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Aqui não é igual aldeia: encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu, na cidade de Canarana, Mato Grosso, Brasil

This is not like a village: encounters between indigenous people from the Xingu Indigenous Territory in the city of Canarana, Mato Grosso, Brazil

Resumo

Este artigo propõe uma análise dos encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu (TIX) que ocupam a cidade de Canarana, Mato Grosso. A maior parte da população indígena presente nessa cidade provém das aldeias do Alto Xingu, mas há ali, constantemente, indígenas de todas as regiões do TIX. Marcada por uma socialidade específica, Canarana propicia aos indígenas possibilidade de experimentação de outras modalidades de proximidade social que não o parentesco, principal nexo relacional das aldeias. Nesse contexto, é comum que os indígenas neguem, com veemência, visitar outros indígenas na cidade – com exceção dos parentes próximos que, segundo dizem, são poucos. ‘Ir à casa de alguém’, porém, não é o mesmo que ‘visitar parentes’, e a ritualística da situação não remete apenas aos comportamentos da aldeia. O foco deste artigo é a descrição que os indígenas fazem desses encontros, nos quais pessoas das diferentes regiões do TIX mobilizam gradações de parentesco, aludindo, aqui, ao tema da boa distância, mas se esforçam também por acessar idiomas relacionais próprios ao ambiente da cidade, diferentes daqueles tipicamente estabelecidos nas aldeias.

Palavras-chave
Etnologia indígena; Xingu; Indígenas na cidade

Abstract

This article analyzes encounters between the indigenous people from the Xingu Indigenous Territory (TIX) who inhabit the city of Canarana (MT). Most of this city’s indigenous population comes from villages in the Upper Xingu, but at all times there are indigenous people from all regions of the TIX. Canarana is marked by a specific sociality and offers indigenous people a chance to experiment with other modalities of social proximity beyond kinship, which is the main relational nexus in the villages. Within this context, people usually deny visiting other indigenous people in the city, except for a few close relatives who live in Canarana. But ‘Going to someone’s house’ is not the same as ‘visiting relatives,’ and the ritual of this situation is not limited to only behavior in the villages. This article focuses on indigenous descriptions of these encounters in which people from different regions of the TIX mobilize degrees of kinship, alluding to the notion of a ‘good distance’ but also making efforts to access relational language specific to the city environment that differ from those typically established in the villages.

Keywords
Indigenous ethnology; Xingu; Indigenous people in the city

INTRODUÇÃO

Este artigo propõe uma análise dos encontros entre os indígenas do Território Indígena do Xingu (TIX) que ocupam a cidade de Canarana, Mato Grosso (Figura 1). A maior parte da população indígena presente nesta cidade provém das aldeias do Alto Xingu, mas há ali, constantemente, indígenas de todas as regiões do TIX1 1 Há também a presença de indígenas Xavante, que, em sua grande maioria, chegam à carroceria dos caminhões para fazer compras e sacar benefícios sociais, e retornam no final do dia (cf. Vitti, 2005). Diferentemente dos xinguanos, poucos são os que pernoitam ou firmam residência. . Em Canarana, a vida nas muitas aldeias do TIX me era descrita como orientada por um caminho do meio entre excessos, expresso nas teorias locais do parentesco. Já os encontros entre indígenas na cidade e as reflexões sobre eles se orientam por outras questões: o caminho do meio desloca-se pela preeminência que a perspectiva dos brancos tende a adquirir nesses espaços. Seguindo as considerações de meus interlocutores indígenas, proponho aqui levar a sério a ideia de que Canarana é um espaço distinto das aldeias, marcado por um outro modo de se relacionar. Os encontros entre indígenas em Canarana oferecem uma janela para observarmos tais transformações, sobretudo na medida em que negar certas relações reforça o desejo de abrir-se para outras.

Figura 1
Localização de Canarana, Mato Grosso. Mapa: Programa Xingu - Instituto Socioambiental (ISA), 2004; Dossiê Mata Atlântica, 2001; Rede de organizações não governamentais (ONG) da Mata Atlântica, Sociedade Nordestina de Ecologia (SNE) e ISA.

Declarada em Lei Estadual como Portal do Xingu2 2 O município foi declarado Portal do Xingu por meio da Lei Estadual nº 10.103/2014, denominação inscrita no brasão da Câmara Municipal de Canarana. , Canarana é um ponto de apoio para muitos pesquisadores que trabalham no TIX, em especial aqueles que se dirigem ao Alto Xingu. Estima-se que, hoje, sua população seja de cerca de 22 mil pessoas. A baixa densidade demográfica contrasta com as largas avenidas do centro da cidade, lojas de grife e árvores podadas em formato quadrado. Há também um grande telão luminoso em um de seus principais cruzamentos, com propagandas dos estabelecimentos comerciais. Além disso, há indígenas. Embora poucos etnólogos tematizem em seu trabalho estas experiências, não há quem que não tenha passado por Canarana sem ter se deparado com a presença indígena3 3 Contemporâneo, o tema da presença indígena nas cidades brasileiras encontra-se em crescente ebulição nacional, protagonizando pesquisas produzidas em diferentes áreas do conhecimento. Ainda assim, na região do TIX, trabalhos voltados especificamente para tal fenômeno são ainda escassos (cf. Horta, 2018, pp. 28-32). A situação não é a mesma em outras regiões do país: há estudos que vão de São Paulo ao Oiapoque, do sul da Bahia ao rio Negro, incluindo pesquisas que tratam dos movimentos indígenas locais, suas organizações e demais estruturas irrompidas a partir das relações cada vez mais perenes entre as aldeias e as cidades (ver, por exemplo, Berger, 2018; Serpa & Grando, 2018; Busarello, 2017; Souza et al., 2016; Albuquerque, 2015; Aguilar, 2013; Andrade, 2012; Faria, 2011). . Algo similar se dá com antropólogos que trabalham em outras terras indígenas, que também têm como ponto de apoio cidades frequentadas por seus interlocutores, mas que privilegiam, em suas pesquisas, suas experiências nas aldeias.

Como consequência, este artigo, tal como meus trabalhos anteriores, soa aos etnólogos um tanto familiar e lhes acende uma infinidade de questões que eles já imaginaram investigar. Minha etnografia, entretanto, passa por outros meandros, o que causa em meus pares sempre certa decepção. A questão que guia este artigo – a existência de uma descontinuidade ativamente instituída pelos indígenas na cidade entre as experiências em Canarana e em suas aldeias – foi muitas vezes questionada por meus colegas de profissão: não seriam as descrições das vidas indígenas na cidade semelhantes às descrições de meus colegas etnólogos que trabalham nas aldeias do TIX? Essa pergunta recorrente me levou a repensar algumas questões de minha etnografia e a abordar, neste artigo, a descontinuidade que me foi apresentada pelos indígenas do TIX como característica de sua experiência indígena na cidade.

Para tal, este artigo propõe um “experimento de pensamento” (Viveiros de Castro, 2002aViveiros de Castro, E. (2002a). O nativo relativo. Mana, 8(1), 113-148. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200200...
) que retoma parte do material etnográfico explorado em minha tese de doutorado (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro].), trazendo para o primeiro plano a diferença entre os idiomas envolvidos na produção etnográfica (o meu, o da etnologia e os delas). A narrativa se orienta pela comparação entre o aparato conceitual mobilizado pelas práticas e discursos dos indígenas do TIX em Canarana, e os conceitos da antropologia que enquadravam meu entendimento das situações, explorando as equivocações decorrentes deste encontro etnográfico. Um “método de equivocação controlada” (Viveiros de Castro, 2004Viveiros de Castro, E. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22.) que pauta, reiteradamente, a ineficiência tradutiva dos conceitos que compõem minha bagagem teórica – quer oriundos das minhas próprias determinações ontológicas, quer da literatura produzida sobre os indígenas do TIX, no TIX – e experimenta tomar as formulações indígenas como guia da análise que aqui se apresenta.

As equivocações, como veremos, se evidenciam nas tantas palavras e atos indígenas que resistem à explicação antropológica. É justamente aí, na etnografia mesma, que reside o controle que dá nome ao método. Nesse sentido, o objetivo não é explicar o que fazem e pensam os indígenas do TIX quando estão na cidade de Canarana, não é desenhar um contexto em que essas ações ganham um sentido concebível para não indígenas, mas, ao contrário, contribuir para a “elucidação” de suas “condições de autodeterminação ontológica” (Viveiros de Castro, 2006Viveiros de Castro, E. (2006). No Brasil, todo mundo é Índio, exceto quem não é. In C. A. Ricardo & F. P. Ricardo (Orgs.), Povos indígenas no Brasil: 2001-2005 (pp. 41-49). Instituto Socioambiental.), demonstrando o “quanto a criatividade desses povos é maior do que aquilo que pode ser compreendido por qualquer análise singular” (Strathern, 2006Strathern, M. (2006 [1988]). O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Editora da Unicamp. [1988], p. 23).

Venho perseguindo este método desde minhas primeiras incursões etnográficas em Canarana, e a primeira parte do artigo (as três seções que se seguem a esta introdução) traz excertos da tese e temas desenvolvidos em trabalhos anteriores em que o método pode já ser observado (Horta, 2021Horta, A. (2021). The other's tongue: place, perspective, and the desire to speak Portuguese among the people of the Xingu Indigenous Territory. Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, 26(2), 256-275. https://doi.org/10.1111/jlca.12544
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, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., pp. 63-114). A segunda parte, por sua vez, consiste em uma revisão importante dos argumentos, à luz do método acima descrito. Levado mais à risca, o método da equivocação controlada me ajudou a avançar as análises sugeridas e a complexificar os questionamentos de meus pares etnólogos. As múltiplas questões que este texto tangencia dizem respeito àquilo que leva os indígenas do TIX à cidade, ao modo como vivem e conceitualizam essas experiências e às expectativas em relação a elas. Tais questões, é importante destacar, não serão, de forma alguma, esgotadas nas parcas linhas que se seguem. Abertas, elas sugerem a importância de uma antropologia da presença indígena na cidade, atenta à possibilidade de que aquilo que os indígenas colocam não coincide necessariamente com as formulações não indígenas, urbanas e citadinas, tampouco com uma simples extensão daquilo que eles colocam nas aldeias. O que temos em Canarana é outra coisa: ‘aqui não é igual aldeia’.

A VIDA NA ALDEIA: O CAMINHO DO MEIO

O Território Indígena do Xingu (TIX) agrega quatro territórios adjacentes no estado de Mato Grosso, localizados na parte alta da bacia hidrográfica do rio Xingu: a Terra Indígena (TI) Batovi, a TI Pequizal do Naruvôtu, a TI Wawi e a TI Xingu, primeira a ser demarcada (em 1961), maior e central. Habitam o território 16 povos indígenas, distribuídos em mais de 110 aldeias. A fundação dos municípios da região está ligada às políticas de incentivos fiscais para ocupação, ao Programa de Integração Nacional (PIN) e aos projetos fundiários de iniciativa particular na região leste do Mato Grosso, ocorridos nas décadas de 1960 e 1970. Ainda que a demarcação dos territórios contenha, em alguma medida, os deslocamentos desses indígenas, as andanças para além dos territórios de origem nunca cessaram de todo. O “enquadramento no ordenamento territorial operado pelo Estado” (Coelho de Souza et al., 2016Coelho de Souza, M., Barbi, R. C. S., Fernandes, J., Lima, D., Molina, L., Oliveira, E., . . . Soares-Pinto, N. (2016). T/terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas [Projeto de pesquisa]. Brasília.) não esgota as possibilidades espaciais das mais de 8 mil pessoas que habitam hoje o TIX, e as cidades próximas são destinos certos para aqueles que desejam e/ou precisam se relacionar com o mundo e as coisas dos não indígenas.

Dentro do território indígena, é comum que as aldeias de uma mesma etnia ocupem uma mesma região ou as margens de um mesmo rio, fazendo com que cada povo acesse com mais facilidade o centro urbano que está mais próximo de suas aldeias. A área do TIX incide sobre dez municípios: Marcelândia, Nova Ubiratã, União do Sul, Querência, Feliz Natal, Gaúcha do Norte, São José do Xingu, São Félix do Araguaia, Paranatinga e Canarana. O foco deste artigo é a presença indígena no município de Canarana. Esta é uma cidade um tanto distinta das outras mencionadas, pois é ocupada por indígenas das quatro regiões do TIX. Se algumas cidades do entorno funcionam, de certa forma, como extensões das aldeias que as acessam com maior facilidade, “Canarana não é uma aldeia, nem tampouco uma extensão de nenhuma delas” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 14). Ainda assim, pouco mais de uma década atrás, o Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), realizou um levantamento da população indígena residente em Canarana, que apontou que 70% provinham do Alto Xingu (ISA & FUNAI, 2011Instituto Socioambiental (ISA) & Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (2011). Levantamento da população indígena residente em Canarana [manuscrito não publicado]. ISA/FUNAI.). De fato, Canarana ocupa uma pequena porção no extremo sudeste do TIX, delimitada pelos rios Tanguro e Culuene – nas margens deste último, localizam-se muitas aldeias alto-xinguanas e a maior parte das aldeias dos povos karib do Alto Xingu.

A partir da segunda metade da década de 2010, observamos a profusa abertura de estradas que ligam o TIX às rodovias do entorno, alterando as rotas de circulação, permitindo, dessa forma, fazer por terra o que antes tardava horas e horas de barco movido a motor de popa. Ainda que, hoje, indígenas de diferentes etnias possam acessar, com muito mais facilidade, centros urbanos de outros municípios, Canarana segue sendo uma referência para os indígenas do TIX de modo geral, uma vez que as mais importantes instituições de atendimento social, a Coordenação Regional da FUNAI e muitas subsedes de associações indígenas e não indígenas estão ali localizadas. Como consequência, é comum que pessoas de diferentes povos afirmem que “Canarana é uma cidade com índios demais”: não apenas pelo grande número de indígenas que a frequentam, mas, sobretudo, pela sua ampla variedade étnica. A maioria é, sem dúvida, alto-xinguana e, dentre estes, a maior parte é de povos falantes de línguas karib, mas pelas largas avenidas da cidade encontramos indígenas de todas as regiões do TIX.

Vivi o ano de 2014 em Canarana e, até o estouro da pandemia de covid-19, em 2020, retornei em visitas mais curtas todos os anos. A maioria dos indígenas que estão em Canarana viveu a maior parte de suas vidas dentro do TIX. A vida na ‘aldeia’ – cada indígena com quem eu conversava dizia da sua própria – sempre foi um tema recorrente de nossas conversas e me era descrita em contraste com a experiência da cidade. Resistindo aos meus primeiros intuitos explicativos, tal contraste não se deixava capturar por uma imagem estável de cada um desses espaços.

Quando conheci Ügü4 4 A fim de preservar a identidade de meus interlocutores, os nomes pessoais e de aldeias usados no artigo são todos fictícios, em continuidade com o modo como foram apresentados na tese. , um homem kalapalo que encontrei muitas outras vezes em Canarana, perguntei-lhe o porquê de estar na cidade e se gostaria de ficar ali. Ele dizia estar ali para resolver ‘problemas’ em seu Cadastro de Pessoa Física (CPF). Embora não soubesse explicar quais eram esses problemas, afirmava que uma funcionária da FUNAI iria acompanhá-lo à Receita Federal. Quando lhe perguntei se desejava ficar na cidade, Ügü respondeu: “eu não fico, não”. À época, como escrevi noutra ocasião:

Me era impossível avaliar se ele não permanecia por desejo de voltar ou por impossibilidade de ficar, mas a conversa seguia e ele passava a me contar que na aldeia o que alimenta vem da terra, da roça, da floresta e do rio, despidos de asfalto

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 71).

Dizia que, na aldeia, se uma pessoa deseja comer peixe, basta pescá-lo no rio; se deseja comer beiju, sua mãe ou esposa o produz com o fruto do trabalho nas roças – não é preciso pagar para tal. Caçar, pescar e cuidar da roça são atividades cansativas, mas não precisam ser realizadas nas horas mais quentes do dia. Diferentemente das cidades, nas aldeias, as pessoas decidem, elas mesmas, quando irão trabalhar.

Na cidade, as coisas não se passam do mesmo modo – Ügü seguia. Para satisfazer as necessidades mais básicas, como comer, beber, morar e até mesmo usar o banheiro, é preciso ter dinheiro e pagar. O fato de que é preciso dinheiro para usar o banheiro das rodoviárias é considerado pelos indígenas do TIX o auge do desvario não indígena. O argumento de Ügü seguia claro, distinto e coerente. Com ingenuidade, eu presumia uma imagem das aldeias como um paraíso abundante e fértil, e da cidade de Canarana como um inferno regido pelo capital. Mas logo Ügü desestabilizaria minhas conclusões, torcendo seu argumento por meio de uma imagem cujo embrião já vinha inscrito em suas primeiras formulações.

Nada era tão simples assim, ele dizia:

Você acha que é fácil? Quero ver você cortar árvore para construir a casa do parente, mesmo com motosserra. Dói, cansa. Era como se aquele breve comentário sobre a dificuldade do trabalho na aldeia – “roçar, pescar e caçar dão trabalho”, ele disse – agora ganhasse corpo e me fosse exposto em primeiro plano. Abrir roça é difícil, ele dizia, cansa muito e é preciso cuidar todos os dias para que os porcos-do-mato não destruam tudo. E tem os bichos perigosos, claro: cobras, onças. Tem espíritos. Tem também doença do índio, feitiçaria, “vocês não entendem”. Era tudo difícil à beça

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 73).

Ügü me traçava agora uma imagem da aldeia altamente perigosa, e, antes que eu a pudesse absorver, ele torcia outra vez o argumento: é duro, “mas quando precisa de alguma coisa, o parente ajuda”. De novo, ele voltava a um tema menor de seu argumento anterior, o de que os parentes se ajudam mutuamente na construção das casas – referia-se ao cansaço de cortar as árvores que firmam a estrutura das moradias dos parentes –, elaborando-o, agora, como argumento central.

Se você não saiu para pescar e seu parente o fez, ele vai te dar um peixe, assim como quando o oposto ocorrer, você vai dividir seu pescado com ele, continuava. E se você adoecer, serão seus parentes quem pagarão os pajés para tentar curá-lo

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 73).

As torções em seus argumentos indicavam que a ideia de que na aldeia basta plantar a terra e pescar o peixe no rio tinha uma miríade de exceções e não garantiam que Ügü visse sua aldeia como um paraíso casto e a vida ali, entre parentes, como plena de compartilhamento e bem comum. A generosidade é a principal marca das relações mais próximas do parentesco, mas só é possível ser generoso e ofertar mais para uns à medida que se restringe o compartilhamento com outros. Entre os diferentes povos que habitam o TIX, a disposição em compartir é um valor que guia as boas relações, em oposição a relações menos positivas e intensas, em que a generosidade se apresenta de modo mais restrito. “Nem tudo é dividido entre todos e as relações nas aldeias definitivamente não são indiferenciadas; mas as coisas tampouco ficam retidas em um só, havendo rotas que aproximam os indivíduos e modelam suas diferenças” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 73). Ao me contar sobre a generosidade de seus parentes, Ügü desenhava uma imagem da vida na aldeia que soava a meus ouvidos bucólica e idealizada, mas suas palavras já traziam o gérmen da ruína dessa imagem primeira, uma vez que não existe aldeia onde todos sejam parentes na mesma medida. A circulação de bens, alimentos, palavras e afetos trilha rotas singulares, afastando-se de uns para achegar-se de outros, produzindo diferenciações indispensáveis à vida social.

As idas e vindas das formulações de Ügu evidenciavam que as relações sociais no TIX são aversas a excessos. Nas aldeias, o caminho ideal é o caminho do meio – não como um denominador comum, uma média, mas um tipo de interseção instável. Uma ética das boas relações, não uma regra transcendente: uma moral imanente que remete ao tema da boa distância, presente nas análises míticas de Lévi-Strauss (2006 [1968])Lévi-Strauss, C. (2006 [1968]). A origem dos modos à mesa: Mitológicas III. Cosac Naify.. O caminho do meio, a boa distância entre a inimizade avara e o excesso de relação, é o mote das boas relações na aldeia. A fala de Ügü apresentava essa ética, mas colocava também o desequilíbrio como um horizonte possível. Quando as relações nas aldeias se deterioram, rumar para a cidade é uma alternativa. Passemos a este ponto.

A CIDADE COMO CONTENÇÃO DA VIDA SOCIAL DA ALDEIA

Entre os meses de julho e agosto de 2014, participei do projeto de documentação da língua Karib do Alto Xingu (LKAX), no TIX, e conheci muitos indígenas alto-xinguanos que viviam (ou vivem ainda) nas aldeias. Ao fim do trabalho, retornei a Canarana, e muitos passaram a me telefonar quando visitavam a cidade. Um dos primeiros foi Edson Kalapalo, agente indígena de saúde (AIS). Pouco depois que deixei a aldeia, seu filho adoeceu. Diante da gravidade do caso, o menino e a família foram levados de avião até a Unidade Mista de Saúde de Canarana, vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Edson se dizia desapontado com os parentes de sua aldeia, algo que havia mencionado, em sigilo, quando estivemos juntos na aldeia karib Lagoa Pequena. Sua posição como agente indígena de saúde lhe atribuía certa notoriedade, gerando fofocas e querelas com indígenas que não partilhavam com ele verdades, opiniões, afetos e bens e que diziam, à boca pequena, que seu trabalho não contribuía para a comunidade. Embora no sistema regional do Alto Xingu todos sejam parentes em certa medida, o cargo de Edson evidenciava o fato de que, na prática, nem todos se portavam como tal.

Em Canarana, Edson me contou que sua legitimidade como funcionário da saúde era questionada por um grupo influente de sua aldeia, algo que também se passara com seu tio, que deixara a comunidade quase um ano antes. Edson e o tio eram ambos ‘misturados’: nenhum deles nasceu em Lagoa Pequena e suas gerações ascendentes eram compostas por pessoas de outros grupos karib do Alto Xingu. Os dois fizeram os cursos de formação em saúde antes de se mudarem para ali, indicados por outros grupos de parentes. Já na aldeia Lagoa Pequena, conseguiram o apoio das lideranças para reivindicar o cargo e a atuação como AIS na comunidade, mas Iritsapá, um indígena com outra rede de relações, travava com o tio, e agora com Edson, uma disputa pelo protagonismo na área da saúde. A formação de Iritsipá se deu nos primeiros cursos de AIS realizados no TIX, e sua rede de relações incluía (agora) o cacique Karané, cuja filha era casada com o tio de Edson.

Karané, o cacique de Lagoa Pequena, acreditava que o tio de Edson, seu genro, atuava como AIS apenas para ganhar o salário e comprar coisas que ele não partilhava nem mesmo com seus filhos e sua esposa, que eram os netos e a filha do cacique. À boca pequena, dizia que o tio de Edson tampouco lhe prestava trabalhos, não lhe ajudava na roça – que ele não era um bom genro, portanto. O tio gastava todo o salário consigo mesmo, diziam aqueles com quem rivalizava. Independentemente da veracidade de tal afirmação, sem o respaldo dos parentes ele não poderia atuar como AIS. Diante da frustração que a circunstância lhe gerava, o tio optou por ir viver com seus filhos e sua esposa em uma aldeia localizada no limite do território demarcado, com acesso rápido a Canarana por estrada de terra, onde viviam outros de seus parentes karib. Passados alguns meses, decidiu mudar-se outra vez, agora para a cidade de Canarana, onde conseguiu um emprego na construção da rodovia MT-020. A mudança, porém, não foi bem-sucedida: no fim do ano de 2013, uma carreta atingiu o tio de Edson enquanto ele atravessava a larga estrada que vinha construindo e através da qual, no final do dia, retornava à sua casa. Pouco depois de mudar-se para Canarana, faleceu em decorrência do atropelamento.

Quando o tio deixou a aldeia Lagoa Pequena, Edson ocupou o cargo de AIS e logo começou a sentir que herdara os problemas do tio. Quando ele solicitava ao cacique ou a Iritsapá, o outro Agente Indígena de Saúde, os barcos da comunidade para o transporte de pacientes mais graves, estes agiam como donos exclusivos das embarcações e da gasolina, e recusavam o pedido. O cacique, que antes fora um apoiador de Edson, aliava-se agora a Iritsapá nessas questões. Edson tampouco conseguia chegar a um acordo sobre quando devia trabalhar: sempre que faltava assistência a alguém, Iritsapá dizia que a culpa era sua; quando os dois funcionários da saúde se prontificavam ao mesmo tempo a competição ficava evidente e ele era hostilizado também

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 100).

Tal como seu tio que perdera a vida na cidade, Edson sofreu durante os duros cursos de AIS, se formou e assumiu o cargo, sempre por indicação das lideranças das aldeias onde viveu. Mas, agora, o mesmo grupo de parentes que o apoiava, e antes apoiara também a seu tio, negava-lhe a legitimidade do cargo, recusando o uso dos barcos e inviabilizando sua atuação como AIS. A situação não era fácil. O tio buscou afastar-se de suas más relações, mas, mesmo distante, acabou por falecer na cidade de Canarana. Agora, era Edson quem se frustrava com suas relações da aldeia, em uma situação semelhante à de seu tio.

Edson compartilhava palavras, afetos e opiniões com seus parentes mais próximos, e estes consideravam legítima sua posição de AIS. Ele tinha relações de parentesco com outras pessoas que viviam em Lagoa Pequena, mas estas não concordavam com a ideia de que o cargo de Edson era legítimo. O fato de não partilharem opiniões e verdades expunha que nem todos na aldeia eram tão parentes assim. Diziam-se parentes por serem todos filhos de indígenas do Alto Xingu. As redes de casamento na aldeia fortaleciam ainda mais seu parentesco. Viviam numa mesma aldeia circular, que os aproximava também espacialmente. O cacique era sogro do tio de Edson, inclusive. Entretanto, as relações entre as pessoas da aldeia, ou, em exemplos concretos, entre Edson e Iritsipá, entre o cacique e seu genro (o tio de Edson), não se guiavam pelo caminho do meio: como consequência, “nem eram tão parentes assim”.

Parecia para mim que Edson culpava estes parentes “pouco parentes”, que não partilhavam com ele as opiniões e que não o apoiavam na ocupação do cargo, pela morte do tio. Falávamos baixo sobre esse assunto, pois acusação é coisa séria, e tudo parecia ir nessa direção, mas quando eu concluía “você acha que foram eles?”, ele dizia preferir não comentar o caso – era possível, eles viviam próximos, mas uma acusação seria demasiado grave, imagino

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 103).

Na ocasião em que o filho de Edson adoecera, sua conclusão era de que alguém intencionava fazer-lhe mal. Em sua narrativa, Edson “criava um tecido conjuntivo entre a morte do tio (que era sua família próxima), os desentendimentos por conta do trabalho e a doença do seu filho” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., pp. 103-104). Seu ponto não era afirmar que tais acontecimentos perniciosos fossem todos frutos de uma só causa (um vírus adoecera seu filho, o atropelamento levara do tio à morte, os empecilhos no acionamento dos barcos para transportar pacientes geraram seus desentendimentos em Lagoa Pequena), mas o fato incontornável de que todos estes acontecimentos o prejudicavam e, por extensão, a sua família, seus parentes próximos.

Para os alto-xinguanos, todo infortúnio se deve, em última instância, a uma perturbação das relações entre parentes, sobretudo entre aqueles que vivem próximos uns dos outros. Para que as boas relações possam se estabelecer, balanceando a proximidade e a distância entre os parentes, é necessário esquecer os desentendimentos inevitáveis da vida em comunidade. Nesse sentido, sobre os Aweti alto-xinguanos, Vanzolini (2010Vanzolini, M. (2010). A flecha do ciúme: o parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 26 citado em Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 104) mostrou que “para viver junto é preciso, quanto a certas coisas, ter memória curta”. Mas, aguentar os conflitos não é uma tarefa fácil. Incapaz de esquecer as desavenças, de suportar as relações deterioradas, o tio de Edson optou por afastar-se, impondo o esquecimento no espaço e alheando-se de suas relações da aldeia.

A proximidade física adensa as relações de influência recíproca entre os corpos – o afastamento dissolve e escasseia essas mesmas relações. O tio de Edson deixou Lagoa Pequena em direção às bordas do território, mas logo decidiu expandir a distância, rumando, agora, para a cidade de Canarana. O afastamento, porém, não foi o bastante: ele desejava superar as desavenças da aldeia, esquecê-las, mas tudo indicava, segundo Edson, que as pessoas com quem tinha más relações não desejavam esquecer, pois o tio e sua família continuavam em sofrimento. Para Edson, o importante não era ‘o que’ levara seu tio à morte, mas o fato de que certas pessoas lhe desejavam o mal à época deste acontecimento, e que essas pessoas poderiam ter influenciado seu destino de maneira negativa. Tendo herdado o cargo de AIS e os desentendimentos do tio, Edson sentia-se apreensivo e anunciava o intuito de mudar-se para a cidade de Canarana.

Após afirmar o desejo de mudar-se para a cidade, contar dos desentendimentos em Lagoa Pequena, da morte do tio e da doença do filho pequeno – concatenando fatos que me remetiam à literatura que vê nos “conflitos internos” uma das principais causas do êxodo indígena em direção às cidades (Paula, 2017Paula, L. R. (2017). Afirção de direitos indígenas em contextos ampliados de interação social: referências bibliográficas e alguns problemas de investigação. ARACÊ – Direitos Humanos em Revista, 4(5), 295-322., p. 298; Peluso, 2015Peluso, D. M. (2015). Circulating between rural and urban communities: multisited dwellings in Amazonian frontiers. The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, 20(1), 57-79. https://doi.org/10.1111/jlca.12134
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, p. 63) –, Edson anunciou em conclusão: “quero abrir uma fazendinha”. De súbito, Edson não falava mais em se mudar para Canarana. Fazendinha, rancho ou chácara é como os indígenas se referem aos aldeamentos compostos por uma única casa – consequentemente, por um só homem dono de casa, suas esposas e filhos. Surge como uma espécie de acampamento familiar, aberto no território indígena por um homem que opta por afastar-se com sua família da aldeia onde viviam em comunidade. À medida que a família queima e planta suas roças, vai se tornando independente da comunidade de origem e fixando, pouco a pouco, a fazendinha como sua morada.

A narrativa de Edson contava, em continuidade, que ele desejava mudar-se para a cidade de Canarana e “abrir uma fazendinha” para morar ali sozinho, isto é, com suas esposas e seus filhos.

O tecido conjuntivo de sua fala criava com elementos extremamente díspares a direção de sua ação. A doença do filho, a morte do tio e os desentendimentos na aldeia Lagoa Pequena implicavam que algumas pessoas agiam de maneira contrária a ele. Dada a situação perigosa, independente “do que” ele fosse fazer, o que estava evidente era “como” ele pretendia direcionar a sua ação: fosse abrir uma fazendinha para viver só com os seus, ou rumar para a cidade, o que Edson queria é se distanciar dos excessos do parentesco

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 106).

A conversa com Edson parecia sugerir que, ainda que eu tivesse amigos indígenas que estavam na cidade com seus irmãos, filhos, esposas etc., Canarana não era um lugar de parentes, mas um lugar para se conter “as relações tipicamente estabelecidas na aldeia, as relações de parentesco. Mudar-se para Canarana implica restringir, em alguma medida, os processos de parentesco em curso na aldeia e engajar-se em processos ‘outros’ com pessoas que não seus parentes próximos” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 109).

Os indígenas, em Canarana, não estão sozinhos, mas nem por isso podemos dizer que estão entre seus parentes – uma análise demasiadamente simétrica e inversa nos afasta também do que se passa. Vivendo em casas que reúnem fragmentos de suas parentelas, a cidade os coloca em contato também com vizinhos, amigos, colegas de trabalho, indígenas e não indígenas. Há uma contenção das relações sociais ao modo da aldeia e uma extensão das relações ao modo da cidade. Ao entreter relações distintas daquelas da aldeia, o que temos é uma torção daquilo que o afastamento induz: o abafamento de relações coloca também o estabelecimento de relações outras – num mundo em que, como veremos agora, o engajamento em outros modos de existência pode levar a transformações corporais.

TRANSFORMAÇÕES: LUGARES, RELAÇÕES E PERSPECTIVAS

A composição entre a experiência de espaços ‘outros’ e o estabelecimento de novas relações como fórmula da transformação entre perspectivas é um tema importante na etnologia ameríndia. O conceito de perspectiva, cabe frisar, provém das formulações de Lima (1996)Lima, T. S. (1996). O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, 2(2), 21-47. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002
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e Viveiros de Castro (1996)Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerÍndio. Mana, 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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: perspectivas não são visões de um só mundo autoidêntico, mas condições para a posição de sujeito em mundos que se definem pela multiplicidade afetiva. Nos mundos ameríndios, os corpos diferenciam os sujeitos e recortam as dimensões do mundo que se colocam para sua experiência. Corpos, aqui, não são “diferenças de fisiologia . . . ., mas . . . . afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário” (Viveiros de Castro, 1996Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerÍndio. Mana, 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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, p. 380).

A tendência de certos afetos intensivamente humanos – uma moralidade, uma relacionalidade e, por extensão, uma humanidade5 5 Sobre a coextensividade entre o parentesco e a humanidade, ver Viveiros de Castro (2002d) e Coelho de Souza (2004). bastante específicas – se estabilizarem no espaço das aldeias foi, muitas vezes, desenvolvida na etnologia ameríndia em oposição ao mato, espaço onde habitam os animais e espíritos, e que tende, portanto, a estabilizar tais perspectivas ‘outras’. Nas aldeias, em condições normais, os humanos veem uns aos outros como humanos; no mato, distante dos parentes, o corpo se torna vulnerável, mais suscetível às investidas dos não humanos (Viveiros de Castro, 1996Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerÍndio. Mana, 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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). Esses espaços estão também associados a uma relacionalidade específica, e é nessa composição entre o espaço e as relações que a perspectiva se estabiliza. Nessas ocasiões, o encontro entre uma pessoa e um animal ou espírito (figuras importantes da alteridade) pode sempre levar a um engano: o indígena pode se confundir e ver o bicho ou o espírito da forma como este vê a si mesmo – como humano também.

Essa confusão tem implicações ontológicas importantes: engajar-se na perspectiva do outro já é uma forma de nele se transformar. O engajamento é, muitas vezes, descrito como o ato de seguir o ‘outro’ até a aldeia dele, casar-se por lá, com um dos parentes do ‘outro’, que serão agora parentes seus também. A transformação do corpo como afecção e capacidade se produz pelo espaço e pelo engajamento. Assim, são recorrentes na literatura etnológica e na memória dos indígenas do TIX casos sobre a perigosa transformação afetiva à qual estão suscetíveis aqueles que se afastam da aldeia e adentram o mato, sobretudo quando o fazem sozinhos (cf. O. Villas Boas & C. Villas Boas, 1970Villas Boas, O., & Villas Boas, C. (1970). Xingu: os Índios, seus mitos. Kuarup., p. 210; Vilaça, 2005Vilaça, A. (2005). Chronically unstable bodies: reflections on Amazonian corporalities. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 11(3), 445-464. https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2005.00245.x
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).

Eu mesma pude acompanhar, no ano de 2014, no TIX, a aflição de meus anfitriões Nahukwá quando ouviram no rádio que Yari Kuikuro saíra para caçar em sua aldeia e não voltara. “Diziam que ele se perdeu, que dentro do mato, sem saber encontrar o caminho de volta, Yari ficou louco e seguiu o macaco, que o levou para viver consigo. Yari tinha virado macaco e não voltava mais” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 61). Longe da aldeia e dos parentes, ele perdia a referência sobre sua própria humanidade. O mato, a floresta, tende a estabilizar afetos ‘outros’ e favorece a confusão de ver animais, espíritos e outros seres não humanos que habitam a floresta, como humanos. Ir viver com o macaco, como o macaco, implicava uma transformação de Yari, que, provavelmente, não voltaria mais.

Essa (socio)lógica que articula espaços, corpos e perspectivas se demonstra também nas experiências em Canarana (cf. Horta, 2021Horta, A. (2021). The other's tongue: place, perspective, and the desire to speak Portuguese among the people of the Xingu Indigenous Territory. Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, 26(2), 256-275. https://doi.org/10.1111/jlca.12544
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). Como vimos, a cidade é um espaço contrastado pelos indígenas do TIX às aldeias, assim como a literatura registra que o mato (a floresta) o é. Terra dos brancos (os não indígenas), Canarana é marcada por uma afetividade ‘outra’: ali, os modos de vestir, de ornar e de portar o corpo, de comer, banhar, dormir, falar, são distintos dos modos das aldeias. Cruzar perspectivas é sempre perigoso, justamente pela multiplicidade intensiva e o potencial de transformação que implica. Mesmo os xamãs, grandes especialistas em administrar o cruzamento de perspectivas, estão sujeitos a esses perigos, uma vez que se transformar em ‘outro’ pode implicar a morte da perspectiva do grupo de origem. O que está em jogo, como colocou Coelho de Souza (2017 p. 207)Coelho de Souza, M. S. (2017). Uma irritante duplicidade: breve nota sobre a contramestiçagem e os Kisêdjê. R@U - Revista de Antropologia da UFSCar, 9(2), 202-212. https://doi.org/10.52426/rau.v9i2.212
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, é, de fato, “o risco de morte”.

É justamente na relação com a alteridade que se encontram também os mais valorizados conhecimentos, capazes de magnificar quem tem acesso a eles, de expandir seu poder de influência no cosmos e, consequentemente, seu prestígio entre os humanos. Não só a fuga das relações desequilibradas da aldeia impulsiona os indígenas até a cidade: as potências de Canarana, das relações ao modo citadino, são muitas. Aprender a falar e entender o português, a manejar papéis e documentos, a comer comidas temperadas, a racionar os alimentos, a recusar as trocas em algumas ocasiões (sobretudo no trato com os não indígenas), adaptando-se ao costume dos brancos, desperta desejos, pois pode trazer novas posições sociais, trazer prestígio, coisas, expandir o corpo por meio do deslocamento da perspectiva e do engajamento em relações ‘outras’. Agir de acordo com a perspectiva estabilizada pela cidade, isto é, viver intensamente a transformação de seus afetos aldeados, permite, ainda que potencialmente, a agregação de potências por meio da experiência da alteridade. Ao mesmo tempo, transformar-se é sempre um empreendimento arriscado. No espaço da cidade, que estabiliza a perspectiva não indígena, as perspectivas aldeadas se tornam mais vulneráveis, mais suscetíveis aos perigos da transformação descontrolada.

Nada disso não implica, é claro, que os espaços constrinjam os corpos, isto é, os modos de existência, os afetos e as perspectivas que os habitam. O que está em jogo para os indígenas é o intuito de lograr um engajamento produtivo com o espaço, a fim de minimizar perigos, amplificar potências e garantir a estabilidade da perspectiva. Assim como em um encontro no mato (onde a tendência é a estabilização da perspectiva não humana) pode se impor a perspectiva de um homem ou de um porco (cf. Lima, 1996Lima, T. S. (1996). O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, 2(2), 21-47. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002
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), de um homem ou de um homem-onça (cf. Kohn, 2013Kohn, E. (2013). How forests think: toward an Anthropology beyond the human. University of California Press.), em um encontro na cidade, a tendência à estabilização da perspectiva citadina não garante que é sempre essa a perspectiva imposta para as pessoas em relação.

Uma vez que a cidade de Canarana, como mostrei nas seções anteriores, é um espaço contraposto à aldeia, como a diferença – no sentido forte da palavra – entre estes espaços se manifesta no corpo (os afetos, os modos de viver e as relações, sendo estas últimas o foco deste artigo) daqueles que nela se engajam? Como os indígenas do TIX manejam os perigos envolvidos na possibilidade da transformação de perspectiva que a experiência na cidade de Canarana coloca? Passo agora ao tema dos encontros entre indígenas na cidade de Canarana e das relações tidas por estas pessoas como próprias à cidade, apresentando alguns fatores que contribuem para a estabilização (ou não) de uma perspectiva ‘outra’ à das aldeias: a perspectiva da cidade, dos afetos e capacidades não indígenas. Para os indígenas do TIX, a cidade não é uma aldeia, e uma das consequências disso é que, como veremos, as relações estabelecidas nesses espaços podem – e muitas vezes devem – passar por uma transformação.

PRIMEIRO EQUÍVOCO: O VOCATIVO AMIGO

No ano de 2014, recém-chegada a Canarana, passei a frequentar as sedes da FUNAI e das associações indígenas, lugares onde conheci muitos indígenas em trânsito. Boa parte era gente que ocupava algum cargo6 6 Os indígenas do TIX usam a palavra ‘cargo’ como referência aos postos de trabalho remunerado nas instituições voltadas para o atendimento indígena. na aldeia, que estava ali para sacar o salário, solicitar a emissão de documentos pessoais ou participar de reuniões com a Secretaria de Educação (SEDUC), o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), a FUNAI ou as associações indígenas. Outros eram pessoas indicadas pela comunidade para participar de cursos e oficinas promovidas por essas e outras instituições. De qualquer forma, essas eram pessoas que estavam na cidade por um curto período, ativamente engajadas em atividades organizadas ao modo não indígena. Nessas atividades, com horários rígidos de início e fim, falas em língua portuguesa (ou, no mínimo, traduzidas para o português), horários pré-determinados para lanche e refeições (quase sempre com biscoitos e outras comidas industrializadas), eles sentavam-se em cadeiras, vestidos com roupas não indígenas. Durante esses dias, além de debaterem e deliberarem sobre as questões em pauta, treinavam suas capacidades de se portar como os não indígenas, adquiriam alguns bens da cidade, expandiam suas relações para além do universo da aldeia. Em nossas conversas, eu lhes perguntava se tinham parentes na cidade e se, em seu tempo livre, os visitariam. À primeira pergunta, conforme eu esperava, a resposta era quase sempre afirmativa; à segunda, porém, para meu assombro, quase sempre respondiam: “Eu não visito, não”.

Mesmo quando um indígena do TIX que vive em Canarana tem parentes vivendo em outras casas na cidade, a relação com estes parentes não é, nunca, tão atual e intensiva quanto aquela que se dá entre parentes que vivem juntos. Em uma casa em Canarana, tudo é compartilhado: as pessoas falam em língua indígena, compartilham as narrativas, os pontos de vista e as verdades. Partilham também as refeições – ainda que nem sempre comam juntas, comem a mesma comida, preparada pela mesma panela que repousa sobre o fogão. Desfrutam, muitas vezes também dos pertences uns dos outros, por meio de empréstimos e concessões. Dentro de casa, as relações se dão pela ética do parentesco, não sendo, portanto, indiferenciadas, mas a copresença continuada dos corpos contribui para que as pessoas que moram juntas se tornem extensões umas das outras. “A casa de um indígena é, portanto, uma ilha de parentesco no universo citadino de Canarana, como se ali as relações ao modo aldeão pudessem se colocar” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 67). Quando os indígenas vindos do TIX me diziam que não visitariam seus parentes, quando Edson me dizia que queria se mudar para a cidade ou abrir uma fazendinha, essas eram as relações que eles buscavam evitar: relações ao modo aldeão.

No ano de 2017, tive uma conversa paradigmática com Kahala, uma mulher yawalapiti que já vivia na cidade de Canarana há mais de dez anos. Caminhávamos eu, Sarah Kuikuro e Kahala e ela contava que, em Canarana, não entrava na casa de outros indígenas, mesmo que fossem amigos. “Eu nem ando com índio aqui não, só Sarah que é minha amiga. E mesmo assim, ela não vai na minha casa, e eu não vou na casa dela. . . . Aqui é de branco. Eu penso igual branco”, completava. A colocação de Kahala deixava claro que não só o espaço da cidade era ‘outro’, como também o seu modo de agir ali, de pensar, como ela mesma fraseou, não era o modo da aldeia. Recusar-se a andar com indígenas, a recebê-los em sua casa, a visitá-los, era um modo de Kahala afirmar sua perspectiva citadina e não ser confundida com alguém que está na cidade, mas que ‘pensa’7 7 Em publicação recente, aponto como a opção de Kahala pela palavra ‘pensar’ pode ser lida também como a operação de uma tradução de perspectiva: “se o que define a existência na aldeia são modos do corpo (seu modo de estar, de comer, de festar, de dormir), o que definiria, segundo Kahala, a existência na cidade, seria um modo de pensar” (Horta & Jacques, 2020, p. 13). , que age, como os indígenas nas aldeias.

Perguntei a Kahala se havia parentes seus morando em Canarana. Ela respondeu que sim e enumerou diversas pessoas que eu conhecia. Ainda assim, Kahala não atualizava suas relações em Canarana com as pessoas que ela enumerava: embora fossem parentes, dizia Kahala, suas relações não eram próximas, e eles não se visitavam mutuamente, tampouco combinavam encontros em outros pontos da cidade:

Quando eu encontro na rua, eu só falo ‘oi, amigo!’ e pronto. Kahala chamava seus parentes que não viviam (nem estavam hospedados) em sua casa de amigos ao encontrá-los nas ruas de Canarana, como que traduzindo a relação com aqueles parentes para a perspectiva citadina que a interação ali demandava

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 118).

Se a recusa em visitar os parentes pode ser vista como um afastamento dentro da moral imanente da boa distância, a opção por chamá-los de amigos era uma forma de enunciar a torção, isto é, a transformação, da relação pautada pela ética do parentesco. Kahala recusava as relações mesmas que balizam o caminho do meio como ideal relacional das aldeias, reivindicando a perspectiva branca e instaurando, no encontro com seu parente hipotético, um ‘outro’ modo de relação.

Amizade é termo muito usado para fazer referência a relações próximas em Canarana, quer envolvam indígenas, não indígenas ou ambos. Nas aldeias do Alto Xingu, por sua vez, o que a antropologia convencionou chamar de amigos são pessoas que se definem à margem do dualismo consanguíneos versus afins, parentes versus estrangeiros. Como escreveu Emmanuel de Vienne (2012)Vienne, E. (2012). “Make yourself uncomfortable”. Joking relationships as predictable uncertainty among the Trumai of Central Brazil. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 2(2), 163-187. https://doi.org/10.14318/hau2.2.010
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sobre os Trumai, povo do TIX que ocupa as bordas do sistema alto-xinguano, amigos são ‘outros’ com quem não se tem relações hostis. As amizades são relações marcadas pela informalidade, liberdade e ausência de vergonha (cf. Basso, 1973Basso, E. B. (1973). The Kalapalo indians of Central Brazil. Holt, Rinehart and Winston.; Coelho de Souza, 1995Coelho de Souza, M. S. (1995). Da complexidade do elementar: para uma reconsideração do parentesco xinguano. In E. B. Viveiros de Castro (Org.), Antropologia do parentesco: estudos amerÍndios (pp. 121-206). Editora UFRJ.; Guerreiro, 2010Guerreiro, A. (2010). Assimetria e coletivização: notas sobre chefes e caraíbas na política Kalapalo (Alto Xingu, MT). In E. C. Lima & M. C. Souza (Orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transforção no mundo indígena (pp. 119-149). Athalaia gráfica e Editora. citado em Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro].). Em outras regiões etnográficas, essas categorias seriam interessantes também para pensar o lugar da relação indígena com os amigos (e antropólogos) não indígenas (Fausto, 2012Fausto, C. (2012). The friend, the enemy, and the anthropologist: hostility and hospitality among the Parakanã (Amazonia, Brazil). Journal of the Royal Anthropological Institute, 18(s1), 196-209. https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2012.01772.x
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) e o compadrio entre índios e patrões brancos (Hugh-Jones, 1992Hugh-Jones, S. (1992). Yesterday’s luxuries, tomorrow’s necessities: business and barter in Northwest Amazonia. In C. Humphrey & S. Hugh-Jones (Orgs.), Barter, exchange and value: an anthropological approach (pp. 42-74). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511607677.003
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; Gow, 2001Gow, P. (2001). An Amazonian myth and its history (Oxford Studies in Social and Cultural Anthropology). Oxford University Press. citado em Kelly, 2005Kelly, J. A. (2005). Notas para uma teoria do “virar branco”. Mana, 11(1), 201-234. https://doi.org/10.1590/S0104-93132005000100007
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).

Não é preciso muito esforço para entrever nessa amizade que Kahala apresentava em seu encontro hipotético um tipo de relação que escapa ao dualismo consanguíneos-afins, mas isso não deve ofuscar o fato, este mais evidente, de que Kahala afirmava que suas relações com os indígenas na cidade eram ‘outras’ em relação às das aldeias e que nada tinham de livres ou informais. A cidade ‘é de branco’ e ela ‘pensa (age e se relaciona) igual branco’. Sua ênfase grande na recusa da possibilidade de travar relações próximas com outros indígenas e na distinção entre os espaços e as relações me faz apostar que, o uso da palavra amigos, mais que replicar o efeito das amizades nas aldeias, tinha um efeito de conversão de perspectiva.

Kahala deixava bastante claro que a relação de amizade com aquele homem só era possível desde a perspectiva da cidade e que, quando ela dizia que o chamaria de amigo, ela se referia ao modo como os brancos experienciam a proximidade entre as pessoas. O conteúdo dessas relações ao modo da cidade que Kahala aqui chamava de amigo é aberto e altamente variável – experimental, eu diria. Sem se aventurar a determinar positivamente essas relações citadinas, Kahala frisava o contraste, como que as definindo pela negativa. Nesse mesmo sentido, o uso dos termos de parentesco como vocativos enfatiza, pragmaticamente, os vínculos de parentesco ao modo aldeão; ao passo que o uso destes vocativos genéricos, como ‘amigo’, em português, replicava o afastamento entre eles, agora sob a perspectiva da cidade, enfatizando, assim, uma ‘outra’ modalidade relacional. O parente na aldeia era um amigo na cidade. Ao instaurar essa relação, Kahala efetuava uma transformação que recusava os perigos implicados no possível desequilíbrio das relações de parentesco, fosse pela proximidade, fosse pelo distanciamento excessivo.

O caso de Edson apresentado na segunda seção mostra que “os indígenas saem de suas aldeias para experimentar uma ‘outra’ perspectiva, para produzir diferença em seus corpos, não para perpetuar ou estender suas relações da aldeia até a cidade” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 119). Não há como se engajar na cidade se nesse espaço o indígena se aplica a relacionar-se com todos os parentes pelo caminho do meio que a ética do parentesco faz trilhar. Kahala morava na cidade de Canarana há mais de uma década e mostrava-se perfeitamente ciente de como deveria modular suas relações, sua perspectiva, naquele lugar: uma vez que ela estava na cidade, portar-se como se estivesse na aldeia seria imprudente e perigoso.

O grande perigo, Kahala me contara no início de nossa conversa. “As pessoas falam demais”. Segundo ela, caso a vissem andando na rua acompanhada de um homem (indígena ou não indígena), os indígenas do TIX se apressariam em dizer que ela tinha relações sexuais com ele. Kahala dizia que a fofoca é uma marca das relações entre indígenas no TIX como um todo, não só entre os alto-xinguanos, e que pode ter efeitos altamente danosos para suas vítimas. Como pudemos acompanhar nos conflitos em Lagoa Pequena e os infestos episódios que se desenrolaram – o atropelamento do tio de Edson que levou à sua morte –, desentendimentos são potencialmente perigosos, podendo gerar ataques feiticeiros, intrigas, fofocas e animosidades.

O que está em questão na afirmação de Kahala é o intuito de transformação destas relações, e não apenas uma tradução direta das línguas faladas nas aldeias para o português que guiava nossas conversas ali. A relação que Kahala designava por amigo não coincide com a amizade formal no Alto Xingu, nem com a amizade em espaços não indígenas, afinal ela me dizia de pessoas que nas aldeias seriam parentes. A dimensão equívoca deste homônimo e o caráter aberto do conceito de ‘amigo’ na cidade evidenciam o caráter desafiador da experiência indígena em Canarana, que demanda aos indígenas o engajamento criativo na produção de corpos, de práticas filosóficas, de imaginação.

SEGUNDO EQUÍVOCO: O VOCATIVO PRIMO

Dois anos antes, em 2015, me hospedei em uma casa que me permitia convidar indígenas para conversarmos. Logo percebi que lhes satisfazia ser recebidos em minha casa. Era assim que os não indígenas marcavam a proximidade entre as pessoas e que eu sublinhava também o meu intuito positivo de interação – recebê-los era uma atitude de aproximação social típica da cidade. Aproveitei-me da situação para convidar homens e mulheres com quem a conversa tendia a não fluir bem em outros espaços. A primeira pessoa que convidei foi Yapanu Wauja, que foi à minha casa ao final de uma tarde calorenta, junto de seu marido. Ela tinha uma bolsa de tecido com grafismos do povo kawaiweté pendurada em seu ombro. Ao reconhecê-los, elogiei a bolsa de Yapanu, a qual me contou tê-la comprado pelo valor de 30 reais de Reataryp Kawaiwete, esposa de Kanawa, à época, funcionário da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX). Segundo contou-me Yapanu, Reataryp batera em sua casa propondo um moitará. Essa é uma palavra de origem tupi que se refere aos rituais de trocas alto-xinguanos. Cada língua alto-xinguana tem uma palavra específica para se referir ao ritual, mas moitará firmou-se como palavra por meio da qual indígenas de todo TIX se referem, em língua portuguesa, às diferentes trocas de bens entre pessoas8 8 Trocas’ com estabelecimentos (o mercado, a loja) não são chamadas de moitará. . Quando perguntei se Yapanu também ia à casa de outras indígenas e propunha moitarás, sua resposta foi taxativa: “Nunca. É difícil eu entrar na casa dos outros”. Meu questionamento não era muito claro e era difícil saber quem eram os ‘outros’ a quem Yapanu se referia. Perguntei, então, se ela visitava os ‘parentes’.

Retrospectivamente, noto que o termo que utilizei, ‘parentes’, equivocava ainda mais nossa comunicação. Em português, o termo ‘parente’ é muito usado pelos indígenas no Brasil como um vocativo para chamar pessoas indígenas de outras etnias, aquelas a quem não é possível definir por meio de termos de parentesco. Não existe um equivalente nas línguas indígenas do TIX para este termo, que é acionado em “contextos ampliados de interação indígena” (a expressão é de Paula, 2017Paula, L. R. (2017). Afirção de direitos indígenas em contextos ampliados de interação social: referências bibliográficas e alguns problemas de investigação. ARACÊ – Direitos Humanos em Revista, 4(5), 295-322.), aqueles que escapam ao universo relacional das aldeias e que podem, portanto, vir a instaurar modos relacionais distintos ao modo aldeão. Como pontua Vilaça (2018, p. 195)Vilaça, A. (2018). Paletó e eu. Todavia., em seu livro de memórias,

No contexto dos encontros envolvendo diferentes etnias . . . . todos os indígenas são chamados ‘parentes’, enquanto os brancos são chamados pelo nome e referidos como não indígenas . . . . O significado é bem diferente do português, em que parente geralmente se refere a alguém com quem se tem relações genealógicas, aquelas que chamamos relações de sangue.

Minha pergunta era imprecisa e não resolvia a questão de saber a quem Yapanu se referia. Ademais, a palavra ‘parentes’, tanto para o leitor antropólogo, quanto para o leitor indígena, se conecta rapidamente aos contornos particulares do parentesco na América indígena. Nos últimos 20 anos, a abordagem das categorias básicas da socialidade indígena tem passado, invariavelmente, pelo conceito de parentesco como “teoria da relacionalidade generalizada”, ancorada nas múltiplas descrições da morfologia social ameríndia que demonstram a abertura do contraste consanguíneo/afim pela superposição do coeficiente de proximidade/distância (Viveiros de Castro, 2002bViveiros de Castro, E. (2002b). Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco. In Autor, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (pp. 401-456). Cosac & Naify.; Soares-Pinto, 2018Soares-Pinto, N. (2018). Uma incontornável diferença: parentesco nas terras baixas da América do Sul (1996-2016). Revista Brasileira de Inforção Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, (87), 105-132.). O mesmo quanto aos estudos de parentesco no TIX. Ainda assim, no contexto da cidade, muitas vezes presenciei o esforço por não tomar em continuidade as relações estabelecidas ali e na aldeia, seguindo a conversão perspectiva proposta por meus interlocutores.

Retomando a conversa com Yapanu, perguntei-lhe se visitava ‘parentes’ na cidade. Sua resposta se aprofundava no desenho de quem são esses ‘outros’ a quem ela não visitava, e de quem seriam aqueles que ela, sim, o faria:

Mesmo da minha família eu não vou na casa deles. Sei lá, é o meu jeito. Mas eu gosto de conversar com todo mundo. Mas ir na casa dos outros é difícil para mim. Eu não quero entrar na casa dos outros, invadir, eu fico com vergonha. . . . A família de verdade eu vou. Na casa das minhas irmãs eu vou. Mas primo, eu não vou, não, de jeito nenhum. Na casa dos meus primos eu não entro, não. Eles tentam me convidar, mas eu não vou. Eu posso estar recebendo alguém que vem fazer visita. Mas eu mesma, eu não vou

(citada em Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 128).

É interessante perceber que Yapanu, ali, na mesa da varanda de minha casa em Canarana, utilizava três expressões para se referir às suas relações: ‘família’ (depois especificada como ‘primos’), ‘família de verdade’ (depois especificada como ‘irmãs’) e ‘amigos’. Falávamos de ‘parentes’, essa palavra em português que não possui um equivalente transversal às muitas línguas indígenas que conecta, e as distinções que Yapanu me propunha pareciam operar um gradiente de proximidade/distância que remete ao tema da boa distância tal qual se apresenta nas teorizações da literatura sobre o parentesco no Alto Xingu. Estariam em jogo as mesmas questões?

A moça wauja dizia ter vergonha de entrar na casa da família, e especificou, dos ‘primos’, evidenciando que aquilo que ela chamava de família não coincidia exatamente com aquilo que os não indígenas definem por esse nome. Nas conversas comigo, os indígenas do TIX às vezes chamavam de ‘primos’ os filhos e filhas dos seus tios e tias maternos e paternos, tal como o fazem os não indígenas, ainda que todos os povos que vivem no TIX marquem, em língua nativa, a distinção entre primos cruzados e paralelos (Guerreiro, 2012Guerreiro, A. (2012). Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia kalapalo e seu ritual mortuário [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].; Coelho de Souza, 2002Coelho de Souza, M. S. (2002). O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Já e seus antropólogos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro].; Menget, 2001Menget, P. (2001 [1977]). Em nome dos outros. Classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Museu Nacional de Etnologia Assírio e Alvim. [1977]; Viveiros de Castro, 1977Viveiros de Castro, E. (1977). Indivíduo e sociedade no Alto Xingu: os Yawalapití [Tese de mestrado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro].), estes últimos às vezes chamados em português de irmãos. Mas, a extensão da palavra ‘primo’ é potencialmente muito maior, sendo muito usada (também em português) para se referir a relações de parentesco incertas ou distantes entre indígenas da mesma geração. Ademais, o uso desse vocativo ocorria em contextos em que as pessoas podiam me explicar, se demandadas, a relação genealógica existente entre elas. Usado em português pelos indígenas do TIX, ‘primo’ é um vocativo que marca a escolha de não se chamar uma pessoa pelo termo de parentesco, destacando a proximidade entre eles em relação àqueles que não são ‘primos’; mas também a distância tanto em relação àqueles que se chamam mutuamente pelo termo de parentesco quanto em relação aos brancos, que nunca são chamados assim.

O que Yapanu chamou de primo, portanto, não coincide com a soma entre primos paralelos e cruzados do conceito ‘tradutor’ da antropologia, mas a uma relação entre indígenas triangulada pela perspectiva não indígena, que desestabiliza a posição que estas pessoas assumiriam nas aldeias. Há aqui um paralelo interessante entre o uso que os indígenas do TIX fazem dos vocativos ‘primo’ e ‘parente’ na cidade, uma vez que ambos destoam do seu uso corrente entre os não indígenas da cidade de Canarana, deslocando as posições ocupadas pelos indígenas através da inserção da perspectiva não indígena, que triangula a relação. Se da perspectiva aldeada, daqueles que vivem juntos, chamar de primo ou parente implica uma relação de afastamento entre duas pessoas, da perspectiva citadina, chamar de primo ou parente é uma relação de aproximação entre essas mesmas duas pessoas, em contraste, agora, com os brancos. Por um lado, ambos os termos são uma marca de que as pessoas indígenas em questão não são família, pois não se chamam por termos de parentesco; por outro, da proximidade que travam em oposição aos brancos.

O que afastava Yapanu dos ‘outros’, dos ‘primos’, era a vergonha, um sentimento que, no Alto Xingu, é também um valor e se associa à noção de respeito. Para os alto-xinguanos, vergonha e respeito constituem os comportamentos ideais nas relações com os afins, uma espécie de amplificação dos comportamentos generosos, comedidos e pacíficos que idealmente guiam as relações entre consanguíneos (Basso, 1973Basso, E. B. (1973). The Kalapalo indians of Central Brazil. Holt, Rinehart and Winston.). Esse comportamento tem que ver com o perigo instaurado por essas relações: “a afinidade, aparece ao mesmo tempo como necessária e perigosa, como condição e limite do socius” (Viveiros de Castro, 2002cViveiros de Castro, E. (2002c). O problema da afinidade na Amazônia. In Autor, A inconstância da alma selvagem (pp. 87-180). Cosac & Naify., p. 103). O sentimento de vergonha demonstrava que, para Yapanu, visitar a casa de primos, essa família com quem ela não travava relações muito intensas, era algo perigoso. E que ela trilharia o caminho do meio, buscaria a boa distância, a distância segura, dos parentes hipotéticos sobre quem conversávamos. Mesmo que eles a convidassem às suas casas, marcando que ela seria bem recebida, Yapanu recusaria. Se uma dessas pessoas a visitasse, adentrasse sua ‘ilha de parentesco próximo’, ela seria generosa e respeitosa, recebendo a visita inesperada, pois não o fazer seria também perigoso – dessa vez, não por desencaixe da perspectiva, mas por afronta direta à pessoa –, e ela não se colocaria nessa posição. Era preciso evitar os perigos.

Havia aqui dois movimentos de afastamento: por um lado, Yapanu, como Kahala, recusava visitar estes parentes. Ainda que eu fosse inespecífica em minha pergunta (esse homônimo equívoco ‘parente’ protagonizando a minha fala), a resposta era sempre ‘não’, ou pelo menos sempre partia do não, para depois, na conversa, especificar exceções. Parentes e primos não são os brancos, nem a ‘família de verdade’, e travar relações domésticas (numa casa tudo se compartilha) com esses indígenas seria totalmente inadequado. Essa escolha indicava a procura de Yapanu e Kahala pela distância adequada de tais pessoas indígenas, tal qual Edson Kalapalo e seu desejo de mudar-se para a cidade ou abrir uma fazendinha. Mas, como venho insistindo, fechar-se a algumas relações é também abrir-se a outras, sobretudo quando este movimento leva o indígena a uma vida na cidade. Assim, podemos entrever um segundo afastamento de Yapanu: um afastamento das relações ao modo aldeão, inscrito na opção por chamar certos parentes de ‘primos’, de instaurar uma transformação que homogeneizava esses parentes desde a perspectiva citadina (atos propriamente transformativos). Tal como o vocativo ‘parente’, ‘primo’ não é uma tradução direta de uma categoria indígena, mas uma descrição de uma relação entre duas pessoas indígenas, que coloca em jogo uma perspectiva ‘outra’, no caso, a da cidade. Nesse segundo movimento de afastamento, ela firmava sua aposta na experiência da cidade como uma possibilidade de constituição de relações ‘outras’.

A experiência da aldeia (de cada aldeia) é contrastada com a da cidade pelos diferentes indígenas do TIX, e o modo relacional que se estabelece em cada um destes espaços também é dito divergir. Yapanu chamava certos parentes de primos, Kahala chamava certos parentes de amigos – termos usados pelos não indígenas em Canarana, condizentes com a experiência citadina. Como venho argumentando, o que há aqui não é apenas uma tradução direta, mas o uso de homônimos equívocos, que implicam relações diferentes das dos brancos na cidade e dos indígenas nas aldeias. Uma diferença forte, com potencial transformador, implicações corporais, potências e perigos. A diferença perspectiva envolvida na presença indígena na cidade traz consigo a possibilidade da modulação diferencial das relacionalidades.

DIFERENÇAS DIFERENTES: UMA BOLSA KAWAIWETE EM UMA MULHER WAUJA EM CANARANA

Retomemos a conversa com Yapanu Wauja e meu comentário sobre a bela bolsa que ela levava à tiracolo. Yapanu contou-me que Reataryp Kawaiwete fora até sua casa para propor um moitará. Em Canarana, o moitará é considerado uma atividade feminina. Em 2014, a Associação Yamurikumã de Mulheres Xinguanas, composta por mulheres indígenas de todas as regiões do TIX, definiu que suas reuniões (realizadas nas aldeias ou nas cidades) seriam encerradas com a realização de um moitará entre as participantes. Nos moitarás da Associação que acompanhei em Canarana, as mulheres kawaiwete ofertaram, basicamente, colares e anéis produzidos com o coco da palmeira tucum, além de bolsas e tipoias tecidas com linhas de algodão; as mulheres do Alto Xingu retribuíram com produtos de higiene e beleza comprados no mercado e dinheiro em espécie. Essa não é uma característica exclusiva da cidade, e, nas aldeias do TIX, estes objetos não indígenas circulam largamente e são muito apreciados. Entre os Kalapalo, Novo (2018, p. 178)Novo, M. P. (2018). "Esse é o meu patikula”: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha [Tese de doutorado, Universidade Federal do São Carlos]. destaca que esses objetos “tornaram-se um índice importante de prestígio, . . . . e de relações bem-sucedidas com os brancos . . . . , marcando a diferença entre quem tem acesso ao dinheiro e às cidades e aqueles que não têm as mesmas condições”. A potência dos objetos de estender as relações, já marcada também em outros contextos ameríndios (cf. Gordon, 2006Gordon, C. (2006). Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os Xikrin. UNESP/ISA/NuTI.) e além (cf. Strathern, 2006Strathern, M. (2006 [1988]). O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Editora da Unicamp. [1988]), é importante para nos aprofundarmos nesses encontros.

O relato de Yapanu intrigava-me, justamente, por contar que Reataryp, a esposa de Kanawa, estivera em sua casa. Reataryp Kawaiwete passava algumas tardes na ATIX, e nessas ocasiões conversávamos bastante. Fui à casa dela algumas vezes, ela me visitou também, e todas as vezes que lhe perguntei se visitava outros indígenas na cidade, ela respondia que não – tal como faziam Kahala e Yapanu. “Diante de minha insistência em perguntar se ela visitava outros indígenas na Canarana, Reataryp acrescentou que, no máximo, quando seus pais vinham da aldeia e se hospedavam em sua casa, eles iam juntos à casa de suas tias” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 130). Para o meu entendimento particular do que é uma visita, soava paradoxal que Reataryp me dissesse não visitar outros indígenas, diante da informação que Yapanu me oferecia naquela tarde. Mas não tardaria para eu mesma encontrá-la durante minhas visitas às mulheres do Alto Xingu, quando ela chegava acompanhada de suas parentas, convidando as alto-xinguanas para fazer moitará. Pouco a pouco, percebi que, ainda que Reataryp afirmasse não fazer vistas a outras indígenas, quando as mulheres de sua família próxima visitavam a cidade de Canarana, elas saíam em grupo a fim de trocar peças de artesanato kawaiweté por produtos não indígenas ou dinheiro.

Sugiro que o que temos aqui não é uma diferença simples entre aquilo que os indígenas fazem e aquilo que eles dizem fazer na cidade de Canarana. Assumir tal diferença simples me levaria à conclusão de que Kahala, Yapanu, Reataryp e tantos outros indígenas mentiam para mim quando diziam não “visitar os parentes”. O que me parece estar em questão é o fato de que a nossa comunicação se ancorava em um universo de termos altamente equívocos – visitas, parentes, primos, amigos – que não se resolviam nem nos significados que eu conhecia da língua que partilhávamos, nem dos conceitos que conheci por meio da literatura sobre os indígenas do TIX, no TIX, e minhas experiências nas aldeias de diferentes povos. Os conceitos utilizados pelos indígenas para descrever suas experiências na cidade de Canarana torciam o funcionamento de meus conceitos de referência em uma transformação desencadeada pela presença no espaço urbano, pelos afetos e pelas relações ao modo não indígena.

Nos casos descritos nas seções anteriores, Ügü, Edson, Kahala e Yapanu ancoravam seus planos e conjecturavam sobre suas ações a partir da oposição entre a aldeia e a cidade, como espaços marcados por modos distintos de viver e se relacionar. Mas, como outros indígenas me disseram tantas vezes, “Canarana é uma cidade com índios demais” e, na prática, estas dualidades são altamente instáveis. O encontro entre Reataryp e Yapanu é exemplar nesse sentido, pois colocava não apenas a perspectiva da aldeia e da cidade em questão, mas a perspectiva mesma de cada uma delas, uma Kawaiwete, do baixo TIX, e uma Wauja, alto-xinguana. Podemos retomar aqui

A afirmação de Mehinaku (2010 p. 121)Mehinaku, M. (2010). Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu [Dissertação de mestrado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. de que os indígenas das outras regiões do TIX são considerados pelos alto-xinguanos ‘índios’ dos índios’, bravos, guerreiros, arredios, selvagens. Ser índio de alguém, nesse sentido, é ocupar uma posição menor na escala de humanidade. Desde a perspectiva alto-xinguana – Mehinaku é um antropólogo indígena do Alto Xingu – os alto-xinguanos, superiores, teriam optado pela paz e pela generosidade, os ferozes baixo-xinguanos, não. Mesmo que a guerra tenha sido desestimulada desde os anos 1940 na região, com a chegada dos brancos e a formação do TIX, o modo guerreiro é hoje assumido orgulhosamente no discurso dos indígenas do baixo, médio e leste Xingu, que entendem esta como uma diferença positiva que lhes caracteriza em oposição aos indígenas das cabeceiras da bacia

(Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., pp. 132-133).

Diante de tais diferenças, o encontro entre indígenas de distintas regiões carrega sempre a possibilidade de se atualizar como um embate de perspectivas.

Tal distinção não esgota a diferença entre alto e baixo-xinguanos, quão menos as diferenças internas a cada uma dessas grandes regiões. Os indígenas também manejam suas diferenças pelo corpo, pela língua, pela dieta, pela estética ritual, pelo corpus mitológico, pelas normas do parentesco. Ainda assim, é importante sublinhar o lugar onde as diferenças entre Yapanu e Reataryp se colocavam: elas estavam na cidade, e a perspectiva mais estável ali é a dos brancos. O que tínhamos aqui não era apenas uma perspectiva wauja e uma kawaiwete, rivalizando sob um fundo de alteridade, mas também a possibilidade de atualização de perspectivas não indígenas9 9 Sobre a pluralidade de perspectivas não indígenas que os indígenas do TIX reconhecem em Canarana, ver Horta (2017). .

Quando Reataryp, na casa de Yapanu, trocava o artesanato de seu povo por coisas não indígenas, ela reforçava a assimetria descrita por Mehinaku (2010)Mehinaku, M. (2010). Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu [Dissertação de mestrado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., mostrando-se “índia da índia”, tirando daí, porém, os modos – produtos e dinheiro não indígenas – para se transformar em uma direção ‘outra’, promovendo um engajamento absolutamente produtivo com o espaço urbano. O dinheiro que Reataryp recebia permitia que, em outra situação, ela se aproximasse de uma relação de simetria com os brancos, deslocando o embate entre as perspectivas das duas mulheres indígenas pelas relações com os não indígenas, estabelecidas de outras maneiras, dotadas de outros perigos. Já Yapanu expandia sua pessoa como os brancos o fazem, trocando dinheiro pela bolsa, signo de sua capacidade de agir em conformidade com a perspectiva estabilizada pelo espaço. A situação inscrevia no corpo das duas mulheres o poder de assumir plenamente afecções ou capacidades não indígenas, uma pela troca consumada, outra pelas trocas futuras, da mesma forma que as roupas que elas vestiam e o português que elas falavam o faziam. Transformando-se de maneira distinta, naquele encontro, ambas se engajavam de modo produtivo com a cidade de Canarana e com o mundo de relações que ali se estabiliza.

Tudo isso não parece tão diferente de uma troca na aldeia nos dias de hoje. Nas aldeias também, onde o fluxo de mercadorias, ideias, pessoas não indígenas é crescente, onde existem escolas, casas de atendimento à saúde e de associações, o cruzamento entre as perspectivas da aldeia e da cidade é algo recorrente. Nas aldeias, porém, a magnificação por meio da experiência da alteridade dos brancos interessa sobretudo desde a perspectiva dos coaldeões, que é a perspectiva que tende a se estabilizar ali. Na cidade, onde a perspectiva não indígena é geralmente a mais estável, o efeito da troca é sobredeterminado pelo espaço à medida que a magnificação interessa sobretudo desde a perspectiva não indígena. Usar uma bolsa kawaiwete na cidade, aos olhos dos brancos, sobre o corpo limpo, perfumado e vestido ao modo não indígena, não é o mesmo que usar uma bolsa kawaiwete na aldeia; ter à mão 30 reais na cidade, onde é preciso dinheiro para tudo, tampouco equivale a ter 30 reais à mão em sua comunidade de origem. A presença constante dos brancos, donos do espaço de Canarana, desloca os efeitos de trocar e usar a bolsa. As alterações corporais e as implicações ontológicas que o uso da bolsa é capaz de promover na cidade são outras.

Ademais, a presença de Reataryp na casa de Yapanu não implicava o estabelecimento de uma relação do tipo da visita, que aparece sempre associada à ‘família de verdade’ e à produção de aparentamento entre as pessoas. Aquele encontro colocava em questão “uma relação através da qual ambas produziam diferenças ‘diferentes’ em seus corpos” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 138). Tal como nos rituais de troca alto-xinguanos, a relação entre Yapanu e Reataryp é mediada pelas coisas trocadas, instaurando um espaço mais seguro de contato com a alteridade. Como vimos, toda relação pode gerar um tipo de influência recíproca entre corpos envolvidos – e isso é potencialmente perigoso. Em Canarana, essa ‘cidade com índios demais’, quando os indígenas do TIX recusam relacionar-se com indígenas que vivem em outras casas, eles também recusam a produção de redes de influência recíproca por meio das quais pode vir a circular toda sorte de relações. A feitiçaria amedronta indígenas de todas as regiões do TIX, que se aplicam em precavê-la. Evitar encontros e recusar visitas é um modo pelo qual as pessoas do TIX se aplicam em evitar também isso que pode vir a acontecer por meio da mera proximidade dos corpos, a despeito da vontade e do lugar compartilhado pelos envolvidos. Mas, se a alteridade carrega perigos, carrega também potências, e é pelas últimas que indígenas como Reataryp e Yapanu se aventuram nesses encontros mediados pela troca.

Vale ressaltar, ainda, que, na cidade, uma mulher dificilmente irá à casa de alguém sozinha, para propor moitará. Sempre que presenciei moitarás entre mulheres alto-xinguanas, eu estava em uma casa, conversando, quando chegavam pelos menos duas mulheres adultas que viviam juntas e propunham a troca. Nesses encontros, é preciso atentar-se para não ser enganada ou constrangida a assentir uma troca desfavorável. Estar acompanhada por uma parenta compele a parceira de troca a se comportar conforme os ideais de moralidade – lembremo-nos, aqui, de que os valores morais de generosidade, respeito e vergonha são associados à convenção das aldeias. Sozinha, isto é, longe de suas parentas, é mais fácil ser enganada: os parentes presentes funcionam como uma referência que favorece a estabilidade de suas perspectivas. Como formulei outrora, entendo ser essa a razão pela qual “Reataryp somente fazia seus moitarás na casa das alto-xinguanas junto à sua ‘família de verdade’”, pois, neste encontro “potencialmente perigoso[,] a família junta segurava mais forte seu ponto de vista kawaiwete do que se ela fosse sozinha” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 134).

A história de Yari Kuikuro mencionada na primeira seção do texto converge também com este argumento. Ao sair para caçar sozinho, Yari perdeu-se na floresta, e aqueles que me contaram sobre o evento disseram que, a sós, no mato, Yari poderia ser “levado por um macaco ou outro bicho”. Distante dos parentes, ele perdia o parâmetro de sua qualidade de humano e poderia incorrer no engano de tomar os bichos por gente e passar, então, a segui-los, vivendo agora com eles e não mais com os antigos parentes da aldeia. Da mesma maneira, em uma troca na cidade, estar só, distante dos parentes, pode fazer com que a pessoa confunda sua humanidade com a do parceiro de troca, engajando-se em moitarás que favorecem apenas o outro. Diante do respeito (e do medo) que Reataryp tinha pelas mulheres do Alto Xingu, me parece natural que ela buscasse se precaver e fosse até suas casas propor moitarás, acompanhada de pessoas de sua ‘família de verdade’. Fazer esse movimento a sós carregava um duplo risco: por um lado, ela poderia ser compelida a trocar seu artesanato por algo de menor valor, sendo, portanto, enganada na troca; por outro, ela poderia instaurar um engajamento com Yapanu Wauja, não com a cidade de Canarana, enganando-se no confronto de perspectivas e estabelecendo uma relação potencialmente perigosa de influência recíproca entre elas.

AQUI NÃO É ALDEIA

A ideia de que a cidade proporciona aos indígenas a experiência de uma perspectiva ‘outra’, diversa à das aldeias, não é novidade. Ancorada na literatura sobre o ocidente amazônico, Cunha (1998)Cunha, M. C. (1998), Pontos de vista sobre a floresta amazônica. Mana, 4(1), 7-22. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100001
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199800...
estabelece um paralelo entre as viagens oníricas, narcóticas e territoriais (deslocamentos, jornadas e peregrinações espaciais) na formação dos xamãs. Crispim, conta a autora, um grande pajé do alto Juruá, afirmava que sua “reputação xamânica explica-se por sua estada e seus estudos em dois lugares particularmente significativos: o Ceará . . . . e Belém” (Cunha, 1998Cunha, M. C. (1998), Pontos de vista sobre a floresta amazônica. Mana, 4(1), 7-22. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100001
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199800...
, p. 12). Referindo-se a esta passagem, Vilaça (2000, p. 68)Vilaça, A. (2000). O que significa tornar-se outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15(44), 56-72. https://doi.org/10.1590/S0102-69092000000300003
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200000...
aprofunda-se no ponto que interessa ao presente artigo:

Essa descrição sugere . . . que as viagens, longe de constituírem percursos essencialmente visuais, como para nós (visitas a museus e outros lugares típicos), envolvem, antes de tudo, o estabelecimento de relações sociais intensas, a convivência (pacífica ou não) com pessoas desses outros mundos.

A cidade seria, segundo os intelectuais indígenas e não indígenas aqui referidos, um ‘outro’ mundo, com marcas de alteridade correlativas às dos mundos habitados por seres de outras espécies – a diferença de espécie é uma das marcas de uma ‘outra’ perspectiva – e o engajamento nessas ‘relações sociais intensas’ distintas permitiria aos indígenas agregar potências xamânicas.

A novidade trazida por certas etnografias recentes realizadas entre indígenas na cidade é demonstrar uma dimensão coletiva de um fenômeno similar ao xamânico, desta vez narrado desde este ‘outro’ ponto de vista assumido pelos indígenas nas cidades. Uma narrativa do virar ‘outro’ contada desde o ponto de vista de quem está engajado na transformação, e não apenas daqueles (poucos) que foram e voltaram. Para além dos xamãs, sabemos que muitos indígenas podem chegar a virar onças, porcos, espíritos, mas tudo indica não ser possível ao antropólogo acompanhá-los, dialogar com eles, mas sim contar, do ponto de vista de quem foi e voltou, esta experiência. Para levar o conceito de perspectiva a sério, é preciso abrir-se à possibilidade de que, narradas desde outras perspectivas, essas histórias não seriam necessariamente as mesmas.

Destaca-se a dissertação de Nunes (2012)Nunes, E. S. (2012). No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura, e transforção entre os Karajá de Buridina (Aruanã – GO) [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]., que descreve como os karajá de Buridina, estado de Goiás, exploram essa dimensão de perspectiva da cidade, terra dos brancos. Nunes (2012, p. 85)Nunes, E. S. (2012). No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura, e transforção entre os Karajá de Buridina (Aruanã – GO) [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. registra uma fala de Renan, um de seus interlocutores karajá: “quando a gente vai pra cidade, quando atravessa o portão [da aldeia] ali, tem que tirar a memória indígena, guardar no bolso e colocar a memória de não índio no lugar”. A metáfora dos chips descreve a experiência da cidade por meio de uma habilidade similar à do xamã: acessar o ponto de vista dos brancos permite que os Karajá de Buridina afirmem-se enquanto sujeitos no espaço urbano, onde a perspectiva mais estável não é a dos karajá.

A etnografia que dá corpo à minha tese e a este artigo também demonstra como indígenas de diferentes etnias do TIX que ocupam a cidade de Canarana de modos e por períodos variáveis conceituam a cidade como uma ‘outra’ perspectiva – um lugar que estabiliza afetos específicos, diferentes daqueles da aldeia, onde se coloca um complexo jogo de perspectivas. Como busquei demonstrar, a transformação decorre do deslocamento imposto pela estabilidade que a perspectiva não indígena adquire ali e tem implicações corporais – tal como o corpo é conceituado por Viveiros de Castro (1996)Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerÍndio. Mana, 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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– que explorei destacando os modos pelos quais são estabelecidas relações na cidade. Mais do que isso, a etnografia em Canarana revela que os indígenas do TIX se aplicam em instaurar essas diferenças ativamente, firmando, assim, um engajamento produtivo com o espaço urbano, agregando potências e minimizando perigos.

Isso não implica que, em Canarana, as pessoas vindas do TIX estejam de todo resguardadas dos perigos dos desequilíbrios da aldeia, mas a conversão de perspectiva os ajuda a manejá-los e atenuá-los. O afastamento da aldeia, pela distância espacial estabelecida por aqueles que se aventuram a viver (n)a cidade, serve a esse propósito. Mas não basta afastar-se do mundo, da vida e das relações das aldeias: é preciso aproximar-se do mundo da cidade, e esse é um movimento ativo, instável, que recusa a totalização, e que precisa, portanto, ser reiterado a cada momento. Nesse sentido, as palavras em português pelas quais os indígenas descreviam suas relações na cidade – visitas, parentes, primos, amigos – não operavam uma tradução direta das relações estabelecidas por eles nas aldeias, nomeadas em suas línguas indígenas.

Traduttore-traditore”, diz o ditado. Se a boa tradução, como afirmou Viveiros de Castro (2004)Viveiros de Castro, E. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22. lembrando Walter Benjamin10 10 A trilha de referências é, na verdade, mais comprida: Pannwitz citado por Benjamin, citado por Asad (1986, p. 157 citado por Viveiros de Castro, 2004, p. 3). , é aquela que trai a língua de destino e não a língua de origem, o deslocamento da perspectiva faz com que, nesses casos, as boas traduções indígenas sejam aquelas capazes de operar, uma vez mais, essa transformação. O ponto é menos dizer que, na cidade, conversando sobre as relações que ali estabelecem, os indígenas traem suas línguas de origem, e mais apontar que, uma vez engajados nessa transformação, o que eles tomam por dado, por inato, e, portanto, por ‘origem’, é a relação citadina: logo, cabe a eles subverter – isto é, transformar – os sentidos e as relações de suas línguas-mãe.

Tal procedimento de subversão ou transformação da relacionalidade dos indígenas do TIX na cidade de Canarana foi o foco deste texto. Quanto ao conteúdo positivo das relações estabelecidas ao modo citadino, não posso mais que sugerir alguns de seus traços. A afirmação mais contundente é a de que os brancos são, de maneira geral, mesquinhos e egoístas: a imensa quantidade de produtos nas lojas (um excesso a que nada se tem de acesso, pois requer dinheiro), a profusão de brigas, drogas e violência, a impressionante capacidade não indígena de negar – negam o que seus filhos pequenos pedem, negam o que os indígenas do TIX pedem, negam até mesmo comida aos brancos miseráveis que pedem na rua. Cabe notar que mesmo essas características não dizem acerca de uma ação dos brancos, mas da negação da ação: sua recusa em compartir, em trocar, em estabelecer relações positivas. Por isso, também a subversão das relações de suas aldeias de origem não os leva a fixar certos modos relacionais dos brancos à norma. Abertos, esses modos são constantemente colocados à prova da experiência.

A insistência em indefinir as características da experiência citadina me parece relacionada à curiosidade notável que os indígenas do TIX têm, ainda hoje, sobre as cidades e ao entendimento coletivo de que os não indígenas e seus modos de existência são altamente imprevisíveis e variáveis. Mesmo aqueles que viviam em Canarana há muitos anos pareciam pouco certos das regras positivas que deveriam guiar os comportamentos na cidade, e às suas considerações acrescentavam: “Isso é o que eu acho. Você deveria perguntar para outras pessoas também” (Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 39). Tais descrições incertas contrastam com a firme recusa indígena em estabelecer, na cidade, relações com o modo das aldeias, com a afirmação contundente de que a cidade é outro mundo e com o intuito constante de fazer tais diferenças diferirem.

  • 1
    Há também a presença de indígenas Xavante, que, em sua grande maioria, chegam à carroceria dos caminhões para fazer compras e sacar benefícios sociais, e retornam no final do dia (cf. Vitti, 2005Vitti, V. T. (2005). Os jovens Kamaiurá no século XXI [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].). Diferentemente dos xinguanos, poucos são os que pernoitam ou firmam residência.
  • 2
    O município foi declarado Portal do Xingu por meio da Lei Estadual nº 10.103/2014, denominação inscrita no brasão da Câmara Municipal de Canarana.
  • 3
    Contemporâneo, o tema da presença indígena nas cidades brasileiras encontra-se em crescente ebulição nacional, protagonizando pesquisas produzidas em diferentes áreas do conhecimento. Ainda assim, na região do TIX, trabalhos voltados especificamente para tal fenômeno são ainda escassos (cf. Horta, 2018Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro]., pp. 28-32). A situação não é a mesma em outras regiões do país: há estudos que vão de São Paulo ao Oiapoque, do sul da Bahia ao rio Negro, incluindo pesquisas que tratam dos movimentos indígenas locais, suas organizações e demais estruturas irrompidas a partir das relações cada vez mais perenes entre as aldeias e as cidades (ver, por exemplo, Berger, 2018Berger, W. (2018). Índios na cidade do capital: indígenas em contexto urbano na cidade do Rio de Janeiro em tempos de barbárie (2012-2017). Gramma.; Serpa & Grando, 2018Serpa, A. O., & Grando, B. S. (2018). Indígena na cidade? Considerações sobre a educação intercultural na escola. Revista Interinstitucional Artes de Educar, 4(3), 623-654. https://doi.org/10.12957/riae.2018.38702
    https://doi.org/10.12957/riae.2018.38702...
    ; Busarello, 2017Busarello, F. R. (2017). Minha cor não é branca, minha cor não é negra, minha cor é canela: análise psicossocial de vivência urbana dos Xokleng/Laklãnõ na cidade loira de Blumenau [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].; Souza et al., 2016Souza, A. H. C., Haetinger, C., & Laroque, L. F. S. (2016). A busca pelo reconhecimento da identidade étnica Macuxi e Wapichana no contexto urbano de Boa Vista, Roraima, Brasil. Multitemas, 21(50), 51-82. https://doi.org/10.20435/1192
    https://doi.org/10.20435/1192...
    ; Albuquerque, 2015Albuquerque, M. A. S. (2015). indígenas na cidade do Rio de Janeiro. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, (7), 149-168. https://doi.org/10.12957/cdf.2015.19715
    https://doi.org/10.12957/cdf.2015.19715...
    ; Aguilar, 2013Aguilar, R. A. S. (2013). Cidade rururbana de Porto Alegre: uma análise etnoconservacionista sobre as áreas protegidas e os espaços de circulação guarani-mbyá [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].; Andrade, 2012Andrade, J. A. A. D. (2012). Indigenização da cidade: etnografia do circuito sateré-mawé em Manaus-AM e arredores [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo].; Faria, 2011Faria, C. S. (2011). A integração precária e a resistância indígena na periferia da metrópole. Labur Edições.).
  • 4
    A fim de preservar a identidade de meus interlocutores, os nomes pessoais e de aldeias usados no artigo são todos fictícios, em continuidade com o modo como foram apresentados na tese.
  • 5
    Sobre a coextensividade entre o parentesco e a humanidade, ver Viveiros de Castro (2002d)Viveiros de Castro, E. (2002d). Perpectivismo e multinaturalismo na América indígena. In Autor, A inconstância da alma selvagem (pp. 345-400). Cosac Naify. e Coelho de Souza (2004)Coelho de Souza, M. S. (2004). Parentes de sangue: incesto, substância e relação no pensamento Timbira. Mana, 10(1), 25-60. https://doi.org/10.1590/S0104-93132004000100002
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200400...
    .
  • 6
    Os indígenas do TIX usam a palavra ‘cargo’ como referência aos postos de trabalho remunerado nas instituições voltadas para o atendimento indígena.
  • 7
    Em publicação recente, aponto como a opção de Kahala pela palavra ‘pensar’ pode ser lida também como a operação de uma tradução de perspectiva: “se o que define a existência na aldeia são modos do corpo (seu modo de estar, de comer, de festar, de dormir), o que definiria, segundo Kahala, a existência na cidade, seria um modo de pensar” (Horta & Jacques, 2020Horta, A., & Jacques, R. (2020). Pesa, logo existe: por uma antropologia que corra (perigo). Cadernos de Campo, 29(2), e171329. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v29i2pe171329
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
    , p. 13).
  • 8
    Trocas’ com estabelecimentos (o mercado, a loja) não são chamadas de moitará.
  • 9
    Sobre a pluralidade de perspectivas não indígenas que os indígenas do TIX reconhecem em Canarana, ver Horta (2017)Horta, A. (2017). indígenas em Canarana: notas citadinas sobre a criatividade parque-xinguana. Revista de Antropologia, 60(1), 216-241. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2017.132074
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    .
  • 10
    A trilha de referências é, na verdade, mais comprida: Pannwitz citado por Benjamin, citado por Asad (1986Asad, T. (1986). The concept of cultural translation in British social anthropology. In J. Clifford & G. E. Marcus (Eds.), Writing culture: the poetics and politics of ethnography (pp. 141-164). University of California Press., p. 157 citado por Viveiros de Castro, 2004Viveiros de Castro, E. (2004). Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2(1), 3-22., p. 3).
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Editado por

Responsabilidade editorial: Lúcia Hussak van Velthem

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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