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A (trans)figuração do mundo pelo ato-palavra de/em “Mineirinho”

RESUMO

Este trabalho objetiva aproximar a perspectiva filosófica de Mikhail Bakhtin à literatura de Clarice Lispector. Percebe-se a abordagem bakhtiniana da noção de “ato responsável” encenada na crônica-conto “Mineirinho” que, além de nos deslocar e nos convidar a refletir sobre o nosso ser e estar no movimento da vida, nos convoca a pensar ativa e participativamente no/o mundo experienciado e partilhado com o outro.

PALAVRAS-CHAVE:
Ato responsável; Mineirinho; Excedente de visão; Empatia estética

ABSTRACT

This work aims at bringing Mikhail Bakhtin’s philosophical perspective closer to Clarice Lispector’s literary style. A Bakhtinian approach can be noticed in the “answerable act” notion portrayed in the chronicle-tale “Mineirinho” which, in addition to dislodging us and inviting us to ponder over our being and living in life’s movement, calls upon us to think in the world and the world itself experienced and shared with the other, in an active and participative way.

KEYWORDS:
Answerable act; Mineirinho; Surplus field of vision; Aesthetic empathy

Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique.

Clarice Lispector

Introdução

“O fato é um ato?” (LISPECTOR, 2017, p.31LISPECTOR, C. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.), anota Clarice Lispector em um canto de seus manuscritos de A hora da estrela1 1 Manuscritos de A hora da estrela. Disponível em: <https://site.claricelispector.ims.com.br/acervo/notas-de-a-hora-da-estrela/>. Acesso em: 08 jul. 2021. . Buscaremos responder a tal pergunta na tentativa de emular o gesto da autora, que une, na escrita, o pensar e o agir; gesto que se aproxima da perspectiva do filósofo russo Mikhail Bakhtin, com quem estabelecemos franco diálogo, como já se pode aferir pelo título. Nas sendas abertas pela abordagem bakhtiniana da noção de “ato responsável”, conceito que explicitaremos adiante, vamos ao encontro do ato-palavra do texto “Mineirinho”, de Lispector, cuja tessitura nos desloca e nos convida a refletir sobre nosso ser e estar no mundo, característica própria da escrita da autora. Assim, ao apresentar nossa resposta, talvez inacabada, deixamos nossa assinatura, a fim de defendermos a urgência do pensamento participativo, capaz de resistir à escuridão que assola a contemporaneidade.

Segundo Bakhtin, o ser humano, agente central no movimento da vida, é intimado a pensar ativa e participativamente no/o mundo experienciado e partilhado com o outro. A palavra deste outro, enviada em nossa direção, encontra a nossa palavra. Esse movimento contínuo de um “diálogo inconcluso” nos constitui e nos (trans)forma, alargando nossa consciência e nosso ser.

A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2003, p.348BAKHTIN, M. M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.337-57.).

No encontro de palavras, colocamo-nos no lugar de escuta e, ao mesmo tempo, somos chamados a responder com a nossa palavra, com um “ato responsável” – movimento do pensamento o qual assinamos. Vale ressaltar que o ato singular em realização é um fato, pois não há álibi na existência e nós não podemos não agir; nós agimos esteticamente para produzir intervenções e modificações no nosso modo ético de viver. Para que isso ocorra, como nos lembra Bakhtin em “Arte e responsabilidade”, escrito em 1919, é preciso produzir uma unidade entre o mundo ético (vida) e o mundo estético (arte), e essa unidade só é possível na resposta. Propõe-se o encontro da teoria com a vida, para “nós que nos refugiamos no abstrato” (LISPECTOR, 2016, p.390LISPECTOR, C. Mineirinho. In: Todos os contos. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p.386-390.)2 2 Todas as citações de “Mineirinho” foram retiradas da 1a ed. de Todos os contos, da editora Rocco. . A compreensão da vida, dos eventos, das palavras, dos discursos só é viável quando as coisas são colocadas em relações dialógicas – nós compreendemos um texto com outro texto (“Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos” [BAKHTIN, 2011, p.400BAKHTIN, M. M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.337-57.]) – e alteritárias – o eu só é possível na unidade com o outro.

A arte tem um destaque especial na obra de Bakhtin, pois, como um dos três domínios da cultura humana3 3 Os três campos da cultura humana definidos por Bakhtin são: a cognição (ciência), o ético (vida) e o estético (arte). , o fazer estético consegue se apropriar do fazer científico e da realidade prática da vida, unificando-os em outro plano axiológico e dando aos elementos que congregam um acabamento, uma forma, um todo possível de ser apreendido. Como nos lembra Carlos Alberto Faraco, Bakhtin, em seu texto “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”4 4 Este é um dos poucos textos acabados por Bakhtin e enviado por ele para publicação. Trata-se de um texto muito importante no conjunto da obra do filósofo, pois contém contribuições relevantes para as discussões sobre arte e literatura. , entende que

a atividade estética isola (recorta) elementos da realidade, ou seja, do mundo da vida e da cognição, e os transpõe para um plano externo a este mundo, dando a eles um acabamento (uma unidade intuitiva e concreta) que se corporifica numa forma composicional apoiada, no caso da literatura, no material linguístico conquistado pelo autorcriador (...) (FARACO, 2009, p.104FARACO, C. A. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.95-111.).

Ao transpor os elementos da realidade para outro plano, o autor-criador (função estético-formal criadora do objeto estético e também parte constituinte dele) os liberta do evento ético e científico do ser, viabilizando-os em uma outra unidade de sentido e de valores. Para isso, o autor-criador assume o lugar de contemplador e olha a vida de fora, o que lhe permite transfigurá-la. Nesse sentido, entendemos que a literatura5 5 Bakhtin vê a efetiva possibilidade de realização da filosofia moral que propõe especialmente na arte verbal (a literatura). Esta, ao trazer encenada a relação autor e herói/personagem, permite olhar, de um ponto de vista extralocalizado, exotópico, para o herói não como um objeto, mas como um centro de valor outro segundo o qual se organiza o mundo do autor. A escrita literária é, portanto, capaz de delinear e descrever uma arquitetônica da alteridade. Consideramos aqui que essa perspectiva pode ser aplicada também à nossa experiência de leitura do texto literário, em que nos colocamos fora, na posição de contempladores, e assumimos, de modo participativo e não indiferente, o autor-criador e o herói como centros valorativos diferentes a partir dos quais organizamos nosso mundo. nos coloca nessa posição exotópica de contempladores, nos desloca para fora de nós mesmos, para outro lugar que nos permite assumir uma perspectiva diferente. Isso se faz necessário, pois, quando olhamos a realidade diretamente ou de dentro, o campo de visão é restrito e limitado ao nosso ponto de vista. O texto literário possibilita o movimento de sair do lugar da individualidade e de deslocar até o projeto do autor-criador, para ver do lugar que ele está vendo. Ao nos voltarmos para nós mesmos com a palavra tensionada do outro, revestida agora com a nossa, nos colocamos no lugar de leitores que cocriam e podemos sair para encontrar outras palavras. Ao trazer materializada e encenada na linguagem a palavra do outro, a literatura faculta-nos construir nossa própria consciência e compreender melhor a vida, uma vez que essa palavra outra chega a nós sempre tensionada, e essa tensão é que nos transforma. Como nos ensina Antonio Candido, a experiência com a forma organiza nosso caos interior e, por isso, nos humaniza: “Toda obra literária pressupõe [esta] superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido” (CANDIDO, 2004, p.178CANDIDO, A. O direito à literatura. In: CANDIDO, A. Vários escritos. 4.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.). Ressaltamos, dessa forma, a natureza formadora e transformadora do texto literário.

Ao falarmos em transposição e transfiguração, dialogamos também com as postulações de Wolfgang Iser (1996)ISER, W. Epílogo. In: ISER, W. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1996. p.341- 363., ao desfazer a oposição entre ficção e realidade. Ao refutar a dicotomia, o autor propõe um modelo relacional ternário, segundo o qual a literatura deve ser concebida a partir de três categorias: o real, o fictício e o imaginário6 6 Iser concebe o real como o “mundo extratextual”, o fictício como o mundo inventado ficcionalmente e o imaginário como uma instância que permite a invenção do possível como prenúncio de outra realidade. . O fictício realiza a mediação entre realidade e imaginário, através de atos de fingir, transgressores por excelência, tanto dos limites do mundo extratextual quanto dos limites do imaginário. A realidade é transgredida porque ela não será a mesma depois de repetida no/pelo texto, não havendo correspondência direta com o factual, devido aos deslocamentos que nela se operam. Já o imaginário, experimentado pelos sujeitos de modo difuso e informe, é transgredido, pois ganha forma ao ser introduzido no texto ficcional. O ato de fingir7 7 Os atos de fingir são, segundo Iser (2002), a seleção, a combinação e o desnudamento da ficcionalidade. A seleção se dá quando elementos de sistemas contextuais preexistentes são escolhidos e, desvinculados de um determinado sistema contextual preexistente, que pode ser sociocultural ou até mesmo literário, são articulados de maneira a ganharem novas significações, ou seja, de modo a serem transgredidos no e pelo texto. Não se trata de uma cópia da realidade extratextual, pois a seleção afeta os campos de referência e força uma transgressão, irrealizando o real. Uma vez selecionados, os elementos serão combinados, rearranjados, transgredidos no espaço textual, de modo a criar “relacionamentos intratextuais”. A seleção e a combinação dizem respeito à transgressão de limites entre texto e contexto. Ambos concorrem para o último ato de fingir, o qual Iser chama de “desnudamento da ficcionalidade”, ou “como se”. Esse “como se” reafirma o estatuto ficcional do texto, reconhecido por meio de convenções compartilhadas entre autor e leitor, que estabelecem uma espécie de contrato “cuja regulamentação o texto comprova não como discurso, mas como ‘discurso encenado’.” (ISER, 2002, p.970) , portanto, atribui ao imaginário uma configuração e, nesse processo de transgressão, a realidade retomada se transforma em signo (forma simbolizada), e o imaginário adquire um atributo de real (forma determinada).

A criação do texto literário se dá, deste modo, pela intersecção entre o real, o fictício e o imaginário e transfigura o mundo por meio dos atos de fingir. Mesmo quando o mundo parece refletido, esse gesto já é um fingimento, pois ele ocupa o espaço textual com finalidades outras que não pertencem à realidade repetida. Trata-se de um ato estético de valoração que confere ao nosso agir no mundo (ato ético) e, portanto, à realidade, um acabamento (não acabado). Os elementos da vida são reorganizados pelo autor-criador de modo a compor um todo arquitetônico estável, concreto e, ao mesmo tempo, provisório. Em Bakhtin, a noção de arquitetônica refere-se à criação de uma unidade, de um todo integrado e relativamente estável que se estrutura a partir de relações dialógicas e alteritárias. Trata-se de uma unidade do pensamento constitutiva do próprio ato. O autor, que assume uma voz no texto e também um lugar de contemplador, se coloca em uma posição exterior em relação ao personagem e seu mundo, ordenando-os em outro plano valorativo e dando-lhes um acabamento.

Após tecermos algumas considerações teóricas na busca de ajustarmos nossas lentes para o objeto estético que trazemos à cena, pontuamos que não pretendemos fazer um trabalho ilustrativo como se o texto literário refletisse fatos da realidade extratextual. Para nós, leitores, a unidade criada pelo autor, na escritura, funciona como um excedente de visão que nos possibilita contemplá-la como um todo e ter acesso aos valores conferidos a elementos do plano da vida, muitas vezes inacessíveis e “transgredientes”8 8 “‘Transgrediente’, de fato, significa também dar um passo, um passo fora de qualquer alinhamento, combinação, sincronia, semelhança, identificação. Este termo vem do latim transgredo; e em inglês equivale a step across, step over, ‘passar através de’, ‘passar além de’” (BAKHTIN, 2017, p.10). .

Isso é possível, pois nos enxergamos ora no papel de autor ora no papel de herói. Portanto, mais que o texto clariciano em si, trazemos a nossa leitura dele, nossa resposta a partir da convocação que ele nos faz e, consequentemente, a partir do/no encontro de nossas palavras com as palavras de Clarice, as de Bakhtin e as de outras tantas vozes. Com o olhar enviesado, fingido, mediado pelo texto de Clarice Lispector, buscamos compreender nossa realidade e também cobramos que outras vozes venham ao encontro da nossa.

1 “Porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”

Produzido a partir da morte de José Miranda Rosa, conhecido como Mineirinho e considerado um dos criminosos mais procurados pela polícia do Rio de Janeiro na década de 1960 – caso policial amplamente noticiado pelos jornais e revistas da época –, “Mineirinho” foi publicado como crônica em 1962 na revista Senhor9 9 A revista Senhor teve sua primeira fase de circulação entre os anos de 1959 e 1964 e contou com a colaboração de renomados escritores e intelectuais, como Clarice Lispector. com o título “Um grama de radium – Mineirinho”. Posteriormente aparece na segunda parte da primeira edição de A legião estrangeira (1964). Esta edição era composta por duas partes: uma de contos – intitulada “Contos” – e outra de crônicas – intitulada “Fundo de gaveta”. Mais tarde, essa obra foi desmembrada: os contos permaneceram em A legião estrangeira e as crônicas foram publicadas no livro Para não esquecer (1978). Recentemente, o texto foi recolhido como conto no volume Todos os contos (2016), da editora Rocco. Embora, publicado originalmente como crônica, é possível assumir que “Mineirinho” também pode ser lido como conto (ROSENBAUM, 2010ROSENBAUM, Y. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Estudos Avançados, 24(69), 2010. p.169-182. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/bXLdRWqtzdZHqv9HzgRpGHC/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 14 maio 2022.
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), e essa imprecisão da classificação do gênero nos remete ao estilo autoral de Clarice, que sempre refuta conclusões e fechamentos absolutos. Estamos em terreno lacunar e lábil, espaço para exercício da incerteza e do contato com múltiplas vozes, muitas vezes, paradoxais. A crônica-conto rompe as barreiras do tempo à medida que instaura uma tensão entre a morte de um criminoso violento e o desvelamento de uma sociedade criminosa e violenta: “(...) nos todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não esta mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele esta cometendo o seu crime particular, um longamente guardado” (LISPECTOR, p.390).

Clarice, ao escrever sobre Mineirinho, hospeda-o em sua escrita, em um exercício de alteridade, sem, no entanto, entrar em defesa dos crimes cometidos por ele. O contexto valorativo de Mineirinho (e, por extensão, o da cozinheira, o de um nós oficial10 10 Trata-se de um nós genérico, abstrato, feito das relações culturais, públicas entre identidades que anulam a singularidade. e de um nós não oficial11 11 Tem-se aqui o nós singular, da vivência, da diferença não indiferença e que reconhece o seu “não álibi no existir”. ) é afirmado e incluído no contexto do autor-criador. Este, ao ganhar uma unidade na voz da narradora, é colocado em relação dialógica com todos os elementos da obra, tornando-se um elemento constituinte, e, por ter também um “excedente de visão”12 12 A expressão “excedente de visão” é usada por Bakhtin para se referir à visão acabada, de fora, que o outro consegue ter do “eu” (BAKHTIN, 2003). e uma memória de futuro, possui um domínio do todo acabado dessa obra, tornando-se um elemento organizador. Dessa forma, os eventos da morte de Mineirinho, dispostos no passado singular deste, são transpostos, por meio da recordação, para o plano do presente singular da narradora e, nesse presente, indicam um futuro permanente. A ruptura de uma temporalidade garante ao texto certa permanência de sentido ao mesmo tempo que permite o seu alargamento e a inclusão de outras vozes. Esse todo arquitetônico é dado ao sujeito estético (artista e contemplador), de modo que o texto se coloca como lugar de reflexão, no tempo da enunciação, no aqui-agora, exibindo e exigindo um questionamento, uma tentativa de resposta à inquietação causada pela execução de um criminoso. Essa visão estética nos ajuda a compreender melhor a construção arquitetônica do mundo real e de sua eventicidade13 13 Termo adotado na tradução brasileira de Para uma filosofia do ato responsável com o objetivo de falar do caráter de evento do existir. , uma vez que o mundo chega à nossa consciência como uma unidade.

O acolhimento do texto nos leva também ao “regime estético”, segundo Jacques Rancière, “aquele que propriamente identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes.” (RANCIÈRE, 2009, p.33-34RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. 2.a ed. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.), “espaço não hierarquizado, aberto a qualquer um e no qual não há separação rígida entre formas artísticas”, conforme afirmou o autor em entrevista concedida ao jornal O Globo, em 2012. Estamos às voltas com a ideia do comum partilhado, em que o mundo sensível se relaciona com a capacidade da arte em abarcar o heterogêneo. Em cena, pequenos eventos, vidas e historias de “qualquer um”, dialogos inconciliáveis convivem em confronto, conflito e tensão. Na mesma direção, podemos dizer que a escrita de Clarice é política por não fazer distinção entre os que podem e os que não podem ocupar o espaço comum da escrita, que se constitui em “[...] um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que esta em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2009, p.16RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. 2.a ed. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.). Mais que isso: seu fazer literário, ao encenar relações humanas desierarquizadas, revela um sujeito cuja enunciação reivindica a “partilha do sensível”.

Para que, de fato, nós compreendamos o texto e as vozes que ele acolhe e encena e, claro, para que dialoguemos com nossa realidade, precisamos ir ao encontro das (e de encontro às) palavras de Clarice, de modo que tais palavras (e as que elas carregam) se desloquem e, no embate com as nossas, penetrem em nós. Esse movimento de cotejo e de enfrentamento é desorganizado, tensionado, ambíguo, ele nos tira da zona de conforto, nos faz pensar sobre a justiça que vela nosso sono enquanto dormimos e falsamente nos salvamos, nos faz buscar “alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende”, “porque quem entende desorganiza” (p.389), e nós queremos (e devemos querer) entender para que sejamos mudados e possamos intervir no mundo. A atividade estética luta, portanto, contra a nossa insensibilidade ao apresentar elementos estranhos à realidade, elementos capazes de nos deslocarem, de trazer à consciência o habitual que parecia despercebido, de despertar novamente nossos sentidos, para então nos acordar.

Procuramos partir do fato de que a crônica-conto “Mineirinho” apresenta o delineamento de uma arquitetônica da alteridade e a estrutura composicional de uma resposta14 14 Ressaltamos que o texto foi encomendado a Clarice Lispector pelo conselho editorial da revista Senhor, em que a escritora era cronista desde 1958, e publicado no mês seguinte ao fato. , encenando na e pela linguagem a questão da transfiguração do mundo que ocorre no encontro de palavras, no ato responsável, portanto, no ato-palavra. A narradora, como se respondendo a uma convocação, logo se apresenta como nossa representante: “E, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que esta doendo a morte de um facínora” (p.386). Ao depararmos com uma voz que, além de vir ao encontro da nossa, age em nosso nome, como nossa representante, somos imediatamente chamados a enfrentá-la com a nossa própria palavra em resposta ao nosso ser-acontecimento, no aqui-agora. Ou falamos ou nos silenciamos. Ninguém pode ocupar esse lugar por nós, como nos aponta Marília Amorim (2018):

O dever de pensar e a impossibilidade de não pensar são dados pela posição que ocupo em um dado contexto da vida real e concreta. Desse lugar, que somente eu ocupo, o que vejo e o que penso são da minha responsabilidade. Ninguém mais pode pensar aquilo que penso. Ninguém mais pode prestar contas da minha posição e realizá-la, por isso não existe nenhum álibi para que eu não pense e não assuma o que penso. Do meu lugar concreto e único, o pensamento e o ser que ele exprime adquirem um valor, uma entonação e deixam de ser uma mera abstração (AMORIM, 2018, p.23-24AMORIM, M. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.17-44.).

A voz da narradora direciona o nosso olhar para o acontecimento da morte: os treze tiros que aniquilam Mineirinho - “E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes” (p.386). Outras perspectivas, no entanto, emergem a partir desse foco, quais sejam: a do facínora, a da cozinheira, a dos policiais, a da sociedade e a da própria detentora do narrar que, não compreendendo seu incômodo diante do evento, busca respostas. Em tom de conversa continuada, o texto inicia-se in media res com uma enunciadora que parece, de fato, responder a outrem. E como não perceber a convocação do texto que nos enreda na provocação da narradora como “um representante de nos” (p.386)? O “nos” singular, mas também o “nos” genérico, vozes contrapostas e permeadas de tensões, postas em cena pela voz autoral e convidadas, por esta, a ocupar os lugares de transgressão na busca do entendimento para “o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las” (p.386).

Esse mal-estar estampado no rosto da cozinheira é também o nosso, e ele nos chama à participação. Diante da estranheza causada pela pergunta sobre a morte de Mineirinho, instaura-se um jogo de recusa e aceitação, um movimento que é, ao mesmo tempo, de acolhimento e rejeição, de compatibilidade e repugnância. O embate entre o sentimento de alívio pela morte de um “bandido” e o desejo de vê-lo vivo – o “sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e, no entanto, nós o queríamos vivo” (p.386) – é então confrontado pela lei (de Deus e do homem) “de que não matarás” (p.386). Esse jogo instaurado nos permite transgredir os limites do real e do imaginário para ver, em posição exotópica, a questão da banalização da vida que pode nos passar despercebida, mas que adquire condensação no texto literário e chega à nossa consciência como um todo acabado. A construção estética confronta, por exemplo, o discurso social de que “bandido bom é bandido morto” – a falsa ideia de segurança – muitas vezes sustentado pela mesma lei “que protege corpo e vida insubstituíveis” (p.386). Essa confrontação que a construção estética propõe funciona como um produto de intervenção que, uma vez contemplado por nós, nos conduz ao encontro do outro e nos sensibiliza.

Se, em um primeiro momento, a narradora partilha da confiança na salvação de Mineirinho proferida pela cozinheira, a identificação logo é rechaçada em virtude da classe social que as distancia. Vendo na figura da patroa a “justiça que se vinga” (p.386), a cozinheira reage com raiva e frieza. O texto expõe então a voz do senso comum religioso, que busca o perdão para os pecados e uma saída para as falhas da justiça humana: “Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho a certeza de que ele se salvou e entrou no céu” (p.386). Novamente parece ocorrer o movimento de aproximação entre as personagens, na aquiescência da voz que narra: “mais do que muita gente que não matou” (p.386). Movimento que nos desloca, incomoda, perturba, tal qual acontece à personagem cozinheira, com raiva da patroa que “estava mexendo na sua alma” (p.386). Também estamos sendo invadidos, pois o que deveria estar silenciado está explorado pela escrita, dado a ver na superfície textual. Pode Mineirinho ter matado – ato contra a lei – e ainda se salvar e entrar no céu mais que muita gente que não matou? “O que eu sinto não serve para dizer” (p.386), um dito da cozinheira que se abre para mais de uma direção e perspectiva: aquilo que se sente pode ser lido como uma voz contrastante do senso comum e que acredita na salvação da alma de Mineirinho; em outra direção, a voz ganha o contorno de representante social, que endossa o discurso religioso para o perdão. Ainda é possível percebê-la como o delineamento de uma voz considerada menor, bem como a do criminoso, que não serviria para ser dita, mas é acolhida pela escrita.

Aquilo que se sente, mas não se diz, por meio da voz da narradora, prosseguindo o caminho reflexivo, abre um questionamento à lei. A “primeira lei” pode, a princípio, nos remeter ao campo jurídico. Para uma sociedade guiada e estabilizada pela ordem, Mineirinho é o estrangeiro bárbaro15 15 Do grego ‘βάρβαρος’, a palavra era onomatopaica, usada para referência ao “não grego”, que não falava a língua oficial, apenas a balbuciava. O bárbaro intitulava todo estrangeiro, alheio à cultura e à organização social e política dos helênicos. Com o passar do tempo, o significado do vocábulo foi alargado e passou a designar, de forma estereotipada, todos os incivilizados e incultos. Selvagem ou primitivo nomeia a alteridade vista como ameaça e contra a qual se exerce violência física e/ou simbólica. e parasita como assevera Jacques Derrida16 16 Ao discutir a relação entre hospedeiro e hóspede, Derrida mostra que este pode se converter em ameaça àquele, tornando-se hostil, indesejado e ilegítimo. A negação da hospitalidade acaba por roubar do forasteiro sua condição de ser humano, passível de ser apartado do convívio comum (DERRIDA, 2003). , uma persona non grata, clandestina, de quem a sociedade quer se proteger. Em nome dessa proteção, ao Estado é dado o direito de punir. Esse direito parece questionado pela narradora (e também por nós, leitores, ja que no texto a ela demos uma procuração, “como um dos representantes de nos”) quando, ao atestar que “Esta é a lei”, insere imediatamente uma adversativa - “Mas ha alguma coisa …” (p.386) - que cria uma tensão e a faz migrar, gradativamente, da segurança ao horror. Assim como a narradora e mediados pela ordenação dos tiros na construção da narrativa, nos quedamos em estado de alerta e somos tomados pelo desassossego e pela vergonha. Também nós dormimos sob a lei, nossa maior garantia, “até que treze tiros nos acordam” (p.387), afastando a letra fria do estatuto.

Esta é a lei. Mas ha alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca esta trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro (LISPECTOR, 2016, p.386-387LISPECTOR, C. Mineirinho. In: Todos os contos. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p.386-390.).

Ao fim, na referência ao décimo terceiro tiro, apenas o espanto e o tremor, momento crucial em que a narradora se desloca e se identifica com o outro: “eu sou o outro” (p.387). E o deseja ser: “Eu quero ser o outro” (p.387). Há um movimento consciente de querer ser, de assumir e assinar o ato responsável; tem-se um eu que diz “eu” e confessa não querer ser mais governado pela mesma lei. A escrita chama a atenção para a alteridade, que define o ser humano e se torna indispensável para sua constituição. Encena-se a impossibilidade de pensar o homem fora das relações, ratificando que o “eu” constitui o “outro” e é por ele constituído, ou seja, o dialogismo é princípio da existência humana, como assevera Bakhtin. A isso também relacionamos a figura do duplo, que instaura e mostra a cisão do sujeito, imagem que, dialeticamente, também se opõe ao “eu” e causa estranhamento. O estranho (cf. FREUD, 1996FREUD, S. O estranho. Tradução de Jayme Salomão. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v.17: História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.275-315.) remete ao que é assustador, mas pode se desenvolver em ambivalência até coincidir com seu oposto, tornando-se familiar. No jogo proposto pelo texto, há o acolhimento desse estranho, que é reconhecido, mesmo que cause repugnância. Não há negação absoluta, mas a escrita não esconde a dificuldade de convivência. Mais que a constatação da íntima relação com o outro, mesmo que seja o estranho, o texto de Clarice nos leva ao desejo de nos comprometermos. O eu é, pois, uma construção do outro. Para que vivamos, é preciso que haja encontros dialógicos, posto que a nossa palavra é sempre uma contrapalavra.

O ordenamento que protege também escancara a insegurança. Justiça contraditória que ampara e, ao mesmo tempo, abandona. Nesse sentido, recorremos a Roberto Esposito (2010)ESPOSITO, R. Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010. quando relaciona comunidade e imunidade, assinalando a proteção negativa da vida. Na Modernidade e, de maneira potencializada, nos tempos atuais, teríamos sujeitos isolados na condição recíproca de não ser ou não ter nada em comum, sob o comando de uma figura que pune quem viola o pacto social (Estado com poder de polícia), mas que fica fora dele. A lei pode, dessa forma, ser infringida para ser, na contramão, cumprida.

A lei também se abre ao mandamento divino: “não mataras”. O imperativo, além de apontar para o futuro permanente que se enuncia no presente, acena para o dever fazer: não matar o que é semelhante a mim, o outro em mim. Transgredir essa lei é atentar para o lado escuro do além corpo. A destruição do outro é também a minha destruição, “porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro” (p.387), reiteramos. Mais do que a percepção e o desejo, vemos encenada a tomada de posição da narradora: “Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não ama-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia?” (p.387). Mais que o sentimento de compaixão despendido, que busca nos afetar, esse “amor” que a narradora declara dita a entonação do texto e pode ser lido, na perspectiva bakhtiniana, como o “amor estético objetivo”17 17 Segundo Bakhtin (2017, p.128), trata-se do “princípio da visão estética”. (ser diferente, mas não indiferente ao outro), como uma contemplação emotivo-volitiva a partir de uma posição valorativa que é mesclada com a empatia estética. Esta nos fornece uma visão do que está extralocalizado e, ao mesmo tempo, uma visão de nós mesmos objetivados, o que permite compreender o nosso dever em relação ao objeto da contemplação e, consequentemente, a ação que precisamos assumir em relação a ele. Não se trata de nos colocar no lugar do outro (criando uma abstração), mas de entendê-lo em relação à nossa singularidade e de entender a nossa participação responsável no existir. Movida pela empatia estética, a narradora afirma: “essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê agua a outro homem, não porque eu tenha agua, mas porque, também eu sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição” (p.388). Temos dois contextos valorativos diferentes (o de Mineirinho e o do autor-criador) que se interpenetram e, ao mesmo tempo, permanecem perceptíveis na construção da narradora feita pela autora. Esses dois contextos são, pois, englobados pelo contexto estético, no qual se enfrentam os valores do autor-criador e do contemplador.

É possível também remeter essa lei primeira ao tempo originário, em que a constituição das sociedades, em seu processo civilizatório, oprimiu o indivíduo em suas pulsões, mas deixou fissuras que retornam e causam desconforto. Essa acepção, um intertexto oblíquo com a obra de Sigmund Freud (2011)FREUD, S. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011., tensiona, mais uma vez, a proteção e o desamparo da justiça. O caráter necessariamente inibitório da civilização, que exige do homem a renúncia aos instintos primários, eróticos e agressivos, causa angústia e coloca o sujeito em luta interna constante consigo mesmo, lugar da resolução de seus conflitos. “Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à sexualidade, mas também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor por que para ele é difícil ser feliz nela” (FREUD, 2011, p.61FREUD, S. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.). A cultura produz, dessa maneira, o mal-estar na humanidade, um efeito capaz de nos fazer propensos à destruição e à antissocialidade. E isso é algo que nos irmana já que as dores têm a mesma origem: o mundo externo, com sua força incontrolável; o corpo, condenado à decadência; e as relações humanas, a fonte mais penosa.

Desejosos ainda do prazer, mas impedidos de realizá-lo plenamente em prol da convivência social, fugimos da dor e exigimos compensações advindas das renúncias feitas. Se uma parcela da sociedade é cerceada por motivos vários ao acesso a essas compensações, algo se desequilibra e irrompe-se em violência. A revolta e o amor guardados pela narradora da crônica-conto, representante de “nos”, se irrompem diante da “assustada violência” (p.387) de Mineirinho, pois “Tudo o que nele foi violência é em nos furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos” (p.387). Do lugar daqueles que têm acesso aos benefícios da civilização, os “sonsos essenciais” (p.387), a narradora critica a lei que promete segurança, mas que se volta em exagero contra a vida de um igual. A identificação aqui se evidencia: o desamparo não é só de Mineirinho, é de todos nós. Os tiros se repetem na superfície textual e visam a nos atingir, incomodar os sonsos que dormem e que falsamente se salvam. Por que razão os sonsos precisam ser “essenciais”? Para que a ordem social se mantenha e as supostas verdades não sejam questionadas, “porque entender desorganiza”.

2 “Nós, os sonsos essenciais”

Atingidos e afetados por uma mescla de revolta, amor, compaixão e culpa, além de ironizados pela alcunha “sonsos essenciais”, cumpre ressaltarmos como a dimensão filosófica do pensamento de Bakhtin nos auxilia no entendimento desse lugar incômodo que exige de cada um de nós uma resposta. É precisamente por ser uma filosofia da vida, comprometida com o ato ético responsável, implicado concretamente na relação eu-outro, que ela pode iluminar a complexidade encenada na crônica-conto clariciana.

Por que nos importa tanto aproximar Clarice e Bakhtin? Por que nos interessa tanto aproximar a literatura e o pensamento filosófico? Talvez porque ambos nos ajudam a entender a vida, porque tanto a leitura da criação artística quanto a teórica é a leitura do conflito, do confronto. As reflexões a partir desses dois campos desaguam em nossa realidade vivida e não apenas teorizada abstratamente. Ambos se entregam ao inesgotável da existência humana, dos sentidos da criação, das dinâmicas da cultura, do ser da linguagem. Percebemos que, segundo a perspectiva bakhtiniana que vimos encenada no texto de Clarice, a vida só pode ser compreendida na resposta do existir-evento, no movimento e não como fato dado e apartado do ato. A vida que se afasta da responsabilidade é deixada ao acaso. É aquilo a que Bakhtin e Clarice assistiram na Modernidade e que nós temos visto chegar ao extremo no mundo contemporâneo: uma vida quase completamente afastada do ato responsável e que nos conforma cada vez mais na condição de “sonsos essenciais”, condição inevitavel para a convivência social, mas que pode ser combatida todos os dias. Os sonsos essenciais somos todos nós que precisamos ter a consciência alargada, ou seja, a essência18 18 Segundo o filósofo alemão Nicolai Hartmann, “Em cada ente há um momento de existência (Dasein). Com isso deve-se entender o fato puro e simples de que, em geral, ele está aí. E em cada ente há também um momento de essência (Sosein). A este pertence tudo o que constitui a determinação específica ou a particularidade do ente, tudo o que este último possui em comum com um outro ou em virtude do que se distingue do outro, em resumo, tudo ‘aquilo que ele é’”. Hartmann ainda “considera a essência como possibilidade e a existência como a atualidade dela” (Zur Grundlegung der Ontologie apud ABBAGNANO, 2012, p.422). atualizada pela existência.

Nesse sentido, Bakhtin assegura que a dimensão ética do pensamento teórico não pode ser deduzida apenas de seu conteúdo, uma vez que uma dimensão ética envolve o ato de pensar a teoria sem submetê-la ou limitá-la às próprias leis, mas pensá-la a partir de um lugar singular. Em outras palavras, a teoria se torna ética ao virar ato, ao ser pensada por alguém singular e único. Com isso, Bakhtin (2017)BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos A. Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2017. defende uma complementaridade entre a teoria – verdade universal (istina) – e a prática – verdade singular (pravda) – e acredita que só a partir dessa relação é que se alcança um conhecimento pleno. Assim, o conteúdo do pensamento tem uma significação estável que é dada por aquilo que se tem de universal, mas esse pensamento só adquire sentido quando um sujeito o assume e lhe atribui um valor. A verdade pravda corresponde, portanto, à entonação do ato, à vivência real, e está sempre atualizando a verdade istina (veracidade, valor abstrato), o que faz o ato ser sempre único, não reprodutível e não permanente.

Com a invenção de instrumentos de reprodução técnica desde a Modernidade, tornou-se comum a ilusão de que era possível atribuir componentes universais à verdade pravda a fim de torná-la reprodutível, colaborando para uma tentativa de destituir o ato de sua responsabilidade, uma vez que se nega o ser-acontecimento como único. Consequentemente, percebe-se cada vez mais, no mundo pós-moderno, a separação (contrária à complementaridade defendida por Bakhtin) entre: a verdade istina e a pravda; o sujeito e o mundo; o ato e o fato. Vivemos aquilo que Walter Benjamin ([1936], 2019)BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019. denominou “a era da reprodutibilidade técnica”, marcada pela fragmentação do sujeito e pela cientificização do conhecimento abstrato. Isso tem nos levado cada vez mais, segundo João Wanderley Geraldi, a uma “esclerose da sensibilidade”19 19 Em live, no canal “Literatura de quinta”, no YouTube, denominada “A literatura como forma de compreensão da vida”, em 18/07/2020. . Não sentimos mais, em vez disso “dormimos e falsamente nos salvamos” (p.387). Não exercemos nossa revolta e nosso amor; construímos casas com portas muito bem trancadas e cujas paredes são sustentadas pela “certeza de que sempre me justificarei” (p.389); escondemos nossa violência; fabricamos um deus à imagem do que precisamos para abençoar nossa “maldade organizada” (p.388) e para dormirmos tranquilos; fingimos “que estamos todos certos e que nada há a fazer” (p.389). Como sonsos, evitamos o olhar do outro, sua contrapalavra, “para não corrermos o risco de nos entendermos” (p.387), e construímos uma “justiça estupidificada” (p.389) que vela nosso sono e não nos deixa conhecer e nem compreender o outro e, consequentemente, a vida.

Para Benjamin, com a Modernidade, o mundo passa a usar a técnica como forma de reprodução e de repetição, o que anestesia os nossos sentidos. Isso leva, paradoxalmente, à perda da experiência, da memória e, portanto, ao esquecimento. Esse esquecimento faz que percamos a capacidade de nos deixar afetar, de nos sensibilizar e de nos engajar. A obra de arte seria então uma forma de resistir, pois ela possui um caráter único (embora se atribua a ela cada vez mais o caráter unitário). Ela exige de nós uma postura de contemplação, capaz de produzir reflexão, e permite construir memória (nosso único contato com a obra após a experiência), apesar do esquecimento que marca a sociedade moderna e apesar de a própria arte também poder cair na alienação, na repetição e não produzir impacto. Tal reflexão certamente estende-se à sociedade Pósmoderna20 20 Consideramos Pós-modernidade a condição sociocultural e estética iniciada a partir da metade do século XX. Para Jean-François Lyotard (1924-1998), pensador francês que popularizou o termo, é um tempo em que todas as grandes narrativas (visões de mundo) entram em crise e ocorre uma perda das crenças em visões totalizantes da história, que costumavam prescrever regras de conduta política e ética para toda a humanidade. O clima de desconfiança em relação a qualquer discurso que avente formar consensos universais é geral. Aliado a isso, as transformações tecnológicas provocam modificações substanciais na forma de produzir e distribuir o saber, ou seja, a ciência. O mundo torna-se cibernético e informacional. Vivemos, assim, na contemporaneidade, nesse tempo pós-moderno. , cada vez mais marcada pela pós-verdade21 21 Trazemos o termo “pos-verdade” como comumente usado para o contexto no qual a aparência de verdade de um fato, caracterizada por um forte apelo à emoção e baseada em crenças, acaba ganhando muita expressão como se fosse um fato comprovado. em função do uso de técnicas elaboradas de reprodução como instrumento de controle e de dominação. Logo, a velocidade e a não verdade passam a ser valores que contribuem para uma insensibilidade cada vez maior.

Nossa época, potencializada pela rapidez, é marcada pela impermanência e desconfiança. Os comportamentos, os modos de vida, as expectativas mudam tão celeremente que não são assimilados. Há de se levar em conta também que as sociedades possuem temporalidades diferentes, o que ocasiona um descompasso entre mudanças e reflexões, ajustamentos ou refutamentos. Percebemos que a ligeireza também afeta as instituições formadas e estabelecidas por anos, para as quais não é fácil compreender de forma imediata toda a impermanência. A descrença é generalizada e os valores comuns partilhados, mesmo que entre diferentes, são desenraizados. Princípios básicos humanistas como amizade, cordialidade, lealdade, hospitalidade são igualmente levados a segundo plano, deixando nossa fragilidade mais acentuada. Partilhar o mundo sensível é entender que ele é feito de múltiplos centros de valores, contrastantes, mas que caminham rumo a um destino comum, o que por si só deveria nos enraizar. O que percebemos são indivíduos presos em si mesmos, cancelando os que não partilham de suas falsas verdades, construindo uma barreira ao outro que contesta.

Diante dos desafios do mundo contemporâneo, Bakhtin talvez chamasse a atenção para a necessidade de resgatar a “centralidade do agente” e para a não separação entre sujeito e mundo. A arte, como o domínio mais próximo à vida, é capaz de transfigurá-la, pois nos coloca em uma posição de contemplação emotivo-volitiva e valorativa que torna cada ato único, particular, chamando-nos a responder àquilo que experienciamos. Pensamos que Bakhtin destacaria a construção de um sujeito estético, capaz de assumir uma postura de empatia estética, de construir um pensamento ético, de tensionar suas palavras com as palavras do outro e, com isso, avançar e engajar-se na construção das próprias verdades.

Nessa direção, o domínio estético apresenta-se como o lugar próprio para se lutar contra o esquecimento e contra a esclerose da sensibilidade, pois nele se criam produtos de intervenção que, contemplados por nós, mexem novamente com nossa sensibilidade. A partir do momento em que nos colocamos diante da criação artística e teórica do outro, temos contato com aquilo que o outro é e podemos repensar aquilo que nós somos. Podemos sempre revisar o que tomamos como verdade universal, atualizando-a, no ato, no encontro da nossa verdade com a verdade alheia. A partir do agir responsável, a unidade possível se torna uma singularidade real e forma com o mundo, já valorado e objeto de valoração, um todo arquitetônico estável e concreto, uma unidade que se dispõe ao redor de um centro de valores que pode ser pensado, visto e, portanto, modificado. Mesmo com a fragmentação do sujeito e do conhecimento, nosso pensamento tende sempre à criação desse todo possível de se tornar uma singularidade real, e a arte dá uma forma composicional para essa unidade, a qual se torna um modo de intervenção no mundo.

Diríamos que a filosofia de Bakhtin se configura como instrumento de crítica e resistência e que a arte literária em geral e a de Clarice em particular, ao trabalhar vagarosa e tensionalmente com/a palavra, vai de encontro ao imediatismo e ao pragmatismo do mundo contemporâneo, ávido por velocidade e aplicabilidade. Em diálogo, a filosofia e a literatura nos convidam a produzir sentidos no acontecimento do ato-pensamento que articula sujeito e cultura e nos permitem (re)elaborar a vida dos afetos.

Convidados somos a sair do estado de dissimulação, do estado mecânico e automatico, e ir em direção ao entendimento “feito doidos” (p.389), de forma a desorganizar tudo e conhecer Mineirinho, pois “so feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos” (p.389). A voz da narradora acaba por destituir Mineirinho da culpa - “não nas consequências”, mas “como a de um filho de quem o pai não tomou conta” (p.387), e deseja “uma justiça um pouco mais doida” (p.389) que levasse em conta seu silenciamento durante a vida e sua brutalização em razão desse lugar de apagamento, à margem da cidadania - “Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma” (p.388). Importante atentarmos para esse jogo de inversão proposto pelo texto: o conhecimento pleno só será atingido pela loucura. Somente por meio dessa transgressão, somos capazes de entender que “somos escuros” (p.390), “somos perigosos” (p.390), somos “lama viva” (p.390), somos enredados pelo medo. As fronteiras entre o eu e o outro, o justo e o injusto, o violento e o violentado, a lei e o crime se embaralham de vez, deixando o leitor em desamparo. Até um “deus” fabricado desmistifica o “Deus” esperado pelos sonsos. As palavras e as imagens ambíguas nos deixam à beira do abismo e, por isso mesmo, diante do “dever pensar” e da “impossibilidade de não pensar”. E impactados pelas palavras da narradora, ficamos também mudos “diante do homem sem o gorro e sem os sapatos” (p.388) e mudos, ao mesmo tempo, “diante do São Jorge22 22 São Jorge é normalmente associado às forças armadas. de ouro e diamantes” (p.389) e “diante do homem metralhado” (p.389). Assim, “feito doidos” entramos “pela vida que tantas vezes não tem porta” (p.389), compreendemos “o que é perigoso compreender” (p.389) e sentimos “o amor profundo” (p.389), que nos permite ter consciência de que “nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento” (p.390).

Numa tentativa de nos acordar do estado de sonsice, confessa-nos a narradora: “Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nos que nos refugiamos no abstrato. O que eu quero é muito mais aspero e mais difícil: quero o terreno” (p.390). “Nos que nos refugiamos no abstrato” (p.390), na palavra oficial, na justiça que vela o nosso sono, nós que dormimos, para falsamente nos salvar, somos chamados a assumir o terreno, a palavra não oficial, a responsabilidade. É desse terreno que queremos (e devemos) urgentemente nos aproximar.

3 Uma justiça prévia e doida

Se a perspectiva a que nos propomos é a da relação entre escritura e vida, que abarca a constituição da subjetividade sempre perante um outro, recorremos, como ponto de passagem, ao texto Da hospitalidade (DERRIDA, 2003DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.), em que Jacques Derrida aceita o convite de Anne Dufourmantelle para falar das relações estabelecidas entre hóspede e hospedeiro, a partir das quais é possível criarmos novas associações e lê-las em outros campos do conhecimento, como a Literatura. Aproximamos as vozes do convidado e da anfitriã, justapostas em interessante jogo dialógico, às postulações de Bakhtin e à leitura do texto de Clarice, seguindo as trilhas da afirmação de Derrida que Anne Dufourmantelle toma como epígrafe em sua parte do livro: “Um ato de hospitalidade so pode ser poético”.

De modo geral, a hospitalidade se comunica com a ética e, como tal, pressupõe o reconhecimento do outro em uma relação interativa e interpessoal, um encontro com aquele que nos é estranho e que se apresenta a nós como um amigo ou como um inimigo. A hospitalidade, portanto, não é apenas uma ação passiva de receber o outro, ela se constrói na ambivalência entre o desejo de ser acolhido, de um lado, e o desejo de acolher, de outro. Trata-se de uma relação permeada por paradoxos e tensões entre quem acolhe e quem é acolhido e, nesse sentido, a hospitalidade se mostra como uma desconstrução, uma desorganização na busca por reforçar ou por desfazer o vínculo social com o desconhecido, com o estrangeiro. Ao discutir esse conceito, Derrida faz uma diferenciação entre a hospitalidade que é condicionada pela política e pelo direito e a hospitalidade que se dá nos campos ético e estético como acolhimento incondicional.

No primeiro caso, o acolhimento do outro tolera a condição de estrangeiridade e se constrói com base em condições determinadas. Se assim não for, a acolhida rasura a diferença, numa tentativa de seu apagamento. Ao hóspede são impostos limites e normas formulados na língua e segundo as condições do anfitrião, seja ele o Estado, a nação, o dono da casa. A hospitalidade condicionada guarda uma relação de poder; o que vem de fora se submete às leis do hospedeiro. Talvez, de fato, o grande desafio da hospitalidade seja o de acolher o outro sem reduzi-lo ao mesmo, sem domesticá-lo, respeitando sua estranheza.

Já a hospitalidade incondicional (ou absoluta) não se reduz às leis oficiais, é o acolhimento do outro de forma irrestrita, sem exigências, sem questionar sua origem, sem convites, mantendo-o sempre como desconhecido e único. Nesse sentido, a hospitalidade só poderia ser um ato poético e, consequentemente, um ato responsável, uma vez que considera a singularidade do outro, impondo uma relação ética e instaurando uma alteridade; o outro é acolhido em sua diferença. Porém, para que essa hospitalidade seja efetivada como gesto ético e não seja apenas uma abstração, é necessário que ela assuma a força de uma lei outra, de uma “justiça prévia” (p.390), “um pouco mais doida” (p.389), um “bruto grito desarticulado [que] serve de sinalização” (p.389-390), capaz de desconstruir a justiça que regula a hospitalidade condicionada e que permite que um “justiceiro” “possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento” (p.390).

As ambiguidades e ambivalências da relação hóspede e hospedeiro ainda guardam hostilidades preconcebidas e latentes - “como uma grama perigosa de radium, (...) um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador” (p.388), uma vez que a hospitalidade pode ter um viés intrusivo, hostil, em que o hospedeiro pode se tornar refém de seu hóspede. Faz-se necessária, então, uma constante tensão (e um pacto) entre as leis da hospitalidade incondicional e as da hospitalidade condicionada. O desconhecido nos causa temor, sentimento que gera uma inospitalidade declarada, pois aceitar recebê-lo irrestritamente pode configurar uma exposição ao risco. Lembremo-nos da crise imigratória que assola todo o planeta. A esse grupo também pertencem os expropriados, estrangeiros em sua própria terra, os excluídos, à margem dos bens e serviços disponíveis a apenas uma parcela da sociedade, os errantes, os loucos ou vadios, “os Mineirinhos”, constantemente vistos como ameaça à ordem estabelecida. Sem falar dos indígenas, vistos como um povo à parte.

Mineirinho é expropriado de seu lugar de pertencimento e, visto como bárbaro e perigoso, é extirpado do convívio da comunidade. Assemelha-se, assim, ao hóspede indesejado, a ameaça contra a qual se cria a hospitalidade xenófoba, que visa proteger a própria casa (chez-moi) (DERRIDA, 2003DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.). Uma casa-propriedade, casa-cidade, casa-civilização, casa-corpo, casa-palavra que não pode e não deve ser estremecida. Todavia ela é desestabilizada, pois a escrita expõe a violência de Mineirinho e escancara a estrutura hostil em que ele foi gerado. A hospitalidade xenófoba guiada pelo poder de polícia exclui os considerados párias sociais, mas cria violências outras.

O estranho do qual todos queriam se resguardar, ao adentrar a cidade, invade um espaço interdito, já que sua presença é considerada proibida na engrenagem social. Para falsamente nos proteger e nos salvar, construímos nossas casas, trancamos as portas, exigimos de nós mesmos que sejamos sonsos, dormimos e não deixamos que o outro entre. “Esta é a lei” (p.386) que mantém a casa em funcionamento segundo a ordem política e jurídica. Em contrapartida, a literatura é o lugar onde conseguimos ver “a matéria de vida” (p.387) que nos lembra de que “embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida” (p.387). Só nesse ato poético, podemos enfim dizer que não queremos esta casa, que queremos “uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho” (p.388). A narradora também transgride na medida em que acolhe a voz muda do “facínora”. O gesto ético é também de Lispector na função de autor-criador, que transfigura a vida e nos desloca em direção à perspectiva do personagem e de outras vozes.

Uma hospitalidade incondicional, de acolhida radical em que não se atentasse contra a alteridade é, por conceito, irrealizável. Se existisse, hóspede e hospedeiro se anulariam mutuamente. Isso esbarra na questão da constituição subjetiva. Não existe, no entanto, a identidade sem a alteridade. Se a hospitalidade sem fissuras ultrapassa o próprio conceito de hospitalidade em sua dimensão ético-política-jurídica, de fato, ela somente se dá como gesto poético. Em um tempo marcado pela exacerbação do individualismo e desinvestimento na vida coletiva, a literatura se abre como espaço de resistência e acolhe as alteridades, sem reduzi-las ao mesmo. Gesto ético de acolhida que se manifesta por meio do autor-criador, imanente ao todo artístico, que engendra a obra perpassada de elementos sócio-históricos e culturais.

Ao abrigo sem condicionantes desse hóspede pela escrita, vemos contraposto o “paradigma da imunização” (ESPOSITO, 2010ESPOSITO, R. Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.), chave interpretativa da sociedade moderna. Na encruzilhada dos dois polos interpretativos da biopolítica23 23 “Biopolítica” é um termo forjado pelo filosofo francês Michael Foucault na década de 1970 para explicar a passagem de um poder soberano, que causava a morte ou decidia por “deixar viver” seus súditos, para o biopoder, no qual o Estado passa a lidar com a população enquanto problema científico, político e biológico. Trata-se da entrada dos fenômenos próprios à vida humana na ordem do saber e nos cálculos do poder. A biopolítica promove a gestão da vida em seu aspecto biológico e objetiva conservá-la. Para Roberto Esposito, a sociedade moderna viu a política da vida se transformar em tanatopolítica. inscreve-se a categoria da imunidade, ligada às esferas do domínio ético e do direito: isenção ou proteção a uma doença; salvaguarda em relação a uma lei comum. Na imunização, vida e política estão intrinsecamente ligadas: “A imunidade não é apenas a relação que liga a vida ao poder, mas o poder de conservação da vida.” (ESPOSITO, 2010, p.74ESPOSITO, R. Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.) No entanto, esse poder de conservação pode encerrar em si a possibilidade de ameaça. O paradigma imunitário contrasta com o conceito de comunidade, de dádiva recíproca. Se por um lado a vida em comum pode aniquilar a construção de subjetividades, a imunidade pode criar barreiras identitárias, indivíduos isolados com direitos e garantias. Levado à exacerbação, o caráter imunitário pode aniquilar a vida que ele julgava proteger, como “o radium24 24 O rádio (do latim radius, que significa “raio”; do latim científico radium, “irradiar”) é um elemento químico luminescente bastante radioativo descoberto no início do século XX por Marie Sklodowska Curie (1867-1934) e seu marido Pierre Curie (1859-1906). Na época, foi elevado a símbolo da sofisticação, progresso científico, além de prometer a cura para várias doenças. Mais tarde, descobriu-se que o novo elemento da moda, na verdade, causava danos aos ossos por seu potencial extremamente radioativo. Curioso pensar como o elemento químico é trazido na superfície textual da crônica-conto de Clarice com sua presença irradiadora e, ao mesmo tempo, perigosa. Ousadamente, podemos aproximar o corpo cravado de balas de Mineirinho aos corpos das The Radium Girls. Esta denominação foi dada às operárias norte-americanas que ingeriram quantidades letais de rádio na fábrica United States Radium, em New Jersey. Essas mulheres eram orientadas a apontar com os lábios ou com a língua os pincéis que usavam para pintar mostradores de relógio. A pintura era realizada com tinta luminosa contendo o rádio, que, ao ser ingerido, penetrava nos ossos e emitia radiação constante, perfurando-os como se os “alvejasse(m)”. [que] se irradiara de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então, miseravelmente, pela doente coragem de destruição” (p.389).

A lei que imuniza parte da sociedade é a mesma que elimina outros: vida transformada em morte, “amor pisado” (p.388), “essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal” (p.388). E a justiça repudiada pela narradora, “humilhada por precisar dela” (p.387), justiça que incorpora a negatividade. A imunização guarda relação com a hospitalidade, mas é contraria à hospitalidade absoluta, no caso de “Mineirinho”. A hospitalidade ilimitada é chamada de “justiça prévia”, “uma justiça um pouco mais doida” (p.389), requerida, desejada como espaço de acolhimento do outro em sua diferença, do estranho que, familiar, também nos constitui. A narrativa, reiteramos, nos convoca “feito doidos” a desorganizar “a casa”, a entrar “pela vida que tantas vezes não tem porta” (p.389), a entender “o que é perigoso compreender” (p.389), a ir ao encontro da contrapalavra e, a partir desse movimento, criar, pensar, transfigurar o mundo. Essa convocação se dá em caráter de urgência, a fim de que acordemos para a luta contra a insensibilidade de nossos tempos e contra o fascismo em todas as suas formas de manifestações.

4 Para não acabar

Bakhtin, ao propor sua filosofia moral, olha para a literatura como possibilidade de uso da palavra em outro plano axiológico e revestida com a voz do outro. Clarice olha para Mineirinho e oferece-lhe um lugar, sem exigir-lhe reciprocidade. Nós olhamos para o ato-palavra realizado na crônica-conto em um movimento de desorganização para tentar entender como a literatura, enquanto processo estético (ação humana), nos faz compreender a nós mesmos, o mundo contemporâneo, a palavra muda de Mineirinho e outros desconhecidos que, no silêncio, chegam até nós. A relação nunca é direta, o atopalavra nos proporciona um olhar deslocado, enviesado, mediado pelos jogos de linguagem, pelas concepções de mundo, pelas formas simbólicas, pela posição valorativa que ocupamos, pelas leis a que nos sujeitamos, pelos atos que assinamos. Podemos, seguindo essa trilha, afirmar que, como vimos em Bakhtin e Clarice, o ato poético, realizado no texto literário, acolhe a nós, leitores estranhos, sem restrições, ao mesmo tempo que acolhe Mineirinho - no qual “a fala humana já falhou” (p.389), para nos fazer pensar o lugar do humano, do terreno e assumir um ato de responsabilidade contínuo.

  • 1
    Manuscritos de A hora da estrela. Disponível em: <https://site.claricelispector.ims.com.br/acervo/notas-de-a-hora-da-estrela/>. Acesso em: 08 jul. 2021.
  • 2
    Todas as citações de “Mineirinho” foram retiradas da 1a ed. de Todos os contos, da editora Rocco.
  • 3
    Os três campos da cultura humana definidos por Bakhtin são: a cognição (ciência), o ético (vida) e o estético (arte).
  • 4
    Este é um dos poucos textos acabados por Bakhtin e enviado por ele para publicação. Trata-se de um texto muito importante no conjunto da obra do filósofo, pois contém contribuições relevantes para as discussões sobre arte e literatura.
  • 5
    Bakhtin vê a efetiva possibilidade de realização da filosofia moral que propõe especialmente na arte verbal (a literatura). Esta, ao trazer encenada a relação autor e herói/personagem, permite olhar, de um ponto de vista extralocalizado, exotópico, para o herói não como um objeto, mas como um centro de valor outro segundo o qual se organiza o mundo do autor. A escrita literária é, portanto, capaz de delinear e descrever uma arquitetônica da alteridade. Consideramos aqui que essa perspectiva pode ser aplicada também à nossa experiência de leitura do texto literário, em que nos colocamos fora, na posição de contempladores, e assumimos, de modo participativo e não indiferente, o autor-criador e o herói como centros valorativos diferentes a partir dos quais organizamos nosso mundo.
  • 6
    Iser concebe o real como o “mundo extratextual”, o fictício como o mundo inventado ficcionalmente e o imaginário como uma instância que permite a invenção do possível como prenúncio de outra realidade.
  • 7
    Os atos de fingir são, segundo Iser (2002)ISER, W. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa (org). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Johannes Kretschmer. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.105-118., a seleção, a combinação e o desnudamento da ficcionalidade. A seleção se dá quando elementos de sistemas contextuais preexistentes são escolhidos e, desvinculados de um determinado sistema contextual preexistente, que pode ser sociocultural ou até mesmo literário, são articulados de maneira a ganharem novas significações, ou seja, de modo a serem transgredidos no e pelo texto. Não se trata de uma cópia da realidade extratextual, pois a seleção afeta os campos de referência e força uma transgressão, irrealizando o real. Uma vez selecionados, os elementos serão combinados, rearranjados, transgredidos no espaço textual, de modo a criar “relacionamentos intratextuais”. A seleção e a combinação dizem respeito à transgressão de limites entre texto e contexto. Ambos concorrem para o último ato de fingir, o qual Iser chama de “desnudamento da ficcionalidade”, ou “como se”. Esse “como se” reafirma o estatuto ficcional do texto, reconhecido por meio de convenções compartilhadas entre autor e leitor, que estabelecem uma espécie de contrato “cuja regulamentação o texto comprova não como discurso, mas como ‘discurso encenado’.” (ISER, 2002, p.970ISER, W. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA, L. Teoria da literatura em suas fontes. Tradução de Heidrun Krieger Olinto e Luiz Costa Lima. 2a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. v. 2. p.955-987.)
  • 8
    “‘Transgrediente’, de fato, significa também dar um passo, um passo fora de qualquer alinhamento, combinação, sincronia, semelhança, identificação. Este termo vem do latim transgredo; e em inglês equivale a step across, step over, ‘passar através de’, ‘passar além de’” (BAKHTIN, 2017, p.10BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos A. Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2017.).
  • 9
    A revista Senhor teve sua primeira fase de circulação entre os anos de 1959 e 1964 e contou com a colaboração de renomados escritores e intelectuais, como Clarice Lispector.
  • 10
    Trata-se de um nós genérico, abstrato, feito das relações culturais, públicas entre identidades que anulam a singularidade.
  • 11
    Tem-se aqui o nós singular, da vivência, da diferença não indiferença e que reconhece o seu “não álibi no existir”.
  • 12
    A expressão “excedente de visão” é usada por Bakhtin para se referir à visão acabada, de fora, que o outro consegue ter do “eu” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.337-57.).
  • 13
    Termo adotado na tradução brasileira de Para uma filosofia do ato responsável com o objetivo de falar do caráter de evento do existir.
  • 14
    Ressaltamos que o texto foi encomendado a Clarice Lispector pelo conselho editorial da revista Senhor, em que a escritora era cronista desde 1958, e publicado no mês seguinte ao fato.
  • 15
    Do grego ‘βάρβαρος’, a palavra era onomatopaica, usada para referência ao “não grego”, que não falava a língua oficial, apenas a balbuciava. O bárbaro intitulava todo estrangeiro, alheio à cultura e à organização social e política dos helênicos. Com o passar do tempo, o significado do vocábulo foi alargado e passou a designar, de forma estereotipada, todos os incivilizados e incultos. Selvagem ou primitivo nomeia a alteridade vista como ameaça e contra a qual se exerce violência física e/ou simbólica.
  • 16
    Ao discutir a relação entre hospedeiro e hóspede, Derrida mostra que este pode se converter em ameaça àquele, tornando-se hostil, indesejado e ilegítimo. A negação da hospitalidade acaba por roubar do forasteiro sua condição de ser humano, passível de ser apartado do convívio comum (DERRIDA, 2003DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.).
  • 17
    Segundo Bakhtin (2017, p.128)BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos A. Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2017., trata-se do “princípio da visão estética”.
  • 18
    Segundo o filósofo alemão Nicolai Hartmann, “Em cada ente há um momento de existência (Dasein). Com isso deve-se entender o fato puro e simples de que, em geral, ele está aí. E em cada ente há também um momento de essência (Sosein). A este pertence tudo o que constitui a determinação específica ou a particularidade do ente, tudo o que este último possui em comum com um outro ou em virtude do que se distingue do outro, em resumo, tudo ‘aquilo que ele é’”. Hartmann ainda “considera a essência como possibilidade e a existência como a atualidade dela” (Zur Grundlegung der Ontologie apud ABBAGNANO, 2012, p.422ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.).
  • 19
    Em live, no canal “Literatura de quinta”, no YouTube, denominada “A literatura como forma de compreensão da vida”, em 18/07/2020.
  • 20
    Consideramos Pós-modernidade a condição sociocultural e estética iniciada a partir da metade do século XX. Para Jean-François Lyotard (1924-1998), pensador francês que popularizou o termo, é um tempo em que todas as grandes narrativas (visões de mundo) entram em crise e ocorre uma perda das crenças em visões totalizantes da história, que costumavam prescrever regras de conduta política e ética para toda a humanidade. O clima de desconfiança em relação a qualquer discurso que avente formar consensos universais é geral. Aliado a isso, as transformações tecnológicas provocam modificações substanciais na forma de produzir e distribuir o saber, ou seja, a ciência. O mundo torna-se cibernético e informacional. Vivemos, assim, na contemporaneidade, nesse tempo pós-moderno.
  • 21
    Trazemos o termo “pos-verdade” como comumente usado para o contexto no qual a aparência de verdade de um fato, caracterizada por um forte apelo à emoção e baseada em crenças, acaba ganhando muita expressão como se fosse um fato comprovado.
  • 22
    São Jorge é normalmente associado às forças armadas.
  • 23
    “Biopolítica” é um termo forjado pelo filosofo francês Michael Foucault na década de 1970 para explicar a passagem de um poder soberano, que causava a morte ou decidia por “deixar viver” seus súditos, para o biopoder, no qual o Estado passa a lidar com a população enquanto problema científico, político e biológico. Trata-se da entrada dos fenômenos próprios à vida humana na ordem do saber e nos cálculos do poder. A biopolítica promove a gestão da vida em seu aspecto biológico e objetiva conservá-la. Para Roberto Esposito, a sociedade moderna viu a política da vida se transformar em tanatopolítica.
  • 24
    O rádio (do latim radius, que significa “raio”; do latim científico radium, “irradiar”) é um elemento químico luminescente bastante radioativo descoberto no início do século XX por Marie Sklodowska Curie (1867-1934) e seu marido Pierre Curie (1859-1906). Na época, foi elevado a símbolo da sofisticação, progresso científico, além de prometer a cura para várias doenças. Mais tarde, descobriu-se que o novo elemento da moda, na verdade, causava danos aos ossos por seu potencial extremamente radioativo. Curioso pensar como o elemento químico é trazido na superfície textual da crônica-conto de Clarice com sua presença irradiadora e, ao mesmo tempo, perigosa. Ousadamente, podemos aproximar o corpo cravado de balas de Mineirinho aos corpos das The Radium Girls. Esta denominação foi dada às operárias norte-americanas que ingeriram quantidades letais de rádio na fábrica United States Radium, em New Jersey. Essas mulheres eram orientadas a apontar com os lábios ou com a língua os pincéis que usavam para pintar mostradores de relógio. A pintura era realizada com tinta luminosa contendo o rádio, que, ao ser ingerido, penetrava nos ossos e emitia radiação constante, perfurando-os como se os “alvejasse(m)”.
  • CAPES, Proc. 88887.500510/2020-00

REFERÊNCIAS

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  • BAKHTIN, M. M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.337-57.
  • BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski Tradução de Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
  • BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos A. Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2017.
  • BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Tradução Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019.
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  • DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.
  • ESPOSITO, R. Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.
  • FARACO, C. A. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: PAULA, L.; STAFUZZA, G. (org.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013. p.167-199. (Série Bakhtin inclassificável. v. 3.)
  • FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
  • FARACO, C. A. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.95-111.
  • FREUD, S. O estranho. Tradução de Jayme Salomão. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v.17: História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.275-315.
  • FREUD, S. O mal-estar na civilização Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
  • GERALDI, J. W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L.; STAFUZZA, G. (org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010. p.279-292. (Série Bakhtin inclassificável. v. 1.)
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  • ISER, W. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA, L. Teoria da literatura em suas fontes Tradução de Heidrun Krieger Olinto e Luiz Costa Lima. 2a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. v. 2. p.955-987.
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  • LISPECTOR, C. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
  • LISPECTOR, C. Mineirinho. In: Todos os contos 1.ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p.386-390.
  • LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna Tradução Ricardo Corrêa Barbosa. 16ª ed. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 2015.
  • QUEIROZ, I. A. O conceito de arquitetonica na teoria bakhtiniana: uma abordagem historiográfica, filosofica e dialogica. Estudos Linguísticos São Paulo, 46 (2), p.625-640, 2017.
  • RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política Tradução de Mônica Costa Netto. 2.a ed. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.
  • RANCIÈRE, J. Formas de vida: Jacques Rancière fala sobre estética e política. Entrevista concedida a Guilherme de Freitas. O Globo, 8 dez. 2012. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/formas-de-vida-jacques-ranciere-fala-sobrees Acesso em 26 jul. 2021.
    » http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/formas-de-vida-jacques-ranciere-fala-sobrees
  • ROSENBAUM, Y. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Estudos Avançados, 24(69), 2010. p.169-182. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/bXLdRWqtzdZHqv9HzgRpGHC/?format=pdf⟨=pt Acesso em: 14 maio 2022.
    » https://www.scielo.br/j/ea/a/bXLdRWqtzdZHqv9HzgRpGHC/?format=pdf⟨=pt
  • SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas: Mercado de Letras, 2019.
  • VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.

Parecer I

A leitura do texto avaliado foi muito prazerosa. O título apreende de modo conciso e apropriado o cerne da pesquisa. Com pleno domínio da linguagem e da estrutura de um trabalho acadêmico, o desenvolvimento da escrita flui sem sobressaltos, preservando a coesão e a coerência, exibindo excelente conhecimento dos princípios da teoria bakhtiniana acerca do “ato responsavel”, o qual propicia uma solida ancoragem para a discussão da cronica/conto “Mineirinho” de Clarice Lispector e o atingimento do objetivo do trabalho.

Saliento a maturidade dos(as) autores(as), manifesta nas reflexões profundas do tema, na consistência das argumentações e na expansão destas buscando apoio teorico em outros pesquisadores como Wolfgang Iser, Jacques Ranciere, Sigmundo Freud, Nicolai Hartmann, Michel Foucault, Roberto Esposito, Jacques Derrida, dentre outros, para a discussão dos desdobramentos da questão central com o fito de melhor ilumina-la. O viés teorico escolhido para o exame do texto de Clarice Lispector mostra-se pertinente e desvela um enfoque original, competente, que pode contribuir para a fortuna crítica da escritora.

Sugiro que os(as) autores(as) padronizem a classificação do texto (conto[?] cronica[?]), ou usem a expressão cronica-conto, disposta na p.2 do trabalho, conforme as justificativas mencionadas. Outra sugestão diz respeito à transferência da nota de rodapé que explicita o conceito “transgrediente” para primeira entrada do termo no artigo, onde é mais necessaria.

Aproveito para registrar o esquecimento de lançar a obra Freud, 2011FREUD, S. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011., nas referências finais, bem como o de lançar o ano da obra consultada em: [QUEIROZ, Inti Anny. O conceito de arquitetonica na teoria bakhtiniana – uma abordagem historiografica, filosofica e dialógica. Estudos Linguísticos. São Paulo, ano?]. APROVADO COM SUGESTÕES

Aurora Gedra Ruiz Alvarez - https://orcid.org/0000-0002-1055-9233; auroragedra@hotmail.com; Universidade Presbiteriana Mackenzie, Centro de Comunicação e Letras, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Parecer II

Desde que respeitadas as observações abaixo, aprovo a publicação do artigo A (trans)figuração do mundo pelo ato-palavra de/em “Mineirinho”.

O estudo apresenta analise original acerca de uma das cronicas mais importantes de Clarice Lispector. O autor do texto apresenta sua analise de forma abalizada, dominando o corpus que elegeu e a fundamentação teorica utilizada. Contudo, o texto não se enquadra inteiramente ao que o resumo do artigo sinaliza: o autor, no RESUMO, diz que a fundamentação teorica de seu texto tera como respaldo a teoria de Bakhtin – ato responsavel –, mas no corpo do texto, composto por introdução, três subtítulos, e SEM considerações finais, ladeia as analises privilegiando outros teoricos – Derrida, por exemplo. Não vejo problema no dialogo proposto. Entretanto, creio que o resumo deva ser reescrito com esse sentido. Recomendo, também, a criação do topico – CONSIDERACOES FINAIS.

Problemas de redação: creio ser necessaria a apresentação dos nomes completos dos teoricos utilizados. Exemplo: “Como nos lembra Faraco [Ranciére; Esposito, Benjamin, Amorim]” – na primeira vez que a voz de um autor é citada no texto, recomenda-se que o nome do mesmo seja posto em extenso. E recorrente a apresentação de teoricos, intérpretes, de forma abreviada. Nesse sentido, o leitor não é “ajudado” pelo autor do artigo.

O termo “tensionada” aparece com frequência no texto [assim como a palavra “narradora”]. Usar sinonimos. Exemplos de repetições de palavras: “Ja o imaginario... ja que o ato de fingir... Assim, nesse processo...assim, pela intersecção” Ha um paragrafo que deve ser revisto/reescrito (a construção esta confusa): “E isso é algo mais que nos irmana ja que as dores têm a mesma origem” ...

O autor apresenta como corpus a cronica Mineirinho. Registrada e entendida por Clarice Lispector como cronica. Contudo, em 2016, Benjamin Moser, ao organizar o compêndio Todos os contos, de Clarice Lispector, registrou no volume a cronica como se fosse conto. Essa organização descuidada causa confusão no leitor. Creio ser oportuna uma nota de rodapé explicando esse descuido editorial. Sugiro que o autor do artigo, ao invés de se utilizar do livro Todos os contos, use a primeira edição do livro A legiao estrangeira, mas se não for possível, é melhor usar alguma edição do livro Para nao esquecer – onde esta registrado a cronica. Indico a leitura do artigo “De cuentos reunidos a todos os contos”, de Nadia Battella Gotlib, para maiores esclarecimentos: https://revistacult.uol.com.br/home/de-cuentos-reunidos-todos-os-contos. APROVADO COM RESTRIÇÕES

Thiago Cavalcante Jeronimo - https://orcid.org/0000-0003-4856-8052; thiagocavalcante@live.com; Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.

Parecer III

O artigo em analise apresenta título e resumo em consonancia com a proposta empreendida. Os objetivos lançados são plenamente alcançados ao longo do desenvolvimento do texto, o qual traz tematica pertinente aos estudos literarios e linguísticos em nosso contexto: a relação entre a escritura e a sociedade/contexto contemporaneo. Bem fundamentado teoricamente, o artigo propõe o dialogo das reflexões bakhtinianas com a de outros teoricos, como Iser, Derrida, Esposito e Ranciere, sem, contudo, perder de vista a analise do texto de Clarice Lispector. E valido ressaltar o dialogo estabelecido entre os aspectos teoricos, o texto literario (escritura) e a vida, revelando um olhar crítico do autor. O texto representa um bom contributo para os estudos da area e é muito bem redigido. Diante disso, sou favoravel à publicação. APROVADO

Diana Navas - https://orcid.org/0000-0002-4516-5832; diana.navas@hotmail.com; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    10 Jun 2022
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
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