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Entre a atenção e o devaneio: Cézanne tardio e a visualidade que emerge no limiar do século XX

Between Attention and Reverie: Late Cézanne and the Emerging Visuality in the Threshold of the Twentieth Century

Entre la atención y la ilusión: el Cézanne tardío y la visualidad que emerge en el umbral del siglo XX

RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão acerca do papel emblemático que o Cézanne tardio veio a assumir mediante a visualidade que emerge no limiar do século XX. Após uma breve descrição sobre o viés teórico aqui adotado (história da visualidade), delineio o modo pelo qual a obra tardia de Cézanne pretendia demonstrar uma continuidade entre a atenção e o devaneio, ainda que por meio de uma desestabilização paradigmática da visão. Por fim, argumento que tal desestabilização assinala duas instâncias distintas: de um lado, alude a um modelo iminente de automatismo passivo da visão; de outro, suscita novas possibilidades perceptivas pautadas na singularidade irrepetível da visão.

PALAVRAS-CHAVE:
Visualidade; Cézanne tardio; Desestabilização; Atenção.

ABSTRACT

This article proposes a reflection about the emblematic role that the late Cézanne assumed in relation to the emerging visuality in the threshold of the twentieth century. After a brief description of the theoretical bias adopted here (history of visuality), I present the way in which Cezanne’s late work intended to demonstrate a continuity between attention and reverie, although through a paradigmatic destabilization of vision. Finally, I argue that such destabilization points out two distinct instances: on the one hand, it alludes to an imminent model of passive automatism of vision; on the other, it raises new perceptual possibilities based on the unrepeatable singularity of vision.

KEYWORDS:
Visuality; Late Cézanne; Destabilization; Attention.

RESUMEN

Este artículo propone una reflexión sobre el papel emblemático que Cézanne tardío asumió a través de la visualidad que se manifiesta en el umbral del siglo XX. Tras una breve descripción del sesgo teórico adoptado aquí (historia de la visualidad), esbozo la forma por la cual la obra tardía de Cézanne pretendía demostrar una continuidad entre la atención y la ilusión, aunque a través de una desestabilización paradigmática de la visión. Finalmente, argumento que tal desestabilización marca dos instancias distintas: de un lado, alude a un modelo inminente de automatismo pasivo de la visión; por otro, plantea nuevas posibilidades perceptivas basadas en la unicidad irrepetible de la visión.

PALABRAS CLAVE:
Visualidad; Cézanne tardío; Desestabilización; Atención.

INTRODUÇÃO

Nas disciplinas de história da arte em nível médio ou de graduação, não é raro o impressionismo ser apresentado em contraposição ao expressionismo, como se um fosse a antítese do outro - como se, não obstante, os artistas novecentistas pudessem prever o que viria após a virada do século. Tal estratégia didática é em larga medida devedora, segundo Jacques Aumont (19931. AUMONT Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993., p. 291-296), de um célebre texto de Hermann Bahr intitulado “Expressionismus” e escrito em 1920. De acordo com Bahr, crítico austríaco, enquanto o expressionista vê e fala em seus quadros com os olhos do espírito, o impressionista olharia apenas com os olhos físicos, “sem pensar”, como um gramofone do mundo externo. Ao passo que o impressionismo deixava sem resposta as questões que afligiam seu tempo, o expressionismo teria reaberto a boca do artista que, de tanto escutar calado, passaria a gritar por socorro, com sua alma agonizando.

A tal pretexto eu acrescento, em contrapartida e de maneira anacrônica, um breve relato: nas aulas de pintura em aquarela que eu ministro, tem se mostrado profícuo o exercício de reproduzir quadros impressionistas. Com isso, os alunos conseguem compreender como aquelas manchas de cor exprimem muito mais do que a mera descrição sensorial. Pois a arte impressionista expressava o modo pelo qual o pintor queria se apropriar de um momento particular e irrepetível, extraindo certo cosmos do caos. Nisso consiste a atenção ao instante, à percepção fugaz do mundo: aquela árvore, aquela flor, aquela rua, aquela casa etc., fragmentos de um olhar inundado de luz e cores, que “respira” por meio da tela.

Em certa medida, pois, a denúncia de Bahr é assertiva: os olhos do impressionista só ouvem, não falam; escutam com atenção, mas não respondem. A interpretação de Bahr, porém, reduz o impressionismo a um mero “percepcionismo”, ou seja, à “ideia de que suas pinturas, em graus variados, envolvem uma transcrição do mundo ‘tal como [se lhe] apresenta’” (CRARY, 2013, p. 296). Assim os impressionistas foram recriminados: por não terem o que dizer ou o que mostrar. Na verdade, eles não queriam dizer e mostrar algo mais do que podiam ver (e fazer ver), lá onde a visão é capaz de conjugar o que ela própria enxerga. Um olhar sem restrições, liberado de toda ancoragem normativa, foi sobremaneira ensejado por Paul Cézanne, o pós-impressionista que não buscava alternativas para as coordenadas fixas que ele irrevogavelmente recusava.

Historicamente, a obra de Cézanne é produto de uma transição, um interregno repleto de possibilidades, posterior ao fim dos modelos clássicos da visão (dos séculos XVII e XVIII), mas anterior à reinserção da visão nos regimes mecânicos que se desenvolvem no século XX. “(...) Cézanne continua a ser um exemplo preeminente do caráter não sincrônico do modernismo, da ‘coexistência de realidades provindas de momentos radicalmente diferentes’” (CRARY, 2013, p. 350). As pinturas tardias de Cézanne, em especial, anunciam sua incansável atenção à própria atenção, um olhar que paira no limite entre a reinvenção e o início da dissolução da linguagem figurativa.

Motivado pela oportunidade de retomar e aprofundar a importância histórico-discursiva do olhar pós-impressionista num momento em que a visão ocidental começa a problematizar a si mesma, este artigo propõe uma reflexão acerca do papel emblemático que o Cézanne tardio veio a assumir mediante a visualidade que emerge no limiar do século XX. Inicialmente, apresento o aparato conceitual que me permite levar a cabo o que se pode designar por História da Visualidade. Sob esse viés, a articulação abrangente de discursos e modos de pensamento que “orbitam” determinado momento histórico importa mais que uma análise historiográfica bem delimitada.

A obra tardia de Cézanne, desse modo, não constitui propriamente um objeto a ser analisado, e sim um enfoque possível para tratar de uma questão mais ampla: o problema da “atenção distraída” que, a partir do século XX, reconfigurou os regimes de visualidade que balizam o pensamento ocidental. Passo a descrever, então, a forma pela qual a obra tardia de Cézanne pretendia demonstrar uma continuidade (em vez de dissociação) entre a atenção e o devaneio, ainda que por meio de uma desestabilização paradigmática da visão. Por fim, argumento que tal desestabilização assinala duas instâncias distintas: de um lado, alude a um modelo iminente de automatismo passivo da visão; de outro, suscita novas possibilidades perceptivas pautadas na singularidade irrepetível da visão.

HISTÓRIA DA VISUALIDADE E A DESOBJETIVAÇÃO DA visão

Boa parte da crítica cultural recente, derivada de uma já desgastada tradição marxista (cf. FOSTER, 2014), tem se baseado na ideia de “distração” (fragmentação, estetização, esvaziamento etc.) para caracterizar a (des)subjetividade contemporânea. O que propõe, em contrapartida, o historiador foucaultiano Jonathan Crary é que essa ideia de “distração” tornou-se possível somente no interior de sua relação recíproca com a emergência das normas e práticas voltadas à atenção.

Desde os anos 1990, Crary tem desenvolvido um amplo trabalho genealógico1 da experiência perceptiva e dos regimes de visualidade. Em Técnicas do observador (CRARY, 2012), o historiador examina o modo pelo qual as práticas de representação, no início do século XIX, enalteciam a noção de uma visão subjetiva. Se os modelos epistemológicos vigentes nos séculos XVII e XVIII concebiam o mundo como efeito de leis naturais, de base newtoniana, que independiam da vicissitude do corpo humano, uma nova experiência teria sido convocada, sobretudo a partir de Goethe (em sua doutrina das cores), no início do século XIX: a de que as imagens também são efeito de um olho que vê e ao mesmo tempo as produz.

Seguindo este raciocínio, a invenção da fotografia e os movimentos artísticos paralelos, de Turner aos impressionistas, são sintomas tardios da ideia de que nossa experiência sensorial não é objetiva nem universal. Crary argumenta longamente como essa mesma noção teria amparado tanto a concepção romântica de uma estética purificada quanto o desenvolvimento científico de uma psicologia fisiológica. Disso importa retermos que, uma vez abstraídos de um referencial prefixado, os regimes ocidentais de visualidade mergulharam, a partir do século XIX, na opacidade e na espessura do corpo humano (ainda que certa transparência tenha sido requerida, ao mesmo tempo, por meio de fórmulas científicas ou de pinceladas românticas).

Se a câmara escura, como conceito, subsistiu como base objetiva da verdade visual, vários discursos e práticas - na filosofia, na ciência e em procedimentos de normatização social - tendem a abolir essa base no início do século XIX. Em certo sentido, ocorre uma nova valoração da experiência visual: ela adquire mobilidade e intercambialidade sem precedentes, abstraídas de qualquer lugar ou referencial fundante. (CRARY, 2012, p. 22).

É preciso evitar, no entanto, a leitura tipicamente pós-moderna - como a citação acima, deslocada, pode sugerir - de uma ruptura da objetividade do sujeito moderno em detrimento de um subjetivismo fragmentário. A transição a que se refere o autor remete mais a uma base comum, tal como aquela que havia, argumenta Crary, entre a fotografia e o impressionismo. Como o próprio nome do movimento diz, o que importa ao pintor impressionista é a impressão que ele tem da realidade. Só que em vez de se contrapor à promessa fotográfica de registrar a realidade tal como ela é, o olhar impressionista se apropria dela justamente como uma impressão possível.2 Ou seja, em que pese os ideais românticos por volta dessa mesma época,3 o olhar subjetivo e a captura objetiva da realidade começaram a se confundir entre si.

Não obstante, a descontinuidade do pensamento clássico que Foucault (200712. FOUCAULT Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 289) também localiza no século XIX “coincidirá com o recuo da representação, ou, antes, com a [sua] liberação”. Grosso modo, se antes uma representação aludia a algo em si, como referencial objetivo, passou-se a entendê-la como algo que foi visto por alguém, em sua particularidade e em meio a instâncias dispersas - eis a reconfiguração do olhar que torna concebíveis a câmera fotográfica e a cinematográfica. Ganha força, assim, a consciência de que o mundo visto, bem como os meios que temos para vê-lo, depende de um olhar prévio composto de coordenadas visuais e discursivas.

Já em Suspensões da percepção, Crary (20136. CRARY Jonathan. Suspenções da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013.) investiga o aparecimento, no fim do século XIX, de novos modelos de visão que suplantariam os antigos, pautados na autopresença entre o observador e o mundo. Uma vez presumida a impossibilidade de apreender por inteiro a realidade objetiva - ausência que se tornará fundamental nas reflexões de Blanchot, Lacan etc. -, a capacidade de “prestar atenção” (em um número reduzido de estímulos) passa a ser considerada condição de uma subjetividade plena.

O que está em jogo aqui é um modelo para a experiência subjetiva, modelo bastante presente nas décadas de 1880 e 1890, no qual a consciência não correspondia a uma esfera contínua, reveladora para o sujeito de um mundo totalmente autopresente, mas antes a um espaço fracionado, no qual os conteúdos moviam-se entre zonas variáveis de clareza e consciência, imprecisão e capacidade de resposta. (CRARY, 2013, p. 289)

Para sustentar tal argumento, Crary analisa algumas obras-chave de Manet, Seurat e Cézanne: “(...) o que elas têm em comum é um enfrentamento do problema geral da síntese perceptiva e da capacidade unificadora e desintegradora da atenção” (CRARY, 2013, p. 31). De maneira análoga à estratégia de Foucault na abertura de As palavras e as coisas (em que Las meninas de Velázquez condensa, em termos visuais, toda a problemática do sujeito clássico) (cf. FOUCAULT, 2007, p. 3-22), Crary mostra-nos que, na problemática conjugada nas obras analisadas, a “atenção” passa a significar, analogamente à figura de um operador de radar, tanto retenção quanto espera de que algo aconteça.

(...) a atenção surge como objeto discursivo e prático no momento histórico em que a visão e a audição separavam-se de modo gradual dos códigos e práticas que lhes conferiam algum grau de certeza, confiabilidade e naturalidade. Quanto mais os sentidos revelavam-se inconsistentes, condicionados pelo corpo e sujeitos à ameaça da distração e da improdutividade, mais o indivíduo normativo definia-se em termos de sua capacidade objetiva e estatística de prestar atenção, facilitando sua compatibilidade funcional com os ambientes institucionais e tecnológicos. (CRARY, 2013, p. 283)

É desse modo que irão adquirir valor discursivo entre os críticos do século XX os sentidos de tensão, distinção, abjeção, ausência, adiamento etc. Ganhará importância, ao mesmo tempo, a conduta moral de concentrar-se, de modo geral, no trabalho, nos estudos e no lazer. O ponto de chegada desse movimento, entretanto, aponta menos uma subjetividade abstrata e mais uma imanência da visão: se aquilo que atribui força e sentido ao que vemos não é mais algo externo, e sim inerente ao próprio corpo enquanto elemento inescapável de nossa inserção no mundo, resta vã a pretensão de ir além da visão. Tudo o que vemos somente adquire forma e sentido ao ser propriamente visto. Para uma compreensão mais apurada de tal enunciado, a obra tardia de Cézanne é chave contundente, pois reflete e condensa, na virada do século XX, os emergentes modos de se perceber o movimento, a temporalidade e a subjetividade.

CÉZANNE TARDIO E SEU OLHAR ESTENDIDO

Em vez de tentar situá-lo numa mitologia oitocentista do olhar “inocente” ou infantil, deve-se considerar Cézanne como um observador surpreendentemente alerta para tudo o que fosse anormal na experiência perceptiva. Em sua obra tardia, já não trabalhava mais com um tábula rasa perceptiva a partir da qual construiria uma nova estrutura essencial para o mundo; antes, lançara-se num embate com o exterior dissonante que atuava sobre ele, desafiando seu entendimento do mundo reconhecível (CRARY, 2013, p. 289).

Já se disse repetidas vezes que Cézanne nunca assimilou os “macetes” do ateliê, que buscou livrar-se dos esquemas prontos e das soluções tradicionais para a organização pictórica - como, por exemplo, as práticas historicamente acumuladas que se associam à perspectiva linear. No entanto, diferentemente de Manet e de Seurat, os problemas que Cézanne enfrentava nada tinham a ver com a possibilidade da “percepção pura” ou da “presença” na percepção. Se ele continuou a valorizar, depois de 1900, os efeitos do olhar prolongado e da visão fixa,4 era com vistas não mais a uma via purificada de acesso às coisas-em-si, e sim à intuição de que a maneira pela qual percebemos as coisas prescreve tanto a coisa percebida quanto o olhar que a percebe.

De acordo com a famosa análise de Merleau-Ponty (200418. MERLEAU-PONTY M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004., p. 132), Cézanne “retorna justamente à experiência primordial de onde essas noções [coisa percebida e observador] são tiradas e que nos são dadas inseparáveis”. O artista pós-impressionista teria demonstrado, assim, como nosso olhar dota de sentido o mundo observado e, no mesmo movimento, percebe a si mesmo enquanto olhar. Na concepção de Merleau-Ponty, afinal, nosso olhar nunca é estritamente subjetivo (não possui agência na coisa vista), bem como a percepção não se reduz a uma função sensorial e fisiológica, tampouco opera um fenômeno intuitivo e transcendente.

Não é de se surpreender, pois, que “muitos comentários influentes sobre a obra de Cézanne associaram-na de modo amplo a certos aspectos da fenomenologia do início do século XX” (CRARY, 2013, p. 278). Essa correlação, contudo, não parece ser de todo apurada. Um dos objetivos de Edmund Husserl, afinal, era o de provar que a experiência psíquica era capaz de produzir cognições estáveis e objetivamente válidas - indo na contramão, por exemplo, de um interesse generalizado da psicologia do século XIX pelo estudo de ilusões ópticas, que suscitavam questões diversas sobre a relatividade da percepção individual. Nos termos de Francisco Varela,

(...) embora ele afirmasse ter por objetivo levar a filosofia a uma confrontação direta com a experiência, na verdade ignorava ao mesmo tempo o aspecto consensual e o aspecto direto e corpóreo da experiência (...). A virada de Husserl na direção da experiência e das “coisas em si” era totalmente teórica, ou para dizer no sentido inverso, faltava-lhe qualquer dimensão pragmática. (VARELA, 1993, p. 17, tradução minha, grifos no original)

Varela faz a mesma crítica a Merleau-Ponty, que enfatizava “o contexto corpóreo da experiência humana, mas de modo puramente teórico” (VARELA, 1993, p. 19). A questão é que Cézanne, em vez de tentar “isolar” os fenômenos de suas aparências evanescentes, começou a tomar a própria instabilidade das aparências como sendo a única coisa efetivamente real.5 Pois o chamado “Cézanne tardio”, referente às obras de 1902 em diante, já tinha se dado conta de que qualquer tentativa de agarrar ou capturar as presenças, isto é, de estabilizar a percepção, leva justamente a ausências e desintegrações. “Seu embate com a forma mais inerte e enraizada de matéria transforma-se na intuição das metamorfoses, das inflexões e da fluidez radical do mundo” (CRARY, 2013, p. 327). O que marca a sua fase madura, outrossim, é a consciência nietzscheana do fluxo instável e disperso que faz coincidir o olhar e o corpo ao mundo, exigindo-lhe uma reconfiguração radical do problema da impressão e da substância percebida.

Tanto Cézanne quanto Nietzsche recusam esse processo por meio do qual “a imprecisão e o caos das impressões dos sentidos são, por assim dizer, dotados de lógica”. Com Nietzsche aprendemos que a antítese desse mundo fenomênico é “o mundo informe e informulável do caos das sensações”; com Cézanne aplicamos uma atenção motora e sensorial à contínua emergência e desintegração de um conjunto de relações em que o ser é um elemento constituinte. (CRARY, 2013, p. 296-297)

Em relação ao problema da atenção estudado por Crary, a obra tardia de Cézanne é relevante por expor a continuidade (em vez de dissociação) entre a atenção e o devaneio, a unidade e a dissolução, a assimilação e a desestabilização das coisas percebidas. Tal insight torna-se mais interessante se levarmos em conta que a ideia de um olhar fixo e atento se mantinha atrelada, ainda no impressionismo, aos sistemas clássicos de representação, como meio de congelar a duração e as metamorfoses a fim de alcançar o domínio da linguagem pictórica. Em sentido contrário, Cézanne concebia o olhar fixo e atento como aquilo “que aniquila a aparente ‘naturalidade’ do mundo e revela a natureza fluida e provisória da experiência visual, enquanto o olhar móvel e transversal é o que preserva o caráter pré-construído do mundo” (CRARY, 2013, p. 295).

Trata-se de constatar que, quando fixamos o olhar em alguma coisa, gera-se uma situação potencialmente volátil: depois de um período relativamente breve, o olhar imóvel desencadeia certa estranheza que dissolve os elementos pictóricos até então reconhecidos. Com efeito, a atenção pós-impressionista integrava um continuum dinâmico no qual sua duração era sempre limitada, pois inevitavelmente se decompunha num estado de distração; o olhar atento, portanto, acarretava a desintegração e a perda da percepção, isto é, o desmantelamento da forma inteligível. É nesse sentido que Nelson Goodman, por exemplo, caracteriza o olhar fixo como cego: “(...) o olho não pode ver normalmente sem se movimentar em relação ao que vê; aparentemente a varredura é necessária para a visão normal” (GOODMAN, 1968, p. 12-13, tradução minha). Ou ainda, nos termos de Arthur Koestler,

Os movimentos inconscientes do olho não são apenas auxiliares que tornam a visão mais clara; são condições sine qua non da visão. Quando o olhar do sujeito permanecia realmente fixo num objeto imóvel (...) sua visão tornava-se caótica, a imagem do objeto se desintegrava e desaparecia - depois de um tempo reaparecia, mas distorcida ou fragmentada. A visão estática não existe; não existe visão sem exploração. (KOESTLER, 1969, p. 158, tradução minha, grifos no original)

A célebre declaração de Cézanne de que não há linhas retas na natureza procede das diversas experiências com a fixação e a imobilização ópticas que, em meados da década de 1890, lhe revelaram a inadequação das práticas pictóricas convencionais para a representação de um mundo que, em última instância, não possui ordenação preestabelecida. Com isso em vista, torna-se notória a imprecisão das interpretações6 que postulam que as chamadas “distorções de Cézanne” seriam o resultado de suas tentativas de retratar com fidelidade suas impressões ópticas subjetivas. Pois o olhar de Cézanne não tentava se agarrar à presença de um mundo idêntico e estruturalmente reconhecível somente pela imobilidade aglutinadora de um olhar atento; ao contrário, a maneira como ele experimentava uma atenção contínua que colocava o mundo em movimento, fazendo vibrar e oscilar seu campo visual, o motivava a habitar os impulsos incessantes da desestabilização que advinham daquela mesma atenção.

O que está em jogo na sensibilidade de Cézanne para as condições fisiológicas da visão não é a descoberta de uma modalidade “natural” da percepção, mas a busca por meios de ultrapassar essas limitações e de transformar o olho em um novo tipo de órgão. Longe de um esforço para negar o corpo, criando uma visão pura e incorpórea, tratava-se de descobrir novas relações cognitivas e físicas com o mundo sensorial. (CRARY, 2013, p. 296)

Talvez tenha sido algo semelhante que Rilke (200621. RILKE Rainer Maria. Cartas sobre CÉZANNE. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006., p. 36) quis dizer quando descreveu a prática de Cézanne como um contínuo “começar num novo centro”. E também quando o historiador Meyer Schapiro caracterizou o trabalho de Cézanne como uma suspensão da percepção, um pairar num momento estendido em que um jogo dinâmico de relações resulta na “restauração dos objetos” (SCHAPIRO, 1963, p. 9, tradução minha).

Trata-se, em suma, de uma reformulação radical da operação da “síntese”, entendida no sentido de composição pictórica de elementos espacialmente heterogêneos e temporalmente dispersos. A premissa de Cézanne, nesse ínterim, consiste no reconhecimento de que a constância perceptiva é uma ilusão, e o mundo visto já não é igual a si mesmo. O mundo se transforma, como Heráclito e Lucrécio já compreendiam há muito tempo, numa sucessão infinita de autodiferenciação.

A MÁQUINA CEZANNEANA DE DESESTABILIZAÇÃO

As questões suscitadas, após mais de um século, a partir da obra tardia de Cézanne me parecem apontar dois caminhos distintos: de um lado, como as descontinuidades e disjunções que ele descobriu tornaram-se base para novos modelos de controle da visão; de outro, em que medida suas obras tardias continuam a suscitar novas possibilidades para além de uma “atenção distraída”. O primeiro caminho alude a um modelo iminente (no início do século XX) de automatismo passivo da visão,7 enquanto o segundo salienta o arsenal ilimitado, aberto por Cézanne, de novas possibilidades perceptivas e visuais. Trata-se de um paroxismo: a aspiração cezanneana por uma visão estendida e desenraizada, preenchida por forças e intensidades em vez de estruturas, constitui “tanto a base quanto a superação da percepção controlada da cultura do espetáculo, que faria a atenção atenta a tudo menos a si mesma” (CRARY, 2013, p. 353).

Verifiquemos, pois, como a visualidade cezanneana estaria associada às múltiplas formas, maleáveis e dóceis, difundidas ao longo do século XX, de reestruturação e padronização da atenção. De acordo com Crary, tal associação é geralmente pautada em leituras que apresentam a obra de Cézanne como um projeto austero de “percepção inumana”, realizado numa esfera remota e totalmente alheio às contradições sociais de seu tempo:

A ideia de que a obra de Cézanne constitui um modelo de percepção inumana parece ecoar um tema presente durante quase um século de análises sobre o artista. Quantas vezes não ouvimos reverberar a afirmação de Fritz Novotny sobre a “distância [de Cézanne] da humanidade”, a alegação de Kurt Badt de que Cézanne retrata “um mundo infinitamente distante dos seres humanos, um mundo inatingível pela humanidade e invulnerável à intervenção humana”, ou as entonações spenglerianas de Hans Sedlmayr de que “em sua imobilidade contrária à natureza, ela prepara a irrupção do extra-humano”? (CRARY, 2013, p. 334-335)

Essas leituras com frequência fazem alusão ao fato de que, em seus últimos anos de vida, Cézanne dizia almejar ser uma “máquina gravadora” - metáfora que, no entanto, se refere menos a um ideal mecanicista e mais ao de superação das coordenadas enraizadas na percepção humana: figura/fundo, foco/desfoco, perto/longe etc. Nesse sentido, afastando-se da duvidosa hipótese da motivação “inumana”, Crary propõe uma relação inusitada entre a máquina cezanneana e a máquina cinematográfica, cujos primórdios coincidem historicamente com a obra tardia de Cézanne.

O autor reconhece que, contudo, entre Cézanne e o cinema não há, a princípio, proximidade alguma: o artista nunca viu uma projeção sequer e denunciava tal novidade como um terrível sinal do “progresso elétrico”. Mas a proximidade histórica entre ambos conjuga uma instância decisiva, no final do século XIX, para a modernização do observador. Afinal, tanto para Cézanne quanto para a indústria cinematográfica emergente “um modelo pontual e estável de percepção já não era mais efetivo ou útil” (CRARY, 2013, p. 338). Crary vale-se, então, das considerações de Deleuze para explicar como o cinema, ao contrário do que muitos supõem, não é parte de um trajeto histórico contínuo da representação, cujas origens estariam no Renascimento. Pois, segundo Deleuze (20059. DELEUZE Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005., p. 37), o cinema não representa o mundo, mas constitui um mundo autônomo, “feito de quebras e desproporções, privado de centros e que se dirige a espectadores que, eles próprios, não são mais o centro de sua própria percepção. O percipiens e os percipi perderam seus centros de gravidade”.

Por sua vez, vimos que a obra tardia de Cézanne propõe uma ampla desestabilização do que até então se concebia por “representação”. Apesar de todas as diferenças, com efeito, Cézanne e o cinema propiciaram a possibilidade do que Deleuze (19858. DELEUZE Gilles. Cinema 1: imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 61) descreveu como “a imagem de uma totalidade aberta (...) na qual a temporalidade que nos envolve se oferece a nós em sua dimensão duplamente contraditória - fluxo incessante e ruptura instantânea”. Como já indicavam outras tecnologias (como o taquistoscópio e os obturadores fotográficos automáticos) que surgiram no mesmo contexto, a interrupção tornava-se via principal para uma percepção pura, “pois era apenas na ‘pureza’ da quebra instantânea que se podia eliminar os devaneios e as incertezas da visão ‘normal’” (CRARY, 2013, p. 301).

Ao passo que o rigor da busca de Cézanne por uma atenção plenamente absorta lhe revelou o caráter fracionado do mundo visto, o cinema emergia como “o sonho da fusão, da integridade funcional de um mundo no qual o tempo e o espaço desdobravam-se em uma multiplicidade proliferante de itinerários, durações e velocidades” (CRARY, 2013, p. 339). É nesse sentido que Deleuze acentua a proximidade conceitual entre Cézanne e o diretor russo Dziga Vertov: ele observa que ambos foram os primeiros a pensar em construir um olho “que estaria dentro das coisas”, um olho que poderia gravar “a variação universal, a interação universal” (DELEUZE, 1985, p. 81). O relato de Vertov sobre seu próprio projeto, não obstante, é elucidativo para entender a relação conceitual traçada por Crary entre o cinema e a “máquina gravadora” que Cézanne almejava se tornar:

Eu sou um olho mecânico; Eu, uma máquina, lhes mostro o mundo como apenas eu posso vê-lo. Agora e para sempre, estou livre da imobilidade humana. Estou em constante movimento, venho para perto e depois vou para muito longe dos objetos, eu passo por baixo e subo neles (...). Eu mergulho e elevo-me junto com corpos que mergulham e elevam-se. Agora eu, uma câmera, jogo-me em suas manobras resultantes no caos do movimento, gravando o movimento, começando com o movimento das combinações mais complexas. (VERTOV, 1984, p. 17, tradução minha)

Não significa que o cinema nascente tenha partilhado com Cézanne uma vaga motivação em comum, e sim que ambos são elementos constitutivos do mesmo campo de acontecimentos, como respostas diferentes a uma questão premente: a indeterminação da percepção atenta, mas também a atenção às instabilidades da percepção. Tais problemas são inseparáveis das incipientes técnicas de mensuração de estímulos e reações - ou seja, a expansão dos meios de percepção visual, que coincide com a experimentação pictórica explorada pelo pós-impressionismo no final do século XIX, “foi uma precondição para instrumentalizar a visão humana como mero componente de combinações mecânicas” (CRARY, 2013, p. 35). Não por acaso a falha da capacidade de atenção e de síntese, em geral descrita como dissociação, já estava atrelada à psicose e a outras patologias mentais.

O próprio cinema foi desde o início associado a um controle automatizado da distração, razão pela qual Walter Benjamin, Deleuze, Paul Virilio e tantos outros o relacionaram ao fascismo, no qual o sujeito “é despojado de seu próprio pensamento e obedece a uma impressão interna que se desenvolve apenas em visões ou ações rudimentares (do sonhador ao sonâmbulo, e inversamente por meio da hipnose, da sugestão, da alucinação, da obsessão etc.” (DELEUZE, 2005, p. 263). Steven Shaviro sintetiza essas novas condições subjetivas abertas pela experiência da sala de cinema:

A escuridão da sala de cinema isola-me do resto da plateia e exclui qualquer possibilidade de percepção “normal”. Não posso decidir focar minha atenção nisto ou naquilo. Em vez disso, meu olhar é capturado pela única área de luz, um fluxo de imagens em movimento. Fico atento ao que se passa na tela apenas na medida em que sou continuamente distraído e passivamente absorvido por isso. Não sou mais livre para seguir minha sequência de ideias (...) a tela instável mantém minha distraída atenção presa e não sou capaz de olhar para o outro lado. Não há como assistir a um filme sem deixar que isso aconteça. Só posso resistir se desistir totalmente do filme, fechando meus olhos ou saindo da sala. Mas, enquanto isso, não tenho presença de espírito: visão e audição, antecipação e memória não me pertencem mais. Minhas respostas não são internamente motivadas, nem espontâneas; são impostas a mim externamente. (SHAVIRO, 200024. SHAVIRO Steven. The Cinematic Body. Minneapolis: University of Minnesotta Press, 2000., p. 47-48, tradução minha)

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A VISADA DE UM MESMO RIO EM MOVIMENTO

Embora a regulação novecentista da “atenção distraída” já acenasse para certos vetores dissociativos do século XX, a desordem inerente ao estado atento, que a obra tardia de Cézanne começou a desvelar, também aponta um caminho de invenção, dissolução e síntese criativa que excede a possibilidade de racionalização e controle. Se para Cézanne “a ideia de uma posição subjetiva coerente é tão irrelevante quanto a de coordenadas cartesianas num caleidoscópio” (CRARY, 2013, p. 341), por certo não é em decorrência de uma antevisão sobre a sociedade vindoura, e sim por efeito de um processo introspectivo de deslocamentos perceptivos sem fim.

Nesse sentido, não importa tanto a adjacência de Cézanne com a ascensão do cinema e o paradigma da fusão corpo e máquina; importa aqui um movimento mais amplo, aquele que nos permite desvelar antigos modos de se perceber o movimento, a temporalidade e a subjetividade que precedem e se atualizam na obra tardia de Cézanne. Em vez de atentar, portanto, para a confluência histórica de Cézanne em relação aos valores e às práticas que o circundam e o sucedem, trata-se de se ater a uma dimensão historicamente “transversal” da intuição cezanneana mediante certos preceitos que sempre atravessaram a visualidade ocidental. Para esboçar brevemente tal perspectiva, evoco um dos excertos mais conhecidos do artista: uma carta a seu filho Paul, de setembro de 1906, restando apenas seis semanas para a sua morte.

Por fim, devo lhe dizer que, como pintor, tenho desenvolvido uma visão mais clara da natureza, porém, para mim, a realização das minhas sensações é sempre muito difícil. Eu não consigo atingir a intensidade da exposição diante dos meus olhos. Não tenho a riqueza magnífica da cor que anima a natureza. Aqui, na beira do rio, os motivos são abundantes, o mesmo tema visto de um ângulo diferente rende um tema de estudo do mais alto interesse e tão variado que acho que poderia ocupar-me por meses sem mudar de lugar, simplesmente inclinando a cabeça um pouco para a direita ou para a esquerda. (CÉZANNE, 1941, p. 262, tradução minha)

Que o motivo em questão seja um rio não é mera coincidência, pois indica seu envolvimento com determinado modo olhar pré-socrático no qual se fundiam as noções de imobilidade e de movimento. No nascer da história da filosofia ocidental, encontramos em Heráclito uma visão de mundo segundo a qual as coisas continuam sendo sempre as mesmas (imobilidade), mas continuam sendo as mesmas porque mudam (movimento). Nunca somos os mesmos que éramos antes, mas também nunca deixamos de ser o que fomos. O olhar heraclitiano mira na coincidência de opostos, na concatenação das diferenças e na contrariedade de coincidentes. Todos os oxímoros que afligirão a filosofia ocidental foram assim resolvidos por Heráclito: as mudanças e diferenças pertencem a um único mundo comum a todos. O que pode haver de enigmático, aqui, nada tem a ver com ocultação ou fixidez, pois tudo muda para continuar sendo o que sempre foi: nada além de mudança e movimento.

Voltando ao trecho elencado, Cézanne se refere à beira do rio como uma cena possível de ser vista e pintada, mas sobrepõe a ela a infinidade de sutis inflexões e vacilações de posição, sugerindo assim uma relação intrínseca entre visão e movimento.8 Em outros termos, trata-se de dizer que, sob um olhar heraclitiano, cada ocasião “é a tessitura de tudo o que existe: é ela que produz as sensações singulares, jogos de encontros, localmente e temporalmente imprevisíveis” (ROSSET, 1989, p. 100-101, grifo no original). De acordo com D. H. Lawrence, que no final da década de 1920 foi um dos primeiros a discordar do aspecto mecânico e inerte atribuído ao Cézanne tardio,

[Cézanne tinha um] sentimento intuitivo de que nada está realmente em repouso estático (...) ele podia ver o fluxo gradual da mudança. (...) E nos damos conta com certo entusiasmo do quanto isso é verdade a respeito da paisagem. Ela não está parada. Ela tem sua própria alma estranha, e, para a nossa percepção arregalada, ela muda como um animal vivo sob nossos olhos (LAWRENCE, 1972, p. 92, tradução minha, grifos no original).

Não estava em jogo assimilar intelectualmente a relação estrutural entre perspectivas múltiplas, como se Cézanne quisesse meramente somar e conectar pontos de vistas diferentes de um mesmo campo unificado; tratava-se de experimentar o modo irrepetível como cada perspectiva desancora-se das demais, apresentando uma situação singular de forças e intensidades. Está claro que o elemento temporal é o que torna irrecuperável cada situação, mas a temporalidade em questão é o tempo do olhar, um tempo indefinido e escalonado: “o presente não como um momento extraído do tempo, mas um momento que se abre para o tempo” (CRARY, 2013, p. 347).

Significa que, no deslocamento irrepetível da visão, não resta a possibilidade de qualquer ponto estável em que o olhar possa se ancorar. Destarte, o que na carta supracitada Cézanne designava por “visão mais clara” é justo essa intuição de excentricidade, no sentido estrito de ausência de um centro. A intuição cezanneana, com efeito, de que “o mundo só se concebe como uma série infinita de descentramentos” (CRARY, 2013, p. 348) coaduna-se com a premissa nietzscheana segundo a qual

O mundo, abstraído de nossa condição de vivermos nele, o mundo que não reduzimos ao nosso ser, à nossa lógica e aos nossos preconceitos psicológicos, não existe como mundo “em si”; ele é, essencialmente, mundo-relação: tem, segundo as circunstâncias, a partir de cada ponto, sua face diferente: o seu ser é essencialmente, em cada ponto, outro: ele pressiona em cada ponto, cada ponto lhe resiste - e essas somas são, em cada caso, inteiramente incongruentes. (NIETZSCHE, 2008, § 568, p. 295, grifos no original)

Poderíamos ainda associar à visada de Cézanne a célebre máxima de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa (198020. PESSOA Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.), que caracteriza a natureza como “partes sem um todo”. O que se destaca, enfim, é a peculiaridade da concepção cezanneana de desordem, cuja sutileza semântica talvez mereça maior atenção, uma vez que aparta Cézanne em definitivo de uma tradição romântica e visionária ainda vigente em seu tempo. Ele não foi o único, tampouco o primeiro, a compreender o mundo como instância desordenada, feita de incongruências e descontinuidades - tais aspectos também aparecem, por exemplo, na obra de William Blake, em relação a quem Cézanne distancia-se não apenas historicamente, mas, sobretudo, pictórica e filosoficamente.

A tenuidade dessa questão consiste em saber se Cézanne concebia a desordem como contrário da ordem (sendo aquela, portanto, reconhecível e possível somente em relação a esta) ou como “acaso”, como força autônoma precedente ao par ordem-desordem. No primeiro caso, a desordem equivale a absurdo, irracionalidade, falta de sentido - conforme Henri Bergson (20063. BERGSON Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 242), por exemplo, caracteriza o registro ontológico “não assimilável pelo olhar humano”. A segunda acepção, ao contrário, remete-nos a Lucrécio, que desde o século I a.C. atribuía ao acaso a paternidade de toda organização: a ordem existindo apenas como um desdobramento possível da desordem (cf. ROSSET, 1989, p. 137-159). Ora, se o olhar tardio de Cézanne mantinha-se, tal qual o rio de Heráclito, em constante deslocamento, era o reconhecimento do acaso lucreciano que lhe permitia extrair singularidades da multiplicidade.

Sob esse viés, afinal, são infinitas as possibilidades tanto perceptivas quanto ontológicas, e a realização de cada possibilidade depende de encontros fortuitos,9 ou seja, efetiva-se de acordo com ocasiões que acontecem “por acaso”. O que é veio a ser da mesma forma que poderia não ter vindo. O que vemos, igualmente, é visto mais por acaso e menos por esforço da atenção, intenção ou sujeição.

É nesse sentido, em suma, que o legado de Cézanne conjuga uma visualidade que excede as confluências discursivas de racionalização e controle da visão. Claro que as intuições de Cézanne na beira do rio, se é que obtiveram alguma repercussão, nunca influenciaram significativamente a visualidade ocidental. Entretanto, não é difícil associar tais intuições a enunciados historicamente dispersos que eventualmente ganham visibilidade. Quanto a isso, encerro com um único exemplo: no campo atual da genética evolutiva, Rémy Lestienne (200817. LESTIENNE Rémy. O acaso criador: o poder criativo do acaso. São Paulo: Edusp, 2008., p. 91) tem defendido que “é o acaso que cria a ordem”. As circunstâncias evolutivas operam “ao acaso na medida em que a chance de que [uma mutação genética] aconteça não é afetada pelo fato de poder ser útil à sobrevivência da espécie” (LESTIENNE, 2008, p. 88). A vida prolifera-se tal como as águas que Cézanne contemplava em seus últimos dias: de maneira instável e desordenada.

REFERÊNCIAS

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    VARELA Francisco. The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. Cambridge: MIT Press, 1993.
  • 26
    VERTOV Dziga. Kino-Eye: The Writings of Dziga Vertov. Londres: Pluto Press, 1984.
  • 1.
    “Genealogia” no sentido nietzscheano de investigação de configurações ou inclinações epistêmico-morais a partir das quais se legitimam condutas e discursos para “regularizar” o mundo.
  • 2.
    Segundo Jacques Aumont, essa base comum entre a fotografia e o impressionismo reside na “passagem do esboço - registro de uma realidade já modelada pelo projeto de um futuro quadro - ao estudo - registro da realidade ‘tal como ela é’, por ela mesma” (AUMONT, 20042. AUMONT Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004., p. 48).
  • 3.
    A exemplo do esteticismo de Oscar Wilde e Théophile Gautier, ou do “olho inocente” idealizado por Ruskin e o movimento pré-rafaelita. Cf. CRARY (20125. CRARY Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 96-97).
  • 4.
    “A obra de Cézanne, de 1900 em diante, é radicalmente diferente das estruturas fixadas nos objetos dos anos anteriores (...). Depois de 1900, os objetos fixados, na obra de Cézanne, cada vez mais se dissolvem no fluxo das cores.” (GOWING, 1977, p. 55, tradução minha)
  • 5.
    Nesse sentido, o que parece ser mais relevante para a compreensão da obra de Cézanne é justamente a crítica de Deleuze a Husserl, que contém uma das explicações mais conhecidas sobre a impossibilidade de uma percepção idêntica a si mesma. Cf. DELEUZE (200910. DELEUZE Gilles. Diferenï¿1/2a e repetição. São Paulo: Graal, 2009., p. 64).
  • 6.
    Ver, por exemplo, a descrição do “momento cezanneano” feita por Thierry de Duve (19917. DE DUVE Thierry. Pictorial Nominalism: On Marcel Duchamp’s Passage from Painting to the Readymade. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991., p. 76-78).
  • 7.
    A esse modelo Crary associa diversas pesquisas e aparatos científicos que se difundiram na virada do século XX, a exemplo do taquistoscópio e os trabalhos de Wilhelm Wundt e James M. Cattell, que “introduziram novas velocidades mecânicas no âmbito da percepção humana” (CRARY, 2013, p. 301).
  • 8.
    Vale mencionar, nesse ínterim, que trabalhos recentes na ciência cognitiva contemporânea apresentam um retorno à ideia da inseparabilidade entre visão e movimento, conforme salienta Varela: “Mesmo uma mudança na postura, enquanto se preserva a mesma estimulação sensorial, altera as respostas neuronais no córtex visual primário, demonstrando que mesmo o motorium aparentemente mais distante está em acordo com o sensorium” (VARELA, 1993, p. 93, tradução minha).
  • 9.
    A noção de encontro fortuito, por sua vez, remonta precisamente ao conceito epicuriano de clinâmen: o desvio imprevisível de átomos que se chocam em nenhum lugar ou tempo fixo. Deleuze (200910. DELEUZE Gilles. Diferenï¿1/2a e repetição. São Paulo: Graal, 2009., p. 175-176) emprega o termo para descrever a relação de “suposição recíproca” (ou “diferença que há na repetição”) entre os átomos, isto é, a maneira retroativa pela qual os encontros ocorrem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2022
  • Aceito
    19 Dez 2022
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