de uma referência à própria obra e sua dimensão autorreflexiva. No texto que escreve para o folder da exposição, Fernando Piola afirma: “Projeto São Paulo é, assim como tais projetos para constituição da identidade, do tempo e do espaço de São Paulo, mais um projeto que vislumbra entender a cidade” (PIOLA, 2010PIOLA, Fernando. Projeto São Paulo. São Paulo: Edição do autor, 2010.).

Nesse mesmo texto, o artista aponta seu interesse pelos modos como a arquitetura e o urbanismo atuam como instâncias que forjam a identidade de uma cidade e de seus habitantes, estruturando a experiência urbana dos cidadãos, organizando seus espaços e impondo discursos. Projeto São Paulo busca exemplos em que essas estratégias falharam, exemplos de “insucessos de propostas para São Paulo”, projetos onde, ironicamente, aquilo que seria um devir promissor se mostrou como falência.

Nesse sentido, parece haver uma ironia ou pelo menos uma ambiguidade no uso do mármore - um material tradicionalmente associado à perenidade e à monumentalidade - como continente/recipiente de referências sobre projetos que nunca foram executados tal como idealizados. Como diz o próprio artista: “Estas urnas de mármore encerram solenemente o futuro não cumprido e, em um sentido mais amplo, funcionam como um busto alegórico de uma cidade não realizada” (PIOLA, 2019PIOLA, Fernando. Sobre Projeto São Paulo . Destinatário: Thiago Gil de Oliveira Virava. [S. l.] , 25 mar. 2019.).

Projeto São Paulo pode ser entendido como uma obra antimonumental25 25 Utilizo aqui o termo “antimonumental” tendo como referência sua caracterização por Stevens, Franck e Fazakerley (2012), como uma maneira de sintetizar estratégias cuja nomeação tem sido imprecisa na literatura recente sobre o tema, incluindo termos como contramonumento, antimonumento, não monumento, forma-negativa, monumento desconstrutivo, não tradicional, contra-hegemônico. Todos esses termos, de algum modo, procuram nomear estratégias que os autores entendem ser antimonumentais. Destaco aqui a seguinte contraposição entre o antimonumental e o monumento tradicional, que me parece pertinente a Projeto São Paulo: “Monumentos tradicionais são didáticos, transmitindo mensagens claras e unificadas através de representações figurativas, referências gráficas ou textuais a pessoas, lugares ou eventos, figuras alegóricas, e formas simbólicas arquetípicas. Em contraste, abordagens antimonumentais não oferecem respostas fáceis. Elas permanecem ambíguas e resistem a qualquer interpretação única; seus significados frequentemente dependem do conhecimento histórico dos visitantes, ou de informações suplementares disponíveis através de placas, brochuras, guias ou centro de interpretação” (Ibidem, p. 961, tradução minha). que trabalha a partir de uma São Paulo que nunca existiu. Antimonumental na medida em que, ao invés de um grande feito, homenageia a falha, o insucesso e o fracasso total ou parcial. Antimonumental também por sua portabilidade, podendo ocupar um espaço, distribuindo-se em diferentes configurações, como nas duas ocasiões em que foi exposto, desde que mantenha a integridade do conjunto. Antimonumental pela proximidade que constrói com as pessoas que se relacionam com o trabalho, algo que, em um monumento tradicional, costuma ocorrer apenas de forma imprevista (como as pessoas que sobem no Monumento às Bandeiras).

A solução da urna de mármore para a apresentação das imagens dos projetos teve o intuito, segundo o artista, de dar a eles “certo protagonismo” (Idem, 2019). Além disso, a ideia original era apresentar Projeto São Paulo no Obelisco Mausoléu aos Herois, de 1932. A obra, projetada pelo escultor ítalo-brasileiro Galileu Emendabili e inaugurada no dia 9 de julho de 1955, foi construída em mármore, de modo que as urnas criariam uma relação material direta com o local. Como o artista não conseguiu autorização da Polícia Militar para apresentar o projeto no Obelisco Mausoléu, ele o adaptou para a Cripta Imperial do Monumento à Independência.

De todo modo, independentemente de sua relação material com o ambiente onde são apresentadas, o mármore das urnas mantém uma relação intrínseca com seu conteúdo:

A caixa de mármore guarda um sentido duplo em si, funciona como um arquivo que monumentaliza/dignifica seu conteúdo, mas também faz forte referência à urna cinerária. Ou seja, a caixa de mármore, como uma metáfora do monumento, aponta para o futuro e para o passado ao mesmo tempo. (Ibidem)

Nesse sentido, elas não se configuram como - ou não apenas como - uma irônica homenagem àquilo que nunca veio a ser. Elas conferem uma nova existência ao registro de uma realidade que nunca chegou a existir concretamente. Com isso, apontam a possibilidade de compreendermos a nós mesmos ao “compreender o que não somos ou não nos tornamos, por meio dos monumentos” (Ibidem). O ato de erguer a tampa das urnas e retirar do esquecimento esses registros de uma cidade imaginária e utópica torna-se experiência ao mesmo tempo individual e coletiva, subjetiva e histórica, e faz pensar também no futuro - no projeto - de São Paulo, da cidade fora das urnas, aquela na qual vivemos hoje.26 26 Além das urnas, também faz parte de Projeto São Paulo o trabalho Guia de ruas de São Paulo, no qual também estão em jogo as relações entre experiência urbana, identidade e produção de representações e imagens da cidade de São Paulo. Piola insere em seu guia áreas correspondentes a favelas e regiões periféricas da cidade que, no guia original, são representadas de forma abstrata e sem detalhamento; além dessas áreas, completam o guia regiões despovoadas e agrícolas, represas e áreas de reserva ambiental. Emerge dessa outra representação uma São Paulo vazia, contrastante com a imagem “superlativa” da cidade viva e pulsante. Um futuro em que, talvez, a imagem do Monumento às Bandeiras, tal como ele se concretizou e onde permanece desde sua inauguração, possa vir a se juntar às imagens de suas versões nunca realizadas e encerradas na urna “Projeto Bandeiras”.

Um Souvenir Do Futuro

Em 2 de outubro de 2013, uma manifestação com participação de cerca de mil pessoas, incluindo lideranças indígenas, reuniu-se para protestar contra a Proposta de Emenda à Constituição 215, cujo texto modificava o sistema de demarcação de terras indígenas no país, retirando a autonomia do Poder Executivo no processo e transferindo-a ao Congresso. O trajeto começou na Avenida Paulista, desceu a Brigadeiro Luís Antônio e terminou com a ocupação do Monumento às Bandeiras, por volta das 20 horas. Quando a passeata chegou ao monumento, teve lugar o que foi possivelmente a intervenção mais contundente já realizada diretamente sobre o corpo da escultura de Brecheret, em que a própria obra foi objeto de crítica (Figura 5).27 27 No dia anterior, um grupo de pichadores já havia feito uma intervenção no monumento, escrevendo na base do monumento, na parte frontal, as frases “Bandeirantes assassinos” e “PEC 215 não”. Os manifestantes subiram no monumento carregando bandeiras e faixas com frases como “Demarcação já!” e “Guarani”. Um tecido vermelho foi estendido sobre as figuras do grupo escultórico atrás dos cavaleiros, enquanto na parte posterior do monumento, sobre uma das faces do batelão, a frase “Bandeirantes assassinos” foi pintada com tinta branca. Mas a intervenção que chamou mais atenção, rotulada como “vandalismo” por parte da imprensa no dia seguinte à manifestação, foram as manchas escorridas de tinta vermelha sobre as figuras do grupo que carrega o bandeirante ferido (Figura 6).

FIGURA 5
Manifestação que reuniu representantes de etnias de todo o país para chamar a atenção da sociedade sobre as violações de direitos das comunidades indígenas, Monumento às Bandeiras, São Paulo, 2013.

FIGURA 6
Registro da intervenção realizada no Monumento às Bandeiras durante manifestação contra a PEC 215, São Paulo, 3 de outubro de 2013.

Alguns dias depois da manifestação, o líder indígena guarani Marcos dos Santos Tupã publicou uma carta com o título “Monumento à resistência do povo Guarani”, uma resposta ao modo como os meios de comunicação se referiam à intervenção como depredação da obra. E, logo na primeira frase, o texto já indica que parte de um ponto de vista completamente diferente ao afirmar: “Para nós, povos indígenas, a pintura não é uma agressão ao corpo, mas uma forma de transformá-lo” (TUPÃ, 2013TUPÃ, Marcos dos Santos. Monumento à resistência do povo guarani. Centro de trabalho indigenista, 17 out. 2013. Disponível em: <https://trabalhoindigenista.org.br/monumento-a-resistencia-do-povo-guarani/>. Acesso em: 19 mar. 2022.
https://trabalhoindigenista.org.br/monum...
).

Marcos Tupã esclarece que o ato simbólico inicialmente planejado se concentrava no pano vermelho, representando o sangue de seus antepassados, “que foi derramado pelos bandeirantes, dos quais os brancos parecem ter tanto orgulho” (Ibidem). As intervenções com tinta vermelha haviam sido iniciativa de apoiadores não indígenas que acompanhavam o ato, mas Tupã as incorpora ao discurso da manifestação e propõe a seguinte leitura das imagens que circularam na imprensa:

(…) com esse gesto, eles [apoiadores não indígenas] nos ajudaram a transformar o corpo dessa obra ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência. Ocupado por nossos guerreiros xondaro, por nossas mulheres e crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida história de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir: que cesse de uma vez por todas o derramamento de sangue indígena no país! Foi apenas nesse momento que esta estátua tornou-se um verdadeiro patrimônio público, pois deixou de servir apenas ao simbolismo colonizador das elites para dar voz a nós indígenas, que somos a parcela originária da sociedade brasileira. (Ibidem)

Ao longo de toda a carta, o massacre dos povos indígenas pelos bandeirantes no passado é vinculado aos massacres físicos e simbólicos perpetrados no presente e aos que virão no futuro. Esses seriam os verdadeiros atos de vandalismo, praticados contra a memória viva dos povos originários, e não a tinta vermelha, que àquela altura já havia sido removida do corpo de granito do monumento.

No final do texto, Tupã questiona ainda a condição de patrimônio público do Monumento às Bandeiras e retoma a ideia de arte como transformação, que havia lançado na abertura do texto:

Esse monumento para nós representa a morte. E para nós, arte é outra coisa. Ela não serve para contemplar pedras, mas para transformar corpos e espíritos. Para nós, arte é o corpo transformado em vida e liberdade e foi isso que se realizou nessa intervenção. (Ibidem)

Utilizando a mesma metáfora do monumento como corpo que Guilherme de Almeida havia invocado sessenta anos antes em sua oração-poema, quando o associou ao ritual do ofertório católico, Marcos Tupã promove uma inversão epistemológica que merece destaque. Para ele, os sentidos de patrimônio e de arte residem menos naquilo que representam de um passado e mais em sua possibilidade de produzir transformação, de agir sobre o presente e, portanto, de modificar a imaginação do futuro. No caso de uma obra como o Monumento às Bandeiras, essa possibilidade só poderia ser ativada a partir da própria transformação da obra, de uma intervenção em seu corpo que o tornasse outro, como a tinta vermelha havia feito ao manchar as figuras com o sangue simbólico dos indígenas dizimados durante as bandeiras.28 28 Nesse sentido, os deslocamentos e distorções praticados por Regina Silveira podem também ser entendidos como transformações do corpo do monumento. Transformações que não incidem sobre seu corpo físico, mas operam dentro dos códigos e dispositivos próprios ao universo da representação visual, incidindo em seu corpo imaginário.

Ou por sua destruição, como Tupã sugeriu, em entrevista concedida alguns anos depois (TESSITORE, 2017TESSITORE, Mariana. Patrimônio: intervenções no Monumento às Bandeiras geram debates sobre a memória da cidade. ARTE!Brasileiros, São Paulo, n. 38, mar./abr., pp. 27, 2017.). Diante da dificuldade de levá-la a cabo, o líder indígena propôs a instalação de placas apresentando narrativas indígenas sobre a história dos bandeirantes.

O último trabalho contemporâneo que quero comentar também opera modificando o corpo do monumento, mas age sobre uma representação tridimensional em miniatura da obra (Figura 7). Monumento às bandeiras (2016), de Jaime Lauriano, é composto por uma miniatura encontrada pelo artista, refundida em outro material e posicionada sobre um tijolo de construção que funciona como base para a peça. O material de refundição ganha, nesse caso, uma importância fundamental. Segundo a legenda da obra, trata-se de latão e cartuchos de munições utilizados pela Polícia Militar e Forças Armadas Brasileiras. A obra integra a série Bandeirantes, composta por outros trabalhos que seguem a mesma proposta de fundir miniaturas de estátuas de bandeirantes utilizando os materiais mencionados acima, com a diferença de posicioná-las não sobre tijolos, mas sobre colunas de barro produzidas por meio da técnica da taipa de pilão.

FIGURA 7
Jaime Lauriano, monumento às bandeiras, 2016. Base de tijolo vermelho e réplica do Monumento às Bandeiras fundida em latão e cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e Forças Armadas Brasileiras, 20 x 9 x 7 cm.

No texto sobre a série disponível no site do artista, encontra-se a seguinte explicação a respeito da escolha dos materiais utilizados na fundição das figuras:

A escolha por utilizar os cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e Forças Armadas Brasileiras, deu-se para evidenciar a centralidade da figura de verdadeiros genocidas, como os bandeirantes, na construção da identidade nacional e da noção de segurança e soberania nacional. Este fato fica claro, nos diversos monumentos, praças e rodovias em homenagem aos bandeirantes. Porém, a faceta mais perversa dessas homenagens encontra-se nas homenagens prestadas pelo braço armado do estado, como por exemplo: a OBAN (Operação Bandeirante), centro de informações, investigação e repressão da ditadura militar, que teve em Carlos Alberto Brilhante Ustra o seu nome mais conhecido; ou o Batalhão Bandeirante (binfa-14), grupamento de operações especiais da Força Aérea Brasileira (FAB); dentre outros. (BANDEIRANTES…)

Em Monumento às bandeiras, os cartuchos de munição utilizada pela polícia e pelo exército tornam-se material condutor entre o passado e o presente do uso da violência pelo “braço armado do estado” contra a população, especialmente a população negra e indígena. Mas talvez também seja possível integrar o futuro no sistema de vasos comunicantes temporais instaurado pela obra.29 29 Esse sistema de comunicação entre passado e presente pode ser ampliado para as disputas territoriais que envolvem a exploração econômica de terras indígenas. É o que sugere um depoimento do artista ao curador Tadeu Chiarelli, publicado no catálogo da mostra “Metrópole: experiência paulistana”. Ao comentar a sugestão de que sua obra poderia ser lida como uma arma de ataque, Lauriano afirma: “Sim, é uma arma para se atirar contra os policiais que, junto com os grandes agropecuaristas são os novos bandeirantes, a meu ver, é claro” (CHIARELLI, 2017, p. 26).

O uso da miniatura faz lembrar de um episódio ocorrido durante a Revolução Francesa, quando, logo depois da Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, o empresário Pierre-François Palloy foi oficialmente incumbido da demolição do edifício da fortaleza, percebido tanto como símbolo da arbitrariedade real quanto como ameaça militar. As pedras extraídas dos muros durante a demolição foram reaproveitadas de diversas maneiras, entre elas na produção de um conjunto de réplicas em miniatura da Bastilha. Inicialmente esculpidas nas próprias pedras, as miniaturas eram enviadas aos departamentos franceses como souvenires do ato inaugural da Revolução e da impossibilidade daquele edifício - e dos valores que ele representava - continuar a existir30 30 Sobre as miniaturas da Bastilha, cf. BABELON (1965, pp. 217-230), GAMBONI (2014, p. 48). .

Algo do gênero parece estar presente em Monumento às bandeiras, pois a obra nos leva a perguntas como: até quando as populações negras e indígenas continuarão sendo alvo de extermínios físicos e simbólicos? Até quando um monumento que celebra expedições de extermínio dessas populações seguirá como marco urbanístico da capital paulista? Ao suscitar questões como essas, Monumento às bandeiras atua como uma espécie de “souvenir do futuro”, oferecendo a imagem não mais do corpo místico paulista que recebia de volta os bandeirantes, como queria Guilherme de Almeida, mas a imagem de um futuro em que o extermínio e sua celebração finalmente desapareceram; um futuro em que não haja mais espaço para novos bandeirantes e os antigos só sejam lembrados na forma de miniaturas.

No primeiro capítulo de An Anthropology of Images, Hans Belting nos lembra que “imagens públicas sempre controlaram a imaginação pessoal; e a imaginação pessoal, por sua vez, ou coopera com elas, ou resiste a elas” (BELTING, 2011BELTING, Hans. An Anthropology of Images: Images, Medium, Body / Trad. Thomas Dunlap. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2011., p. 15, tradução minha). As imagens públicas, nelas incluídas as que ocupam os espaços públicos, disputam nossa imaginação e, portanto, nosso passado, presente e futuro. Se as gerações modernistas da primeira metade do século XX projetaram na construção do Monumento às Bandeiras a sua imagem de futuro (e esse futuro, ou sua falência, somos nós), nas obras de Regina Silveira, Fernando Piola e Jaime Lauriano discutidas acima, assim como na análise certeira por Marcos Tupã da intervenção realizada no monumento em 2013TUPÃ, Marcos dos Santos. Monumento à resistência do povo guarani. Centro de trabalho indigenista, 17 out. 2013. Disponível em: <https://trabalhoindigenista.org.br/monumento-a-resistencia-do-povo-guarani/>. Acesso em: 19 mar. 2022.
https://trabalhoindigenista.org.br/monum...
, encontramos situações em que a imaginação pessoal resiste e produz ruídos no imaginário hegemônico em torno do Monumento às Bandeiras, emblematicamente fixado pela oração-poema de Guilherme de Almeida. Ruídos que colocam em pauta não apenas o destino dessa imagem pública específica, mas a imaginação de futuros para a própria sociedade que ela deveria representar.

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  • WORCESTER, Thomas. The Cambridge Encyclopedia of the Jesuits. New York: Cambridge University Press, 2017. pp. 769-770.

NOTAS

  • 1
    Este artigo é resultado do projeto de pesquisa “O Monumento às Bandeiras como processo: do presente ao passado”, que desenvolvo em conjunto com o Prof. Tadeu Chiarelli e com a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA-USP, Eliane Pinheiro, em curso desde 2018.
  • 2
    Assinando sob o pseudônimo Aristophanes, Menotti Del Picchia, um dos futuros modernistas, escreveu, em 29 janeiro de 1920: “São Paulo, que está no fastígio glorioso de todas as suas forças, necessita, em 1922, dar uma impressão apoteótica do seu progresso e cultura” (DEL PICCHIA, 1983, p. 64).
  • 3
    O episódio é descrito em BRITO, (1974, p. 107).
  • 4
    Ver, por exemplo: artigos “Crônica social: Brecheret” (15 jan. 1920) e “Brecheret” (26 fev. 1920), republicados em DEL PICCHIA (1983, pp. 62-63 e 85-89); ANDRADE (1920); IVAN (1920a; 1920b).
  • 5
    Para uma discussão sobre o uso desses termos pelo grupo paulista, cf. FABRIS (1994).
  • 6
    No artigo “Questões de arte”, publicado em plena ofensiva “futurista” de 1921, Oswald de Andrade usa a maquete do Monumento às Bandeiras como exemplo para criticar aqueles que acusavam o artista de inépcia na execução da anatomia de suas figuras: “Não se compreende, por exemplo, que ele [Brecheret] faça cavalos e homens com o pescoço desmesurado, ciclópicos de força majestosa e rápida, sem molezas ventrais nem detalhes orgânicos desvalorizadores. Chegam diversos imbecis a crer que Brecheret não sabe que os cavalos e os homens que andam pelas ruas são diferentes dos que ele plasma. E dizem: ‘Mas onde já se viu uma perna desse tamanho, um pescoço desmedido assim, aquele pé está violento demais’ […] Aqueles Bandeirantes que seriam, sem a força desmesurada dos seus músculos tensos, sem a caminhada heroica dos seus passos? uma procissão idiota de nus familiares” (ANDRADE, 1921c, p. 5). Oswald deixava claro que o que estava em jogo na escultura de Brecheret era sua força expressiva, e não sua aderência à realidade visível, como esperavam os críticos.
  • 7
    Desde pelo menos 1911, o engenheiro Adolfo Augusto Pinto já apontava a ausência de uma homenagem aos bandeirantes na capital paulista (cf. CHIARELLI, 2019). Em 1920, além do projeto dos portugueses e do primeiro projeto de Brecheret, o escultor italiano Nicola Rollo também havia sido encarregado da realização de um monumento em homenagem aos bandeirantes, previsto para ocupar o primeiro lance de escadarias em frente ao Museu Paulista, como parte das comemorações do centenário da Independência. No entanto, somente em 1923 um modelo em barro do projeto Heroísmo dos bandeirantes foi aprovado por Washington Luís, então presidente do Estado. O estouro da Revolução de 1924 obrigou o artista a deixar a cidade e o impossibilitou de manter os cuidados necessários à manutenção do modelo em barro. Isso, somado à falta de apoio do governo Carlos de Campos com o término do conflito, levou Rollo a abandonar o projeto (cf. KUNIGK, 2001, pp. 107-133).
  • 8
    Além do granito paulista que dá corpo às figuras do Monumento às Bandeiras, cogitou-se ainda a ideia de transportar para um sarcófago em sua base os restos mortais do bandeirante Fernão Dias Paes Leme, que desde 1922 jazem na nave principal da igreja do Mosteiro de São Bento. Com isso, o corpo simbólico do monumento se ergueria sobre o corpo real de um bandeirante. A ideia não foi concretizada, mas ficou registrada nas memórias de Cassiano Ricardo, figura central para a retomada do projeto em 1936. Cf. RICARDO (1970, p. 99).
  • 9
    Cf. Suscipe em WORCESTER (2017).
  • 10
    Voltaram os Bandeirantes! / Voltou o que as caatingas do Nordeste/ semeou de cidades e fazendas,/ e abateu o quilombo de Palmares…/ Voltaram os Bandeirantes!/ Voltou do enigma do sertão goiano/ o “diabo velho” que incendiou as águas/ na luta longa do devassamento… Voltaram os Bandeirantes!/ Voltou aquele sonhador do sonho/ verde das esmeraldas fabulosas/ sumidas no sumir do Sumidouro… (A ORAÇÃO-POEMA, 1953, p. 7).
  • 11
    Sobre os trabalhos da Oficina de Cantaria A. Incerpi e Cia., que venceu a concorrência para executar a escultura em granito sob supervisão de Brecheret, ver o capítulo “A construção”, em BATISTA (1985).
  • 12
    Sobre as comemorações do IV Centenário, sua dimensão de “missão civilizadora” moderna e sua vinculação ao mito do bandeirante, cf. ARRUDA (2015, pp. 61-87) e MARINS (1999). Para uma análise da falência daquela missão tendo o Parque Ibirapuera como objeto, cf. CURI (2018).
  • 13
    Cabe lembrar que o escultor italiano Nicola Rollo, encarregado da realização das esculturas que decoram o Palácio das Indústrias, também mantinha ateliê nas dependências do edifício desde que este estava ainda em fase de construção, e ocupou-o para essa finalidade mesmo depois da inauguração oficial do palácio, em 1924 (cf. KUNIGK, op. cit., pp. 94-107). No entanto, como Oswald de Andrade em nenhum momento menciona Rollo em seus textos, pode-se assumir que o personagem é de fato inspirado em Victor Brecheret.
  • 14
    Para as citações do trecho, utilizo a versão publicada em jornal em 1921. As alterações na versão em livro serão comentadas a seguir.
  • 15
    O caráter “titânico” dos cavalos, as bandeiras e as doenças são elementos do primeiro projeto do Monumento às Bandeiras, citados no memorial publicado junto com a reprodução fotográfica da maquete na revista Papel e Tinta (n. 3, São Paulo, jul. 1920).
  • 16
    Mais adiante, será discutido como a relação entre a modernização de São Paulo e o surgimento dessa nova mentalidade já vinha sendo objeto de reflexão do escritor no discurso em homenagem a Menotti Del Picchia.
  • 17
    Em O futurismo paulista, Annateresa Fabris já observara esse movimento do texto de Oswald de Andrade (FABRIS, 1994, p. 79).
  • 18
    Para uma análise abrangente das crônicas de Menotti Del Picchia na década de 1920, cf. CASTRO, (2008).
  • 19
    Sobre a invenção histórica do bandeirante no âmbito da literatura e das instituições dedicadas à pesquisa histórica em São Paulo, entre 1870 e 1940, cf. FERREIRA (2002).
  • 20
    Na versão final do monumento, retomada em 1936, Brecheret incluiu, entre as figuras do grupo que segue os dois cavaleiros, alguns homens negros, dentro também de uma nova concepção para o projeto, que eliminava os elementos arquitetônicos (escadaria e plinto) e situava o monumento ao nível do chão, como se emergisse do solo.
  • 21
    Em um manuscrito sem data, possivelmente posterior a 1948, republicado na coletânea Estética e política, Oswald de Andrade faz diversas críticas a Brecheret e afirma que o Monumento às Bandeiras “evidentemente não pode ter a pureza do de 22” (ANDRADE, 2011, p. 227).
  • 22
    Ao comentar a primeira obra da série In Absentia, realizada em 1982, a artista afirma: “Pensei em um objeto ausente, que era o cavalete de pintura, e nessa sombra projetada que invadia dois planos (chão e parede), como funciona uma sombra real. Pensei que isso daria um lugar privilegiado para o olhar, que era de onde se perceberia que estava faltando o cavalete gerador da sombra” (SILVEIRA, 1995, pp. 109-110).
  • 23
    Conforme a artista explica no texto de apresentação do projeto, a silhueta de Monudentro foi desenhada a partir de uma fotografia do Monumento às Bandeiras.
  • 24
    Uma interpretação da série Brazil Today como um todo, articulando seus quatro volumes de cartões-postais encadernados (Brazilian Birds, The Cities, Indians From Brazil e Natural Beauties), enquanto crítica à falência do projeto de modernização brasileira entre os anos 1950 e 1970 pode ser encontrada em CHIARELLI (2004, pp. 130-134).
  • 25
    Utilizo aqui o termo “antimonumental” tendo como referência sua caracterização por Stevens, Franck e Fazakerley (2012), como uma maneira de sintetizar estratégias cuja nomeação tem sido imprecisa na literatura recente sobre o tema, incluindo termos como contramonumento, antimonumento, não monumento, forma-negativa, monumento desconstrutivo, não tradicional, contra-hegemônico. Todos esses termos, de algum modo, procuram nomear estratégias que os autores entendem ser antimonumentais. Destaco aqui a seguinte contraposição entre o antimonumental e o monumento tradicional, que me parece pertinente a Projeto São Paulo: “Monumentos tradicionais são didáticos, transmitindo mensagens claras e unificadas através de representações figurativas, referências gráficas ou textuais a pessoas, lugares ou eventos, figuras alegóricas, e formas simbólicas arquetípicas. Em contraste, abordagens antimonumentais não oferecem respostas fáceis. Elas permanecem ambíguas e resistem a qualquer interpretação única; seus significados frequentemente dependem do conhecimento histórico dos visitantes, ou de informações suplementares disponíveis através de placas, brochuras, guias ou centro de interpretação” (Ibidem, p. 961, tradução minha).
  • 26
    Além das urnas, também faz parte de Projeto São Paulo o trabalho Guia de ruas de São Paulo, no qual também estão em jogo as relações entre experiência urbana, identidade e produção de representações e imagens da cidade de São Paulo. Piola insere em seu guia áreas correspondentes a favelas e regiões periféricas da cidade que, no guia original, são representadas de forma abstrata e sem detalhamento; além dessas áreas, completam o guia regiões despovoadas e agrícolas, represas e áreas de reserva ambiental. Emerge dessa outra representação uma São Paulo vazia, contrastante com a imagem “superlativa” da cidade viva e pulsante.
  • 27
    No dia anterior, um grupo de pichadores já havia feito uma intervenção no monumento, escrevendo na base do monumento, na parte frontal, as frases “Bandeirantes assassinos” e “PEC 215 não”.
  • 28
    Nesse sentido, os deslocamentos e distorções praticados por Regina Silveira podem também ser entendidos como transformações do corpo do monumento. Transformações que não incidem sobre seu corpo físico, mas operam dentro dos códigos e dispositivos próprios ao universo da representação visual, incidindo em seu corpo imaginário.
  • 29
    Esse sistema de comunicação entre passado e presente pode ser ampliado para as disputas territoriais que envolvem a exploração econômica de terras indígenas. É o que sugere um depoimento do artista ao curador Tadeu Chiarelli, publicado no catálogo da mostra “Metrópole: experiência paulistana”. Ao comentar a sugestão de que sua obra poderia ser lida como uma arma de ataque, Lauriano afirma: “Sim, é uma arma para se atirar contra os policiais que, junto com os grandes agropecuaristas são os novos bandeirantes, a meu ver, é claro” (CHIARELLI, 2017, p. 26).
  • 30
    Sobre as miniaturas da Bastilha, cf. BABELON (1965, pp. 217-230), GAMBONI (2014, p. 48).
  • 31
    Thiago Gil de Oliveira Virava é doutor em história, crítica e teoria da arte pela Universidade de São Paulo (2018), com pesquisa sobre a relação de Oswald de Andrade com as artes visuais, e mestre na mesma linha de pesquisa (USP, 2012), com estudo sobre a percepção do movimento surrealista no Brasil. Organizou o ciclo de encontros História(s) da arte no Brasil (2011-2012), na Biblioteca Mário de Andrade. É autor dos livros Uma brecha para o surrealismo (Alameda, 2015) e Um boxeur na arena: Oswald de Andrade e as artes visuais no Brasil (Edições SESC, no prelo). É coordenador de Pesquisa e Difusão na Fundação Bienal de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2022
  • Aceito
    04 Maio 2022
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