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Piada pra morrer de rir: um estudo sobre o discurso carnavalesco no filme Coringa, de Todd Phillips

RESUMO

O filme Coringa (2019), de Todd Phillips, é a representação cinematográfica mais recente do notório príncipe palhaço de Gotham City. Embora as adaptações anteriores do filme usualmente o representassem como um vilão do herói do Batman, esta versão o descreve como um homem solitário que tem de lidar com a depressão e luta para ser aceito e se encaixar na sociedade. Portanto, esta versão do personagem carrega uma aura marcada de consciência sociopolítica. O presente trabalho tem como objetivo analisar o filme Coringa de Todd Phillips através das lentes do ritual de carnaval apresentado por Mikhail Bakhtin. O trabalho discutirá os diferentes elementos carnavalescos presentes no filme Coringa, e ilustrará como o filme aproveita ao máximo para montar um ataque contra a cultura predominante e oficial de Gotham. Além disso, ele argumentará como o filme Coringa forma uma condição utópica em que a anarquia constante resulta em liberdade.

PALAVRAS-CHAVE:
Coringa; Mikhail Bakhtin; Carnavalesco; Cultura oficial; Anarquia

ABSTRACT

Todd Phillips’ Joker (2019) is the latest cinematic portrayal of the notorious clown prince of Gotham City. Although the previous film adaptations would usually picture him as a villain to Batman’s hero, this version depicts him as a lonely man who has to cope with depression and struggles to be accepted by and fit in the society. Therefore, this version of the character carries a marked aura of socio-political consciousness. The present paper aims to analyze Todd Phillips’ Joker through the lens of the carnival ritual as put forward by Mikhail Bakhtin. The paper will discuss different carnivalesque elements present in Joker, and illustrate how the movie takes full advantage of them to mount an attack against the prevalent, official culture of Gotham. Moreover, it will argue how Joker forms a utopian condition where the constant anarchy results in freedom.

KEYWORDS:
Joker; Mikhail Bakhtin; Carnivalesque; Official culture; Anarchy

Introdução

A celebração do carnaval tem sido durante muito tempo uma forma proeminente de rituais culturais em vários países. Suas origens remontam à Idade Média e consiste em uma festa onde as pessoas, em um ato de unidade social, passavam momentos em folia e excessiva devassidão. Durante o carnaval acontecem casos de zombaria e resistência ao sistema. Peças satíricas, ridicularização de autoridades, expressão de qualquer coisa considerada inadequada, como funções corporais básicas, linguagem vulgar, representação de morte e derramamento de sangue e, talvez o mais importante, a reversão das normas sociais estão entre as diferentes formas de colocar essa postura anti-establisment. Como tal, este ritual tem sido uma fonte de fascínio e inspiração não apenas no mundo real, mas também no mundo da arte.

A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais [Rabelais and His World], de Mikhail Bakhtin (1999)1 1 BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. 4. ed. São Paulo-Brasília: EDUNB, 1999. , é uma obra seminal que reflete a importância da cultura carnavalesca como força antioficial. Para Bakhtin (1999, p.7)2 2 Referência na nota de rodapé 1. , o carnaval é uma festa do povo, não apenas uma mera teatralidade. Ele afirma que “os expectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo”. E é justamente essa qualidade que faz do carnaval uma força através da qual as multidões resistem à tirania da cultura oficial. O carnaval se torna um espaço em que as pessoas misturam o aceitável e o inaceitável. Como afirma Vicki Ann Cremona (2018CREMONA, V. A. Carnival and Power: Play and Politics in a Crown Colony. Cham: Palgrave Macmillan, 2018., p.45), referindo-se ao Carnaval de Malta, “o espaço pagão do carnaval permite liberdades que não são permitidas no mundo restrito da vida cotidiana”3 3 No original: “Carnival across the globe often occupies the main streets where it is highly visible and creates general participation in the revelry, even simply through watching”. . Cremona (2018CREMONA, V. A. Carnival and Power: Play and Politics in a Crown Colony. Cham: Palgrave Macmillan, 2018., p.45) acrescenta que “o carnaval em todo o mundo muitas vezes ocupa as ruas principais onde é bem visível e cria uma participação geral na folia, até mesmo pela simples observação”4 4 No original: “the paidean space of Carnival allows for liberties that are not permitted in the restrained world of the everyday”. . O discurso carnavalesco, então, é uma celebração de tudo o que é “baixo” e “vulgar”, uma espécie de realismo grotesco, que encontra a cultura burguesa e se ergue para subvertê-la. A característica de subversão das hierarquias do discurso do carnaval era um aspecto importante do ritual nos países colonizados. Por exemplo, no carnaval brasileiro, que teve origem no “entrudo” português, “os pobres vestidos com roupas esplêndidas, os homens vestidos de mulher, os negros e as mulheres pobres transformaram-se em cortesãos barrocos da corte francesa, os homens de família perderam as suas inibições e as donas de casa se deleitavam com trajes sugestivos” (JAGUARIBE, 2013JAGUARIBE, B. Carnival Crowds. The Sociological Review, Oxford, v. 61, n. 1, pp.69-88, 2013., p.73). A função sociocultural do Carnaval como uma “cultura de resistência” (JACKSON, 1988JACKSON, P. Street life: The Politics of Carnival. Environment and Planning D: Society and Space, Thousand Oaks, CA, v. 6, pp.213-227, 1988., p.213) sobreviveu em vários graus até hoje. Fonte de inspiração, este ritual também entrou no mundo da arte. Em Trinidad, que ainda é um importante espaço de carnaval, escritores como Michel Maxwell Philip usaram o espírito do carnaval já em meados do século XIX “para promover uma agenda anticolonial” (LENNOX, 2019LENNOX, S. “Her English ensign tied upside down”: Carnival as a means of anticolonial resistance. Emmanuel Appadocca. The Journal of Commonwealth Literature, Thousand Oaks, CA, v. 54, n. 2, pp.257-272, 2019., p.258).

No entanto, essa cultura carnavalesca não está excluída do mundo da literatura. As representações cinematográficas do carnaval são tão frequentes e importantes quanto as literárias. Os filmes de Luis Buñuel, A Idade do Ouro (1930) e O anjo exterminador (1962), são exemplos eminentes do carnaval na tela grande com sua carnavalização da “etiqueta em todas as suas formas” e “decoro cinematográfico”5 5 No original: “etiquette in all its forms”; “cinematic decorum”. (STAM, 1992, p.105). Como tal, o filme Coringa (2019), de Todd Phillips, é a mais recente tentativa cinematográfica de usar a tradição do carnaval como um meio para descentralizar as normas da cultura oficial e dar o pontapé inicial em uma cultura alternativa antioficial das massas.

Coringa conta a história do comediante fracassado Arthur Fleck e sua transformação final na figura do Coringa. Por mais que Arthur tente, ele não consegue ser aceito pela cultura oficial, que tenta esmagar a ele e a pessoas como ele. No final do filme, Arthur conseguiu inspirar uma revolução das massas contra a cultura dominante. Ao longo do filme, Phillips tira proveito de várias características do carnaval para transmitir aquela sensação de resistência contra a autoridade. O que chama a atenção no discurso carnavalesco é o papel acentuado da figura do bobo da corte. Desta forma, Coringa tem a oportunidade perfeita de explorar este discurso através de seu protagonista.

O personagem do Coringa se originou em 1951, quando estreou nos Quadrinhos de Detetive no. 168 [Detective Comics # 168] como um arquiinimigo do popular super-herói Batman. Ao longo dos anos, houve muitas interações do personagem no mundo dos quadrinhos por diferentes escritores. No entanto, um aspecto de seu personagem permaneceu constante: Coringa se apresenta como o caos sob o comando de Batman. Essa tendência também é seguida no mundo do cinema. Do gângster desfigurado de Jack Nicholson ao memorável agente do caos anárquico de Heath Ledger, o personagem do Coringa sempre foi usado para causar estragos e mau governo. Este artigo busca investigar como o carnaval de Bakhtin pode lançar uma nova luz sobre aspectos ainda não explorados do ambiente caótico do filme. Mais importante ainda, o artigo é configurado para usar o contexto do carnaval para analisar as diferenças significativas entre o Coringa no filme de Phillips e as representações cinematográficas anteriores desse personagem. A próxima seção irá propor como o personagem Coringa interpretado por Joaquin Phoenix é uma personificação da cultura carnavalesca. O artigo discutirá então como o filme reflete o conceito aparentemente paradoxal de carnaval utópico de Bakhtin. A discussão se concentrará na carnavalização cronotópica para mostrar como as escolhas espaciais e temporais do diretor contribuem para a nuance carnavalesca geral do filme. A seguir, as reversões do filme serão estudadas em termos de sua função revolucionária. A seção final reúne os eixos principais do estudo.

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O personagem Coringa como encarnação do Carnaval

Mikhail Bakhtin viu a tradição do carnaval como uma força de contracultura visando a cultura oficial e dominante da época. Sua leitura de Rabelais sugere tal arranjo e, como Clark e Holquist (1998, p.314)6 6 CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. argumentam, “Bakhtin explora de uma ponta a outra de seu texto a interface entre uma estase imposta de cima e um desejo de mudança vindo de baixo, entre o velho e o novo, o oficial e o inoficial”. No carnaval, Bakhtin vê a oportunidade de uma revolta em que visões dogmáticas são desafiadas e posições dominantes são quebradas. O caráter paródico do carnaval desempenha um papel fundamental aqui. Ele inverte as hierarquias sociais e, ao fazê-lo, dá origem a uma série de probabilidades que, em última instância, podem formar uma contracultura em relação à cultura burguesa dominante. O que Bakhtin vê nessa paródia é a oportunidade de antecipar “outro mundo utópico em que prevalece o anti-hierarquismo, a relatividade dos valores, o questionamento da autoridade, a abertura, a alegre anarquia e o ridículo de todos os dogmas” (LACHMANN, 1989LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, Minneapolis, n. 11, pp.115-152, Winter 1988-1989., p.118).

Para Bakhtin, o riso é a característica central do carnaval. Ele percebeu que

O riso popular festivo apresenta um elemento de vitória não só sobre o espanto sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte; significa também a derrota do poder, dos reis terrenos, das classes superiores terrestres, de tudo que oprime e restringe (BAKHTIN, 1999, p.79-80)7 7 Referência na nota de rodapé 1. .

É o riso que, segundo Bakhtin (2013, p.145)8 8 BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5ª edição revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. , “também está dirigido contra o supremo; para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem universal”. O riso está em contraste direto com o que ele considera cultura oficial. O aspecto revolucionário do riso fica claro aqui, porque Bakhtin (1999, p.90)9 9 Referência na nota de rodapé 1. vê a cultura oficial dominante como cheia de limitações e tirania tingida de um toque de medo, enquanto “o riso supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma restrição, nenhuma interdição”.

Esse princípio do riso – por estar “associado ao folclore”10 10 No original: “associated with the folklore”. (HOY, 1992HOY, M. Bakhtin and Popular Culture. New Literary History, Baltimore, MD, v. 23, n. 3, pp.765-782, Summer 1992., p.773) – inevitavelmente dá origem a uma espécie de contracultura predominantemente folclórica. Portanto, o carnaval como um todo poderia “facilmente ser vinculado ao ‘povo comum’, ao corpo coletivo”11 11 No original: “easily be linked with the ‘common people,’ the collective body”. (EMERSON, 2010EMERSON, C. All the Same The Words Don’t Go Away: Essays on Authors, Heroes, Aesthetics, and Stage Adaptations from the Russian Tradition. Boston, MA: Academic Studies Press, 2010., p.36). Como tal, o carnaval fornece uma cultura do povo contra a cultura dominante da burguesia, um espaço onde as regras podem ser quebradas e as mudanças podem ocorrer. Em tal ambiente repleto de risos, a figura do bobo da corte desempenha um papel de destaque. No ritual carnavalesco, “o escravo e o bobo da corte tornam-se substitutos do governante e do deus”12 12 No original: “the slave and jester become substitutes for the ruler and god”. (HOY, 1992HOY, M. Bakhtin and Popular Culture. New Literary History, Baltimore, MD, v. 23, n. 3, pp.765-782, Summer 1992., p.771) e, portanto, do bobo, tanto pelo poder destrutivo de seu riso quanto por sua “repetição irônica de linguagem comum”13 13 No original: “ironic repetition of common language”. (HOY, 1992HOY, M. Bakhtin and Popular Culture. New Literary History, Baltimore, MD, v. 23, n. 3, pp.765-782, Summer 1992., p.771) poderia atuar como agente da anarquia; um presságio de “uma criatura construída pelo corpo coletivo”14 14 No original: “a common creaturliness”. (EAGLETON, 2001EAGLETON, T. Bakhtin, Schopenhauer, Kundera. In: HIRSCHKOP, K.; SHEPHERD, D. (ed.). Bakhtin and Cultural Theory. Second Edition. Manchester: Manchester University Press, 2001, pp.229-267., p.230).

A risada de Arthur é um fator-chave para estabelecer as bases para um carnaval que abarca uma cidade inteira e suspende todas as hierarquias, desafia opressões e restrições e submete o partido governante ao ridículo cômico. Ele é o encarregado de iniciar as tensões na cena do metrô em que Arthur comete seus primeiros assassinatos. Os três jovens que Arthur mata no metrô trabalham para o conglomerado de Thomas Wayne, a Wayne Investments. O incidente enfurece ainda mais Thomas, que critica duramente a classe trabalhadora como palhaços covardes “com inveja daqueles que têm mais sorte do que eles”. A classe alta, representada por Thomas, entra em um conflito sangrento com a crescente classe trabalhadora, tendo Arthur como seu representante. Anna Lundberg (2007LUNDBERG, A. Queering Laughter in the Stockholm Pride Parade. International Review of Social History, Cambridge, v. 52, n. 15, pp.159-187, 2007., p.172) afirma que “o riso carnavalesco de Bakhtin mostra a possibilidade de agência política”15 15 No original: “Bakhtin’s carnival laughter displays the possibility of political agency”. . O personagem Coringa fornece um mecanismo adequado para a realização desse potencial político. No filme Coringa, o riso do carnaval leva a um sentimento antirrico aumentado. Este confronto é também uma luta entre a risada paradoxal de Arthur e a seriedade de Thomas Wayne. Bakhtin (1999, p.81)16 16 Referência na nota de rodapé 1. observa que a seriedade, ao contrário do riso,

Estava impregnada interiormente por elementos de medo, de fraqueza, de docilidade, de resignação de mentira, de hipocrisia ou então de violência, intimidação, ameaças e interdições. Na boca do poder a seriedade visava a intimidar, exigia e proibia; na dos súditos, pelo contrário, tremia, submetia-se, louvava, abençoava. Por essa razão, ela suscitava a desconfiança do povo.

Em Gotham City, a classe trabalhadora que cresceu em uma enorme população de Coringas está farta da hipocrisia dos opressores e hierarquias da sociedade. Isso vai ao encontro da convicção de Natalia Skradol (2009SKRADOL, N. Non-Working, Communism and Carnival: Reading Andrei Platonov’s Chevengur with Bakhtin. Slavonic and East European Review, Cambridge, v. 87, n. 4. pp.601-628, 2009., p.605), de que “as hierarquias estão inevitavelmente relacionadas à propriedade e à produção, seja ela material ou de sentido, na medida em que estas são os alicerces das divisões sociais”17 17 No original: “hierarchies are inevitably related to ownership and production, whether material production or meaning production, in so far as these are the fundamentals of social divisions”. .

É apenas no meio do filme que a risada de Arthur está sob seu comando. No entanto, o que motiva isso não é pouca coisa: “Eu costumava pensar que minha vida era uma tragédia, mas agora percebo que é uma maldita comédia”. Essas palavras incorporam a compreensão de Arthur sobre o vazio em sua vida e sua subsequente transformação no papel de bobo da corte. O fato de se tornar o Coringa, por sua vez, provoca a força destrutiva de seu riso, elemento que consegue inspirar todo um movimento exemplificado pela gangue anárquica com sorrisos artificiais em suas máscaras.

No entanto, o riso não é a única arma destrutiva do carnaval. A dança também tem uma importância fundamental para a figura do bobo da corte. Na tradição carnavalesca, a dança e a alegria vêm acompanhadas de “todo ato desprezível, todo homicídio, toda forma de exagero que a libertinagem e a loucura ousaram sonhar”18 18 No original: “every despicable act, every murder, every form of excess that licentiousness and lunacy have dared to dream”. (ROBINS, JONES, 2009, p.187 apud LACHMANN, 1989LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, Minneapolis, n. 11, pp.115-152, Winter 1988-1989., p.127). Como tal, vemos esse poder destrutivo em inúmeras ocasiões. A dança de Arthur é sempre uma companheira de sua violência, seja como um precedente ou como uma etapa subsequente. Ao longo do filme, sua dança é associada à violência e assassinato. A primeira instância desse fenômeno fica evidente quando Arthur está realizando uma dança para as crianças no hospital. No meio da dança, sua arma escorrega de sua calça e, como resultado, ele perde o emprego. Isso prenuncia a relação entre sua dança e violência. Este motivo ocorre repetidamente ao longo do filme. Por exemplo, a primeira vez que sua arma é (acidentalmente) disparada ocorre quando o Coringa está dançando. Mais notavelmente, depois de assassinar os três empresários no trem, Arthur foge para um banheiro deserto, onde executa sua dança “Coringa” pela primeira vez. A partir de então, a dança se torna um elemento importante do personagem de Arthur. Ele faz isso cada vez mais à medida que se aproxima de cumprir seu papel como o Coringa. Consequentemente, a dança está intimamente associada a atos de violência no filme. Arthur realiza sua dança após matar sua mãe, observando o policial se debatendo no trem, matando Murray e, principalmente, no clímax do filme, entre a gangue anarquista do Coringa.

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O personagem Coringa e o carnaval utópico

Na Introdução sua obra, Bakhtin (1999, p.12)19 19 Referência na nota de rodapé 1. enfatiza “o caráter utópico e o valor de concepção de mundo desse riso festivo, dirigido contra toda superioridade”. Em seguida, ele se refere aos elementos essenciais da comunicação entre as pessoas na época do carnaval, que são “o caráter universal, o clima de festa, a ideia utópica, a concepção profunda do mundo” (BAKHTIN, 1999, p .14)20 20 Referência na nota de rodapé 1. . Bakhtin (1999, p.77)21 21 Referência na nota de rodapé 1. delibera que “essa liberação do riso e do corpo contrastava brutalmente com o jejum passado ou iminente”, a vida durante o carnaval “saía de seus trilhos habituais, legalizados e consagrados, e penetrava no domínio da liberdade utópica. O caráter efêmero dessa liberdade apenas intensificava a sensação e o radicalismo utópico das imagens geradas nesse clima particular”.

A ideia de Bakhtin do caráter utópico do carnaval foi recebida com desaprovação por Gary Saul Morson e Caryl Emerson (1990MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Redwood City, CA: Stanford University Press, 1990., p.67) como uma ênfase equivocada em uma forma irrestrita e excessiva de cultura popular que “no final das contas acabou sendo um beco sem saída”22 22 No original: “ultimately proved a dead end”. . A interpretação de Morson e Emerson, entretanto, pode ser contrariada enfatizando dois aspectos cruciais do carnaval bakhtiniano, conforme especificado por Michael Gardiner e Renate Lachmann. Discutiremos brevemente essas duas visões e veremos como elas reforçam nosso argumento sobre o traço utópico do carnaval no filme Coringa.

Michael Gardiner fez uma distinção entre o que ele descreveu como utopias tradicionais e opostas ou críticas. Gardiner (1992GARDINER, M. Bakhtin’s Carnival: Utopia as Critique. Utopian Studies, University Park, PA, v. 3, n. 2, pp.21-49, 1992., p.33) destaca que o carnaval bakhtiniano critica a mentalidade épica do “mau utopismo”23 23 No original: “bad utopianism”. que se apropria do imaginário utópico “para o reforço ideológico de uma ordem social centralizada e repressora”24 24 No original: “for the ideological reinforcement of a centralized and repressive social order”. . Além disso, o carnaval utópico de Bakhtin “afasta-se do racionalismo totalizante da utopia tradicional”25 25 No original: “distances itself from the totalizing rationalism of the traditional Utopia”. ; as tradições populares presentes no carnaval “são fenômenos reflexivamente autodestrutivos [sic] que rejeitam toda a ‘seriedade monolítica unilateral’ característica do monologismo”26 26 No original: “are reflexively self-deconstructing phenomena [sic] which refuse all ‘one-sided monolithic seriousness’ characteristic of monologism”. (GARDINER, 1992GARDINER, M. Bakhtin’s Carnival: Utopia as Critique. Utopian Studies, University Park, PA, v. 3, n. 2, pp.21-49, 1992., p.33). Em outras palavras, o carnaval utópico de Bakhtin é um fenômeno contínuo e dinâmico que saúda a diversidade e a heterogeneidade nas práticas sociais e culturais e se opõe à hierarquia social dominante. No filme Coringa, Arthur está farto de um mundo onde “ninguém pensa o que é ser o outro”. Ele diz que não quer mais ser um dos “bons garotos”, se se sentar e aceitar tudo o que Thomas Wayne e pessoas como ele ditarem. Ele repreende Murray por nunca deixar seu escritório para ver como as pessoas reais vivem. Claramente desafia a ordem social atual porque não respeita a heterogeneidade dos residentes de Gotham City. Assim, o racionalismo autoritário da utopia totalizante que apaga a multiplicidade de vozes está longe dos ideais do carnaval. Mais especificamente, Arthur se recusa firmemente a lançar ou liderar qualquer movimento coerente. A falta de um líder único para o movimento iniciado por Arthur indica a relutância dos desordeiros em aceitar o racionalismo autoritário e unilateral da utopia tradicional. Ao contrário do outro lado do espectro, que tem Thomas Wayne como seu líder, o movimento de oposição é liderado por todos os rebeldes de Gotham, já que a reconciliação entre a atmosfera carnavalesca e o totalitarismo é impossível. Assim, as características utópicas do carnaval no filme Coringa estão alinhadas com as deliberações de Bakhtin sobre o discurso utópico crítico durante um carnaval.

Renate Lachmann também estudou as ideias utópicas que constituem o argumento do carnaval de Bakhtin. Lachmann se concentrou em particular no que ela chama de materialismo utópico de Bakhtin. Ela observa que “Bakhtin define abertamente a cultura popular e a cultura do riso como materialistas. Seu conceito de materialismo, que em um primeiro momento se poderia tender a associar ao marxismo, revela-se, ao se observar mais de perto, basear-se em uma oposição ao espiritualismo”27 27 No original: “Bakhtin openly defines folk culture and the culture of laughter as materialistic. His concept of materialism, which one at first might tend to associate with Marxism, turns out upon closer observation to be based on an opposition to spiritualism”. (LACHMANN, 1989LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, Minneapolis, n. 11, pp.115-152, Winter 1988-1989., p.125). Segundo Lachmann (1989, p.125), a “reavaliação positiva do material e corporal”28 28 No original: “reavaliação positiva do material e corporal”. de Bakhtin é central para sua discussão do realismo grotesco e um concomitante essencial de sua elaboração do elemento utópico do carnaval. Bakhtin (1999, p.19-20)29 29 Referência na nota de rodapé 1. argumentou que um princípio importante do realismo grotesco é “o rebaixamento, isto é, o rebaixamento de tudo o que é elevado, espiritual, ideal, abstrato; é uma transferência para o nível material, para a esfera da terra e do corpo em sua unidade indissolúvel”. Assim, o que Emerson e Morson condenaram como a ênfase injustificada de Bakhtin em uma forma extravagante de cultura popular é, na verdade, seu esforço para delinear um carnaval utópico não espiritual, onde imagens corporais grotescas, em oposição a ideais e abstratos, têm um perfil elevado.

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Realismo grotesco no filme Coringa

O carnaval utópico criado por Todd Phillips no filme Coringa é significativamente marcado por múltiplas referências a imagens corporais grotescas. Na verdade, a cena de abertura do filme mostra um grupo de criminosos roubando e espancando Arthur. Repleta de violência e, principalmente, de inversão de hierarquias, essa cena dá o tom que segue o filme. Isso quer dizer que formas de violência explícita permeiam todo o desenrolar posterior do filme. Cada instância de violência, desde o esfaqueamento de Randall por Arthur aos tiros à queima-roupa em Murray, é acompanhada por muito derramamento de sangue. Essa mistura de violência e imagens grotescas serve para destacar ainda mais a natureza carnavalesca do filme. No entanto, as imagens grotescas não param por aqui. Tipos de personagens, como as figuras do anão e da velha bruxa senil, também estão presentes no filme nas formas da mãe de Gary e Arthur. Além disso, em uma cena chocante, o desolado Arthur rasteja para uma geladeira vazia.

Ao contrário de quase todos os Coringas anteriores no cinema, o Coringa interpretado por Joaquin Phoenix é um personagem esquálido a quem a mãe insiste em dar comida porque, aos olhos dela, ele parece preocupantemente esquelético. Arthur não é apenas mentalmente instável, mas também fisicamente doente. Seu corpo grotesco, mostrado nu em várias cenas, coloca-o mais uma vez em forte contraste com os bonitos e saudáveis Thomas Wayne e Murray Franklin. Além disso, o corpo ossudo de Arthur está em total contradição com o de outro antagonista do filme, seu colega Randall. Arthur odeia Randall porque ele é obviamente um palhaço melhor e tem uma posição mais estável em seu local de trabalho. Na verdade, o papel de Randall na composição do personagem de Arthur é crucial, porque é ele quem dá uma arma a Arthur. Arthur usa essa arma em todos os seus assassinatos. Após a morte da mãe de Arthur, Randall e Gary o visitam para expressar suas condolências. Em uma cena sangrenta em que o corpo nu de Arthur mais uma vez lembra o carnaval grotesco do filme, ele mata Randall, mas permite que Gary saia do apartamento.

O foco do filme no corpo não se limita às imagens corporais. Ao acessar a ficha psiquiátrica da mãe, Arthur descobre que ele é um filho adotivo. Arthur também percebe que Penny o abandonou e não fez nada quando um de seus namorados abusou repetidamente do menino. O abuso físico na infância de Arthur é a fonte de seus transtornos mentais na idade adulta. Embora na maioria dos filmes anteriores os Coringas sempre pareçam mentalmente instáveis, torna-se um detalhe importante lançar as raízes dessa situação mental em abusos físicos do passado.

A natureza carnavalesca do filme também se estende ao domínio verbal, pois temos exemplos de paradoxos paródicos que envolvem atitudes destrutivas. Por exemplo, a mãe de Arthur insiste em chamá-lo de Happy quando ele é obviamente um homem deprimido que diz “tudo o que tenho são pensamentos negativos”. Outro exemplo disso pode ser encontrado após o assassinato de sua mãe, quando ele diz a Randall e Gary que está feliz em relação à morte dela: “Minha mãe morreu. Estou comemorando”. Mas talvez o exemplo mais importante de tais ocorrências verbais seja o nome artístico de Arthur que é Carnaval, um claro aceno ao reconhecimento do filme ao ritual de carnaval. Mais especificamente, na linguagem oficial e monológica, a parte inferior do corpo e suas funções são consideradas grosseiras e, portanto, omitidas do discurso oficial. O carnaval, porém, é um ritual para contar o indizível. Assim, a “vida da parte inferior do corpo” (BAKHTIN, 1999, p.19)30 30 Referência na nota de rodapé 1. ocupa lugar de destaque nesse ritual. Podemos não encontrar esse elemento diretamente no filme Coringa, mas com certeza, ele desempenha um papel importante no filme, embora de uma forma cronotópica diferente.

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Carnavalização cronotópica do personagem Coringa

Um aspecto importante do filme é o uso de cronotopos carnavalescos. Ou seja, em vez de usar locais convencionais de ocorrência de ação, o filme define seus próprios locais exclusivos. Como Michael Gardiner (1992GARDINER, M. Bakhtin’s Carnival: Utopia as Critique. Utopian Studies, University Park, PA, v. 3, n. 2, pp.21-49, 1992., p.31) diz,

Em uma tentativa de gerar um cronotopo inteiramente novo que fosse contrário às concepções oficiais de tempo e espaço, as tradições da cultura popular do feriado “se opuseram à estabilidade protetora e atemporal, à ordem e ideologia imutáveis estabelecidas, e enfatizaram o elemento de mudança e renovação”31 31 No original: “In an attempt to generate an entirely new chronotope which was inimical to official conceptions of time and space, the traditions of folk-festive culture ‘opposed the protective, timeless stability, the unchanging established order and ideology, and stressed the element of change and renewal’”. .

Assim, vemos o uso extensivo da matriz espaço-tempo carnavalizada no filme, uma das quais se refere ao estrato inferior do corpo. A parte inferior do corpo é apresentada em termos de cenário e Phillips carnavaliza os locais de ação cronotópicos típicos, colocando duas cenas-chave em um banheiro. Arthur foge para um banheiro deserto após matar os três empresários. É lá que ele executa sua dança característica pela primeira vez e possivelmente dá um grande passo para se tornar o Coringa. O próximo caso igualmente importante é seu confronto com Thomas Wayne, que se passa no banheiro do cinema. Esta continua a ser a única cena em todo o filme que mostra um encontro entre Arthur e Wayne, e é aqui que a rejeição de Arthur por Wayne dá o golpe final e o leva ao limite.

No entanto, este tipo de carnavalização cronotópica não se limita à parte inferior do corpo. Existem também muitas outras justaposições em termos de cenário e imagens grotescas. Ao longo do filme, as ruas de Gotham City são bem desorganizadas. Na verdade, durante alguns momentos-chave do filme, vemos o palco cheio de lixo. Isso, junto com a presença transitória de “super ratos” em alguns momentos do filme, está longe do que a cultura oficial consideraria adequado. Curiosamente, as escadas são muito utilizadas no filme e é notável como o movimento associado a elas é invertido. Geralmente, subir escadas significa progresso e sucesso, ao passo que descer marca decadência e estagnação. No filme, entretanto, esses estereótipos de movimento são invertidos. Sempre que vemos Arthur subindo as escadas, ele fica chateado ou acaba de voltar de uma tarefa que falhou. Pelo contrário, toda vez que ele cai, ele fica feliz, estando a um passo mais próximo de seu verdadeiro eu, exemplificado por sua cena de dança icônica. Além disso, há várias placas de saída no filme e Arthur entra em um local em pelo menos duas ocasiões (o hospital e o cinema) pela porta de saída.

Um dos principais locais de ação do filme é o transporte público, especialmente o metrô. O transporte, por sua própria natureza, se opõe à “imobilidade conservadora e à sua ‘atemporalidade’” (BAKHTIN, 1999, p.70)32 32 Referência na nota de rodapé 1. propagada por uma cultura harmônica. O movimento constante é eficaz para transmitir uma sensação de desconforto no filme. Além disso, os meios de transporte mostrados no filme são quase sempre públicos, adicionando ao filme um sentimento contínuo de multidão. Há várias tomadas de Arthur viajando pela cidade com esses meios de transporte, mas talvez a mais importante seja o metrô, que funciona como um local de anarquia. É no metrô que Arthur comete um assassinato pela primeira vez; posteriormente, é em uma estação de trem que a turba do Coringa espanca os dois policiais e dá a Arthur a chance de escapar.

Outra observação notável sobre o filme é que o tempo está parado. Em várias tomadas (embora ocorram muito rapidamente e sejam difíceis de capturar), podemos ver que todos os relógios apontam para um horário específico: 11h 11min. Isso se mantém constante ao longo do filme e, junto com os vários usos do espaço, enfatiza o traço atemporal do carnaval.

Essas inversões de hierarquias e valores ajudam Phillips a injetar no filme uma sensação de realidade invertida que implica a instabilidade das hierarquias dominantes. Nesse contexto, o filme Coringa pode ser considerado a personificação perfeita da tradição carnavalesca do cinema. O filme baseia-se fortemente nos elementos paródicos e ritualísticos do carnaval e esses elementos carnavalescos dão-lhe uma atmosfera de contracultura que se opõe à hegemonia burguesa dominante.

5

A subversão revolucionária do personagem Coringa

O personagem Coringa demonstrava vontade e ousadia suficientes para desafiar e zombar daqueles que estavam no poder. Johan Nilsson (2015NILSSON, J. Rictus Grins and Glasgow Smiles: The Joker as Satirical Discourse. In: PEASLEE R. M.; WEINER R. G. (ed.) The Joker: A Serious Study of The Clown Prince of Crime. Jackson, MS: The University Press of Mississippi, 2015, pp.165-179., p.165) argumenta acerca do significado de “Coringa: bobo, bufão, enganador, malandro, palhaço; as derivações estereotípicas do bobo são muitas, mas uni-las é um sentimento de malícia e um escárnio de autoridade”33 33 No original: “joker – fool, prankster, jester, trickster, clown; the derivations of the fool archetype are many, but joining them together is a sense of mischief and a ridicule of authority”. . Assim, os bufões e palhaços da literatura e do cinema costumam criar ambientes carnavalescos por meio de seus discursos e ações satíricas. No entanto, a carnavalização do personagem Coringa geralmente assume a forma de oposição ao personagem Batman ou outros protagonistas com traços semelhantes que remetem aos super-heróis. Esse estereótipo é precisamente o ponto em que o personagem central de Todd Phillips desconstrói as noções convencionais dos espectadores sobre o filme Coringa.

Ao contrário de seus antecessores, Arthur Fleck não enfrenta nenhum super-herói arquirrival. Os desafios que Arthur tem que enfrentar são mais inatos e mais profundos. Arthur não tem intenção de mergulhar em uma crise ainda mais profunda a cidade já deteriorada. Ele tem um emprego decente de comediante, busca progredir na carreira, se apresenta para crianças, vê um terapeuta regularmente e cuida de sua mãe. Ele até reluta em aceitar a arma que um dos outros comediantes lhe oferece. No entanto, os crescentes tormentos pessoais e sociais fazem de Arthur um Coringa, cuja violência e insensibilidade raramente são comparadas com seus predecessores.

O filme pode ser resumido em dois movimentos: primeiro, a tentativa de Arthur de se juntar à cultura oficial e seu último fracasso em fazê-lo; e, segundo, a destruição dessa cultura. O que é notável aqui é que no filme a cultura oficial é representada por dois personagens: o comediante Murray e o capitalista Thomas Wayne. Consequentemente, a vingança de Arthur visa esses dois indivíduos.

O esforço de Arthur para ingressar na cultura oficial não deveria ser uma surpresa. Como sugere David Gilmore (1998GILMORE, D. D. Carnival and Culture: Sex, Symbol, and Status in Spain. New Haven, CT: Yale University Press, 1998., p.207), “o carnaval mistura ódio de classe com ambição pessoal e inveja vingativa do pequeno para o ligeiramente maior”34 34 No original: “carnival mixes class hatred with personal ambition and with the vindictive envy of the small for the just slightly bigger”. . Assim, a admiração de Arthur pela cultura dominante e seu entusiasmo por ingressar nela é compreensível. Murray e Thomas Wayne são os únicos que recebem essa admiração. Arthur sonha acordado em aparecer no programa de Murray e ser reconhecido como um comediante decente. Da mesma forma, ele luta para convencer Thomas Wayne de que ele é seu filho. Uma tendência curiosa é apresentada aqui, a saber, o desejo de Arthur de encontrar uma figura paterna na cultura oficial. Como diz Lacan (1993LACAN, J. The Psychoses, The Seminar of Jacques Lacan (Book III 1955-1956). Edited by Jacques-Alain Miller; Translated by Russell Grigg. London: Routledge, 1993., p.96),

Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural [...] é preciso que intervenha um terceiro, que seja a imagem de alguma coisa de bem-sucedido, o modelo de uma harmonia. Não é demais dizer - é preciso aí uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da palavra, isto é, do pai35 35 LACAN, J. O seminário – Livro 3 As psicoses. Texto estabelecido por Jacques Alain-Miller. 2ª edição corrigida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985. .

Portanto, torna-se imperativo para Arthur encontrar uma figura paterna para formar a “a relação mais natural” e ser aceita pela cultura oficial.

Na fantasia de Arthur, as palavras encorajadoras de Murray, “Você vê tudo isso, as luzes, o show, o público, tudo isso? Eu daria tudo em um flash para ter um filho como você”, ilustra claramente a ilusão de Arthur. A busca de Arthur por Thomas Wayne é o outro lado da mesma moeda. Ele procura ativamente Thomas Wayne e luta para convencê-lo a aceitá-lo como seu próprio filho. Em ambas as vezes, sua saudade termina em decepção. Posteriormente, é a rejeição dessas duas figuras paternas em potencial que separa completamente Arthur da cultura oficial.

Mas a figura paterna não é o único eixo da cultura oficial. Em consonância com a natureza quebradora de regras do carnaval, Arthur persegue aquela convenção ou rede de relações mais natural na família burguesa, a saber, o “triângulo pai-mãe-eu” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.73)36 36 DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. . Esse tripartido, a que já faltava um componente importante no pai, está agora totalmente rompido. Arthur não só não tem pai, mas também se livra de sua mãe, tornando-se um verdadeiro alienígena sem raízes no sistema dominante.

Uma vez desiludido, Arthur embarca em uma caçada humana e segue em direção à cultura oficial que o decepcionou. Sua atitude subversiva, entretanto, é ao mesmo tempo figurada e literal. A paródia verbal está no centro do plano figurativo. De acordo com Hoy (1992HOY, M. Bakhtin and Popular Culture. New Literary History, Baltimore, MD, v. 23, n. 3, pp.765-782, Summer 1992., p.771),

A linguagem do malandro alegre reprocessa parodicamente a fala dos outros, mas sempre de forma que lhes rouba o poder, “os tira da boca”, por assim dizer, por meio de um engano malicioso, para zombar de sua linguagem e, assim, converter o que era fala direta em uma leve autoparódia.37 37 No original: “the language of the merry rogue parodically reprocesses other people's discourse, but always in such a way as to rob them of their power, to ‘distance them from the mouth,’ as it were, by means of a roguish deception, to mock their language and thus turn what was direct discourse into light self-parody”.

As tentativas frustradas de stand-up de Arthur se encaixam perfeitamente nesta categoria. Como o bufão “não oficial”, ele, ainda que de forma inadvertida inicialmente, transforma as piadas em palavrões cafonas e vulgares. A reação de choque de seu público, especialmente no programa de Murray, ilustra a força contracultural de suas piadas: “Oh, não, não, não. Não, você não pode brincar com isso”. O argumento resultante reforça este ponto: “Todos vocês do sistema que sabem tanto”, Arthur responde, “vocês decidem o que é certo ou errado. Da mesma forma que você decide o que é divertido ou não!”. A linguagem monológica oficial é, segundo Bakhtin (2019, p.56)38 38 BAKHTIN, M. Teoria do romance III. O romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Seguei Botcharov e Vadim Lójinov. São Paulo: Editora 34, 2019. , atravessada “por acentos de linguagens populares vulgares”. Notavelmente, a transformação de Arthur de decadência figurativa em decadência literal ocorre por meio de outra piada profana final. Pouco antes de assassinar Murray, Arthur termina sua última piada: “Você teve a m**** que mereceu!”

Ações relacionadas ao aspecto físico de decadência e violência são igualmente importantes. É digno de nota que é Arthur quem mata Murray, mas é a multidão que reclama a vida de Thomas Wayne. Foi apropriado que Arthur, como um bufão não oficial, eliminasse Murray. Mas outro aspecto do caos de Arthur ao longo do filme é sua inspiração para “pessoas comuns”. Suas ações criam um incentivo para que as pessoas comuns se defendam. O fato de o comediante ser morto por um único indivíduo (Coringa), enquanto o capitalista é morto pela máfia (Coringas, no plural) é mais uma prova da mentalidade mafiosa carnavalesca e do seu aspecto revolucionário. Um olhar que, no entanto, é claramente inspirado na figura do bobo solitário fica evidenciado pela seguinte ironia, “Você teve a m**** que mereceu!”, desferida a Thomas Wayne pouco antes de sua morte.

O final do filme, porém, mostra o fim do carnaval e o retorno de Arthur à amarga realidade de um mundo dominado pela ordem oficial. Porém, nessa ordem oficial ainda há sinais de conflito: os passos de Arthur ficam sujos de sangue e os seguranças correm atrás dele enquanto a tela se apaga, insinuando a eterna luta do oficial e da cultura do carnaval. Como qualquer outro carnaval, a transitoriedade caracteriza a subversão das hierarquias no filme Coringa. No entanto, a temporalidade do discurso carnavalesco não indica sua derrota pelo sistema oficial de governo. Em vez disso, significa que o discurso do carnaval deve ser constantemente desafiado pela terrível seriedade do discurso oficial normal porque, de outra forma, nas palavras de Sandra Lee Kleppe (1993KLEPPE, S. L. Elements of the Carnivalesque in Faulkner’s “Was”. The Mississippi Quarterly, Starkville, v. 46, n. 3, pp.437-445, Summer 1993., p.445), “não haveria nada do que zombar”39 39 No original: “there would be nothing to mock”. .

Conclusão

O presente estudo se propôs a interpretar o filme Coringa no contexto analítico do carnaval bakhtiniano. Primeiro, o artigo discutiu os elementos que ajudaram a fazer do personagem Coringa a personificação do carnaval. O riso e a dança, em particular, desempenham um papel fundamental na caracterização do personagem central do filme. A risada incontrolável da personagem Coringa junto com suas apresentações de dança que se seguem aos seus assassinatos reforçam a atmosfera grotesca do filme. Além disso, ridicularizam a teimosa insistência da cultura oficial em manter a ordem, a seriedade e as regras. O artigo propôs que essa atitude zombeteira em relação à cultura oficial e o concomitante retrato da diversidade e heterogeneidade compõem os ideais do carnaval utópico.

O estudo também descobriu que a transformação da personagem Coringa de um comediante fracassado em um assassino com uma máscara de palhaço ocorre em matrizes cronotópicas únicas, incluindo o estrato da parte baixa do corpo, ruas sujas, escadas e transporte público. Mais especificamente, a universalidade da cultura carnavalesca se refletiu no cronotopo geral do filme, pois o elemento temporal se mantém inerte enquanto o elemento espacial sofre múltiplas mudanças.

A história concluiu que a subversão da cultura oficial pelo personagem Coringa é na verdade sua revolta contra duas figuras paternas, Thomas Wayne e Murray, que representam o capitalismo e a comédia oficial, respectivamente. No entanto, o que é ainda mais significativo sobre a subversão inovadora de Joaquin Phoenix é que, pela primeira vez, o personagem Coringa não enfrenta o Batman. Desta vez, a luta não é sobre o bem simbólico contra o mal. Em vez disso, a luta é muito mais profunda, pois vemos o personagem Coringa não como um vilão, mas como um anti-herói que desafia uma cultura que marginalizou a condição e a dor de si mesmo e de outros como ele. Assim, o filme Coringa de Todd Phillips não é simplesmente mais um filme de super-herói, mas uma crítica séria de uma cultura da vida real que antagoniza aqueles que considera inúteis, narrada desta vez pelas lentes do “vilão”.

  • Traduzido por Niloufar Shakouri Moghaddam – nilou_shakouri@yahoo.com
  • 1
    BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. 4. ed. São Paulo-Brasília: EDUNB, 1999.
  • 2
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 3
    No original: “Carnival across the globe often occupies the main streets where it is highly visible and creates general participation in the revelry, even simply through watching”.
  • 4
    No original: “the paidean space of Carnival allows for liberties that are not permitted in the restrained world of the everyday”.
  • 5
    No original: “etiquette in all its forms”; “cinematic decorum”.
  • 6
    CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
  • 7
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 8
    BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5ª edição revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
  • 9
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 10
    No original: “associated with the folklore”.
  • 11
    No original: “easily be linked with the ‘common people,’ the collective body”.
  • 12
    No original: “the slave and jester become substitutes for the ruler and god”.
  • 13
    No original: “ironic repetition of common language”.
  • 14
    No original: “a common creaturliness”.
  • 15
    No original: “Bakhtin’s carnival laughter displays the possibility of political agency”.
  • 16
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 17
    No original: “hierarchies are inevitably related to ownership and production, whether material production or meaning production, in so far as these are the fundamentals of social divisions”.
  • 18
    No original: “every despicable act, every murder, every form of excess that licentiousness and lunacy have dared to dream”.
  • 19
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 20
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 21
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 22
    No original: “ultimately proved a dead end”.
  • 23
    No original: “bad utopianism”.
  • 24
    No original: “for the ideological reinforcement of a centralized and repressive social order”.
  • 25
    No original: “distances itself from the totalizing rationalism of the traditional Utopia”.
  • 26
    No original: “are reflexively self-deconstructing phenomena [sic] which refuse all ‘one-sided monolithic seriousness’ characteristic of monologism”.
  • 27
    No original: “Bakhtin openly defines folk culture and the culture of laughter as materialistic. His concept of materialism, which one at first might tend to associate with Marxism, turns out upon closer observation to be based on an opposition to spiritualism”.
  • 28
    No original: “reavaliação positiva do material e corporal”.
  • 29
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 30
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 31
    No original: “In an attempt to generate an entirely new chronotope which was inimical to official conceptions of time and space, the traditions of folk-festive culture ‘opposed the protective, timeless stability, the unchanging established order and ideology, and stressed the element of change and renewal’”.
  • 32
    Referência na nota de rodapé 1.
  • 33
    No original: “joker – fool, prankster, jester, trickster, clown; the derivations of the fool archetype are many, but joining them together is a sense of mischief and a ridicule of authority”.
  • 34
    No original: “carnival mixes class hatred with personal ambition and with the vindictive envy of the small for the just slightly bigger”.
  • 35
    LACAN, J. O seminárioLivro 3 As psicoses. Texto estabelecido por Jacques Alain-Miller. 2ª edição corrigida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
  • 36
    DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010.
  • 37
    No original: “the language of the merry rogue parodically reprocesses other people's discourse, but always in such a way as to rob them of their power, to ‘distance them from the mouth,’ as it were, by means of a roguish deception, to mock their language and thus turn what was direct discourse into light self-parody”.
  • 38
    BAKHTIN, M. Teoria do romance III. O romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Seguei Botcharov e Vadim Lójinov. São Paulo: Editora 34, 2019.
  • 39
    No original: “there would be nothing to mock”.

Declaração de autoria e responsabilidade pelo conteúdo publicado

Nós, Mohammad Reza Hassanzadeh Javanian e Farzan Rahmani, como coautores deste artigo, declaramos que ambos tivemos acesso ao corpus da pesquisa, participamos ativamente da discussão dos resultados, revisamos o artigo várias vezes e aprovamos a versão final.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    July/Sept. 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2021
  • Aceito
    31 Maio 2021
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