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Um campo universitário-urbano no nordeste brasileiro: o caso da UNILAB

Un campo urbano-universitario en el noreste de Brasil: el caso de UNILAB

Resumo

Este artigo apresenta e opera preliminarmente um arcabouço analítico que fundamenta uma análise crítica das situações cotidianas vivenciadas em uma universidade, situações não somente formais ou acadêmicas, stricto sensu. Compõem esse arcabouço a ideia do campo universitário-urbano, as disposições sociais, os distúrbios e as situações problemáticas, o cotidiano e as experiências, os subcampos e polos. Esse arcabouço analítico está sendo constituído a partir de uma universidade federal pública, interiorizada e internacionalizada, sediada em pequenas cidades interioranas no nordeste do Brasil. Uma universidade profundamente marcada pela diversidade social, inclusos centenas de estudantes que são originários de países africanos. Os dados foram coletados, construídos, sistematizados e analisados a partir da imersão cotidiana no campo, com foco nos impactos da implantação da universidade em pequenas cidades, considerando particularmente os desafios enfrentados pelos discentes. Dentre os recursos metodológicos utilizados, cabe indicar a observação participante, a análise documental, questionários, depoimentos e entrevistas. Conclui-se que o campo universitário-urbano agrega agentes variados, com subcampos, polos esquemas cognitivos e sentidos partilhados, bem como formas singulares dos diferentes agentes lidarem com as situações problemáticas. Além disso, evidencia-se uma centralidade conflitual na dinâmica cotidiana, a presença de dois ciclos entre 2011 e 2019 e a existência de tensões persistentes entre hegemonias e subalternidades que se recriam. Entende-se, assim, que o artigo impacta positivamente os estudos e as análises sobre a educação superior, e, particularmente, sobre as universidades no Brasil.

Palavras-chave:
universidade; juventudes; internacionalização; educação superior; urbano

Resumen

Este artículo presenta y opera preliminarmente un marco analítico que fundamenta un análisis crítico de situaciones cotidianas vividas en una universidad, situaciones que no son sólo formales o académicas, stricto sensu. Este entramado comprende la idea de campo universitario-urbano, disposiciones sociales, perturbaciones y situaciones problemáticas, cotidianidad y vivencias, subcampos y polos. Este marco analítico se está constituyendo a partir de una universidad pública federal, interiorizada e internacionalizada, con sede en pequeñas ciudades del interior del nordeste de Brasil. Una universidad profundamente marcada por la diversidad social, que incluye a cientos de estudiantes que provienen de países africanos. Los datos fueron recolectados, construidos, sistematizados y analizados a partir de la inmersión diaria en el campo, enfocándose en los impactos de la implementación de la universidad en las pequeñas localidades, particularmente considerando los desafíos que enfrentan los estudiantes. Entre los recursos metodológicos utilizados, cabe mencionar la observación participante, el análisis de documentos, cuestionarios, testimonios y entrevistas. Se concluye que el campo universitario-urbano agrega agentes variados, con subcampos, polos de esquemas cognitivos y significados compartidos, así como formas únicas para que los diferentes agentes aborden situaciones problemáticas. Además, se evidencia una centralidad conflictual en las dinámicas cotidianas, la presencia de dos ciclos entre 2011 y 2019 y la existencia de tensiones persistentes entre hegemonías y subalternidades que se recrean. Se entiende, por lo tanto, que el artículo tiene un impacto positivo en los estudios y análisis sobre la educación superior, y particularmente sobre las universidades en Brasil.

Palavras clave:
universidad; jóvenes; internacionalización; educación universitária; urbano

Abstract

This paper initially presents and operates an analytical framework that allows us to critically analyze daily situations experienced in a university, not only formal or academic, stricto sensu situations. This framework is composed by the idea of the city-university field, social provisions, disturbances and problematic situations, the daily life and the experiences, the subfields and incumbents/insurgents. This analytical framework is constituted based on a public federal university, which has been deurbanized and internationalized and is located in small cities in the countryside of Northeastern Brazil. This university is deeply characterized by social diversity, including hundreds of students from African countries. Data was gathered, built, systematized and analyzed based on daily life immersion in the field, focusing on the impacts of implementation of the university in small cities, specially considering the challenges faced by students. Among the methodological resources used, it is important to point out the participant observation, documental analysis, questionnaires, statements and interviews. We conclude that the city-university field aggregates different agents, with subfields, incumbents/insurgents, cognitive schemes and shared meanings, as well as singular ways different agents deal with problematic situations. Besides, we evidence a conflictual centrality in the daily life dynamics, the presence of two cycles between 2011 and 2019 and the existence of persistent tensions between hegemonies and subalternities that are recreated. We understand, this, that this paper positively affects the studies and analyses on higher education and, more specifically, on universities in Brazil.

Keywords:
university; youths; internationalization; Higher Education; city

1 Introdução

Entre 2003 e 2016, houve uma ampliação das instituições, dos campi, dos cursos e das vagas ofertadas na educação superior no Brasil, com destaque para a expansão das universidades e dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia. A partir dessa expansão, o país chega a 2019 com 63 universidades federais públicas em atividade e 6 em implantação. Nesse sentido, Lima et al. (2021, p. 20)LIMA, Manolita Correia et al. (org.). UNILAB 10 anos: gênese, desafios e conquistas. In: LIMA, Manolita Correia et al. (org.). UNILAB 10 anos: gênese, desafios e conquistas. Blumenau: EdiFURB, 2021. p. 19-44. afirmam:

O reflorescimento da educação superior pública e gratuita no país ocorre predominantemente nos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Convencidos de que a elitização do acesso à instituição universitária é uma das formas de exclusão social, ambos os governos se mobilizam para criar as condições oportunas à presença de 30% dos jovens entre 18 e 24 anos na educação superior, meta prevista no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001BRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.172/2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm. Acesso em: 31 jul. 2023.
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).

Essa expansão da educação superior ampliou o contingente de estudantes de graduação pretos(as) e pardos(as) nas universidades, tendo aumentado sua presença de 160.527, em 2003, para 613.826, em 2018 (ANDIFES, 2019ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). V Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Pós-Graduação das Universidades Federais. Brasília: ANDIFES, 2019. Disponível em: https://ufla.br/images/arquivos/2019/05-maio/pesquisa-socioecono mica2018. pdf. Acesso em: 16 ago. 2019.
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), com os discentes de graduação negros – pretos e pardos – e indígenas compondo 61,1% do total, como indica o Censo dos Estudantes das Universidades Federais. Também houve ampliação dos estudantes originários de famílias de baixa renda, pois se, em 2003, 42,8% dos discentes pertenciam a famílias que tinham renda de até 1,5 salários-mínimos per capita, em 2018, esse contingente atingia 70,2% do total (ANDIFES, 2019ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). V Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Pós-Graduação das Universidades Federais. Brasília: ANDIFES, 2019. Disponível em: https://ufla.br/images/arquivos/2019/05-maio/pesquisa-socioecono mica2018. pdf. Acesso em: 16 ago. 2019.
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). Também em 2003, 37,5% dos discentes tinham cursado o ensino médio exclusivamente em escolas públicas, enquanto em 2018 esse percentual engloba 60,4% (ANDIFES, 2019ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). V Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Pós-Graduação das Universidades Federais. Brasília: ANDIFES, 2019. Disponível em: https://ufla.br/images/arquivos/2019/05-maio/pesquisa-socioecono mica2018. pdf. Acesso em: 16 ago. 2019.
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). Ampliou-se, também, a presença feminina nas universidades, com o percentual de mulheres atingindo 54,6% em 2018 (ANDIFES, 2019ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). V Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Pós-Graduação das Universidades Federais. Brasília: ANDIFES, 2019. Disponível em: https://ufla.br/images/arquivos/2019/05-maio/pesquisa-socioecono mica2018. pdf. Acesso em: 16 ago. 2019.
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).

Nesse contexto, das 63 universidades implantadas no Brasil, duas detêm caráter internacionalizado, ambas criadas em 2010. A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), que tem como foco a cooperação internacional com os países africanos da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP), e a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), voltada à América Latina, particularmente aos países do MERCOSUL (UNILA, 2020UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (UNILA). Institucional. 2020. Disponível em: https://portal.unila.edu.br/institucional. Acesso em: 15 jan. 2020.
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).

Situada no Ceará, em duas pequenas cidades, Redenção e Acarape, a aproximadamente 60 km da capital do estado, Fortaleza, a UNILAB (2020, grifos do original)UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO NACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA (UNILAB). Nosso diferencial. 2020. Disponível em: http://www.unilab.edu. br/nosso-diferencial-de-integracao-internacional/. Acesso em: 15 jan. 2020.
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é vocacionada “para a cooperação internacional e compromissada com a interculturalidade, a cidadania e a democracia nas sociedades”, enfatizando o “intercâmbio acadêmico e solidário com Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste”. Fortaleza, com população estimada em 2,7 milhões de pessoas (IBGE, 2019INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades: Fortaleza. Brasília: IBGE, 2019. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/ fortaleza/panorama. Acesso em: 15 jan. 2020.
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), convém sinalizar, é uma das cidades mais populosas do país. A UNILAB também possui um campus na Bahia, em São Francisco do Conde. Sua criação, ampliando o acesso à educação superior, inseriu-se na prioridade conferida pelos governos Lula e Dilma às relações Brasil-África, no contexto da cooperação solidária sul-sul (SPELLER, 2021SPELLER, Paulo. UNILAB: educação e inovação para a cooperação solidária Sul-Sul. In: LIMA, Manolita Correia et al. (org.). UNILAB 10 anos: gênese, desafios e conquistas. Blumenau: EdiFURB, 2021. p. 47-59.), e às políticas de promoção da igualdade racial no Brasil, considerando as lutas e pautas de um conjunto variado de agentes sociais, incluso o movimento negro (GALA, 2021GALA, Irene Vida. UNILAB: uma nova proposta de política externa para o Brasil na Educação Superior. In: LIMA, Manolita Correia et al. (org.). UNILAB 10 anos: gênese, desafios e conquistas. Blumenau: EdiFURB, 2021. p. 11-16.).

Na UNILAB, é ainda mais acentuada a presença de segmentos populares, mulheres, negros e indígenas, sendo possível falar em uma universidade marcada pelo pluralismo histórico e pela inter-historicidade (SEGATO, 2012SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-Cadernos CES, [online], v. 18, p. 106-131, 2012. DOI: https://doi.org/10.4000/eces.1533. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/1533. Acesso em: 3 jul. 2023.
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). Apenas para ilustrar, 82,8% dos discentes de graduação presencial no Ceará se autodeclaram negros – pretos e pardos – e indígenas (UNILAB, 2019UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA (UNILAB). Graduação. Redenção: UNILAB, 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTkzZjY2MWQtNjMzNS00-MjkzLWI4YTAtOGJj Y2NmNjdmNzI1IiwidCI6IjkwMjlkZGNlLWFmMTItNDJiZS04MDM3LTU4MzEzZTRkYzVkM SJ9. Acesso em: 30 abr. 2020
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). Em 2019, há, na UNILAB no Ceará, 3894 discentes de graduação presencial (UNILAB, 2019UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA (UNILAB). Graduação. Redenção: UNILAB, 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTkzZjY2MWQtNjMzNS00-MjkzLWI4YTAtOGJj Y2NmNjdmNzI1IiwidCI6IjkwMjlkZGNlLWFmMTItNDJiZS04MDM3LTU4MzEzZTRkYzVkM SJ9. Acesso em: 30 abr. 2020
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), com 3016 brasileiros, inclusos 125 indígenas ou quilombolas, 12 timorenses e 866 africanos – com 223 angolanos, 53 cabo verdianos, 507 guineenses, 35 moçambicanos e 48 são tomenses (UNILAB, 2019UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA (UNILAB). Graduação. Redenção: UNILAB, 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTkzZjY2MWQtNjMzNS00-MjkzLWI4YTAtOGJj Y2NmNjdmNzI1IiwidCI6IjkwMjlkZGNlLWFmMTItNDJiZS04MDM3LTU4MzEzZTRkYzVkM SJ9. Acesso em: 30 abr. 2020
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).

Para compreender a intensidade da presença de discentes africanos – dos países anteriormente indicados – e timorenses na UNILAB, cabe indicar que, entre 2011 e o primeiro semestre de 2019, quando o Programa Estudantes Convênio – Graduação (PEC-G)1 1 Iniciado em 1965, o PEC-G é o maior programa de acesso de estudantes internacionais a universidades brasileiras. selecionou 1632 estudantes em todo o país, a UNILAB recebeu 2124 discentes (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2019;MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Histórico do Programa: introdução. Brasília: Divisão de Assuntos Educacionais (DCE); Programa de Estudantes-Convênio de Graduação, 2019. Disponível em: http://www.dce.mre.gov.br/PEC/G/historico/intro ducao.php. Acesso em: 10 jan. 2020.
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UNILAB, 2019UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA (UNILAB). Graduação. Redenção: UNILAB, 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTkzZjY2MWQtNjMzNS00-MjkzLWI4YTAtOGJj Y2NmNjdmNzI1IiwidCI6IjkwMjlkZGNlLWFmMTItNDJiZS04MDM3LTU4MzEzZTRkYzVkM SJ9. Acesso em: 30 abr. 2020
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). Portanto, a UNILAB acolheu, considerando o ingresso dessas nacionalidades através do PEC-G, mais estudantes estrangeiros do que todas as outras universidades brasileiras juntas. Não é à toa que Timbane (2020, p. 33)TIMBANE, Alexandre António. O lugar das línguas africanas e sua relação com a formação de identidades na UNILAB. Batuko: arte, cultura, africanidades e internacionalização, Redenção, a. 1, v. 2, p. 33-37, nov. 2020. afirma:

A UNILAB é uma instituição rica sob o ponto de vista da cultura, das línguas e de práticas pedagógicas versáteis uma vez que os professores adaptam (a todo momento) suas metodologias para atender estudantes de culturas diversas, de formações iniciais diferentes e de línguas diferentes.

Nesse contexto, nosso grupo de extensão e pesquisa vem desenvolvendo ações de extensão e pesquisa desde 2015, com foco na análise dos impactos urbanos da implantação da UNILAB nas duas cidades e em como os discentes vivenciam o cotidiano acadêmico e urbano.

A partir dessas ações, e considerando que somos docentes/egressos da instituição, brasileiros e guineenses, vivenciamos o cotidiano universitário-urbano com muita intensidade nos últimos anos, percebendo sua densidade e complexidade. Aos poucos, nossa atuação foi requerendo a incorporação de referenciais teóricos e metodológicos e a coleta/produção, sistematização e análise de dados empíricos.

De modo mais direto, necessitamos constituir e incorporar categorias, estratégias e metodologias de atuação e investigação. Assim, este artigo apresenta vetores teórico-empíricos que conformam um arcabouço analítico em construção, o qual – pretende-se – fundamentará o aprofundamento e o desenvolvimento das intervenções, investigações e análises. Assim, sistematizamos e apresentamos reflexões e construções teórico-empíricas que podem apoiar a atuação do Grupo, considerando e articulando múltiplas escalas – nano, micro, meso, macro – que atravessam e constituem a universidade e o urbano.

Ao partilharmos achados analíticos e registrarmos memórias do cotidiano vivenciado, buscamos fomentar um entendimento mais aprofundado de uma instituição densa e complexa como uma universidade interiorizada e internacionalizada. Nesse sentido, compreendemos que os achados e questões teórico-empíricas aqui apresentadas podem gerar insights e fundamentar/instigar análises em que as situações e experiências cotidianas em escala micro e nano adquiram relevância analítica, sem descuidar de articulações transescalares, inclusive sendo aplicadas em outros objetos de investigação.

O artigo se apoia em dados secundários e primários, articulando metodologias que integram um viés etnográfico influenciado pela cartografia social, assim como a análise de documentos e a efetivação de rodas de conversa, intercâmbios, questionários, entrevistas e sketches. Cabe destacar, porém, que, embora apresentando dados coletados em diários de campo e, de modo geral, decorrentes da própria imersão dos autores no campo, este artigo não se trata de acentuar o viés etnográfico, em que a descrição densa de situações concretas e uma multiplicidade das falas comporiam a narrativa aqui desenvolvida2 2 Pretende-se fazer isso em outro momento. .

O trabalho se estrutura, além da Introdução e das Considerações Finais, em quatro tópicos. O primeiro discute teórica e empiricamente o campo universitário-urbano e os subcampos; o segundo agrega aos esquemas cognitivos e aos sentidos partilhados um viés neopragmático, articulando as categorias distúrbio e situações problemáticas, além de apresentar cotidiano e experiência; o terceiro evidencia a centralidade da dimensão conflitual na dinâmica cotidiana no campo; e o quarto evidencia dois ciclos identificados no campo, discutindo suas características e implicações.

2 Um campo universitário-urbano singular

Aos poucos, fomos construindo o entendimento de que a Universidade e as duas cidades compõem um campo universitário-urbano, onde convivem e interagem variados agentes sociais, ocupando posições, mobilizando recursos, exercendo poder e recriando – estrutural e disposicionalmente – o próprio campo. Trata-se de um universo social relativamente autônomo, estruturalmente delimitado por um conjunto de posições distintas e coexistentes (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.). Assim, o campo vai se constituindo à medida em que se instituem e reproduzem estruturas, as quais circunscrevem posições e agregam capitais, cabendo destacar as estruturas institucionais/burocrático-administrativas, mas também estruturas informais, particularmente as vinculadas ao que caracterizaremos, um pouco à frente, como subcampos e polos.

Ao ingressar – e permanecer – no campo, cada agente (individual, coletivo e/ou institucional) institui/ocupa posições que permitem o acesso e operação de capitais existentes/mobilizados – econômicos, políticos, sociais, culturais, intelectuais, estéticos, éticos, técnicos, simbólicos (BOURDIEU, 1996a;BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a. 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.). Os capitais evidenciam recursos atuais ou potenciais e as posições delimitam o acesso a esses capitais, considerando, em alguns casos, exclusividades, privilégios e monopólios no exercício do poder e na formação de decisões (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.). Assim, o campo revela, em diferentes ciclos e conjunturas, uma distribuição específica – e desigual – de instrumentos e meios para o exercício do poder, evidenciando a objetividade de um lugar hierarquizado, onde se agrupa e interage um conjunto variado de agentes (BOURDIEU, 1996b;BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b. 2004;BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. ORTIZ, 2003ORTIZ, Renato. A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003.). Mais do que isso, a atuação no campo envolve a aplicação recursiva e motivacional de estoques de conhecimento e habilidades continuamente mobilizados (PETERS, 2006PETERS, Gabriel Moura. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.). Nesse sentido, configurando sensos práticos (BOURDIEU, 1996bBOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.), as disposições impelem e habilitam cada agente, a partir de sua trajetória, a interagir e a definir a melhor postura e escolha em cada situação, tornando-o apto e inclinado a realizar determinadas transações, permitindo-o enfrentar as situações cotidianas – considerando as tensões, interpelações, condicionamentos e interdependências existentes (MACHADO, 2015MACHADO, Eduardo Gomes. Lutas políticas, disposições e transações sociais em microcampos bancários. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 17, p. 67-97, 2015., 2017;MACHADO, Eduardo Gomes. Desigualdades e segregações socioespaciais em Fortaleza, Brasil: uma análise a partir da Praia do Futuro. O Público e o Privado, Fortaleza, v. 30, p. 179-208, 2017. MACHADO et al., 2017MACHADO, Eduardo Gomes et al. Urbanização e os desafios à política urbana em pequenas cidades: o caso de Redenção, Ceará, no contexto de implantação da UNILAB. Políticas Públicas & Cidades, [online], v. 5, n. 1, p. 43-63, 2017. Disponível em: https://doaj.org/article/697fe03a73654016b915722ac8f0919d. Acesso em: 3 jul. 2023.
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).

Desse modo, estruturas e disposições socialmente constituídas condicionam e mediam as práticas cotidianamente efetivadas pelos agentes (BOURDIEU, 1996a), cabendo falar no caráter situado e interdependente das ações sociais (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.), com cada agente sendo interpelado e tensionado por relações, agentes e forças diversas. Nesse contexto, constituem-se interesses, expectativas e motivações singulares, e, portanto, situar-se em um campo remete a sentir/produzir forças e/ou efeitos (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.), com as ações cotidianas inscrevendo-se em processualidades com certo grau de sequencialidade e cumulatividade, marcadas por enredamentos e mutualidades. Nessa perspectiva, as processualidades revelam dinâmicas de individuação, inscritas em uma “configuração de elementos, forças ou linhas que atuam simultaneamente”, mas também marcadas por um “devir em constante movimento”, guardando, portanto, “a potência do movimento” (KASTRUP; BARROS, 2015, p. 77KASTRUP, Virgínia; BARROS, Laura Pozzana de. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina. 2015. p. 52-75.).

Nessa perspectiva, a UNILAB parece constituir-se, no Ceará, associada às cidades de Redenção e de Acarape, enquanto um espaço social – um campo universitário-urbano – onde convive um conjunto variado de agentes sociais, evidenciando lutas, razões e paixões que se intensificam, assim como interesses, expectativas e motivações que se sobrepõem e tensionam (BOURDIEU, 1996bBOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.).

Todavia, como analisar esse cotidiano experiencial no campo? Mais do que isso, de um modo que não implique em assumirmos uma perspectiva determinística quanto aos condicionamentos que compõem o campo? Através do entendimento de que tensionamentos, contradições e paradoxos permitem/requerem um refazer-se e, mais do que isso, descontinuidades, mudanças, rupturas e linhas de fuga.

Para mergulhar no cotidiano do campo, inclusive compreendendo que há estruturas que extrapolam o próprio campo, mobilizamos o paradigma indiciário (GINZBURG, 1989GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.) associado a uma sociologia do cotidiano (PAIS, 1993PAIS, José Machado. Nas rotas do cotidiano. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, v. 37, p. 105-115, 1993.) e a uma geo-história de longa duração, entrelaçando as práticas cotidianas às “tramas finas das estruturas” urbanas de longa duração (BRAUDEL, 1965;BRAUDEL, Ferdinand. História e ciências sociais: a longa duração. Revista de História, São Paulo, v. 30, n. 62, p. 261-294, 1965. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.rh.1965.123422. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/123422. Acesso em: 3 jul. 2023.
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PAIS, 2005PAIS, José Machado. Sociologia da vida quotidiana: teorias, métodos e estudos de caso. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005.). Cabe destacar que, ao nos referimos aos indícios, estamos mobilizando um “método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores”, ou, dito de outra forma, os “pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, ‘baixos’” (GINZBURG, 1989, p. 149-150GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.). Nesse sentido, o foco analítico nas “cenas banais da vida cotidiana” permite “fazer insinuar o social, através de alusões sugestivas ou de insinuações indiciosas” (GINZBURG, 1989, p. 143GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.), instigando a conversão do “quotidiano em permanente surpresa” (PAIS, 1993, p. 106PAIS, José Machado. Nas rotas do cotidiano. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, v. 37, p. 105-115, 1993.), desnaturalizando e problematizando o que parece normal, absolutamente estável, coerente, ordenado e transparente.

Além dessas articulações teórico-empíricas, cabe indicar referenciais associados aos migrantes, às diásporas e ao urbano, os quais reforçam a compreensão da intensidade, densidade e complexidade do campo.

2.1 Migrantes Temporários e Diásporas

A intensidade, densidade e complexidade do campo associa-se ao fato da UNILAB ser uma universidade marcada pela presença de estudantes que são migrantes temporários, em um contexto de interiorização e de cooperação internacional na educação superior (SUBUHANA, 2005;SUBUHANA, Carlos. Estudar no Brasil: imigração temporária de estudantes moçambicanos no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 2007;SUBUHANA, Carlos. Estudantes Moçambicanos no Rio de Janeiro, Brasil: sociabilidade e redes sociais. Imaginário, São Paulo, v. 13, n. 14, p. 321-355, 2007. GUSMÃO, 2012;GUSMÃO, Neusa Maria Menezes de. Africanos no Brasil, Hoje: Imigrantes, Refugiados e Estudantes. Tomo, São Cristóvão, n. 21, p. 13-36, jul./dez. 2012. HELENO, 2014;HELENO, Maurício Gurjão Bezerra. O lugar da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) na política externa do governo Lula (2003-2010). O Público e o Privado, Fortaleza, n. 23, p. 109-127, jan./jun. 2014. BARROS, 2015;BARROS, Deolindo Nunes. Cooperação educacional internacional Brasil/África: do programa estudantes-convênio de graduação (PEC-G) à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Revista de Estudos Internacionais, Campina Grande, v. 6, n. 2, p. 117-133, 2015. RIBEIRO, 2015;RIBEIRO, Fabrício Américo. UNILA e UNILAB: uma abordagem sobre o processo de integração internacional do ensino superior a partir das universidades federais no Brasil. Geosaberes: Revista de Estudos Geoeducacionais, Fortaleza, v. 6, n. 1, p. 63-71, jul./dez. 2015. MENEGHEL; AMARAL, 2016MENEGHEL, Stela; AMARAL, Joana. Universidades internacionais na contracorrente. As propostas da UNILA e da UNILAB. Universidades, [online], n. 67, p. 25-40, jan./mar. 2016. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=37344015004. Acesso em: 3 jul. 2023.
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).

Ao nos referirmos aos migrantes temporários, estamos remetendo a estudantes originários: a) de variados distritos, localidades, sítios e núcleos urbanos da Região do Maciço de Baturité, composta por 13 municípios, inclusive Redenção e Acarape (Vide Figura 1); b) de outras regiões e municípios do Ceará, particularmente da Região da Grande Fortaleza (Vide Figura 1), e também de outros estados do país, advindos de áreas rurais, de pequenas e médias cidades e de metrópoles; c) de outros países, particularmente o Timor Leste e os países africanos da CPLP – Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Figura 1
Localização dos Municípios de Redenção e Acarape no Nordeste, no Ceará e na Região do Maciço de Baturité

As vivências estudantis inscrevem-se em mobilidades e fluxos e são atravessadas por subalternidades associadas à colonialidade e à inserção periférica do país no capitalismo global. Essa condição inscreve esses estudantes em diásporas, conformadas por redes, fluxos e circuitos. Aqui cabe destacar, como indicam Silva e Morais (2012, p. 174)SILVA, Kelly; MORAIS, Sara Santos. Tendências e tensões de sociabilidade de estudantes dos PALOP em duas universidades brasileiras. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 1 (67), p. 163-182, jan./abr. 2012., que “a diáspora figura como conceito justamente para reforçar a ideia de multilocalidade, porque não pressupõe um sujeito vinculado somente a um limite geopolítico específico”. Esse elemento reforça a ideia de que as experiências vivenciadas pelos discentes no campo universitário-urbano são atravessadas por múltiplas escalas.

Considerando a migração temporária, vivencia-se uma ampla diversidade estudantil, com clivagens identitárias envolvendo classe social, nacionalidade, raça, etnia, gênero, sexualidade, religiosidade, ideologia política, língua e cultura. Nesse contexto, ganham relevância os “momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais” (MIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES, 2015, p. 20MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia; PRAZERES, Lilian L. G. A produção da subalternidade sob a ótica pós-colonial (e decolonial): algumas leituras. Temáticas, Campinas, v. 23, n. 45-46, p. 25-52, fev./dez. 2015.), destacando-se os “entre-lugares” (BHABHA, 2013, apud MIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES, 2015, p. 38MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia; PRAZERES, Lilian L. G. A produção da subalternidade sob a ótica pós-colonial (e decolonial): algumas leituras. Temáticas, Campinas, v. 23, n. 45-46, p. 25-52, fev./dez. 2015.) e os “hibridismos” enquanto categorias significativas (BHABHA, 2013 apud MIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES, 2015, p. 40MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia; PRAZERES, Lilian L. G. A produção da subalternidade sob a ótica pós-colonial (e decolonial): algumas leituras. Temáticas, Campinas, v. 23, n. 45-46, p. 25-52, fev./dez. 2015.). Não é à toa, portanto, que o que Simas (2019)SIMAS, Luiz Antonio. Epistemologia da Macumba de José Luiz Simas. Canal Escritos IBICT, 30 set. 2019. 1 Vídeo [59m06s]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? time_continue=52&v=ciQLWs7xVCw. Acesso em: 21 nov. 2019.
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destaca como a diáspora é lugar de sofrimento e tragédia, evidenciando fragilidades, sensibilidades afloradas, distanciamentos, desenraizamentos e perdas, mas é também lugar de invenção, renovação, recriação, considerando que se trata de lugar de trânsito, de movimento, de passagem, de múltiplas encruzilhadas.

2.2 Um Urbano Ampliado e Intensificado

A universidade se espraia, no Ceará, pelas duas pequenas cidades – Redenção e Acarape –, com a presença estudantil inscrevendo-se em um cotidiano urbano complexo e vice-versa, com as cidades enraizando-se e compondo os espaços acadêmicos. Redenção e Acarape são cidades praticamente conurbadas e suas manchas urbanas reduzidas permitem deslocamentos através de caminhadas, sendo um elemento essencial às cidades, com a convivência cotidiana face a face envolvendo os agentes acadêmicos, particularmente milhares de estudantes e os moradores que ali já residiam.

O caráter acadêmico-científico interiorizado, internacionalizado e associado à migração temporária e às diásporas impacta intensamente o urbano3 3 Achamos importante destacar que o urbano compõe e configura esse campo, no Ceará, de modo intenso e singular, embora não seja nosso foco neste artigo uma análise mais ampla sobre esse aspecto. , implicando na constituição de um urbano paradoxal, marcado, ao mesmo tempo, por ritmos lentos, a priori, considerando tratar-se de pequenas cidades interioranas, e de ritmos rápidos, intensos e transescalares, em virtude da incorporação de outros agentes, processualidades, estruturas, fluxos e redes. Revela-se, portanto, um urbano marcado pela proximidade e ritmo lento do interior e do rural, e, ao mesmo tempo, marcado pela intensidade, pela velocidade, por múltiplas escalas e por distanciamentos – tensionados e questionados, por vezes – associados às migrações em contextos de diásporas, mas também às desigualdades e segregações urbanas e às hegemonias e subalternidades que se estruturam, reproduzem e reconfiguram continuamente.

A partir da implantação da UNILAB, ao mesmo tempo em que preservam certas características de pequenas cidades interioranas, as urbes são paradoxalmente atravessadas por maior intensidade de processualidades, fluxos e redes, inscrevendo em si novas funções urbanas – assentadas em dimensões profissionais, acadêmicas e científicas –, ampliando seu raio de influência. Nesse contexto, seus moradores são interpelados continuamente por tensões entre: (a) diferentes ritmos, lógicas, epistemes e ontologias urbanas, particularmente se considerarmos um urbano ampliado em virtude das diásporas e das virtualidades que se amplificam; (b) tradições e inovações, permanências e mudanças; (c) passados, presentes e futuros que se interpelam, tensionam, refuncionalizam e ressignificam – para ilustrar, envolvendo, por exemplo, negritude e racismo nas cidades.

Nesse contexto, as juventudes estudantis emergem como agentes urbanos, sociais e políticos relevantes, com tensões, conflitos e disputas intensas, compondo o cotidiano no campo. Essa centralidade de uma dimensão conflitual relaciona-se aos processos e dinâmicas urbanas de ocupação, acesso, uso, regulação, construção e posse/propriedade da terra urbana, das diferentes partes que compõem as cidades, considerando-se espaços privados e públicos.

Evidencia-se, então, um urbano marcado pela intensificação das dinâmicas urbanas, por uma multiescalaridade e por articulações mais complexas entre o material, o imaterial e o virtual. Nesse sentido, também cabe considerar que, como toda periferia do sul global, o espaço conformado pela universidade e pelas duas pequenas cidades é marcado por violências, violações de direitos e privações em várias ordens e escalas (MACHADO et al., 2017MACHADO, Eduardo Gomes et al. Urbanização e os desafios à política urbana em pequenas cidades: o caso de Redenção, Ceará, no contexto de implantação da UNILAB. Políticas Públicas & Cidades, [online], v. 5, n. 1, p. 43-63, 2017. Disponível em: https://doaj.org/article/697fe03a73654016b915722ac8f0919d. Acesso em: 3 jul. 2023.
https://doaj.org/article/697fe03a7365401...
, 2019MACHADO, Eduardo Gomes et al. Cidades, juventudes e conflitos urbanos: questões teórico-empíricas a partir de Redenção e Acarape. Estudos de Sociologia, Recife, v. 1, n. 25, p. 139-172, 2019.). Revela-se um urbano marcado por desigualdades, segregações e questões urbanas que impactam reiteradamente o cotidiano vivenciado, atingindo, particularmente, os discentes em sua vida cotidiana (LANGA, 2016;LANGA, Ercílio Neves Brandão. Diáspora africana no Ceará no século XXI: ressignificações identitárias de estudantes imigrantes. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016. MACHADO et al., 2017MACHADO, Eduardo Gomes et al. Urbanização e os desafios à política urbana em pequenas cidades: o caso de Redenção, Ceará, no contexto de implantação da UNILAB. Políticas Públicas & Cidades, [online], v. 5, n. 1, p. 43-63, 2017. Disponível em: https://doaj.org/article/697fe03a73654016b915722ac8f0919d. Acesso em: 3 jul. 2023.
https://doaj.org/article/697fe03a7365401...
, 2019;MACHADO, Eduardo Gomes et al. Cidades, juventudes e conflitos urbanos: questões teórico-empíricas a partir de Redenção e Acarape. Estudos de Sociologia, Recife, v. 1, n. 25, p. 139-172, 2019. MALOMALO, 2018MALOMALO, Basilele I. Desafios de gestão multicultural numa universidade internacional: caso da UNILAB. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, p. 75-100, 2018.), evidenciando opressões associadas ao colonialismo, à colonialidade e ao capitalismo.

Ao mesmo tempo, evidenciam-se resistências, estratégias, táticas e linhas de fuga em constante reconstrução no campo, ainda mais se considerarmos que são muitas as expectativas associadas à UNILAB, considerando democratização, interiorização, cooperação com a África, reparação histórica, direitos humanos e geração de alternativas ao desenvolvimento. Nesse contexto, o campo é profundamente marcado por ativismos, militâncias e movimentos sociais – de mulheres, de gênero, negros, indígenas, quilombolas, africanos, afrodescendentes, trabalhadores, dentre outros (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019)4 4 Diários de campo do projeto Estudantes, direitos e territórios urbanos no Maciço de Baturité: uma experiência de territorialização e democratização na assistência estudantil da UNILAB, cujos registros compreendem o período de 2017 a 2019. .

3 Entre o trabalho do sentido e a lida com situações problemáticas

Considerando as questões anteriores e entendendo que o campo é “campo de forças, e também de lutas que visam transformar esse campo de forças” (BOURDIEU, 2003, p. 38BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, Renato. (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 149-184.), a constituição de subcampos pode evidenciar vetores relevantes à análise. Nesse sentido, Alvarez (2014, p. 18-19)ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, jan./jun. 2014. indica como os subcampos se constituem através de disputas interpretativas ou discursivas, carreando

[...] linguagens, sentidos, visões de mundo pelo menos parcialmente compartilhadas, mesmo que quase sempre disputadas, por uma espécie de gramática política que vincula as[/os] atoras/es que com eles se identificam.

Variados subcampos vão se constituindo e compondo o campo universitário-urbano – feministas, africanos, negros, indígenas, quilombolas, estudantes, de religiões afrodescendentes, sindicais, dentre outros. Ao mesmo tempo, é possível avaliar que o subcampo burocrático-institucional – com suas instâncias, dinâmicas, reuniões, cargos, órgãos, decisões, capitais e posições – atravessa e integra todos os demais subcampos.

Desse modo, cada subcampo gera gramáticas próprias e um universo de sentidos partilhados, constituindo frames (NUNES, 2013NUNES, Jordão Horta. Frame e identidade coletiva: uma perspectiva interacionista de análise dos movimentos sociais. Contemporânea, São Paulo, v. 3, n. 1 p. 143-172, jan./jun. 2013.), ou paradigmas interpretativos (ALVAREZ, 2009ALVAREZ, Sonia E. Construindo uma política feminista translocal da tradução. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 743-753, set./dez. 2009.), entendendo-se o frame como um “quadro que organiza a percepção e a experiência e que constrange a interpretação, constituindo também uma condição necessária para sua existência” (NUNES, 2013, p. 151NUNES, Jordão Horta. Frame e identidade coletiva: uma perspectiva interacionista de análise dos movimentos sociais. Contemporânea, São Paulo, v. 3, n. 1 p. 143-172, jan./jun. 2013.). É possível falar, portanto, em “comunidades interpretativas ou discursivas”, com os discursos constituindo “um universo de significados que se traduzem ou se (re)constroem ao fluir ao longo de diversas teias político-comunicativas, norteando as estratégias e identidades das[/dos] atoras/es que se coligam nesse campo” (ALVAREZ, 2014, p. 18-19ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, jan./jun. 2014.). Porém, nem os subcampos, nem os frames e as interpretações estão constituídos a priori.

Um subcampo emerge à medida que um conjunto de agentes mobiliza, constitui e opera interpretações, discursos e narrativas próprias. As interpretações e avaliações coletivas se entrelaçam à própria constituição, continuidade ou fragilização dos subcampos e dotam de sentidos os processos e as situações cotidianas experienciadas pelos agentes, com esses se articulando “através de redes político-comunicativas – ou melhor, teias ou malhas – reticuladas” (ALVAREZ, 2014, p. 18ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, jan./jun. 2014.).

Desse modo, o cotidiano vivenciado no campo evidencia como as dimensões e as dinâmicas cognitivas, discursivas e simbólicas detêm centralidade e relevância nas vivências e lutas políticas cotidianas, as quais transitam entre o formal e o informal.

Porém, mesmo considerando esse “trabalho do sentido” (CEFAÏ, 2017a, p. 190CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.), avaliamos que um enfoque pragmático enriquece a percepção, deslocando o foco analítico da categoria discurso para a categoria experiência. Nessa perspectiva, podemos falar no distúrbio (CEFAÏ, 2017aCEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.) enquanto uma categoria que permite indiciar aquilo que perturba a ordem natural das coisas, o que aparentemente estaria estabelecido, normalizado, naturalizado, o que seria aceito de modo espontâneo, emergindo, portanto, como uma alteração da atitude natural, uma desorientação que pode derivar e se expressar “na passagem à atitude reflexiva” (CEFAÏ, 2017a, p. 192CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.). Nesse sentido, Cefaï (2017a, p. 191)CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a. indica como o distúrbio “costuma nascer de provas afetivas, sensíveis ou avaliativas que perturbam a base de evidência das coisas da vida cotidiana e levam a fazer investigações para elucidar em que consiste esse distúrbio”. E, mais do que isso, cabe entender que a experiência transcende as “vivências intersubjetivas”, remetendo a um “habitat experiencial” (CEFAÏ, 2017a, p. 191)CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a., o campo, na perspectiva aqui trabalhada, envolvendo sentidos afetivos e estéticos, experimentações práticas e trocas interacionais (CEFAÏ, 2017aCEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.).

A partir dessas referências e questões, cabe destacar que a “passagem” para uma atitude reflexiva conceitualmente envolve dinâmicas de definição e lida com os distúrbios, instituindo “situações problemáticas” experienciadas cotidianamente, envolvendo, por exemplo, situações marcadas por desigualdades e segregações urbanas, machismo, racismo, xenofobia e LGBTfobia. Aos poucos, e a partir de certas experiências vivenciadas, podem constituir-se condições que tensionam o que até então era percebido, sentido e vivenciado como normal, natural, aceitável, instituindo-se situações problemáticas que evidenciam a emergência processual de uma dinâmica pública, política e cognitiva, o que ocorre de modo mais ou menos intuitivo, espontâneo e informal, evidenciando a passagem do privado para o público, o deslocamento do que era até então, considerando da ordem do particular para uma ordem política/pública.

Desse modo, a passagem do distúrbio para a situação problemática evidencia que determinados conjuntos de agentes buscam, em algum grau, entender, explicar, representar e controlar as experiências vivenciadas. Não é à toa, portanto, que:

Quando Dewey (2003) descreve a emergência do coletivo de exploradores, investigadores e experimentadores que forma um público, faz referência a essa dimensão experiencial, indissociavelmente afetiva, cognitiva e normativa, ancorada no presente, mas abrindo para horizontes de passado e presente, em que convicções “pessoais” vão se formar, se reforçar e se exprimir em um processo de “coletivização” e de “publicização” de um caso, de um problema ou de uma causa. (CEFAÏ, 2009, p. 26CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-48, 2009.)

Considerando essas ancoragens teórico-empíricas, percebemos que o campo universitário-urbano analisado se evidencia como centralmente marcado por uma dimensão conflitual, em um cotidiano que transcende a mera formalidade acadêmica ou os limites estreitos de uma dinâmica acadêmica stricto sensu. Nesse sentido, à medida que os agentes no campo vão lidando pragmaticamente com as situações cotidianas experienciadas, vão constituindo, em alguns casos, mediações coletivas significativas (BLUMER, 1980;BLUMER, Herbert. A natureza do interacionismo simbólico. In: MORTENSEN, Charles D. Teoria da comunicação: textos básicos. São Paulo: Mosaico, 1980. p. 119-137. CEFAÏ, 2009CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-48, 2009., 2017aCEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a., 2017bCEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 2). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 2, p. 129-124, 2017b.), cabendo destacar a relevância dos subcampos nesses processos.

Como é possível intuir, a definição e a forma de lidar com situações problemáticas não se desvincula, portanto, de um trabalho do sentido, mas vai além dele, ao se inscrever em mobilizações em público, em preocupações e problemas partilhados e, de modo geral, ao compor uma “capacidade de sentir em comum [...] que se realiza por intermédio de uma atividade coletiva” (CEFAÏ, 2017a, p. 196CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.). Desse modo, evidencia-se a constituição de “mediações de experiências coletivas” com certa sequencialidade e cumulatividade, particularmente nos subcampos, cabendo destacar que:

A mediação de uma experiência coletiva é, aqui, capital para que o distúrbio seja problematizado e publicizado e para que as pessoas saibam com o que estão lidando e o que fazer com isso. [...] Em outras palavras, geram um campo de experiência coletiva com modos de ver, dizer e fazer de sentido comum, articulados por uma rede de números, categorias, tipos, relatos e argumentos disponíveis que permitem apreender um estado de coisas como um problema identificável e reconhecível (CEFAÏ, 2017a, p. 192CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.).

Assim, a constituição do campo ocorre à medida que conjuntos de agentes “delimitam problemas que têm alcance público” (CEFAÏ, 2017a, p. 197CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.), com a “trajetória de um problema público” ordenando “um horizonte de engajamentos, de preocupações, de sensibilizações e de mobilizações em seu entorno”, vinculando “processos de associação, de cooperação e de comunicação” (CEFAÏ, 2009, p. 16CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-48, 2009.). Cabe falar, portanto, para além do trabalho do sentido, de práticas cotidianas que envolvem operações de ajuste e de coordenação das tarefas (CEFAÏ, 2009CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-48, 2009.), mesmo que efetivadas de modo mais ou menos espontâneo. Nessa processualidade, a constituição de mediações coletivas e de subcampos se entrelaça, fixando “hábitos de cooperação e de conflito” e fornecendo “parâmetros de experiência cognitiva e normativa” (CEFAÏ, 2009, p. 19CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-48, 2009.).

Para ilustrar, em um contexto onde confluem estudos e discussões acadêmicas no âmbito do feminismo e dos estudos de gênero e distúrbios envolvendo desigualdades e violências de gênero, emerge, aos poucos, um movimento feminista coligado com um movimento LGBTQIA+, configurando esquemas interpretativos, discursos e situações problemáticas singulares. Porém, também aos poucos e a partir de certos episódios significativos, algumas mulheres, estudantes de países africanos, vão constituindo práticas e discursos que revelam que não se sentem representadas por esse feminismo que é entendido, em alguns momentos, como brasileiro ou ocidentalizado. Emerge, então, uma situação em que o “consenso presumido”, da unidade de um pretenso movimento feminista universal, é tensionado, em que uma situação problemática se constitui, com um conjunto de mulheres buscando lidar com ela, conformando experiências coletivas compartilhadas, constituindo outras formas associativas, interpretações e discursos. Conseguem, assim, aos poucos, escavar o campo, conformando lugares ou posições próprias e constituindo-se enquanto agentes distintas, ativas e reconhecidas (MACHADO; GOMES; SILVA, 2021MACHADO, Eduardo Gomes; GOMES, Peti Mama; SILVA, Regina Balbino. Mulheres africanas em um campo universitário urbano no Brasil. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 17, p. 277-304, 2021.).

4 A centralidade da dimensão conflitual no cotidiano experienciado

Variados episódios evidenciam a centralidade da dimensão conflitual no campo, diversas vezes evidenciando a confluência entre estruturas de longa duração e situações cotidianas vivenciadas, revelando, para além da rotina que se repete, um conjunto de episódios racistas, machistas, LGBTfóbicos e xenófobos. Aos poucos emergem distúrbios, com alguns se tornando situações problemáticas. No período analisado, esse contexto se agravou no campo em virtude do fortalecimento de segmentos, discursos e práticas neoconservadoras, neofascistas e neonazistas no Brasil, com rebatimentos no campo. Destacamos três episódios significativos: em 18 de junho de 2016 emerge uma denúncia de estupro envolvendo estudantes da UNILAB; em 20 de outubro de 2017 ocorre uma tentativa de feminicídio no interior da UNILAB; em 09 de julho de 2019 é lançado o Edital Transgêneros da UNILAB, gerando repercussão nacional, anulado pela Pró-Reitoria de Graduação/Reitoria em 17 de julho.

A denúncia de estupro em 2016 gerou tensão entre professores brasileiros e de países africanos, percebida, por exemplo, em assembleia com a presença de centenas de pessoas, principalmente docentes e discentes, no Pátio da Liberdade, com as falas revelando uma tensão crescente, com acusações de racismo e xenofobia emergindo e o conflito interpessoal evoluindo ao ponto, quase, de agressão física. A situação somente foi contida por intervenção de uma professora, liderança do subcampo de Mulheres/Gêneros, que conseguiu conter os ânimos. Cabe indicar que houve outras denúncias de violência sexual envolvendo discentes da UNILAB, em momentos anteriores e posteriores a esse episódio. Os episódios mais graves geraram, em vários momentos, denúncias públicas e debates virtuais e presenciais, nos corredores, nas salas de aula, nas redes e grupos virtuais, em reuniões institucionais e em assembleias dos segmentos da comunidade acadêmica, muito marcados por tensões e conflitos. De modo geral, de um lado, o grupo de gênero e de mulheres denunciou, e, de outro, uma parte dos professores, professoras e discentes de países africanos questionou, em alguns casos, a forma como as denúncias estavam sendo realizadas, efetivando ou tangenciando um viés racista e/ou xenofóbico – mesmo não intencionalmente.

A tentativa de feminicídio envolveu tiros no campus de Acarape, no turno da noite, com a vítima e o agressor sendo estudantes da Instituição. Em uma sexta-feira à noite, com a presença de mais de mil pessoas, dentre eles docentes, discentes, técnicos, seguranças e terceirizados, os tiros ocorreram no campo do Palmares, gerando pânico, com centenas de pessoas sem saber o que exatamente estava acontecendo diante dos tiros desferidos, correndo, buscando se proteger, descendo escadas. A estudante foi atingida, mas sobreviveu. Nos dias que se seguiram, variados relatos circularam, e o medo, a ansiedade, a revolta e a tristeza foram patentes, com estudantes, particularmente, evidenciando muito sofrimento emocional/psicológico. Algumas lideranças, coletivos e entidades buscaram reagir, para denunciar e lidar com toda a situação. Um dos episódios mais significativos envolveu um sarau poético e musical na Praça do Obelisco, um tradicional ponto de encontro das juventudes estudantis em Redenção, marcado por muita emoção, gerando um espaço e uma situação de catarse coletiva e de denúncia e enfrentamento às violências contra mulheres.

Outro episódio que causou grande repercussão foi a anulação do Edital Transgêneros, em julho de 2019, justificada por argumentos de viés jurídico, gerando muitas críticas e alguma resistência, incapazes, porém, de reverter a anulação àquele momento.

Esses episódios e processos nos permitem perceber como o campo e os subcampos vão se constituindo à medida que é tensionado o “consenso presumido da experiência do senso comum” e posta “à prova a atitude natural dos indivíduos que a compõem” (CEFAÏ, 2009, p. 27CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-48, 2009.), revelando a instituição de lugares de ação coletiva a partir do enfrentamento de situações problemáticas. Essa dinâmica é intensificada no campo universitário-urbano em questão se consideramos o caráter de repartição pública e de espaço acadêmico-científico, assim como a intensa presença de movimentos sociais, com esses vetores dotando de centralidade na dinâmica cotidiana o escrutínio público, a prestação de contas e a crítica reiterada. Assim, a dinâmica cotidiana do campo revela “a forma de verdadeiras deliberações em que nos expomos aos pontos de vista dos outros e os levamos em conta numa perspectiva ampliada” (CEFAÏ, 2017a, p. 196CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a.), em vários momentos, inclusive, enfatizando acentos dramáticos, expressivos, performáticos – o que se percebe ao experienciarmos cotidianamente o campo, a tal ponto que vários agentes afirmam, em momentos diferentes, coloquialmente, como a UNILAB é intensa! Ao mesmo tempo, essa dinâmica também é intensificada a partir das tensões no espaço urbano, envolvendo os moradores mais antigos, residentes antes da implantação da Universidade, e os novos moradores, particularmente as juventudes estudantis, articuladas a complexas mudanças urbanas.

Considerando esses episódios, é possível falar na emergência de um subcampo feminista e/ou de gênero, com uma grande variedade de agentes (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Entendemos que em cada subcampo pode haver um ou mais polos, que tensionam, mobilizam, agregam e polarizam. Um desses polos envolve predominantemente feministas brasileiras e ativistas LGBTQIA+ (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Esse grupo assumiu posturas de denúncias ao machismo e ao sexismo em diversos momentos, inclusive em relação a denúncias de casos de estupro envolvendo discentes da instituição (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Destaca-se, portanto, ao ter como bandeira o enfrentamento às violações de direitos e às violências contra as mulheres e a comunidade LGBTQIA+, constituindo um núcleo de políticas de gênero e sexualidade, ativo, também, a partir de grupos de extensão e pesquisa.

Esse subcampo foi capaz de efetivar a Portaria do Nome Social na UNILAB, em dezembro de 2014; instituir um núcleo no âmbito da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Estudantis; realizar exposições artísticas, campanhas e um curso de Defensoras e defensores dos direitos à cidadania, com três edições em 2016, 2017 e 2018; ter membros escolhidos para a Diretoria da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), em 2016, e para o Conselho Estadual de Direitos Humanos, em 2017; e lançar um Edital Transgêneros UNILAB, em julho de 2019. Constituiu alianças com lideranças nacionais no enfrentamento às violências contra as mulheres (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019); inseriu-se em instâncias representativas estaduais, nacionais e internacionais e buscou fazer confluir diferentes bandeiras de luta, no âmbito do enfrentamento às violências e violações de direitos.

Aos poucos, foi se constituindo outro polo nesse subcampo das mulheres e dos gêneros, formado por mulheres negras africanas, discentes da UNILAB, onde se destacam formas associativas, como a Rede Internacional de Mulheres Africanas (RIMA) e o Coletivo Solidariedade Africana (SOLAFRO), revelando regimes de ação e práticas cotidianas próprias. Esse polo buscou se distinguir do outro, confluindo em alianças com os homens africanos, sendo possível indiciar, também, certo panafricanismo, embora difuso e tenso, a lhe constituir (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Constituindo referências, discursos e práticas próprias, em alguns momentos contrapôs-se publicamente ao que avaliava como percepções, imagens e imaginários inadequados, englobando africanos/africanas, inclusive em episódios de maior intensidade dramática. Nesse sentido, denunciava o que percebia como falas preconceituosas, mesmo que não ditas intencionalmente, de viés racista e machista.

Esse polo entendia, assim, que haveria uma visão homogênea e pretensamente universal sendo construída e reforçada pelo grupo feminista formado majoritariamente por brasileiras. Essa visão homogênea apresentaria, mesmo de modo não intencional, as mulheres africanas, as discentes, particularmente, como submissas aos homens, não autônomas e, portanto, marcadas pelo machismo e pelo patriarcado5 5 Não é possível, nos limites deste artigo, aprofundar esse debate em suas dimensões teóricas e empíricas. . A essa visão, as discentes africanas contrapõem, em diferentes situações, a diversidade africana, a existência de tradições de viés étnico, em que as mulheres assumiam posições e papéis preponderantes diante dos homens, dentre outros argumentos. Questionavam, particularmente, certas falas do outro polo por entenderem que estas – mesmo quando não intencionalmente – terminavam por fortalecer e legitimar discursos racistas, os quais construíam imagens dos homens africanos, dos discentes, particularmente, como sendo homogêneos, marcados por uma cultura e uma sexualidade que os situaria no âmbito de um imaginário selvagem (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).

O subcampo de gêneros/mulheres parece não ter conseguido articular vetores teórico-empíricos “em-comum” (MBEMBE, 2017MBEMBE, Achille. Políticas de inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.), capazes de instituir a agregação de forças e a atuação conjunta diante de outros agentes e, particularmente, diante de situações problemáticas concretas experienciadas. Há uma fragmentação que, mesmo detendo funcionalidade nas disputas internas de poder, fragiliza a capacidade dessas agentes em disputar hegemonias no campo, inclusive ao deslocar os enfrentamentos fundamentais para disputas no interior do próprio subcampo. Desse modo, o subcampo parece demarcado em dois grupos, que não têm conseguido dialogar entre si, o que pode, inclusive, estar ocultando e não fortalecendo uma multiplicidade de agentes e de expressões associativas, discursivas e de práticas que mais recentemente vem emergindo e coexistindo no campo – por exemplo, as mulheres quilombolas e indígenas, assim como as próprias mulheres originárias das pequenas cidades, com experiências extremamente relevantes, embora não diretamente participantes do subcampo.

Assim, essa divisão parece não estar abrindo espaço para “pluralidades, contradições e conflitos que caracterizam o campo feminista mais amplo”, considerando, inclusive, “processos de descentramento no interior desses feminismos plurais” (ALVAREZ, 2014, p. 41ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, jan./jun. 2014., grifos do original). Mesmo reconhecendo a relevância, a potência e as conquistas do subcampo, a fragmentação parece andar de mãos dadas com uma fragilização mútua, dificultando um fortalecimento assentado na construção de elementos em-comum, não se percebendo a constituição de diálogos horizontais mais orgânicos, pontos de convergência e/ou interseção, ações conjuntas e alianças relevantes dentre os polos indicados.

Também é possível pensarmos em outros subcampos, com variados formatos associativos e regimes de ação, como os movimentos negro, indígena e quilombola, os discentes africanos e o movimento estudantil, interseccionando-se ou entrelaçando-se em alguns casos.

Nesse contexto, os subcampos revelam uma capacidade de se constituir, escavando o campo, constituindo lugares sociais e políticos anteriormente inexistentes, participando de instâncias político-institucionais e conformando ações públicas e/ou institucionais significativas. Nesse sentido, é importante perceber que, na lida dos agentes com situações problemáticas, evidenciam-se interdependências entre variados agentes, pois cada conjunto de falas e ações dialoga com ou responde a falas e ações de outros agentes.

Ao mesmo tempo, a dinâmica burocrático-institucional e acadêmica atravessa todos esses subcampos, marcada por rotinas e episódios variados, experienciada nas instâncias colegiadas, nos cursos e institutos, nas salas de aula, nos eventos e atividades de pesquisa e extensão, nos corredores, pátios e cantinas, nas reuniões e assembleias, nos vários espaços das cidades, privados e públicos, revelando, muitas vezes, lutas políticas mais ou menos continuadas, grupos e movimentos sociais ativos, inclusive nos variados processos eleitorais – para reitoria, coordenações e direções, por exemplo – e nas dinâmicas de formação de decisões. Considerando esse vetor, discutiremos agora algumas mudanças conjunturais no campo, as quais revelam a presença de dois ciclos significativos e distintos, particularmente entre 2015 e 2019.

5 Caracterizando dois ciclos no campo

O campo universitário-urbano é fortemente marcado por “diásporas múltiplas e multidirecionais, muitas vezes sobrepostas e interconectadas” (ALVAREZ, 2009, p. 749ALVAREZ, Sonia E. Construindo uma política feminista translocal da tradução. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 743-753, set./dez. 2009.), emergindo fortemente, portanto, uma ontologia e uma episteme, em que se destacam fronteiras e pontes (DE CERTEAU, 1998, p. 209DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.). Aqui, dialogando com De Certeau (1998, p. 203-209)DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998., entendemos que o relato detém “um papel decisivo”, entendido como “um ato culturalmente criador”. Nessa perspectiva, o relato, “fundador de espaços”, tem “poder distributivo e força performativa”, assumindo “a função primeira de autorizar o estabelecimento, o deslocamento e a superação de limites”, evidenciando “dois movimentos que se cruzam (estabelecer e ultrapassar o limite)”, destacando-se, então, “a fronteira e a ponte” (DE CERTEAU, 1998, p. 209DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998., grifos do autor). Efetuando continuamente “operações de demarcação”, o relato institui e recria a tensão constitutiva entre “a fronteira e a ponte, isto é, entre um espaço (legítimo) e sua exterioridade (estranha)” (DE CERTEAU, 1998, p. 209-212DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.).

Nesse sentido, esse campo universitário-urbano singular, tão marcado pelo pluralismo histórico e pela inter-historicidade (SEGATO, 2012SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-Cadernos CES, [online], v. 18, p. 106-131, 2012. DOI: https://doi.org/10.4000/eces.1533. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/1533. Acesso em: 3 jul. 2023.
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), amplia as áreas de contato entre variados agentes, com o relato, a fronteira e a ponte constituindo-se enquanto categorias significativas para desvelar sua dinâmica cotidiana.

No campo, entrelaçam-se rotinas que se reiteram e episódios inesperados, ocorrendo por vezes uma relatoria corriqueira e sequenciada, mas também falas de impacto, se desdobrando, separando e atando, em um jogo cotidiano, em que as situações, relatos e práticas são reiteradamente discutidas e interpretadas. Nesse contexto, espelhos múltiplos revelam distinções, reconhecimentos, reciprocidades e disputas, com cada conjunto de agentes lidando com os distúrbios e situações problemáticas e, ao mesmo tempo, buscando escavar, constituir e manter certo lugar de poder. Nesse sentido, inclusive, certos relatos e práticas buscam deslegitimar ou interditar outras lideranças, fragilizando suas influências junto a grupos e comunidades específicas. Estão em jogo as capacidades de mobilizar, articular e influenciar de modo mais duradouro segmentos e grupos da comunidade acadêmica, com os agentes constituindo e ocupando posições, lançando mão de capitais variados, operando disposições sociais requeridas nas situações cotidianas e fazendo emergir relatos, presencial e virtualmente. Em todas essas processualidades, revelam-se fronteiras e pontes.

Nos últimos anos, indícios apontam para mudanças de conjuntura no campo. A UNILAB deteve cinco reitores e uma reitora até o final de 2019, todos pro tempore, configurando o que podemos delimitar como dois grandes ciclos no campo.

O primeiro ciclo envolveu as gestões de Paulo Speller (2010-2013), Nilma Lino (2013-2014) e Tomaz Aroldo (2015-2016), no contexto anterior ao impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016. Nesse período, destacam-se a força do Instituto de Humanidades e Letras (IHL), pelo menos até o final de 2014, e uma dinâmica de múltiplas reuniões institucionais e assembleias com dezenas de participantes, várias delas conjuntas, com técnicos e estudantes. Aqui, ainda, prevalece certo viés de inocência, esperança e utopia, com intensidade nos diálogos, disputas e mobilizações e certa facilidade na coletivização das ações, com manifestação e envolvimento docente. O ano de 2015 é significativo nesse sentido. Aos poucos, essa potência vai se esvaindo, vão ocorrendo fragmentações – o IHL foi reorganizado em três institutos diferentes – e desencantos, por exemplo, vinculados a episódios como mudanças nos cargos e a realização de uma eleição para reitoria, com ampla participação da comunidade acadêmica, não decorrendo, porém, a escolha da lista tríplice pelo conselho superior da Universidade.

A mudança na dinâmica e clima existentes no campo vai ocorrendo gradualmente, com a exclusão da representação do IHL na vice-reitoria, em dezembro de 2014, seguida por vários outros episódios internos e externos, como, por exemplo, além dos já indicados, as mudanças na chefia do governo federal. No primeiro ciclo, um cotidiano de aspirações democráticas ainda está posto, com foco na superação da pró-temporalidade e na consolidação institucional da Universidade.

No segundo ciclo, marcado pelas gestões de Anastácio Queiroz (2017-2018) e Alexandre Cunha (2018-2019), ocorre uma restrição na esfera e na dinâmica pública existentes no campo, com a redução dos momentos, das instâncias, das situações e dos processos democráticos, em que emergiam divergências e interpelações mútuas, configuravam-se alianças e oposições, mediavam-se conflitos e tomavam-se decisões. Diminuem os espaços de escuta e convivência cotidiana típicos da conjuntura anterior (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019), e há um deslocamento para as casamatas da institucionalidade vigente, fragilizando e rompendo processualidades horizontalizadas e ascendentes, fortalecendo a concentração, a centralização e as dinâmicas descendentes do poder político. Esse ciclo se efetiva e reitera ao subalternizar certos grupos e forças políticas, buscando impor certa dinâmica inercial (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.) no campo do poder, no campo universitário-urbano. Aqui, cabe compreender brevemente o campo do poder enquanto:

[...] o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital ou, mais precisamente, entre os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é posto em questão (BOURDIEU, 2004, p. 52BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.).

Nesse segundo ciclo, ganha centralidade a “reprodução da estrutura do campo do poder”, marcada pela “distribuição dos poderes e privilégios entre as diferentes categorias de agentes engajados nessa concorrência”, estando em jogo “a conservação ou a transformação da estrutura do campo”, da cultura institucional e dos princípios de poder dominantes (BOURDIEU, 2003, p. 36BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, Renato. (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 149-184.).

Considerando essas questões, o novo ciclo parecia evidenciar, em meados de 2019, pontos de não retorno, ainda mais se considerarmos que se tratava de uma instituição onde o status de construção inicial – considerando-se a implantação da UNILAB a partir de 2011 – habilita uma conformação iniciática que tende a se reiterar e permanecer. Nesse sentido, não haveria mais lugar, no imaginário em constituição no campo, para “possíveis incompatíveis” (BOURDIEU, 1996a, p. 34BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.), recusas heroicas ou arriscados lances democráticos, considerando, inclusive, a confluência entre o ciclo interno e a conjuntura nacional. Estamos aqui entre 2017 e 2019, cabendo lembrar o contexto mais geral do país, que aponta para um esgarçamento da cidadania, ataques a direitos e retrocessos democráticos, cenário que se desdobra e capilariza no campo universitário-urbano aqui discutido, nas micro e nanoescalas cotidianas. Assim, o que parece estar em jogo é a implantação da “lei fundamental do campo” (BOURDIEU, 1996a, p. 34BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.) e a estruturação do campo do poder, conformando um repertório de escolhas das quais aparentemente não se poderia fugir, e que eram percebidas e vivenciadas, àquele momento, em meados de 2019, como absolutas e quase irreversíveis em seus efeitos imediatos e em suas implicações de média duração. Tal parece ser o drama a desenrolar-se nesse ciclo na UNILAB.

Não se trata somente de mudanças no imaginário e da própria illusio (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a., 1996bBOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.), pois elas recriam as hegemonias e subalternidades, impactando as normas, as estruturas e as disposições sociais requeridas, com os diferentes agentes adaptando-se de modo mais ou menos conformado e competente ao cotidiano que se recria. Os próprios relatos se modificam, com a dimensão pública reduzindo-se e ganhando corpo formas de relatoria como fofocas, fake news e boatos, e, ao mesmo tempo, circunscrições corriqueiras administrativa e burocraticamente formalizadas e tendencialmente restritivas. Ao mesmo tempo, proliferam conflitos interindividuais nos diferentes setores administrativos, com denúncias de assédio moral e aumentando assustadoramente os processos administrativos, denunciados como detendo, alguns deles, o caráter de perseguição política.

As dinâmicas de publicização costumam restringir-se a funções, formas, situações e públicos muito específicos, fortalecendo-se dinâmicas que buscam dissipar, ocultar ou destruir histórias, memórias e personagens do passado institucional que não se enquadram na nova hegemonia em constituição. Ao mesmo tempo, é possível indiciar procedimentos de sujeição, de amenização de tensões e de fragilização de contraposições através de performances e relatos que incluem louvações e agradecimentos presenciais e virtuais, em listas de e-mails, por exemplo. Emerge, portanto, uma dinâmica simbólica da sujeição/submissão, com práticas cotidianas que tendem a transparecer como hegemônicas, pontuando posições e constituindo vínculos e compromissos relevantes ao campo. A essa emergente dinâmica se associam sanções/proveitos “materiais ou simbólicos” (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a., p. 66), assim como hierarquias no campo do poder, com um núcleo hegemônico e, ao mesmo tempo, um conjunto de agregados subalternos (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).

É possível intuir, inclusive, uma performance pautada pelo que poderíamos nomear como “certo extremo de teatralização”, efetivada por esses agregados subalternos, enquanto os agentes do núcleo hegemônico central parecem experienciar uma “desnecessidade de teatralização”. Ao exercitar esse extremo de teatralização, alguns agentes mobilizam signos próprios à esquerda e/ou aos movimentos sociais, deslocando-os para uma dinâmica individualista de poder, em que certos indivíduos inscreveriam em si – por decorrência de características associadas ao gênero, à raça e à nacionalidade, por exemplo –, de modo automático, características relevantes, as quais cacifariam a ocupação de posições na institucionalidade, transferindo-as automaticamente para os cargos ocupados e as estruturas institucionais de que participariam. Essa individualização carreia em si uma despolitização autoritária, pois o que se observa, por vezes, é que se exercitam lógicas e práticas – para não falarmos em performances – marcadas por tradicionalidades, e, por que não dizer, por traços de colonialidade, à revelia de construções ou diálogos sistemáticos, persistentes, coletivos e/ou democráticos, mesmo que, em alguns casos, essas performances/relatos tentem expressar o inverso.

Os extremos de teatralização e a incorporação de signos rebeldes e das lutas sociais parecem vivificar valores e sentimentos comuns ao contexto, marcado pela influência neoconservadora e neofascista, não raras vezes através da criação de inimigos imaginários a serem enfrentados, por exemplo, em embates – eleitorais ou não – que envolvem cargos e posições institucionais, assim como em disputas discursivas públicas. Desse modo, a composição teatralizada efetiva a classificação apriorística de inimigos, superficialmente demarcados, deslocando o foco das análises e intervenções políticas para questões secundárias e constituindo, em alguns casos, performances e/ou relatos que tangenciam a exclusão ou destruição do inimigo – performances e relatos que deslocam o foco das substâncias para as formas. Não raramente, atacam-se mais os indivíduos que, ao deterem certo capital político, evidenciam-se como capazes de gerar polos alternativos de poder e de agregar públicos percebidos como reserva/monopólio de segmentos que performam a teatralização extrema.

Um viés que também compõe esse ciclo é a fragilização do compromisso dos agentes com projetos, emergindo e prevalecendo uma lógica pragmática do poder político, buscando legitimidade em uma alegada ou implícita competência técnica e administrativa, avessa à política e ao político. Nesse sentido, cabe mencionar o deslocamento – semântico, mas também ético e político – das práticas e posicionamentos ancorados em valores e projetos, por outros, assentados na lógica, na sensibilidade e na racionalidade da oportunidade política, ou, mais propriamente, do que é oportuno em cada situação concreta, fortalecendo posturas e práticas individualistas. Decorre que o político é pragmaticamente reduzido à conquista e à manutenção de posições de poder, dividindo a comunidade acadêmica entre os que se inscrevem e os que não se inscrevem nessa nova performance.

Nesse contexto, também se instituem formas de gratificação material e simbólica e instrumentos de consagração que buscam criar a sensação de que tudo está indo bem e está sendo feito adequadamente, e de que haveria lugar para todos. Desse modo, esvaziam-se potenciais lugares de contraposição, de oposição e de conflito, embora, ao mesmo tempo, também se esvaziem as construções de consensos enquanto elementos essenciais à dinâmica do campo. Esvaziado o conflito enquanto elemento legítimo – do ponto de vista da teoria da democracia (MIGUEL, 2014MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova, São Paulo, n. 92, p. 13-43, maio/ago. 2014.) –, o consenso é reduzido a construções efetuadas por elites restritas, com as decisões sendo comunicadas à comunidade acadêmica, já com o caráter de fato posto e/ou irreversível. Em paralelo a isso, cabe falar no que pode ser nomeado como lógica do cansaço, do desgaste e do esgotamento, marcada pela sucessão de atos e decisões que repõem/reinscrevem reiteradamente uma questão ou tema no cotidiano institucional, no âmbito de uma lógica burocratista, esvaziando o caráter político das questões em pauta e deslocando as decisões das instâncias democráticas colegiadas para as margens técnicas ou para os centros políticos da estrutura institucional – ambos inatingíveis aos que não compõem o campo do poder. Nesse contexto, há denúncias, inclusive, de não cumprimento, pela reitoria, de decisões formadas no Conselho Superior da Universidade.

Esse novo ciclo, portanto, evidencia um deslocamento ideológico do centro de gravidade do/no campo (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.), cabendo até mesmo falar na possibilidade de estar em curso uma reforma institucional, intelectual e moral (GRAMSCI, 2002GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.). Desse modo, a lei fundamental do campo, seu nomos (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.), parece conjugar elementos que reiteram uma lógica da divisão, tal qual um caleidoscópio quebrado que espatifa fragmentos múltiplos. Assim, reconstituem-se divisões entre os competentes e os não competentes, administrativa e tecnicamente, entre os sensatos e os não sensatos, entre os que detêm legitimidade e os que não detêm, entre os técnicos e os que “querem fazer confusão”, dentre outras. Divisões essas que fundamentam a não necessidade ou impossibilidade da crítica e da oposição, conformando um contexto marcado pelo fim da história e pela pós-verdade. O conflito e a crítica são entendidos, assim, como desnecessários e indesejáveis, quando não reveladores, aprioristicamente, de incompetências. Essas divisões e concepções se reforçam através da incorporação subalternizadora de certos segmentos nas marcas performáticas da extrema teatralização, configurando táticas de desmobilização, bloqueio e interdição a potenciais oposições e resistências, variadas vezes incorporando e neutralizando indivíduos e grupos, ao enredá-los às malhas do poder que buscam se fazer hegemônicas.

Em meados de 2019, portanto, parece ter cessado o tempo do “extra-ordinário” (BOURDIEU, 1996a, p. 86BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.). As temporalidades de utopias e sonhos – e também de heroísmos – estão sendo atravessadas por desencantamentos e frustrações sobrepostas, mantendo-se, talvez, um pouco da extrema lucidez (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a., 1996bBOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.) – a nos tensionar – que perpassa os tempos iniciáticos da constituição de um campo.

Sintetizando, e comparando os dois ciclos indicados, se no primeiro poderíamos ter a percepção da constituição, mesmo que breve e incipiente, de arenas públicas no sentido indicado por Cefaï (2017a, p. 204,CEFAÏ, Daniel. Públicos, problemas públicos, arenas públicas: o que nos ensina o pragmatismo (Parte 1). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 187-213, 2017a. grifos do original), no campo, no segundo período, essa dimensão pública parece ter efetivamente se esvaído:

A arena pública é coproduzida como um fórum de discussões: o fato de que os pontos de conflito tenham de ser defendidos e justificados e de que as posições adversas devam ser criticadas e invalidadas implica operações de avaliação, deliberação e julgamento. Em tal arena pública, seus representantes exigem explicações, tomam posições e respondem às críticas. Trocam argumentos que se tornam cada vez mais conformes ao public interest. George H. Mead descreve esse modo de se alçar no horizonte da comunidade moral e do reconhecimento mútuo entre atores como sendo o da adoção da perspectiva do Outro generalizado. [...] Seres humanos têm uma capacidade de transcender seus interesses egoístas para realizar figuras do interesse público.

Porém, para além dessa pretensa hegemonia em construção, há que perceber que, ao mesmo tempo, os interstícios, as franjas e as brechas que atravessam e também constituem o campo, parecem conformar – mesmo de modo intuitivo, espontâneo, latente e fragmentário – uma política e uma estética das periferias e subalternidades, enredando estratégias e táticas marcadas pelas esquivas, ou, mais propriamente, pelas gingas, insinuando potências, linhas de fuga e devires minoritários (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.). Nesse sentido, a imersão no campo permitiu identificar indícios que revelam uma dinâmica cotidiana mais densa e complexa.

Isso pôde ser intuído, por exemplo, em evento realizado em dezembro de 2019, intitulado Pensando a África a partir da UNILAB e a UNILAB a partir da África (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Falas de discentes e docentes africanos expuseram a variedade e a intensidade das insatisfações no campo, com relatos referindo-se a violências, violações de direitos, desigualdades e distinções internas, a par do que cabe nomear como desencantamento com o Projeto UNILAB, expresso, por exemplo, na fala de um docente africano, que se referiu à instituição como engodo. Também houve, nesse evento, uma evocação das memórias das lutas e resistências estudantis, inclusive em suas potencialidades de construção de identidades e de escavação de lugares próprios no campo (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Alguns estudantes direcionaram suas falas para um colega docente, desanimado e cansado dos desgastes vivenciados no campo, indicando de modo direto e público: “Você não tem o direito de cansar e desistir, embora entendamos que é uma decisão muito pessoal! Mas nós estamos aqui há mais tempo que você e não desistimos, e já lutamos muito, e conseguimos conquistas que cabem preservar” (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).

Também cabe falar do coletivo informal autonomeado como Professoras no Samba, capaz de tensionar, desmobilizar, fazer fluir e tornar porosas certas fronteiras, reconstituindo espaços e situações capazes de recriar, mais do que vínculos, regimes associativos, de pertença e ações (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019). Em atuação fora do espaço da UNILAB, esse coletivo vem sendo capaz de mobilizar mulheres situadas, a priori, em um amplo espectro político, ideológico e de movimentos sociais, deslocando a dinâmica de mobilização social para o que pode ser aprioristicamente entendido como um modus operandis infra ou pré-político. Porém, se dialogamos com certos autores e concepções, percebemos, nessa experiência, a interligação que envolve micropolítica/política do cotidiano e mesopolítica institucional, mantendo uma presença no campo através de astúcias e gingas capazes de reconformar potencialmente as estratégias e as táticas existentes, mesmo deslocadas das centralidades institucionais vigentes, as quais se fazem hegemônicas (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019).

Do mesmo modo, o jogo de futebol semanal das estudantes guineenses é espaço para exercitar o conflito, a contradição e sua mediação, para escutar, desabafar, gerar o apoio, o vínculo e o compromisso mútuo, manter a convivência reiterada, a força coletiva e os sentidos partilhados (DIÁRIOS DE CAMPO, 2017-2019) – potências a nos falar das tensões que atravessam o campo, mesmo quando mais imediatamente tudo parece estar normal, bem ou dominado.

Assim, é importante perceber vetores empíricos significativos a emergir e se refazer, considerando-se os dois ciclos indicados e destacando a importância de problematizarmos se/como eles se manterão ativos ou serão substituídos por ciclos diferentes, após 2019.

6 Considerações finais

O momento da gênese de um campo é teórica e empiricamente significativo, posto que é quando emergem e se constituem agentes que “traduzem os seus discursos articuladores e começam a enunciar outros universos de significados, outras visões de mundo, e assim, talvez, configurar outros campos discursivos de ação” (ALVAREZ, 2014, p. 47ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, jan./jun. 2014.). Mais do que isso, constituem-se campos de poder, modos de lidar com situações problemáticas e ciclos singulares.

Nesse contexto, revela-se um campo onde se configuram comunidades interpretativas e mediações experienciais coletivas, com agentes que lidam com situações problemáticas de modo cotidiano e reiterado.

Embora os migrantes temporários internacionais pareçam estar experienciando dinâmicas de crescente subalternização, vários indícios sinalizam sua vitalidade, sua força, sua presença ativa e criativa. Para além do imediatamente visível, ou melhor, das aparências mais imediatas – e pretensamente hegemônicas – do campo, cabe perceber fluxos, movimentos, intensidades, tensões e conflitos que indiciam devires e potências significativas. Estes, mesmo minoritários, fragmentários e latentes, compõem esforços de contraposição, resistência e geração de alternativas, ainda que nos interstícios, franjas e periferias do campo.

Se pensarmos nas performances, nos regimes estéticos (BOURDIEU, 1996aBOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a., 1996bBOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.) e nas figuras que compõem o campo, a percepção do fim dos tempos heroicos e da chegada do fim da história e da pós-história se restringiria às hegemonias que se instituem e reiteram, não indiciando as pequenas e capilarizadas astúcias e gingas que atravessam o cotidiano e também o compõem. Desse modo, cabe perceber deslocamentos para os interstícios, as periferias, as margens, assentadas em insatisfações e desgastes que se acumulam, embora, muitas vezes, sejam invisíveis enquanto um vetor importante em meados de 2019. Desse modo, embora esteja presente o risco da prevalência continuada dessa forma hegemônica, interditando uma democratização efetiva, outros espaços de possíveis evidenciam-se ativos.

Cabe, portanto, dar continuidade a essa análise em outro momento, utilizando, inclusive, o arcabouço analítico aqui apresentado, discutindo criticamente o que ocorre no campo a partir de 2020.

  • 1
    Iniciado em 1965, o PEC-G é o maior programa de acesso de estudantes internacionais a universidades brasileiras.
  • 2
    Pretende-se fazer isso em outro momento.
  • 3
    Achamos importante destacar que o urbano compõe e configura esse campo, no Ceará, de modo intenso e singular, embora não seja nosso foco neste artigo uma análise mais ampla sobre esse aspecto.
  • 4
    Diários de campo do projeto Estudantes, direitos e territórios urbanos no Maciço de Baturité: uma experiência de territorialização e democratização na assistência estudantil da UNILAB, cujos registros compreendem o período de 2017 a 2019.
  • 5
    Não é possível, nos limites deste artigo, aprofundar esse debate em suas dimensões teóricas e empíricas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2022
  • Aceito
    13 Jun 2023
  • Revisado
    31 Jul 2023
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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