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Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos

Between the sky and the earth: towards an archaeology of multitemporal territories in the Upper Xingu

Resumo

Uma diacronia de mais de dez séculos do povo Wauja e seus ancestrais arawak no rio Kamukuwakewene/Batovi possibilita a abordagem de padrões de uso, mobilidade e (re)ocupação da paisagem na longa duração. Um extenso repertório de narrativas se estrutura em torno de lugares com nome – espaços de habitação e de manejo, coleta e perambulação, indexando uma densa paisagem arqueológica e antropogênica, (re)produtora de práticas e sentidos. Uma paisagem outra, coexistente a esta, onde ancestrais não humanos seguem habitando suas aldeias, é também desvelada. A combinação de sentidos temporais lineares e não lineares (cronologia, genealogia e cosmologia) define o caráter multitemporal, propriamente espectral, desse território e sua condição como fonte de vida. Ponto focal nessa trama de relações espaço-temporais, a Gruta de Kamukuwaká é lar do chefe primordial, na fronteira com o agronegócio. O caso de seu tombamento como patrimônio da União e subsequente depredação epitomiza o panorama de desamparo das paisagens fluviais indígenas fora dos territórios demarcados. Problematiza-se o papel da Arqueologia em processos de licenciamento ambiental nas nascentes do Xingu e os desdobramentos de um conceito limitado de passado ‘evidencial’, ensaiando-se subsídios para a proteção legal do rio Kamukuwakewene por meio de uma arqueologia das práticas de sentido.

Palavras-chave
Povo Wauja; Gruta de Kamukuwaká; Rio Kamukuwakewene/Batovi; Nascentes do Xingu; Arqueologia preventiva; Etnografia arqueológica

Abstract

The Wauja people and their Arawak ancestors have inhabited the Kamukuwakewene/Batovi River region for over ten centuries. This provides an opportunity to study patterns of land use, group mobility, and site (re)settlement over the long term. A wide repertoire of narratives is structured around named places (for living as well as for management, harvesting, and transit), indexing a densely occupied archaeological and anthropogenic landscape that (co)produces practices and meanings. An other co-existent landscape is also revealed, where ancestral non-human beings still inhabit their villages. The combination of linear and non-linear temporal senses (chronology, genealogy, and cosmology) defines the multitemporal, spectral quality of this territory and its condition as a source of life. A focal point in this fabric of spatiotemporal relations is the Kamukuwaká Cave, home to the primordial chief, located on private agricultural property. Its recognition as a federally protected area and subsequent defacement epitomizes the current state of neglect in indigenous riverine landscapes outside demarcated territories. This paper discusses the role of archaeology within the context of development projects and environmental licensing in the Xingu headwaters. Reductive notions of an “evidential” past are questioned while developing support for legal protection of the Kamukuwakewene via an archaeology of practice and of meaning.

Keywords
Wauja people; Kamukuwaká Cave; Kamukuwakewene/Batovi River; Xingu headwaters; Heritage management; Archaeological ethnography

INTRODUÇÃO

É reconhecida na etnologia regional a existência de um território ancestral xinguano que se estende além dos limites formais do Território Indígena do Xingu (TIX). Alvo de reivindicações por parte dos alto-xinguanos desde sua exclusão da área demarcada em 19611 1 A demarcação do então denominado Parque Nacional do Xingu – Decretos nº 50.455, de 14 de abril de 1961 e 51.084 de 31 de julho de 1961 – foi um processo moroso, resultado de uma década de negociações. O anteprojeto inicial se propunha a abranger uma área dez vezes maior do que a que seria protegida, contemplando as cabeceiras dos rios formadores (Franchetto, 1992; Villas-Bôas & Junqueira, 2011). , a região do alto curso dos rios formadores do Xingu aparece, nos discursos indígenas, consistentemente associada aos topônimos Sagihengu e Kamukuwaká. Classificados como sítios arqueológicos e patrimônio tombado da União, Sagihengu, local do primeiro ritual mortuário dos chefes defuntos (o Kwarup), e Kamukuwaká, local do primeiro ritual de furação de orelhas dos futuros chefes (o Pohoka), podem ser descritos como expoentes de um espaço vital à reprodução dos povos xinguanos.

O tombamento, porém, foi incapaz de garantir a real proteção destes dois marcos da cultura xinguana. A degradação e depredação de Sagihengu e Kamukuwaká manifestam a agressão que a região das nascentes vem sofrendo face às pressões desenvolvimentistas que colocam em risco os rios, as manchas florestais remanescentes e os modos de vida que as sustentam. O descuro e a falta de proteção no terreno vêm sendo, sem efeito, continuamente denunciados pelos alto-xinguanos.

Em resposta às reivindicações Wauja pela proteção da paisagem fluvial, o processo de tombamento de Kamukuwaká se encontra reaberto. A possibilidade de alargamento da área tombada (atualmente com cerca de 10,8 km2, Figura 1) dá-se em simultâneo à constituição de um grupo técnico da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) para reestudo de limites da Terra Indígena (TI) Batovi. Acrescente-se a este panorama os licenciamentos em curso da BR-242/MT e da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO), alertando para a necessidade de pensar formas de proteção da região das nascentes do Xingu como um todo. Abre-se espaço a uma discussão urgente: que caminhos, então, para a efetiva proteção?

Figura 1
Mapa de localização dos formadores do Xingu com detalhe da área tombada da “Paisagem Cultural de Kamukuwaká” (10,8 km2). Legendas: preto = limites das terras indígenas; gradação de beje = desmatamento até 2022; azul, em destaque = rios Kamukuwakewene e Ytsawtakuwene; vermelho = Morená, Kamukuwaká e Sagihengu; verde = elementos da geografia Wauja registrados até a data (vide Quadro 2); preenchimento traçado = áreas por mapear; branco = localização prevista de lugares por mapear; amarelo = sítios arqueológicos registrados no âmbito de projetos de arqueologia preventiva.

Neste artigo, alude-se ao manancial de dados arqueológicos, documentais e da memória indígena que apontam para uma continuidade de uso e de ocupação tradicional do alto rio Batovi2 2 Portaria FUNAI nº 339, de 31 de maio de 2021 e Portaria FUNAI nº 484, de 23 de fevereiro de 2022. , que muito excede os limites do TIX, bem como da área atualmente tombada. Por “ocupação tradicional”, entenda-se, à letra da lei:

Art. 231. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições

(Brasil, 1988Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal.).

Inicia-se com uma breve contextualização histórica e cronológica da presença Arawak no Kamukuwakewene (o ‘rio dos Kamukuwakás’)3 3 Informação oral de Yakuwipu Waurá, após o falecimento de seu pai, o ancião Awapataku Waurá. A designação Batovi, vulgarizada na cartografia, se deve a Karl von den Steinen, que assim nomeia o rio em homenagem ao Barão de Batovy. O alemão menciona ainda o nome indígena Tamitatoala, registrado junto aos Bakairi (Steinen, 1942). – nomeação antiga do rio Batovi, na língua Wauja, apurada em dados recentes das pesquisas de campo das autoras e utilizada ao longo deste artigo. Em seguida, discorre-se sobre as narrativas de origem da Gruta do Kamukuwaká, do rio e do povo Wauja, e a relação destas com práticas atuais de reterritorialização da paisagem histórica. A partir do caso emblemático do tombamento de Kamukuwaká e Sagihengu, alude-se ao panorama mais amplo de desamparo normativo da região das nascentes do Xingu, a sul do território demarcado. Propõe-se uma reflexão crítica sobre como tal desamparo é potencializado pela perpetuação, na área da gestão do patrimônio cultural, de conceitos restritos de passado ‘evidencial’. Alerta-se para a necessidade de repensar esta paisagem a partir de conceitos que extravasem falsas dicotomias entre passado e presente, arqueologia e antropologia, material e imaterial, ecologia e cultura. Para tanto, as autoras apresentam dados produzidos por meio de práticas colaborativas e abordagens da chamada etnografia arqueológica, interpretados à luz da Ecologia Histórica e da Teoria de Signos, de C. S. Peirce.

APORTES TEÓRICOS E CONTEXTOS DE TRABALHO

As etnografias arqueológicas são descritas por Hamilakis (2011)Hamilakis, Y. (2011). Archaeological ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, 40, 399-419. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-081309-145732
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e Hamilakis e Anagnostopoulos (2009)Hamilakis, Y., & Anagnostopoulos, A. (2009). What is archaeological ethnography? Public Archaeology, 8(2-3), 65-87. https://doi.org/10.1179/175355309X457150
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como abordagens transdisciplinares que questionam etnograficamente sobre a agência, hoje e no passado, de traços materiais de tempos transcorridos. A proposta implica atenção aos sentidos elicitados por estas materialidades e o registro de discursos, práticas e nexos envolvendo o passado arqueológico. Em foco estão as percepções etnograficamente múltiplas de materialidade e de temporalidade.

A semiótica de C. S. Peirce proporciona um modelo teórico adequado à elaboração de etnografias arqueológicas, em parte porque, para Peirce, entidades materiais são signos e signos sempre têm uma faceta material. Adota-se, aqui, a posição expressa, por exemplo, por Rosemary Joyce (2011, p. 159 e p. 167)Joyce, R. A. (2011). ‘What eludes speech’: a dialogue with Webb Keane. Journal of Social Archaeology, 11(2), 158-170. https://doi.org/10.1177/1469605311403836
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, quando invoca um alinhamento teórico-metodológico entre “linguistic pragmatics, examining the relationship between context and meaning [and] contextual archaeology and archaeologies of practice”, convidando a um foco transdisciplinar “on semiotic forms and the entailments of their materiality”. Indícios arqueológicos, enquanto formas semióticas, participam nas dimensões materiais da vida social e em um processo contextual denominado por Peirce como ‘semiose’, por meio do qual se produzem significados pelo uso dos signos. Por outras palavras, signos, para Peirce, são essencialmente produtivos e eficazes: eles têm efeitos pragmáticos. ‘Coisas’, como artefatos arqueológicos ou paisagens, têm agência precisamente porque participam em relações de sentido com outras tantas coisas, efetuando ou constituindo mundos: mundos de humanos e não humanos que não são meramente ‘materiais’ ou ‘imateriais’, mas efetivamente pragmáticos (e contextuais).

A presente análise é também informada por perspectivas da Ecologia Histórica, uma esfera de pesquisa interdisciplinar, centrada na proposição de que, desde seus primórdios, as sociedades humanas não apenas se adaptam, mas ativamente transformam o meio ambiente. Grupos humanos atuam como keystone species, impactando, por meio de ações intencionais ou mera presença, a constituição e diversidade dos biomas, bem como a disponibilidade de recursos para uso, manejo e modificação antrópica, em escala local, regional e global (Balée & Erickson, 2006Balée, W., & Erickson, C. L. (2006). Time, complexity, and historical ecology. In W. Balée & C. L. Erickson (Orgs.), Time and complexity in historical ecology: studies in the Neotropical Lowlands (pp. 1-18). Columbia University Press.). Em foco estão as ‘paisagens históricas’, também referidas como ‘construídas’, ‘domesticadas’, ‘manejadas’ ou ‘antropogênicas’, assim definidas:

Historical landscape [is] a multidimensional physical entity that has both spatial and temporal characteristics and has been modified [in a physical sense by learned, patterned human behavior and activity,] such that human intentions and actions can be inferred, if not read as material culture, from it

(Balée & Erickson, 2006Balée, W., & Erickson, C. L. (2006). Time, complexity, and historical ecology. In W. Balée & C. L. Erickson (Orgs.), Time and complexity in historical ecology: studies in the Neotropical Lowlands (pp. 1-18). Columbia University Press., p. 1).

Estudos pioneiros de Eduardo Góes Neves (1999)Neves, E. G. (1999). O velho e o novo na arqueologia amazônica. Revista USP, (44), 86-111. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p86-111
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, Michael Heckenberger et al. (2003Heckenberger, M. J., Kuikuro, A., Kuikuro, U. T., Russell, J. C., Schmidt, M., Fausto, C., & Franchetto, B. (2003). Amazonia 1492: pristine forest or cultural parkland? Science, 301(5640), 1710-1714. https://doi.org/10.1126/science.1086112
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, 2007)Heckenberger, M. J., Christian Russell, J., Toney, J. R., & Schmidt, M. J. (2007). The legacy of cultural landscapes in the Brazilian Amazon: implications for biodiversity. Philosophical Transactions of the Royal Society B. Biological Sciences, 362(1478), 197-208. https://doi.org/10.1098/rstb.2006.1979
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, entre outros, vêm revolucionando a arqueologia amazônica, revelando uma densa floresta antropogênica. Heckenberger e colegas mostram como a ocupação, o cultivo e o manejo extensivos de espécies na região do Alto Xingu têm impulsionado a extraordinária biodiversidade regional que suporta modos de vida xinguanos, desde, pelo menos, o século XIII. Processos milenares de antropogenização da paisagem modelam e são modelados por práticas territoriais e pelas relações multitemporais de posse e cuidado, entre humanos e entre humanos e não humanos, que tais práticas implicam. Sugere-se, aqui, que as abordagens da etnografia arqueológica e da teoria semiótica podem contribuir para a consecução dos objetivos da Ecologia Histórica, investigando a forma como os povos locais (de)codificam as potencialidades e a adequada fruição de lugares e recursos na paisagem histórica.

A presente discussão se apoia na experiência das autoras junto aos Wauja desde 2014. A colaboração, que se iniciou com a participação nas ações do Programa de Educação Patrimonial ligadas ao licenciamento ambiental da BR-242/MT4 4 Desenvolvidas pela Fundação Uniselva/Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Archaeo Pesquisas Arqueológicas. , firma-se, a partir de então, com a prestação de assessoria técnica independente e pro bono às comunidades Wauja, com vista ao desenvolvimento de ações e projetos colaborativos de valorização patrimonial e cultural, por via de submissão a editais de cultura5 5 Entre os projetos desenvolvidos junto com os Wauja por esta equipe de assessoria pro bono (que inclui, além das autoras, a arqueóloga Gabriele Viega Garcia), mencionem-se: “Circuito Kamukuwaká: o Livro de Kamukuwaká e Yakuwixeku” (2017), a redação do “Ante-Projeto Águas do Xingu: recuperação ambiental de nascentes e áreas degradadas nos formadores do rio Xingu – Projeto-piloto: corredor ecológico-cultural no rio Tamitatoala/Batovi”(2017), ambos desenvolvidos em parceria com o Instituto Homem Brasileiro; “Registro e conservação da paisagem cultural de Kamukuwaká” (2018), desenvolvido pela Associação Indígena Tulukai (AIT), em parceria com a Factum Foundation for Digital Technology in Conservation (FF) e o People’s Palace Projects (PPP); o projeto “Kamukuwaká VR: enabling digital futures for indigenous knowledge from the Xingu” (2021-2022), desenvolvido pelas associações e comunidades Wauja das aldeias Piyulaga, Ulupuwene, Piyulewene e Topepeweke, em parceria com o People’s Palace Projects (PPP). . Contribuem, ainda, para esta exposição, os dados do levantamento documental avaliativo do patrimônio cultural dos altos rios Tamitatoala e Culuene, desenvolvido por Mafalda Ramos (2020)Ramos, M. (2020). Paisagens do Alto Xingu: contributos para a avaliação do patrimônio cultural dos rios formadores do Xingu: rios Tamitatoala/Batovi e Culuene. Instituto Socioambiental (ISA)., no âmbito de uma consultoria para o Instituto Socioambiental (ISA), e dados preliminares da pesquisa de doutorado em antropologia de Patrícia Rodrigues-Niu. A informação toponímica e geográfica, apresentada nos Quadros 1 e 2 e na Figura 1, foi reunida a partir da leitura de Steinen (1942)Steinen, K. V. D. (1942). O Brasil Central. Expedição em 1884 para a exploração do rio Xingu. Companhia Editora Nacional., Lima (1950)Lima, P. (1950). Os índios Waurá. Observaçoes gerais: a cerâmica. Boletim do Museu Nacional, Nova Série Antropologia, (9), 1-25., Ireland (1988Ireland, E. (1988). Cerebral savage: the white man as symbol of Cleverness and savagery in Waurá myth. In J. Hill (Org.), Rethinking history and myth (pp. 157-173). University of Illinois Press., 1990)Ireland, E. (1990). Neither warriors nor victims, the Wauja peacefully organize to defend their land. Latin American Anthropology Review, 2(1), 3-12. https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/neither-warriors-nor-victims-wauja-peacefully-organize-defend-their-land
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, Cruz (1989)Cruz, J. S. (1989). Expedição Waurá no rio Batovi [Relatório]. FUNAI., T. Waurá e Ireland (1990)Waurá, T., & Ireland, E. (1990). O chefe Atamai Wauja denuncia a invasão da terra dos Wauja, PIX Aldeia Piyulaga [Manuscrito não publicado]., Txucurramae (1990)Txucurramae, M. (1990). Relatório de viagem ao Batovi. FUNAI., Franchetto (1995)Franchetto, B. (1995). Laudo antropológico: a comunidade indígena Waurá e a “Terra do Batovi”. FUNAI., Pechincha (1996)Pechincha, M. T. S. (1996). Relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Batovi. FUNAI., Myazaki (1998)Myazaki, N. (1998). Etnohistória da região do Alto Xingú: pesquisa interdisciplinar. Parque Nacional do Xingú – Mato Grosso. Museu Nacional de Etnologia da Universidade de são Paulo (MAE/USP)., Mello (1999)Mello, M. I. (1999). Música e mito entre os Wauja do Alto Xingu [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]., Fausto (2004)Fausto, C. (2004). A ocupação Indígena do alto curso dos formadores do rio Xingu e a cartografia sagrada alto-xinguana. Laudo Antropológico para o Ministério Público Federal, MT., Heckenberger (2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge., Robrahn-González (2006Robrahn-González, E. (Coord.). (2006). Programa de Patrimônio Cultural PCH Paranatinga II. Documento Antropologia e Arqueologia Ltda., 2008)Robrahn-González, E. (Coord.). (2008). Programa de Patrimônio Cultural PCH Paranatinga II – Arqueologia colaborativa, etapa 2, instrumentação ao processo de tombamento das paisagens sagradas do Sagihengu e Kamukuwaká, Alto Xingu/MT Documento Antropologia e Arqueologia Ltda./Atiaia Energia., Waurá (2012)Waurá. (2012). Denúncia da aldeia Piyulewene, Terra Indígena do Xingu [Manuscrito não publicado]., Hirooka (2011Hirooka, S. (Coord.). (2011). Rodovia BR-242 Mato Grosso: Relatório final de diagnóstico e prospecção. Archaeo Pesquisas Arqueológicas., 2016)Hirooka, S. (Coord.). (2016). Relatório final de salvamento arqueológico - BR 242/Mato Grosso. Archaeo Pesquisas Arqueológicas., Ball (2018a)Ball, C. G. (2018a). Interdiscursive rivers: protesting the Paranatinga II dam. In Autor, Exchanging words: language, ritual and relationality in Brazil’s Xingu Indigenous Park (pp. 153-181). University of New Mexico Press., Ramos (2019)Ramos, M. (2019). Relatório de andamento: projeto de conservação e registro da Gruta de Kamukuwaká. Associação Indígena Tulukai/Factum Foundation., Lowe (2019)Lowe, A. (Org.). (2019). A Gruta de Kamukuwaká: a preservação de culturas Indígenas no Brasil. Factum Foundation for Digital Technology in Conservation. https://www.factum-arte.com/resources/files/ff/publications_PDF/the_sacred_cave_of_kamukuwaka_book_2019.pdf
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, Waurá (2021)Waurá. (2021). As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku: contadas pelo povo Waujá. Instituto Homem Brasileiro., bem como dos registros de campo (não publicados) das expedições de mapeamento realizadas por Christopher Ball e por Patrícia Rodrigues-Niu junto aos Wauja (citados neste texto como Ball & Rodrigues-Niu, comunicação pessoal, 2018) e de informações orais de anciões e historiadores Wauja.

HISTÓRIAS DO TEMPO CRONOLÓGICO: A PRESENÇA ARAWAK NO KAMUKUWAKEWENE6 6 Para uma síntese do conhecimento sobre o povoamento e a arqueologia no rio Kamukuwakewene, ver Ramos (2020).

As pesquisas etnoarqueológicas, colaborativas e pluridisciplinares desenvolvidas por Michael Heckenberger (1996Heckenberger, M. (1996). War and peace in the shadow of empire: sociopolitical change in the Upper Xingu of Southeastern Amazonia, A.D. 1400-2000 [Tese de pós-doutorado, University of Pittsburgh]., 2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. junto aos Kuikuru permitem afirmar que populações de matriz arawak, ancestrais dos atuais Wauja e Mehinako, ter-se-ão estabelecido nos formadores do Xingu a partir de 800/900 d.C. Essas populações introduziram moldes de ocupação e uso da paisagem que ainda hoje perduram: aldeias circulares com praça central, em ecossistemas de terra-firme, localizadas nas proximidades de lagoas piscosas e de linhas d’água, o cultivo e preparo da mandioca etc. Heckenberger relaciona tais caracteres a uma estrutura sociopolítica e cultural Arawak, baseada na sucessão hereditária, na centralização política e em processos de interação supralocal. A continuidade milenar é observada também no nível da produção cerâmica, sendo notáveis as afinidades técnicas, morfológicas e decorativas entre as cerâmicas arqueológicas (identificadas com a tradição cerâmica Barrancoide) e as cerâmicas Wauja contemporâneas (Heckenberger, 1996Heckenberger, M. (1996). War and peace in the shadow of empire: sociopolitical change in the Upper Xingu of Southeastern Amazonia, A.D. 1400-2000 [Tese de pós-doutorado, University of Pittsburgh].; Toney, 2016Toney, J. R. (2016). Cerâmica e história Indígena do Alto Xingu. In C. Barreto, H. P. Lima, & C. Betancourt (Orgs.), Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese (pp. 224-236). IPHAN/Ministério da Cultura/Museu Paraense Emílio Goeldi.).

O chamado ‘período galáctico’ é marcado por um aumento demográfico exponencial entre 1250 e 1650 d.C. (Heckenberger, 2005Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.). A oeste do rio Culuene, o ‘Complexo Ocidental’ apresenta uma paisagem densamente estruturada, entretecida por uma trama viária monumental que interconecta grandes aldeias a aldeias menores, áreas de roça, pomares e zonas de manejo agrossilvícola, coleta e pesca. Clusters regionais se organizam, então, em torno de aldeias centrais, com densidades populacionais até dez vezes superiores às observadas etnograficamente (Heckenberger et al., 1999Heckenberger, M. J., Petersen, J. B., & Neves, E. G. (1999). Village size and permanence in Amazonia: two archaeological examples from Brazil. Latin American Antiquity, 10(4), 353-376. https://doi.org/10.2307/971962
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) e que funcionam como polos aglutinadores nos momentos dos rituais intercomunitários (Fausto et al., 2008Fausto, C. (2008). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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). Populações ancestrais dos atuais karib alto-xinguanos estão, por essa altura, estabelecidas na região do lago Tahununu, onde grandes residências circulares, associadas a terra preta e cerâmicas, caracterizam, no registro arqueológico, o ‘Complexo Oriental’ (Heckenberger, 2005Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.). A transformação antropogênica em larga escala das paisagens alto-xinguanas ter-se-á iniciado neste período. As chamadas ‘aldeias-jardim’ estarão na origem de vários sítios de Terra Preta Arqueológica (TPA), solos antropogênicos excecionalmente férteis, entendidos como correlato arqueológico de ocupações na longa duração e/ou expressiva densidade demográfica (Schmidt & Heckenberger, 2006Schmidt, M., & Heckenberger, M. J. (2006). Amazonian dark earth formation in the Upper Xingú of southeastern Amazonia, Mato Grosso, Brazil. 71st Annual Meeting of the Society of American Archaeology. https://www.researchgate.net/publication/261360257_AMAZONIAN_DARK_EARTH_FORMATION_IN_THE_UPPER_XINGU_OF_SOUTHEASTERN_AMAZONIA_MATO_GROSSO_BRAZIL
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).

Uma fase transicional, entre meados dos séculos XVII e XVIII, corresponde a movimentos migratórios dos grupos karib do Oriente para o Ocidente, ocasionada por um decréscimo populacional causado pelo avanço das bandeiras e por pressões territoriais de povos aguerridos. Por então, se assiste à confluência das populações arawak e karib e à formação do ‘sistema multiétnico xinguano’. Entre 1750 e 1884 – momento da primeira expedição ao Xingu de Karl von den Steinen (1942)Steinen, K. V. D. (1942). O Brasil Central. Expedição em 1884 para a exploração do rio Xingu. Companhia Editora Nacional. –, o ‘sistema alto-xinguano’ se consolida a partir da confluência de povos de origens distintas – como os tupi Aweti e Kamayurá e os karib Bakairi – enraizado em laços matrimoniais, trocas e numa cosmogonia e ritualística comum (Heckenberger, 2001Heckenberger, M. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Org.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Editora UFRJ.).

A memória indígena, o relato de Karl von den Steinen e demais fontes escritas nos informam que, por meados do século XIX e início do século XX, o rio Kamukuwakewene seria habitado pelos Makaojo (Bakairi) e por grupos arawak Kutanapu (Kustenau) e Wauja, (Franchetto, 1995Franchetto, B. (1995). Laudo antropológico: a comunidade indígena Waurá e a “Terra do Batovi”. FUNAI.; Ramos, 2020Ramos, M. (2020). Paisagens do Alto Xingu: contributos para a avaliação do patrimônio cultural dos rios formadores do Xingu: rios Tamitatoala/Batovi e Culuene. Instituto Socioambiental (ISA).). Por então, os Wauja estavam estabelecidos na região do interflúvio entre o rio Kamukuwakewene e o Tuatuari (Lima, 1950Lima, P. (1950). Os índios Waurá. Observaçoes gerais: a cerâmica. Boletim do Museu Nacional, Nova Série Antropologia, (9), 1-25.; Pechincha, 1996Pechincha, M. T. S. (1996). Relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Batovi. FUNAI.), às margens do rio Ytsawtakuwene (‘rio dos Buritis’, ou Tabapuá, na cartografia; Figura 1), área para a qual se deslocaram após cederem a região do lago Ipavu para os Kamayurá (Kalapalo, 2008Kalapalo & Waurá. (2008). Patrimônio Indígena: história de nossa gente: resgatando a memória, as tradiçoes e os lugares sagrados agora distantes de nós. Instituto de Pesquisa Etnoambiental do Xingu (IPEAX).). No início do século XX, grupos Ikpeng se introduziram na região, tendo como consequência uma intensificação da mobilidade destas populações. É provável que muitos lugares de habitação tenham sido objeto de consecutivos abandonos e (re)ocupações, integrando um movimento de fuga e retração, desencadeado pelas incursões Ikpeng e pelas vagas epidêmicas que assolaram o Alto Xingu (Ireland, 1988Ireland, E. (1988). Cerebral savage: the white man as symbol of Cleverness and savagery in Waurá myth. In J. Hill (Org.), Rethinking history and myth (pp. 157-173). University of Illinois Press.). Entretanto, os Bakairi abandonaram a região, mobilizando-se para Paranatinga. Já na primeira metade do século XX, grupos Jê habitaram as áreas de cabeceira dos formadores do Xingu (Noronha, 1952Noronha, R. (1952). Exploração e levantamento do Rio Culuene, principal formador do rio Xingu. Reconhecimento da verificação ao divisor Arinos-Paranatinga. Fundação dum Pôsto de Proteção aos índios; medição e demarcação de terras para os Bacairi: trabalhos executados pelo ajudante da mesma Comissão: capitão Ramiro Noronha em 1920. CNPI/Departamento de Imprensa Nacional.), entre os quais o Kamukuwakewene, na região hoje correspondente à TI Marechal Rondon, do povo Xavante (Gomilde, 2008Gomilde, M. L. C. (2008). Marãnã Bodödï: a territorialidade Xavante nos caminhos do Ró [Tese de doutorado, Universidade de são Paulo].).

Após a grande epidemia de sarampo da década de 1950, os Wauja se estabelecem nas margens da lagoa Piyulaga, onde o Ytsawtakuwene desemboca no Kamukuwakewene (Ireland, 1988Ireland, E. (1988). Cerebral savage: the white man as symbol of Cleverness and savagery in Waurá myth. In J. Hill (Org.), Rethinking history and myth (pp. 157-173). University of Illinois Press.). A atual aldeia Piyulaga (Figura 1; Quadro 2, n. 6), também conhecida por ‘Waurá’, se localiza a meros quilômetros da aldeia histórica de mesmo nome.

A partir de 1990, observa-se a inversão do movimento histórico de contração. A reexpansão demográfica reflete-se numa reiteração territorial Wauja rumo ao médio curso do Kamukuwakewene. Seis das oito novas aldeias Wauja se localizam em cima ou nas proximidades de antigos assentamentos, sítios arqueológicos com terra preta (TPA), associados a cerâmicas de matriz arawak (Tradição Barrancoide). A demarcação da TI Batovi, em 1998, e a implantação de um Centro Técnico Local (CTL) em seu limite sul resultam desse movimento de restituição territorial (Ireland, 1990Ireland, E. (1990). Neither warriors nor victims, the Wauja peacefully organize to defend their land. Latin American Anthropology Review, 2(1), 3-12. https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/neither-warriors-nor-victims-wauja-peacefully-organize-defend-their-land
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; Maricondi, 1992Maricondi, M. I. (1992). Laudo de vistoria técnica para localização e identificação cartográfica de limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos Waurá / PIX, MT. Fundação Mata Virgem/Núcleo de Direitos Indígenas.; Franchetto, 1995Franchetto, B. (1995). Laudo antropológico: a comunidade indígena Waurá e a “Terra do Batovi”. FUNAI.; Pechincha, 1996Pechincha, M. T. S. (1996). Relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Batovi. FUNAI.). Segue-se a fundação da aldeia Ulupuwene (Figura 1; Quadro 2, n. 38), em torno a 2010, em local alvo de invasões por fazendeiros vizinhos. Entre 2017 e 2021, duas novas aldeias – Topepeweke e Tsekuru/Awá (Figura 1; Quadro 2, n. 26, 31 e 35) – se formam ao longo do Kamukuwakewene, vindo a reanimar lugares nomeados pelas narrativas históricas Wauja.

HISTÓRIAS DE TEMPOS OUTROS: A COSMOGONIA DO RIO KAMUKUWAKEWENE

KAMUKUWAKÁ: A NARRATIVA7 7 Para uma versão mais completa, embora ainda preliminar da história, ver Waurá (2021).

Kamukuwaká e seu povo eram yerupoho, gente extrahumana do tempo em que Kamo (Sol) e Kejo (Lua), os gêmeos criadores da humanidade, habitavam a superfície da terra. Os Wauja falam que os Kamukuwaká eram altos, fortes, espertos, generosos e felizes: Awojotopaapai (“Bonitos!”). Pelo contrário, Kamo era narigudo e tinha pezão. Mutsixapaiyajo. Peyeteyejopai! Iyãupei aitsa awojopai (“Ele é invejoso de verdade. Bravo! Não é pessoa boa”), explica o ancião Awapataku. Ainda assim, Kamukuwaká consentiu que Kamo se casasse com sua irmã Alapokumalu. No entanto, Alapokumalu não amava Kamo. Ele não era bonito e tratava mal sua família. Então, ela fugiu com Wapixuma (o hiper-peixe-cachorro) para sua aldeia em Matowojo (Figura 1; Quadro 2, n. 1). Em face da rejeição da esposa, Kamo, invejoso e irado, decidiu destruir o povo de Kamukuwaká.

Kamo aprisionou os jovens líderes na oca do chefe, transformando-a em pedra. Criou seres devoradores na forma de macaco-guariba e de pássaros de bico duro e disse: Piya pãixene naalahã! (“Vai e come eles!”). Porém, ao entrarem na casa, Kamukuwaká cumprimentou-os e acolheu: Natsi atu? Mana papakata aitsu, onãihata ãixatapawogou atú, majoju iyapawo papojepeiyiu (“O que deseja, avô? Venha cantar e comer conosco, avô, nós vamos cuidar de si”), e os animais decidiram ficar com o chefe em sua residência. A casa se encheu de música, enquanto os jovens desenhavam peixes, vaginas e outras tantas coisas belas nas paredes da casa de sapé tornada pedra.

A partir de uma abertura talhada na rocha pelas aves de bico duro, então familiarizadas, os Kamukuwaká fugiram para o céu, perseguidos pela grande cobra Kapisalapi, engendrada por Kamo, da perneira da esposa que o abandonou. Mas Alaweru, irmã mais velha de Kamukuwaká, foi cortando a grande cobra com um facão. Os pedaços cortados do corpo de Kapisalapi atirados ao rio se transformaram em uma espécie de peixe elétrico que ainda hoje existe na região da gruta.

Os jovens líderes buscavam se refugiar em Kupoxatopoho, a aldeia do Povo dos Pássaros. Porém, no rio celeste Irapuwene (a Via Láctea), erraram o caminho, indo parar na Yanumakapoho, a aldeia das Onças (Figura 2). Lá, muitos foram capturados e cozidos na panela de cozinhar mandioca das onças. Mas Kamukuwaká conseguiu matar as onças. Ele ofereceu colares de garra de onça aos seus companheiros cozidos, que lhe responderam: Aitsamiya nutukapawa kata netsei, nusixene, nukamalatopaiyiu, napujukakonene (“Eu não vou ficar com esse colar. Eu já queimei, fiquei feio, já fui cozido”). Apenas aqueles que não foram cozidos aceitaram os colares.

Figura 2
Ilustração do Povo de Kamukuwaká subindo às aldeias no céu; o caminho reto para a aldeia do Povo dos Pássaros e o caminho curvo para a aldeia do Povo das Onças.

O episódio final da saga conta sobre a descida dos Kamukuwaká de volta a terra e rio abaixo, rumo ao encontro de Alapokumalu, em Matowojo. Mas os companheiros cozidos na Aldeia das Onças foram ficando pelo caminho, dizendo: Niya nutakape-eu, nutaunape katanaiyiuno, nusixeniu, nukamalatotaiyiu-hã (“Eu vou descer, vou morar aqui, eu já queimei e fiquei feio”). Conta-se que nos locais onde os companheiros cozidos ficaram se formaram as aldeias Tukumatapipona, Kapulutakã, Alaixune, Meheperianuma, Malukaiya, Topepeweke, Makulapuku, Mayapirin, Tsekuru, Awanuma, Ayakajohapa, entre outras (Figura 1; Quadro 2, n. 17, 19, 20, 22, 25, 26, 28, 30, 31, 32).

KAMUKUWAKÁ: O CHEFE PROTÓTIPO

A história de Kamukuwaká veicula a imagem xinguana de líder prototípico, oferecendo uma crônica de sua índole e disposições, bem como de seus erros, para imitação e evitação, ensinando às futuras chefias xinguanas (os amunau, em Wauja) certos aspectos de regra e comportamento. Nela, encontramos instruções detalhadas sobre a arte nobre de incorporar a alteridade que atravessa os domínios das relações de parentesco e afinidade, regras matrimoniais, cooperação e trocas rituais, domesticação de apapaatai (animais ou seres monstruosos), evitação de guerra e de canibalismo, culminando em importantes preceitos e precedentes no campo da posse territorial.

A reclusão pubertária masculina, tema central de um dos trechos da saga, é um período de elevado potencial transformativo, induzido pelo isolamento e solidão, jejum e ingestão de ervas medicinais (A. Waurá, 2021Waurá, A. (2021). Wauja O̱ náka, O̱ nakiyejetuwãpitsana: reclusão pubertária, saúde, beleza e o saber-fazer do algodão [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Goiânia].), em que os futuros líderes fabricam seus corpos adultos – de chefes – e incorporam os afetos que estes comportam. Ao acolherem o guariba e os pássaros de bico duro com a deferência devida à sua condição ontológica ancestral, os heróis concretizam a domesticação/familiarização de seres potencialmente perigosos em seu estado kumã (“hiper/genuíno”; Barcelos Neto, 2008Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai. Rituais de máscaras no Alto Xingu. Edusp.; Ball, 2011Ball, C., (2011). As spirits speak: interaction in Wauja exoteric ritual. Journal de la Société des Américanistes, 97(1), 87-117. https://doi.org/10.4000/jsa.11657
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). Saudando-os como ‘avós’, a performance discursiva predica atributos e virtudes domésticas a seres até então ferozes e devoradores, ao passo que a prática de comensalidade e a produção de beleza e bem-estar (kotepemonapai, ou “alegria”; Barcelos Neto, 2012Barcelos Neto, A. (2012). A origem da arte e o gosto estético entre os Wauja do alto Xingu. In M. C. von Zuben, M. L. G. C. Mendes, K. C. A. Souza & J. G. Vieira (Orgs.), Sujeito, saberes e práticas sociais (pp. 99-134). UERN.) consubstanciam a sua transformação em entidades protetoras por meio do parentesco. O papel regenerativo e pacificador da arte (beleza e alegria)8 8 Sobre o lugar da beleza e da produção de alegria no quotidiano Wauja, ver Barcelos Neto (2012); sobre sua relação com saúde e fabricação de corpos, ver A. Waurá (2021). é indicado (indexado) pela música dos pássaros e pelos grafismos desenhados nas paredes da gruta.

Quadro 1
Elementos registrados na área do Kamukuwaká.
Quadro 2
Relação não extensiva de elementos da geografia Wauja (vide Figura 1). Legenda: * = lugares sem informação geográfica e/ou localizados a montante dos mapeamentos realizados até a data.

O episódio final da saga estabelece um nexo entre beleza, chefia e território. No céu, o caminho torto, para a Aldeia das Onças, conduz à guerra e à fealdade. O processo de morte por cozimento, incompleto (ou ‘revertido’), leva à transformação (e ‘ressurreição’) corpórea9 9 A este respeito, resulta elucidativa a releitura da tríade levi-straussiana “cru-podre-cozido”, à luz da semiótica peirceana, por Chloe Nahum-Claudel (2020). A autora sustenta que, entre os Enawenê-Nawê, falantes Arawak, a culinária, tal como a arte e a cura, é uma tecnologia fulcral na regeneração de corpos humanos e de seu estatuto ontológico no mundo dos vivos, fundado na maestria pirotécnica. Assim, “controlling fire is thus about exercising mastery over the sliding scale between death and life and aspiring to corpulence, strength, vitality, and productivity” (Nahum-Claudel, 2020, p. 430). em alguns dos Kamukuwaká. Os companheiros cozidos, maculados em sua beleza original, com vergonha/respeito (aipitsiki, em Wauja; Ball, 2007Ball, C. G. (2007). Out of the park: trajectories of Wauja (Xingu Arawak) language and culture. The University of Chicago., p. 80), decidem ficar pelo caminho. Estes chefes menores inauguram vários assentamentos às margens do rio Kamukuwakewene; uma ocupação por entes extra-humanos que legitima, num tempo não linear e para sempre, a integridade de um território ancestral Wauja. Nas palavras de Christopher Ball (2018a, pp. 168-172), a história de Kamukuwaká constitui simultaneamente “a Wauja geography, with each place bearing its first chief’s name . . . [and] a complex political statement about territory and authority”.

KAMUKUWAKÁ: A PAISAGEM TOMBADA

Kamukuwaká virou nome da aldeia onde o chefe habitava com o seu povo. A história se consubstancia ali em inúmeros elementos, nomeados pelos Wauja, que atestam, materialmente, a ocupação vetusta e continuada da região e o vínculo com os povos xinguanos (Figura 1; Quadros 1, n. 48). O abrigo rupestre conhecido por Gruta de Kamukuwaká (Kamukuwaká Opona, a ‘casa de Kamukuwaká’) é uma cavidade arenítica, na margem esquerda do rio, adjacente à cachoeira de nome não indígena Salto da Alegria (Kamukuwaká Okunula, o ‘portão de Kamukuwaká’).

Antes de sua violenta depredação em 2018, um painel rupestre profusamente insculpido com gravuras adornava a face nordeste do abrigo (Figuras 3 e 4). A história explica que os jovens líderes em reclusão insculpiram motivos que colorem o quotidiano e trazem alegria aos alto-xinguanos, como kupato (peixe), kupato onapo (espinha de peixe), sapalaku (‘uluri’, o protetor pubiano feminino), tiñapu (vagina) e kulupiyene (que adornam a cesto-cobra tecida de música por Arakuni; Barcelos Neto, 2006, 2011). Os Wauja associam essas representações a grafismos corporais, de cerâmicas, de cestas que integram o repertório dos grafismos alto-xinguanos (K. Waurá, 2013Waurá, K. (2013). Origem da pintura do povo Wauja. Waujanãu O̱ gana O̱ napukãtakú. UNEMAT – Diretoria de Gestão de Educação Escolar Indígena.; A. Waurá, 2018Waurá, A. (2018). Arte gráfica e pintura corporal do povo Wauja. Wauja Ogananala Ogana [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal de Goiás].; Figuras 5 e 6).

Figura 3
Detalhe de gravuras rupestres da Gruta de Kamukuwaká antes do picoteamento.
Figura 4
O historiador Akari Waura conta a história da Gruta de Kamukuwaká a jovens indígenas, diante do painel destruído.
Figura 5
Gravura de motivo kupato na Gruta do Kamukuwaká.
Figura 6
Motivo kupato representado em máscara de Sapukuyawa.

Também nas praias próximas e no leito do rio se encontram blocos com inscrições rupestres afins, bem como áreas de extração e refugo de matéria-prima lítica (arenito silicificado) e de polimento de machados de pedra (Robrahn-González, 2006, 2008; Hirooka, 2016Hirooka, S. (Coord.). (2016). Relatório final de salvamento arqueológico - BR 242/Mato Grosso. Archaeo Pesquisas Arqueológicas.; Ramos, 2019Ramos, M. (2019). Relatório de andamento: projeto de conservação e registro da Gruta de Kamukuwaká. Associação Indígena Tulukai/Factum Foundation.). Várias outras formações rochosas encontram sua origem na história. A casa de Kamo – Kamo Opona – é uma parede pétrea com uma pequena cachoeira com cavidades circulares (marmitas), apelidadas de armadilhas de peixe de Kamo. A cachoeira é o dorso da grande cobra Kapisalapi petrificada, cujo estrondo os viajantes ainda hoje escutam com terror, ao pernoitarem perto da gruta.

Remanescentes cerâmicos e líticos, bem como plantas de relevância medicinal e espécies frutíferas encontram-se dispersos no entorno do abrigo. Conta-se que, outrora, eram também abundantes na região as espécies de peixe e de pássaros geradas na história. Na mesma margem, adentrando a mata, uma área de clareira é identificada pelos Wauja com a antiga aldeia Topapoho, de ocupação histórica Bakairi (‘Aldeia da Pedra’) (Quadro 1).

Reconhecendo um vínculo entre os grupos alto-xinguanos e as gravuras de Kamukuwaká, Heckenberger (1996Heckenberger, M. (1996). War and peace in the shadow of empire: sociopolitical change in the Upper Xingu of Southeastern Amazonia, A.D. 1400-2000 [Tese de pós-doutorado, University of Pittsburgh]., 2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. sugere que a gruta e os vestígios líticos do entorno poderão representar uma ocupação mais remota do que as registradas no interior do TIX. O autor levanta a hipótese de o sítio se relacionar com o período pré-cerâmico (Tradição Itaparica, do Holoceno Antigo e Médio, entre 10.000 e 3.000 B.C.; Marques & Hilbert, 2009Marques, M., & Hilbert, K. (2009). A tradição (arqueológica) Itaparica: a materialidade textual e a semantização dos objetos. Revista Trajetos, 7(13), 68-80.) e/ou com o período cerâmico inicial (Tradição Una, de 500 B.C. a A.D. 1.200; Wüst & Barreto, 1999Wüst, I., & Barreto, C. (1999). The ring villages of central Brazil: a challenge for Amazonian archaeology. Latin American Antiquity, 10(1), 3-23. https://doi.org/10.2307/972208
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). Trabalhos etnoarqueológicos na área poderão apurar esta hipótese.

Igualmente relevante seria estudar as semelhanças entre Kamukuwaká e outros abrigos com arte rupestre etnograficamente associados a povos indígenas e arawak. Mencione-se, por exemplo, os espaços sagrados Abrigo 1/Gruta da Prainha e Véia Péia, localizados em território atemporal dos arawak Haliti-Paresi10 10 Identificados nos levantamentos de Arqueologia Preventiva no âmbito do licenciamento ambiental das PCH Sacre 2, Garganta Jararaca, Baruíto e Inxú (Moi et al., 2009; Robrahn-González, 2004; Hirooka, 2018). Embora se tenham recuperado materiais cerâmicos e líticos via escavações arqueológicas (Robrahn-González, 2004), carece-se de informação cronológica sobre as ocupações que estarão na origem das gravuras. , em Campo Novo dos Parecis. Ambos se localizam em pontos axiais do rio do Sangue, de alta relevância cosmogônica para os Haliti-Paresi; ambos apresentam gravuras que prefiguram grafismos ainda hoje utilizados pelos Haliti-Paresi e Enawenê Nawê em pinturas corporais, objetos e tatuagens (Moi et al., 2009Moi, F. P., Souza, E. R., Morales, W. F., & Paresi, R. W. A. (2009). Memória e oralidade: interpretação de grafismos rupestres entre os Aruak do noroeste do estado de Mato Grosso, Brasil. In W. F. Morales & F. P. Moi (Org.), Cenários regionais em arqueologia brasileira (pp. 205-237). Annablume.). A instalação de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) e o uso indevido das áreas como balneário vêm colocando em risco a preservação destes lugares sagrados. A situação reverbera uma realidade tragicamente comum, que em muito extravasa o Alto Xingu11 11 Outros abrigos com arte rupestre foram identificados, por exemplo, em levantamentos preventivos no Rio Claro, região dos Haliti-Paresi e Nambikwara (Teles & Melo, 2019). .

KAMUKUWAKEWENE: OS PERCURSOS COSMOGÔNICOS

Os levantamentos efetuados deixam claro que, não obstante a densa conjunção de elementos etno-históricos no entorno da Gruta do Kamukuwaká, as práticas e histórias que lhes dão sentido extrapolam em muito a área atualmente tombada (Figura 1). A aldeia do herói constitui um ponto axial de onde radicam percursos rio acima – quando, por exemplo, Kamo, em perseguição de Kamukuwaká, transpõe a região de Teme Otopa (Figura 1; Quadro 2, n. 51) – e rio abaixo – quando os Kamukuwaká, descidos dos céus, rumam a Matowojo (Figura 1; Quadro 2, n. 1), fundando múltiplas aldeias pelo caminho. A montante da gruta, as corredeiras de Teme Otopa (Pedra da Anta) formam uma barreira pétrea no rio com cerca de 2 km de extensão. Anciãs(ões) Wauja contam ser aí a residência e o túmulo de duas antas ancestrais (hiperantas) mortas por Kamo, que, de sua queda e morte, se transformam em pedra, jazendo eternamente na forma de ilhotas no rio. Conta-se que, tal como em Kamukuwaká, aí habitam animais fantásticos e colossais – sucuris, macacos, porcos de água – que protegem o acesso à Casa da Anta, por isso nem canoa nem pessoa passam pelo rio, devendo-se contornar a pé todo o pedral.

Além dos episódios de Kamukuwaká, múltiplas outras histórias têm por contexto o alto Kamukuwakewene. A história de Kamaluhai, a cobra-canoa, conta sobre a origem do barro, das panelas e do saber-fazer cerâmico legado ao povo Wauja (Barcelos Neto, 2000Barcelos Neto, A. (2000). Panelas que cantam e que devoram: a cerâmica wauja. In J. P. Brito (Org.), Os índios, nós (pp. 136-153). Museu Nacional de Etnologia., 2006Barcelos Neto, A. (2006). A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (15-16), 357-370. https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2006.89727
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). Anciãs(ões) contam que Kamaluhai escapou de uma das panelas que guardavam a água do mundo. Kamo (Sol), em busca de água para os seres humanos, viajou até a Aldeia do Dono das Panelas e quebrou os grandes potes cerâmicos. De dentro, escaparam seres monstruosos e saltitantes que cravaram na paisagem os rios formadores do Xingu.

Não existe consenso sobre onde, ao certo, se localiza a Aldeia do Dono das Panelas, lugar na origem da água no mundo. Porém, os Wauja são unânimes em afirmar que Kamaluhai desceu das cabeceiras do Kamukuwakewene, passando por Kamukuwaká12 12 Na aldeia Topapoho, a cobra-canoa deu um pedaço de kamalu (suas fezes, ou barro, na perspectiva humana) a uma senhora bakairi. A narrativa faz, assim, referência a trocas rituais outrora estabelecidas entre os Wauja e os Bakairi, por ocasião de celebrações em Topapoho. , rumo à região do Wakunuma (Figura 1; Quadro 2, n. 5) – ponto de coleta de barro cinzento no rio Kamukuwakewene, a sul da atual Aldeia Piyulaga. Conta-se, ainda, que Kamo visitou Ukupoho (“Aldeia do Flechal do Itseixumã”, o Dono do Fogo, Figura 1; Quadro 2, n. 52), para roubar as flechas utilizadas para quebrar as panelas de água. Ukupoho, Sapalakupoho (“Aldeia do Uluri”), entre outros lugares a montante de Kamukuwaká, integrariam as antigas expedições de coleta rio acima, em busca de recursos exclusivos da região, como os pequenos seixos para polir cerâmicas e certas resinas e espécies vegetais13 13 São abundantes as histórias sobre a árdua tarefa de carregar a canoa por terra até o outro lado da cachoeira de Kamukuwaká e das múltiplas corredeiras da Pedra da Anta. Algumas viagens chegavam às fazendas dos brancos na região de Paranatinga, onde se trocavam recursos nativos por açúcar e instrumentos de metal. .

Mencione-se, ainda, a saga de Yakuwixeku e seus irmãos pelo rio Ytsawtakuwene (‘rio dos Buritis’, ou Tabapuá; Figura 1, Quadro 2, n. 4), no interflúvio entre o rio Kamukuwakewene e o Tuatuari. Esta história se relaciona com a de Kamukuwaká por meio de múltiplas reincidências e percursos, não na terra, mas no céu, bem como na iteração de conhecimentos vinculados ao Pohoka. Os Wauja contam que, sentindo fome, Yakuwixeku e seus irmãos saem em pescaria. Partindo de sua aldeia Matupoho, os irmãos param em várias aldeias às margens do Ytsawtakuwene, em busca de mingau doce (Quadro 2). A fome aumenta em razão da distância-tempo percorridos em busca de peixe e de mingau doce, e a noite cai, enquanto o desejo insistente (wintsixui; Barcelos Neto, 2007Barcelos Neto, A. (2007). W?tsixuki: desejo alimentar, doença e morte entre os Wauja da Amazônia meridional. Journal de la Société des Américanistes, 93(1), 73-95. https://doi.org/10.4000/jsa.6533
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) tolda o ânimo dos irmãos. Alcançando a casa invisível Painyeinyaka (Figura 1; Quadro 2, n. 8), terra e céu se imiscuem e se espelham: Yakuwixeku sobe ao rio celeste Irapuwene (a Via Láctea), carregado pelo peixe-pintado tornado canoa. Os irmãos visitam a Aldeia dos Pássaros, onde assistem ao Pohoka de Soutojo (o filho ararinha de Yakuwixeku). No retorno à terra, Yakuwixeku ensina os cantos da cerimônia ao seu povo Wauja (Waurá, 2021Waurá. (2021). As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku: contadas pelo povo Waujá. Instituto Homem Brasileiro.).

As narrativas aqui esboçadas evidenciam a contiguidade histórica e espaço-temporal entre lugares dentro e fora da ‘Paisagem Cultural de Kamukuwaká’, nome formal dado à área atualmente tombada (Figura 1). Em destaque, nas narrativas, estão os percursos, mais do que os lugares, e os encontros com a alteridade que o ato da viagem potencializa.

As histórias da Pedra da Anta, da Kamaluhai, da Aldeia do Dono das Panelas e da Aldeia do Flechal do Itseixumã integram, tal como Kamukuwaká, o corpus mítico dos yerupoho (seres extra-humanos), relatando as aventuras, traquinices e querelas de Kamo e Kejo (Sol e Lua) e sua viagem rumo às cabeceiras do rio Kamukuwakewene. Essas histórias reportam-se a um tempo outro, uma antiguidade originária para além do tempo linear. A história de Yakuwixeku se destaca, no conjunto, por remeter ao tempo dos primeiros humanos, os atutupãnau (‘vovôs’ dos Wauja). Este é o tempo dos antepassados, o tempo de uma genealogia remota, por vezes referido por nossos colegas Wauja como ‘tempo do meio’. Não coincidentemente, a história de Yakuwixeku se refere à paisagem terrestre não do Kamukuwakewene, mas do Ytsawtakuwene (Figura 1), seu afluente, no interflúvio entre este e o rio Tuatuari, onde os Wauja habitariam nos finais do século XIX.

Essas ‘histórias do início’ (tempo dos yerupoho) e ‘histórias do meio’ (tempo dos primeiros humanos, vovôs dos Wauja) compõem o conjunto das aunaki yaji, as ‘histórias de verdade’14 14 Além das aunaki yaji, as ‘histórias de verdade’, mencione-se as chamadas aunaki tai (‘pequenas ou meras histórias’), testemunhos e relatos factuais da história recente – por exemplo, a história de invasões e confrontos com os Ikpeng, as interações com os Bakairi e os processos invasivos da monocultura e definição de limites territoriais indígenas (Ireland, 1988). Ambas as modalidades narrativas descrevem diferentes facetas e ocupações dos mesmos lugares. . É no céu, por ocasião do ritual Pohoka na Aldeia dos Pássaros (com quem Kamukuwaká e Yakuwixeku compartilham relações de parentesco), que os ‘tempos do meio’ se entrelaçam com os ‘tempos do início’, emparelhando percursos do alto Kamukuwakewene e do Ytsawtakuwene. A ligação firmada pela transmissão do saber-fazer ritual tem como corolário a transposição de relações de parentesco, ancestralidade e, por via destes, prerrogativas que fazem de Yakuwixeku, o primeiro chefe Wauja, herdeiro e ‘substituto’ (keweintsapai) de Kamukuwaká.

COSMOPOLÍTICA TERRITORIAL WAUJA

Nesta seção, discute-se o que se vem aprendendo, a partir da aplicação de perspectivas da etnografia arqueológica, sobre o lugar do passado antropogênico, de Kamukuwaká e do alto curso do rio Kamukuwakewene na cosmovisão e na cosmopolítica territorial Wauja.

Sítios arqueológicos ricos em recursos (como TPA, espécies vegetais comestíveis, medicinais ou utilitárias, abundância de caça etc.), associados no discurso arqueológico às ‘aldeias-jardim’ do período galáctico, são interpretados pelos Wauja como putakepe [putaka (‘civilização/aldeia’) + pe (irrealis)], aldeias de povos ancestrais extra-humanos, os yerupoho, e manifestações/resíduos terrestres das aldeias no céu. Nódulos vitais na teia de relações ecológicas que sustentam a regeneração da floresta, estes espaços configuram, por um lado, importantes áreas de manejo e conservação e, por outro, zonas preferenciais para a implantação de ‘novas’ aldeias. O uso de recursos e, sobretudo, a abertura de roças e de espaços domésticos no interior ou nas proximidades de um putakepe implica, no entanto, a gestão de delicadas relações entre humanos e não humanos, mediadas por relações entre chefes, de humanos e de não humanos, seres da floresta e das águas, espíritos donos de animais, peixes e espécies vegetais – os uwekeho (yerupoho ou hiperseres, por vezes em sua forma animal de apapaataikumã).

Uwekeho, traduzido como ‘dono’ ou ‘mestre’, é uma forma nominal de construção possessiva na 3a pessoa: ‘seu dono’. O termo poderá radicar da raiz weke, na glosa ‘crescimento’ ou ‘fazer crescer’. Essa hipótese é consistente com observações de Rodrigues-Niu por entre os Wauja, que indicam uma equivalência conceitual entre ser dono e ser cuidador de algo15 15 Ver Brightman et al. (2016) e Fausto e Neves (2018). . Com efeito, os processos de cuidado e consubstanciação que parecem caracterizar ‘posse’ de terra tomam, na prática ecológica Wauja, a forma de uma economia de trocas transespecífica. Neste sentido, ‘território’ – tomado como o efeito do ‘fazer crescer’ a terra (e não um direito de uso e ocupação) – pode ser descrito como um tecido de relações afiliativas, cujo manejo é central aos processos de fabricação de corpos e pessoas, particularmente, de chefes. A gestão de tais relações sociais interespecíficas pressupõe a nobreza de temperamento e conduta, assim como o saber-fazer ritual de beleza, alegria e bem-estar da qual Kamukuwaká, o chefe protótipo, é expoente máximo.

Em outras palavras, dos chefes se espera a modéstia e generosidade exemplificada pelo herói, como forma de manter controle sobre as condições de consubstanciação ancestral, em face do risco constante de reversibilidade entre filiação e afinidade (Fausto, 2008Fausto, C., Franchetto, B., & Heckenberger, M. (2008). Language, ritual and historical reconstruction: towards a linguistic, ethnographical and archaeological account of Upper Xingu Society. In D. Harrison, D. S. Rood & A. Dwier (Eds.), Lessons from documented endangered languages (pp. 129-158). John Benjamins.), ancestralidade e monstruosidade. Por ‘consubstanciação ancestral’ se entenda o modo pelo qual simultaneamente se atualiza o ‘passado’ no chefe e se faz crescer o território como ‘duplo’ de seu corpo (Heckenberger, 2007Heckenberger, M. (2007). Xinguano heroes, ancestors, and others: materializing the past in chiefly bodies, ritual space, and landscape. In C. Fausto & M. Heckenberger (Org.), Time and memory in indigenous Amazonia: anthropological perspectives (pp. 284-311). University Press of Florida.; Costa, 2018Costa, L. (2018). The owners of kinship: asymmetrical relations in indigenous Amazonia. HAU Books.). Aipitsiki (“vergonha-respeito”; Ball, 2007Ball, C. G. (2007). Out of the park: trajectories of Wauja (Xingu Arawak) language and culture. The University of Chicago., p. 80) se apresenta como um método de contenção vital no contexto da produção de domesticidade em espaços ocupados por donos poderosos, como é o caso de Kamukuwaká e outros proeminentes sítios arqueológicos.

Os Wauja dizem sobre estes espaços que os yerupoho “foram embora” da superfície da terra, mas “continuam morando ali, só que invisíveis” aos olhos de pessoas comuns. Uma ambiguidade espaço-temporal marcada pela existência no passado, mas também no presente – tornando-se antiga, ‘ancestral’ e ‘original’ –, caracteriza paisagens arqueológicas. Argumenta-se aqui que, no Xingu, essa ambiguidade extravasa o tempo linear, se expressando na forma de uma ‘concomitância de planos’, conforme descrito por Müller (1990)Müller, R. (1990). Os Asurini do Xingu (história e arte). Editora da Unicamp. e por Silva (2002)Silva, F. A. (2002). Mito e arqueologia: a interpretação dos Asurini do Xingu sobre os vestígios arqueológicos encontrados no parque Indígena Kuatinemu-Pará. Horizontes Antropológicos, 8(18), 175-187. https://doi.org/10.1590/S0104-71832002000200008
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para os Asurini do Xingu; uma multiplicidade e transitabilidade entre ‘mundos’ conceptualizáveis como planos ‘passados’ e ‘presentes’, coexistindo simultaneamente no espaço.

A noção de sítios arqueológicos como lugares ambíguos, densamente multitemporais, não se dissocia da possibilidade do espaço em si, ou melhor, das distâncias que o perfazem, como operador temporal e vetor de liminaridade, na esteira da tese de Ellen Basso (1981)Basso, E. (1981). A "Musical view of the universe": Kalapalo myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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. Basso (1981, p. 278)Basso, E. (1981). A "Musical view of the universe": Kalapalo myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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alude à liminaridade como qualidade do espaço ao discutir a viagem como recurso narrativo em mitos Kalapalo e seu papel na construção da distinção entre a aldeia, espaço “social, previsível e ordinário”, e a floresta, como espaço perigoso, “antisocial, mágico, ambíguo e liminar / aldeias de seres poderosos”.

A noção de ‘concomitância de planos’ se coaduna igualmente com a acepção de ‘coexistência’, avançada por Nicole Soares-Pinto (2017, p. 77)Soares-Pinto, N. (2017). De coexistências: sobre a constituição de lugares djeoromitxi. Revista de Antropologia da UFSCar, 9(1), 61-82. https://doi.org/10.52426/rau.v9i1.180
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como expressão do fato de que “a aldeia dos vivos é continuamente inventada porque coexiste [se diferencia dos / se relaciona] com os lugares que são a marca da domesticidade de Outros”. Em sua análise sobre a constituição de lugares djeoromitxi, a autora sugere que a produção de vida conjunta entre Outros – seres primordiais, não humanos, espíritos e não indígenas – se encontra implicada na necessidade permanente de se recriar o “território dos vivos” e se estabilizar, sempre relativamente, sua domesticidade (entendida como “a maneira como ele aparece sob a perspectiva dos humanos”).

Propõe-se que assim se entenda a reiteração insistente dos percursos e práticas territoriais Wauja que colocam em relação as atuais aldeias dos vivos (aldeias atualizadas), as aldeias antigas (novas aldeias em potencial) e os espaços ancestrais no alto curso do Kamukuwakewene. Figurado na narrativa como acesso para as aldeias no céu (Figura 2), o orifício no teto da gruta de Kamukuwaká sinaliza essa posição ambígua e liminar entre o presente e o passado, socialidade (Aldeia dos Pássaros) e antissocialidade (Aldeia das Onças), interioridade (filiação) e exterioridade (afinidade) e o potencial de magnificação associado à manutenção dessas diferenças de perspectiva.

Curiosamente, o céu djeoromitxi é referido por Nicole Soares-Pinto (2017)Soares-Pinto, N. (2017). De coexistências: sobre a constituição de lugares djeoromitxi. Revista de Antropologia da UFSCar, 9(1), 61-82. https://doi.org/10.52426/rau.v9i1.180
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como lugar onde se “desfaz o tempo”, concretizando uma espécie de “curto-circuito na diacronia”, onde a história de relações espaciais e genealógicas “se dobra” sobre si mesma. Sugere-se aqui que, de igual forma, Kamukuwaká e Yakuwixeku, mitos fundacionais da cultura Wauja, são sobre o transcorrer de distâncias – no céu e na terra, no tempo e no espaço – que se dobram sobre si mesmas, desfazendo o tempo cronológico e reinscrevendo a chefia na espacialidade. Conforme hipótese levantada por Christopher Ball (2018b)Ball, C. G. (2018b, jul.). The past is upriver. In 56o Congresso Internacional de Americanistas, Universidade de Salamanca., “a reocupação do Batovi é um movimento [dos Wauja] em direção ao passado”.

Antônio Guerreiro (2016, p. 47 e 50 [ênfase adicionada])Guerreiro, A. (2016). Do que é feita uma sociedade regional? Lugares, donos e nomes no Alto Xingu. Ilha Revista de Antropologia, 18(2), 23-55. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p23
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reflete sobre as imagens “de movimento e conexão entre lugares” nos discursos cerimoniais Kalapalo, apontando para a representação do “o Alto Xingu como uma rede de donos – singulares e coletivos –, geograficamente localizados e conectados por [...] memoráveis caminhos”. O movimento de pessoas por percursos que conectam centros rituais é descrito, por Carlos Fausto (2005, p. 20)Fausto, C. (2005). Entre o passado e o presente: mil anos de história Indígena no Alto Xingu. Revista de Estudos e Pesquisas, 2(2), 9-51. https://jyvukugi.files.wordpress.com/2012/02/carlos-fausto_xingu.pdf
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, como prática fundacional do sistema multiétnico, passível de remontar, a julgar pela materialidade arqueológica, aos primórdios do sistema galáctico (1250 a 1650 d.C.):

. . . abrir estradas monumentais (sem instrumentos de metal), respondia a imperativos de uma “economia da grandeza” (Sahlins, 1990Sahlins, M. D. (1990). The political economy of grandeur in Hawai’i from 1810 to 1830. In E. Ohnuki-Tierney (Ed.), Culture through time: anthropological approaches (pp. 26-56). Stanford University Press.). O que estava em jogo era o prestígio, a grandeza das aldeias e de seus chefes . . . . por essas estradas deslocavam-se aldeias inteiras, convidadas para participar de grandes eventos rituais, em que se negociava um mundo sociocultural comum.

No atual contexto de fracionamento e reterritorialização Wauja – compreendendo o simultâneo restabelecimento da domesticidade dos espaços e da ordem político-social (após falecimento de dois chefes principais: Kamalá, em 2017, e Awaulukumã, em 2019) – esta ‘economia da grandeza’ das aldeias e de seus chefes não se dissocia de rotas que relacionam o presente a um passado e uma chefia original. Nas palavras de Antônio Guerreiro (2016, p. 37)Guerreiro, A. (2016). Do que é feita uma sociedade regional? Lugares, donos e nomes no Alto Xingu. Ilha Revista de Antropologia, 18(2), 23-55. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p23
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, “a relação entre um dono e aquilo que ele ‘possui’... parece ser apenas ativada em uma relação de confronto ou troca com outro dono em potencial”. Conclui-se que é nas conexões que estabelecem que Kamukuwaká e outros lugares na região das nascentes “elaboram um território marcado por linhas de virtualidade” (Soares-Pinto, 2017Soares-Pinto, N. (2017). De coexistências: sobre a constituição de lugares djeoromitxi. Revista de Antropologia da UFSCar, 9(1), 61-82. https://doi.org/10.52426/rau.v9i1.180
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, p. 62).

Localizado em plena frente agropecuária, o lugar do ritual de iniciação das lideranças se atualiza como fronteira entre mundos. Nos discursos Wauja, o topônimo adquire o sentido de reinícios e coexistências; uma “ouverture à l’Autre” (Lévi-Strauss, 1991Lévi-Strauss, C. (1991). Histoire de Lynx. Plon.), expressa no fato de que Kamukuwaká acolhe, em seu lar, Kamo e suas criações predatórias, transformando seus atos de agressão em beleza. De igual forma, as reivindicações territoriais Wauja se apoiam em estratégias de inclusão da diferença: a apropriação de instrumentos como o tombamento de Patrimônio da União e de conceitos como o do ‘sagrado’ e do ‘ecoturismo’ revela, em seu essencialismo estratégico, um gênio voltado para a diplomacia. Os Wauja se propõem a compartilhar esta paisagem com vizinhos, nação e humanidade, apelando ao cuidado e à sua fruição ecológica, cultural e ecoturística.

ARQUEOLOGIA PREVENTIVA FORA DO TIX

Na região a montante do TIX, no alto curso dos rios formadores, trabalhos de Arqueologia Preventiva16 16 O termo Arqueologia Preventiva ou de Contrato se refere a trabalhos de avaliação, resgate e mitigação de impactos sobre o patrimônio arqueológico, vinculados ao licenciamento ambiental de empreendimentos. Para um compêndio da informação disponível para o Alto Xingu, ver Ramos (2020). vêm identificando inúmeros sítios arqueológicos (Figura 1, em amarelo). Apesar da superficialidade destes estudos, registram-se afinidades entre materiais cerâmicos recuperados e os estudados por Michael Heckenberger para o interior da área demarcada do TIX (Hirooka, 2007Hirooka, S. (coord.) (2007). Relatório final de salvamento arqueológico Culuene - PCH Paranatinga II (1a etapa). ECOSS., 2016; Robrahn-González, 2006; Juliani, 2018Juliani, L. J. C. O. (Coord.). (2018). Programa de gestão do patrimônio arqueológico na área de implantação da LT 230 kV Paranatinga - Canarana e instalaçoes associadas - município de Água Boa/MT. A Lasca Arqueologia.), indiciando continuidade e vínculo cultural.

Realizados no âmbito de processos de licenciamento ambiental, a maioria destes trabalhos se limita a cumprir as exigências mínimas e necessárias para obter a anuência dos empreendimentos. Perpetuam-se, por via de regra, as abordagens fragmentadas das evidências arqueológicas, descurando o conhecimento científico sobre as dinâmicas milenares da presença indígena na região, ora abordadas. A despeito da proximidade de terras indígenas, se sustentam, em metodologias limitadas e interpretações falhas, conceitos de uso e ocupação alheios aos modos indígenas de se relacionar com o espaço, materializando um ‘território não indígena’, cedido a interesses do agronegócio.

Esse entendimento da região como ‘território não indígena’, porque isento da área indígena artificialmente delimitada por não indígenas, é reproduzido em processos de licenciamento de grandes empreendimentos – como a rodovia interestadual BR-242/MT, a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO), as PCH, linhões, mineração etc. Os estudos arrancam sem a participação dos povos indígenas, descumprindo seus direitos de “consulta livre, prévia e informada”17 17 Dispostos na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, sobre povos indígenas e tribais (OIT, 1989) e na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007 (Nações Unidas, 2008). . Quando realizados, os estudos de componente indígena desconsideram a questão patrimonial, arqueológica e paisagística. O mesmo sucede com as normativas que regem o patrimônio, na sua maioria omissas quanto à necessidade de estudos colaborativos em processos de licenciamento ambiental. O descuro pela consulta indígena é reforçado por uma (conveniente) desarticulação entre os órgãos de tutela ambiental, tais como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), o IPHAN e, quanto a assuntos indígenas, a FUNAI.

Os vestígios arqueológicos – resumidos a artefatos e a pontos no mapa, então desprovidos de contexto e significado – são tidos como resíduos de um passado sem presente, resultando na alienação e proscrição de remanescentes ancestrais indígenas, reificados sob o termo de ‘registro arqueológico’ (Gnecco & Hernández, 2008Gnecco, C., & Hernández, C. (2008). History and its discontents: stones statues, native histories and archaeologists. Current Anthropology, 49(3), 439-66. https://doi.org/10.1086/588497
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; Silva, 2015Silva, F. A. (2015). Arqueologia de contrato e povos Indígenas: reflexões sobre o contexto brasileiro. Revista de Arqueologia, 28(2), 187-201. https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/sab/article/view/435
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). Nos raros casos em que se considerou a relação dos povos xinguanos com a região dos formadores do Xingu, essa consideração foi ‘ajustada’ a esses mesmos pressupostos.

É disso exemplo o caso polêmico da PCH Paranatinga II, cuja construção no alto Culuene traz à tona a questão territorial dos espaços ancestrais deixados fora do TIX. As reivindicações indígenas contra a destruição do rio e de seus lugares de memória obrigaram ao desenvolvimento de estudos antropológicos e arqueológicos. Apesar de terem contado com a participação (tímida) dos povos indígenas, tais estudos restringiram-se a uma ideia preconcebida de ‘lugar’ enquanto espaço constituído por limites mais do que pelas conexões que articula. O próprio local onde se ergueu a PCH foi originalmente identificado por interlocutores indígenas, como Sagihengu (Figura 1, “Sagihengu (2)”). Aí existiam abundantes vestígios arqueológicos irrevogavelmente associados aos povos alto-xinguanos (Hirooka, 2007Hirooka, S. (coord.) (2007). Relatório final de salvamento arqueológico Culuene - PCH Paranatinga II (1a etapa). ECOSS.). Todavia, à altura dos estudos de instrução do tombamento, esse local não foi considerado, sob o argumento de que o sítio já havia sido altamente afetado (em sua materialidade) pela construção da PCH (Fausto, 2015Fausto, C. (2015). Da responsabilidade social de antropólogos e arqueólogos: sobre contratos, barragens e outras coisas mais. Revista de Arqueologia, 28(2), 202-215. https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/sab/article/view/436
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). Em última instância, o tombamento serviu para legitimar a instalação de um empreendimento de alto impacto numa região de incomensurável relevância para os povos alto-xinguanos.

O caso de Kamukuwaká é, a esse respeito, icônico. Ele está atrelado a reivindicações antigas dos Wauja pela proteção do alto Kamukuwakewene, formalizadas em documentos escritos que remontam, pelo menos, a finais da década de 70. Estudos antropológicos de delimitação da Terra Indígena Batovi, realizados por ocasião dos confrontos entre os Wauja e fazendeiros e pescadores que adentravam na área (T. Waurá & Ireland, 1990Waurá, T., & Ireland, E. (1990). O chefe Atamai Wauja denuncia a invasão da terra dos Wauja, PIX Aldeia Piyulaga [Manuscrito não publicado].; Ireland, 1990Ireland, E. (1990). Neither warriors nor victims, the Wauja peacefully organize to defend their land. Latin American Anthropology Review, 2(1), 3-12. https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/neither-warriors-nor-victims-wauja-peacefully-organize-defend-their-land
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), atestam, de modo incontestável, o vínculo cultural Wauja com a região do alto curso do rio (Maricondi, 1992Maricondi, M. I. (1992). Laudo de vistoria técnica para localização e identificação cartográfica de limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos Waurá / PIX, MT. Fundação Mata Virgem/Núcleo de Direitos Indígenas.; Franchetto, 1995Franchetto, B. (1995). Laudo antropológico: a comunidade indígena Waurá e a “Terra do Batovi”. FUNAI.; Pechincha, 1996Pechincha, M. T. S. (1996). Relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Batovi. FUNAI.18 18 Embora os documentos se tenham focado na descrição da ocupação histórica Wauja no médio curso do rio, área da atual terra indígena Batovi, é recorrente a menção à importância de espaços a montante. ).

Redigido na ocasião dos protestos indígenas contra a construção da PCH Paranatinga II, o laudo antropológico de Carlos Fausto aborda Sagihengu, Kamukuwaká e a relevância da relação com os rios Culuene e Kamukuwakewene, em sua extensão, elencando outros elementos significativos mencionados pelos indígenas (Fausto, 2004Fausto, C. (2004). A ocupação Indígena do alto curso dos formadores do rio Xingu e a cartografia sagrada alto-xinguana. Laudo Antropológico para o Ministério Público Federal, MT.).

Embora os estudos de instrução de tombamento de Kamukuwaká e Sagihengu, desenvolvidos no escopo dos trabalhos de Arqueologia Preventiva no âmbito da PCH Parantinga II (Robrahn-González, 2006Robrahn-González, E. (Coord.). (2006). Programa de Patrimônio Cultural PCH Paranatinga II. Documento Antropologia e Arqueologia Ltda., 2008Robrahn-González, E. (Coord.). (2008). Programa de Patrimônio Cultural PCH Paranatinga II – Arqueologia colaborativa, etapa 2, instrumentação ao processo de tombamento das paisagens sagradas do Sagihengu e Kamukuwaká, Alto Xingu/MT Documento Antropologia e Arqueologia Ltda./Atiaia Energia.), mencionem também esses outros elementos, eles se atêm à área entendida como ‘de entorno’ dos sítios propostos a tombamento, não levando em consideração a questão da relação indígena com os rios. Assim, se, por um lado, esses estudos embasam o reconhecimento, em 2010, de Kamukuwaká e Sagihengu como ‘lugares sagrados indígenas’, por outro, se cingem à delimitação das áreas que são alvo de tombamento, a partir de critérios redutores e estritamente materialistas. A operação – alguns diriam ‘possível’ – acabou desprovendo estes espaços de sua supramaterialidade que se expressa na relação com os rios e nas práticas de movimento e mobilidade das comunidades que neles se reconhecem (Fausto, 2015Fausto, C. (2015). Da responsabilidade social de antropólogos e arqueólogos: sobre contratos, barragens e outras coisas mais. Revista de Arqueologia, 28(2), 202-215. https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/sab/article/view/436
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).

Em suma, ao basear-se num conceito restrito de passado ‘evidencial’ e ao que se entendeu constituir a ‘materialidade’ de Kamukuwaká e Sagihengu, a instrução de tombamento permitiu que importantes áreas de reprodução cultural, presentes nas narrativas alto-xinguanas, fossem deixadas de fora da área a proteger, sob o pretexto de se localizarem ‘longe’ dos lugares sagrados19 19 Leia-se no documento de instrumentação do processo de tombamento de 2008: “Vale salientar que dois elementos inicialmente registrados pelos Waurá no desenho da paisagem do Kamukuwaká correspondem à Aldeia Flechal, Aldeia do Uluru e Portal da Anta. O cacique Kamalá informou que se trata de locais geograficamente distantes dali (kilómetros rio acima, segundo ele). Por conta disto, as duas áreas não foram incluídas no que se define como paisagem cultural do Kamukuwaká, embora já estejam sendo consideradas na continuidade do Programa de Patrimônio Cultural, mais especificamente, nos estudos de implantação do Corredor Ecológico-Cultural” (Robrahn-González, 2008, p. 163). Não se tem notícia da continuidade dos estudos de implantação do corredor ecológico-cultural mencionados. . São disso exemplo, no alto Kamukuwakewene, Temeotopa (Pedra da Anta), Ukupoho (Aldeia do Flechal do Dono do Fogo), Sapalakupoho (Aldeia do Uluri), entre outros.

Por ocasião da construção da rodovia interestadual BR-242/MT, novos reconhecimentos arqueológicos de Arqueologia Preventiva se realizam em Kamukuwaká, resultando no desvio do traçado inicial (que se previa a escassos metros da gruta, em plena área tombada; Hirooka, 2011Hirooka, S. (Coord.). (2011). Rodovia BR-242 Mato Grosso: Relatório final de diagnóstico e prospecção. Archaeo Pesquisas Arqueológicas.). O novo traçado proposto é contestado novamente pelos Wauja, em 2014, que argumentam que o desvio cindiria a paisagem do Kamukuwakewene, entre Kamukuwaká e Teme Otopa. Por essa razão, os Wauja solicitam a reabertura do processo de tombamento com o intuito de alargar a área protegida (Figura 1), contemplando outros tantos elementos localizados a montante de Kamukuwaká (Associação Indígena Tulukai, 2016Associação Indígena Tulukai. (2016). Ofício Piyulaga (Waurá) nº 11 de 2016 – Solicitação de ampliação da Área Tombada da Paisagem Cultural de Kamukuwaká ou abertura de novo processo de Tombamento de locais histórica e culturalmente significativos para os povos xinguanos. Associação Indígena Tulukai.; Hirooka, 2016Hirooka, S. (Coord.). (2016). Relatório final de salvamento arqueológico - BR 242/Mato Grosso. Archaeo Pesquisas Arqueológicas.).

Neste contexto dos trabalhos arqueológicos preventivos da BR-242/MT, mencione-se, ainda, a identificação do sítio arqueológico Batovi, com vestígios líticos e cerâmicos em superfície, entre a área de Kamukuwaká e Teme Otopa (Pedra da Anta). Este sítio tem vindo a ser gravemente impactado pela monocultura e por trabalhos de extração de sedimentos. No entanto, não foi alvo de planos de mitigação de impacto ou sequer intervenções arqueológicas que permitissem detalhar sua caracterização, sob o argumento de que seria ‘preservado’ em relação ao trajeto da BR-242/MT (Hirooka, 2016Hirooka, S. (Coord.). (2016). Relatório final de salvamento arqueológico - BR 242/Mato Grosso. Archaeo Pesquisas Arqueológicas.).

NASCENTES DO XINGU – PAISAGENS DE MORTE E REGENERAÇÃO

Os dados coletados apontam para uma continuidade de uso, bem como de significação das paisagens fluviais pelos alto-xinguanos. Uma trama indivisível de signos – formas significantes, sentidos e referentes, entendidos, a partir de Peirce (1932)Peirce, C. S. (1932). Collected papers of Charles Sanders Peirce. II: elements of logic. Harvard University., como as formas que os signos assumem (representamen), os sentidos elicitados pelos signos (interpretants) e aquilo que os signos representam (objects) –, abrange toda a extensão do rio Kamukuwakewene. Remanescentes arqueológicos, rochas, espécies animais e vegetais, as estrelas no céu... toda a materialidade do rio se vê contextualizada em narrativas históricas, crônicas de percursos fluviais (e celestes) que se veem repetidas a cada viagem dos Wauja.

Argumenta-se que a possibilidade, sempre latente, do encontro com o Outro é facilitada por distâncias, tanto no espaço, quanto no tempo: exterioridade e antiguidade. Assim, é incorreto pensar em Kamukuwaká, bem como Sagihengu, como ‘pontos geográficos’, ‘limites’ do que seria um território tradicional xinguano. É mais adequado caracterizá-los como lugares liminares, de passagem, transição e transformação, no sentido descrito por Basso (1981)Basso, E. (1981). A "Musical view of the universe": Kalapalo myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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, marcados não pela fixidez de coordenadas, mas pelo potencial de movimento entre o ‘dentro’ e o ‘fora’.

Propõe-se, neste artigo, pensar essa trama relacional, espaço-temporal, a partir da teoria de signos de C. S. Peirce e sua tríade ontológica de potencial (ou chance), existência (ou fatualidade) e regra/lei (mediação entre as duas primeiras). Essa tríade ontológica se baseia em três tricotomias analíticas: a primeira distingue 1 - qualidades (‘qualisignos’), 2 - fatos (‘sinsignos’ ou ‘tokens’) e 3 - leis, convenções ou tipos (‘legisignos’); a segunda trata da relação de significação entre um signo e o seu objeto e classifica signos como 1 - ícones (representação por similitude física ou qualidades), 2 - índices (representação por contiguidade fatual ou causalidade ) e 3 - símbolos (representação por convenção); por fim, a terceira tricotomia descreve como signos são constituídos em seus interpretantes como sinais 1 - de possibilidade, 2 - de fato, e 3 - de razão (Houser, 2009Houser, N. (2009). Peirce, phenomenology and semiotics. In P. Cobley (Ed.), The Routledge companion to semiotics (pp. 111-122). Routledge.).

Atente-se ao exemplo do motivo kupato presente nos painéis rupestres da gruta do Kamukuwaká (Figuras 5). A forma gráfica kupato (‘peixe’, em Wauja) representa o objeto ‘peixe’ via iconicismo. Além de seu desenho, as gravuras de kupato agrega(va)m outros aspectos significantes, como patine e aparência antiga, bem como o fato de terem sido tornadas perenes na rocha, em abrigo identificado como lar do chefe primordial, à margem de uma cachoeira, no alto rio Kamukuwakewene. Estes atributos físicos e contextuais (qualidades e contiguidades) são expressão do fato (ou “índices icônicos”; , ) de que o painel rupestre é manifestação física, factual (ou indicial) do passado histórico no presente. O motivo kupato (‘tipo’) e suas imagens-cópia (‘tokens’) são signos que convocam a presença, (f)atualizando (ou indexando) o contexto espaço-temporal (ou “cronotópico”; ) que representam. Esses grafismos (ou imagens-cópia) agregam, assim, valores microcontextuais – como a abundância de peixe propiciada pela cachoeira, barreira natural no rio – a categorias e conceitos do plano macrocosmológico.

Peixe é a base da alimentação não carnívora e da prática de comensalidade, recurso central à cooperação ritual intergrupal e, logo, a processos de filiação e de gestão de relações de afinidade, atribuições constitutivas da chefia xinguana. Pode-se dizer que os grafismos rupestres de Kamukuwaká indexam, através de convenção e similitude (simbolismo e iconicismo), um macrocosmo de valores associados à comensalidade (nos motivos de peixe e espinha), à fertilidade e sexualidade (na figura do uluri e da vagina de Alaweru) e à beleza de corpos alegres (nos grafismos kulupiyene da cobra musical Arakuni, Barcelos Neto, 2006Barcelos Neto, A. (2006). A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (15-16), 357-370. https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2006.89727
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, 2011Barcelos Neto, A. (2011). A serpente de corpo repleto de cançoes: um tema amazônico sobre a arte do trançado. Revista de Antropologia, 54(2), 981-1012. https://www.jstor.org/stable/43923893
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; K. Waurá, 2013Waurá, K. (2013). Origem da pintura do povo Wauja. Waujanãu O̱ gana O̱ napukãtakú. UNEMAT – Diretoria de Gestão de Educação Escolar Indígena.). No tempo que se dobra sobre si mesmo (história e cosmologia), estes símbolos icônicos de comensalidade-peixe, fertilidade-vida e beleza-alegria se atualizam e regeneram nas nascentes do Kamukuwakewene. Os grafismos de Kamukuwaká são fonte de vida para os povos da bacia, em parte, porque se constituem, em seus interpretantes (através dos sentidos que elicitam), como sinais de possibilidade (virtualidade), de fato (atualização) e de razão (regra ou cânone).

O potencial de vida e de magnificação do qual Kamukuwaká, o lugar, é ícone, índice e símbolo – isto é, signo que representa, por meio de suas qualidades físicas, contextos espaço-temporais e sentidos convencionalizados – emerge de uma ambiguidade de posição no espaço e no tempo que coloca em relação identidade e alteridade. Apenas na relação entre as aldeias do baixo e médio cursos do rio e os espaços liminares das nascentes, tomados como índices de uma trajetória espaço-temporal que restabelece a vida e a chefia, se pode entender o conceito Wauja de ‘território’ como expressão eco/cosmopolítica do fazer-crescer Wauja e seus modos de coabitar (n)a terra. A ‘trama de Kamukuwaká’ constitui, assim, uma espécie de enredo permanente nas interações dos Wauja com a paisagem fluvial.

Neste sentido, importa, repensar o significado de um espaço vital xinguano além-TIX em termos não de pontos na paisagem, mas dos rios, dos fluxos (humanos e não humanos) que facilitam e das relações que destes emanam. Junto a Morená, Kamukuwaká e Sagihengu representam uma tríade fundacional que entretece espaço, rito, mito e modos de ser xinguano. Se, por um lado, Morená, na confluência das águas que formam o rio Xingu, sinaliza a origem da humanidade e modos de vida da civilização xinguana (Putakã, na língua Wauja); fora do TIX, no alto Culuene, Sagihengu, local do primeiro Kwarup, indexa a chefia e sua relação com a morte como imanente e necessária à vida (Guerreiro, 2011Guerreiro, A. (2011). Refazendo corpos para os mortos: as efígies mortuárias Kalapalo. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 9(1), 1-29. https://digitalcommons.trinity.edu/tipiti/vol9/iss1/1/
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, 2012Guerreiro, A. (2012). Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia kalapalo e seu ritual mortuário [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].); Kamukuwaká, local do Pohoka inaugural, indexa a relação entre chefia e fabricação de beleza como vetor de regeneração (reiteração) de vida e território.

Subjacente aos sentidos do binário Kamukuwaká e Sagihengu, enquanto polos privilegiados de conjunção entre o ‘céu’ e a ‘terra’, está uma espécie de curto-circuito na diacronia, um des/refazer da morte como processo de atualização e de estabilização, sempre relativa, de um ‘território dos vivos’. É, portanto, na relação de continuidade e indivisibilidade entre o Kamukuwakewene, o Culuene e os restantes formadores que se pode entender a região das cabeceiras como território indígena superlativo.

Em contraste, o atual cenário de delapidação desta paisagem é corolário de mitologias teleológicas/progressistas e de estratégias de aniquilamento da diferença. A pesca predatória, o desmatamento sem freio das cabeceiras, o assoreamento dos rios, o arrasamento do patrimônio paisagístico, as grandes obras sem estratégias de mitigação constituem ações depredatórias inequívocas. Em jogo está o que Deborah Bird Rose (2012, p. 128, nossa tradução)Rose, D. B. (2012). Multispecies knots of ethical time. Environmental Philosophy, 9(1), 127-140. https://www.jstor.org/stable/26169399
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chama de “parceria entre vida e morte” e a possibilidade de “dupla morte das paisagens”, uma “perda irreparável não apenas dos vivos, mas da multiplicidade de formas de vida e da capacidade dos processos evolucionários de regenerar a vida”.

QUE CAMINHOS, ENTÃO, PARA PROTEÇÃO?

Seguindo-se critérios normativos mínimos, o entendimento de paisagens indígenas como meramente ‘culturais’ vem, no âmbito de processos de licenciamento ambiental, se combinando com noções redutoras de passado (como transposto) e de sítio arqueológico (como área circunscrita pela dispersão de artefatos), para sustentar mecanismos legais de reconhecimento, mitigação e proteção que resultam, na prática, quase obsoletos. Face ao manancial de dados disponíveis, não se sustenta a perpetuação, na região das nascentes dos formadores do Xingu, de arqueologias da terra nullius e ‘paisagem-cenário’. Faz-se necessária a revisão das normativas de atuação de órgãos como IPHAN, SEMA, IBAMA e FUNAI diante de projetos de licenciamento ambiental na região, com vista a considerar: 1) princípios metodológicos coerentes com os conhecimentos e práticas científicas atuais; e 2) critérios para a consulta e participação efetivas dos povos indígenas em consonância com o Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu20 20 Elaborado em 2017, em Governança Geral, o protocolo define “a construção de novas obras no entorno do nosso território . . . . e formulação de políticas públicas que nos dizem respeito [como] exemplos de decisões que só devem ser tomadas após consulta” (PCPTIX, 2017, p. 33). .

No âmbito da chamada Arqueologia Preventiva, é essencial a demanda pela obrigatoriedade de estudos colaborativos antropológicos e etnoarqueológicos, um compromisso sério, interétnico e interdisciplinar que vise à abertura de um espaço de discussão (e tradução) marcado pela ênfase na voz, cosmovisão e práticas político-ecológicas dos povos locais. Conforme vem sendo elaborado por Fabíola Silva (2015Silva, F. A. (2015). Arqueologia de contrato e povos Indígenas: reflexões sobre o contexto brasileiro. Revista de Arqueologia, 28(2), 187-201. https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/sab/article/view/435
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, 2012)Silva, F. A. (2012). O plural e o singular das arqueologias Indígenas. Revista de Arqueologia, 25(2), 24-42. https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.353
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, a aplicação de abordagens colaborativas e etnográficas à prática arqueológica se revela como uma metodologia profícua, capaz de expor a diversidade de perspectivas e as complexas inter-relações sociais, ecológicas, políticas e econômicas que existem entre sujeitos e recursos arqueológicos em escala local, nacional e global. Dessa discussão depende a consulta informada a povos e lideranças, passando pelo entendimento cabal das estratégias de mitigação e dos mecanismos legais de proteção disponíveis e de como estes podem ser efetivamente acionados e reconvertidos em ferramentas de autodeterminação; uma discussão franca em que se possa expor qual é, na prática, o valor e o alcance destes instrumentos e que estratégias articuladas se podem tomar para benefício de todos.

Além do tombamento, o IPHAN, órgão de tutela patrimonial, dispõe de outros instrumentos de valorização e proteção legal, como o Registro de Patrimônio Imaterial, a Declaração de Lugar de Memória21 21 Relativa a lugares que preservam sua importância memorial apesar de terem sofrido severa destruição (Portaria IPHAN n. 375, 2018). e a Chancela de Paisagem Cultural22 22 Instrumento que visa conciliar as divisões artificiosas de patrimônio material, imaterial e ecológico, mas que, desafortunadamente, apesar de contar com mais de dez anos de existência, ainda não foi implementado (Pereira, 2020). . No que concerne ao patrimônio ecológico, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) tem, entre seus instrumentos de recuperação e manutenção, o corredor ecológico23 23 Regulamentado na Lei n. 9.985/2000 (Brasil, 2000) e no Decreto n. 4.340/2002 (Brasil, 2002). , que propõe a conexão entre unidades de conservação. Talvez a proposição de corredores ecológicos que incorporem o aspecto das práticas indígenas seja uma hipótese a explorar. No caso do Kamukuwakewene, inobstante os limites que venham a ser fixados para a terra indígena Batovi, um corredor deste tipo asseguraria a preservação das matas ciliares ao longo de todo o alto curso do rio, interligando as terras indígenas Marechal Rondon e Batovi/Xingu e restabelecendo a conectividade de áreas prioritárias à conservação da biodiversidade dos biomas Amazônia e Cerrado (Rodrigues-Niu & Ramos, 2017Rodrigues-Niu, P., & Ramos, M. (Org). (2017). Ante-Projeto águas do Xingu: recuperação ambiental de nascentes e áreas degradadas nos formadores do rio Xingu. Promotoria de Justiça, Cidadania e Meio Ambiente de Paranatinga/Gaúcha do Norte (MPE/MT)/Instituto Homem Brasileiro.).

A experiência colaborativa das autoras junto aos Wauja vem colocando em evidência que qualquer circunscrição que seccione a paisagem fluvial do Kamukuwakewene, bem como seus aspectos culturais dos ecológicos, é sempre artificiosa e omissa. Neste sentido, se pleiteia, junto aos órgãos responsáveis, por soluções técnicas para a integração articulada de diferentes instrumentos legais. Por fim, qualquer processo estará incompleto sem a consecução colaborativa de planos de gestão das áreas protegidas, que devem prever o monitoramento e vigilância dos rios em sua extensão, bem como facilitar a fruição ecológica, ecoturística e cosmopolítica por parte de seus donos tradicionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O picoteamento dos painéis de arte rupestre de Kamukuwaká (Figura 4), em 2018, foi um ato de violência e de crueldade indizíveis, um ato absurdo e equivocado, fundado no entendimento que Kamukuwaká pode ser destruído por se reduzir a uma materialidade superficial e inerte, passível de ser morta no tempo e circunscrita no espaço. As autoras acreditam que esse tipo de equívoco é potencializado pela perpetuação, na área do dito ‘patrimônio’, de uma linguagem normativa que legitima falsas dicotomias – entre o material e o imaterial, passado e presente, ecologia e cultura – e que insiste, contra todas as evidências ecológicas, arqueológicas, etno-históricas e etnográficas, em conceber as paisagens fluviais alto-xinguanas como partíveis.

Manifestando extraordinária resiliência e capacidade para criação de beleza, os Wauja vêm desenvolvendo projetos de registro e valorização que trazem nova vida às histórias, às paisagens e às gravuras destruídas, convidando a extrapolar conceitos convencionais de tempo e de materialidade. Para além do mapeamento colaborativo da paisagem fluvial24 24 Visando a elaboração de um mapa virtual interativo do território Wauja no âmbito de um projeto do professor Christopher Ball, da Universidade de Notre Dame, com a colaboração de Rodrigues-Niu. , destaquem-se três projetos desenvolvidos sob coordenação de universitários e professores Wauja desde 201425 25 Contando com a colaboração da equipe de assessoria arqueológica pro bono e em parceria com o Instituto Homem Brasileiro, Factum Foundation for Digital Technology in Conservation e People’s Palace Projects. : 1) o registro extensivo das histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku, visando à produção de um livro bilíngue (Waurá, 2021Waurá. (2021). As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku: contadas pelo povo Waujá. Instituto Homem Brasileiro.); 2) a pesquisa documental e de rememoração das gravuras, em suas formas e histórias, que possibilitou a reconstituição digital tridimensional dos painéis rupestres destruídos (Lowe, 2019Lowe, A. (Org.). (2019). A Gruta de Kamukuwaká: a preservação de culturas Indígenas no Brasil. Factum Foundation for Digital Technology in Conservation. https://www.factum-arte.com/resources/files/ff/publications_PDF/the_sacred_cave_of_kamukuwaka_book_2019.pdf
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); 3) o desenvolvimento de uma plataforma educacional de realidade virtual da gruta de Kamukuwaká. Nas palavras da Atapucha Waurá:

Hoje eu vim aqui esclarecer. Esse trabalho não foram os brancos que fizeram para nós. Eu falei para Kaji: Olha, irmão, nossos pais estão acabando, levando o conhecimento junto, daí como é que fica? Estão morrendo. O que você está esperando? Você que é universitário tem de registrar tudo o que é nosso. Você não está vendo as outras etnias e os brancos? Nem reconhecem o povo Wauja como dono da terra. Por isso têm de registrar nossa história

(Waurá, 2017Waurá. (2017). Ata da 1° Reunião Geral sobre Projetos Culturais do Povo Wauja. TIX, Aldeia Piyulaga [Manuscrito não publicado], tradução livre por Yakuwipu Waurá).

Conclui-se este artigo com uma observação sobre o papel que a Arqueologia – enquanto ciência das contiguidades (indícios ou indexicalidades) e distâncias no tempo e no espaço – pode assumir, através de suas práticas colaborativas, na facilitação de um espaço de voz e autodeterminação dos povos indígenas. Para tanto, remete-se à definição semiótica da disciplina por Paul Kockelman (2012, pp. 77-78, tradução nossa)Kockelman, P. (2012). The ground, the ground, the ground: or, why archeology is so ‘hard’. The Yearbook of Comparative Literature, 58, 176-184. https://muse.jhu.edu/pub/50/article/552339#info_wrap
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:

A Arqueologia está interessada em qualquer coisa que não tenha “morrido” desde que conte algo sobre alguma coisa que “morreu”. Isto é, algo tem de persistir para entrar em equilíbrio com o seu meio, de forma que possa ser distinguido como figura de um fundo (ou sinal no barulho) . . . . A duração que a coisa que persiste [em relação à outra coisa que morreu] tem de percorrer não precisa ser histórica em magnitude . . . . ou nem mesmo temporal. O que é necessário é que algo percorra a distância, qualquer distância: o agora e o depois, aqui e lá, isto e aquilo, o eu e o outro. Isto é tudo que se pode querer dizer com “materialidade”. E, portanto, existem tantas materialidades e, logo, potenciais arqueologias como existem modos de diferenciação e distância.

O ‘passado’ que os Wauja reconhecem rio acima é arqueológico, porém excede o tempo cronológico, no sentido ora dado; um passado imanente no mundo físico, ao mesmo tempo cultural e ecológico, material e imaterial, que alguns vêm chamando de “antropogênico” (Denevan, 1992Denevan, W. M. (1992). The pristine myth: the landscape of the Americas in 1492. Annals of the Association of American Geographers, 82(3), 369-385.) e outros de “espectral” (Gan et al., 2017Gan, E., Tsing, A., Swanson, H. A., & Bubandt, N. (2017). Introduction: haunted landscapes of the Anthropocene. In A. L. Tsing, N. Bubandt, E. Gan & H. A. Swanson (Eds.), Arts of living on a damaged planet: ghosts and monsters of the Anthropocene (pp. 1-10). University of Minnesota Press.). A experiência colaborativa das autoras sugere que é precisamente esse passado ontologicamente múltiplo e multiespecífico, (ainda) vivo no presente na forma de “traços de histórias através das quais ecologias são feitas e desfeitas” (Gan et al., 2017Gan, E., Tsing, A., Swanson, H. A., & Bubandt, N. (2017). Introduction: haunted landscapes of the Anthropocene. In A. L. Tsing, N. Bubandt, E. Gan & H. A. Swanson (Eds.), Arts of living on a damaged planet: ghosts and monsters of the Anthropocene (pp. 1-10). University of Minnesota Press., pp. 1-5, tradução nossa), que os Wauja procuram reiterar em sua versão de arqueologia.

  • 1
    A demarcação do então denominado Parque Nacional do Xingu – Decretos nº 50.455, de 14 de abril de 1961Decreto n° 50.455. (1961, abr. 14). Cria o Parque Nacional de Xingu. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 3492. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-50455-14-abril-1961-390087-publicacaooriginal-1-pe.html#
    https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
    e 51.084 de 31 de julho de 1961Decreto n° 51.084. (1961, jul. 31). Regulamenta o Decreto n° 50.455, de 14 de abril de 1961, que criou o Parque Nacional do Xingu, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 6969. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-51084-31-julho-1961-390584-publicacaooriginal-1-pe.html#
    https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
    – foi um processo moroso, resultado de uma década de negociações. O anteprojeto inicial se propunha a abranger uma área dez vezes maior do que a que seria protegida, contemplando as cabeceiras dos rios formadores (Franchetto, 1992Franchetto, B. (1992). O aparecimento dos Caraíba: para uma história Kuikuro e Alto-Xinguana. In M. C. Cunha (Org.), história dos índios no Brasil (pp. 339-356). Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP.; Villas-Bôas & Junqueira, 2011Villas-Bôas, A., & Junqueira, P. (Coord.) (2011). Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu: 50 anos. Instituto Socioambiental (ISA).).
  • 2
    Portaria FUNAI nº 339, de 31 de maio de 2021Portaria FUNAI n° 339. (2021, maio 31). Diário Oficial da União. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-339-de-31-de-maio-de-2021-323592955
    https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
    e Portaria FUNAI nº 484, de 23 de fevereiro de 2022Portaria FUNAI n° 484. (2022, fev. 23). Diário Oficial da União. https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-funai-n-484-de-23-de-fevereiro-de-2022-382748357
    https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria...
    .
  • 3
    Informação oral de Yakuwipu Waurá, após o falecimento de seu pai, o ancião Awapataku Waurá. A designação Batovi, vulgarizada na cartografia, se deve a Karl von den Steinen, que assim nomeia o rio em homenagem ao Barão de Batovy. O alemão menciona ainda o nome indígena Tamitatoala, registrado junto aos Bakairi (Steinen, 1942Steinen, K. V. D. (1942). O Brasil Central. Expedição em 1884 para a exploração do rio Xingu. Companhia Editora Nacional.).
  • 4
    Desenvolvidas pela Fundação Uniselva/Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Archaeo Pesquisas Arqueológicas.
  • 5
    Entre os projetos desenvolvidos junto com os Wauja por esta equipe de assessoria pro bono (que inclui, além das autoras, a arqueóloga Gabriele Viega Garcia), mencionem-se: “Circuito Kamukuwaká: o Livro de Kamukuwaká e Yakuwixeku” (2017), a redação do “Ante-Projeto Águas do Xingu: recuperação ambiental de nascentes e áreas degradadas nos formadores do rio Xingu – Projeto-piloto: corredor ecológico-cultural no rio Tamitatoala/Batovi”(2017), ambos desenvolvidos em parceria com o Instituto Homem Brasileiro; “Registro e conservação da paisagem cultural de Kamukuwaká” (2018), desenvolvido pela Associação Indígena Tulukai (AIT), em parceria com a Factum Foundation for Digital Technology in Conservation (FF) e o People’s Palace Projects (PPP); o projeto “Kamukuwaká VR: enabling digital futures for indigenous knowledge from the Xingu” (2021-2022), desenvolvido pelas associações e comunidades Wauja das aldeias Piyulaga, Ulupuwene, Piyulewene e Topepeweke, em parceria com o People’s Palace Projects (PPP).
  • 6
    Para uma síntese do conhecimento sobre o povoamento e a arqueologia no rio Kamukuwakewene, ver Ramos (2020)Ramos, M. (2020). Paisagens do Alto Xingu: contributos para a avaliação do patrimônio cultural dos rios formadores do Xingu: rios Tamitatoala/Batovi e Culuene. Instituto Socioambiental (ISA)..
  • 7
    Para uma versão mais completa, embora ainda preliminar da história, ver Waurá (2021)Waurá. (2021). As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku: contadas pelo povo Waujá. Instituto Homem Brasileiro..
  • 8
    Sobre o lugar da beleza e da produção de alegria no quotidiano Wauja, ver Barcelos Neto (2012)Barcelos Neto, A. (2012). A origem da arte e o gosto estético entre os Wauja do alto Xingu. In M. C. von Zuben, M. L. G. C. Mendes, K. C. A. Souza & J. G. Vieira (Orgs.), Sujeito, saberes e práticas sociais (pp. 99-134). UERN.; sobre sua relação com saúde e fabricação de corpos, ver A. Waurá (2021)Waurá. (2021). As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku: contadas pelo povo Waujá. Instituto Homem Brasileiro..
  • 9
    A este respeito, resulta elucidativa a releitura da tríade levi-straussiana “cru-podre-cozido”, à luz da semiótica peirceana, por Chloe Nahum-Claudel (2020)Nahum-Claudel, C. (2020). Pyrotechnical mastery and humanization: Amazonian cuisine, care, and craft in evolutionary and semiotic perspective. Current Anthropology, 61(4), 418-440. https://doi.org/10.1086/710356
    https://doi.org/10.1086/710356...
    . A autora sustenta que, entre os Enawenê-Nawê, falantes Arawak, a culinária, tal como a arte e a cura, é uma tecnologia fulcral na regeneração de corpos humanos e de seu estatuto ontológico no mundo dos vivos, fundado na maestria pirotécnica. Assim, “controlling fire is thus about exercising mastery over the sliding scale between death and life and aspiring to corpulence, strength, vitality, and productivity” (Nahum-Claudel, 2020Nahum-Claudel, C. (2020). Pyrotechnical mastery and humanization: Amazonian cuisine, care, and craft in evolutionary and semiotic perspective. Current Anthropology, 61(4), 418-440. https://doi.org/10.1086/710356
    https://doi.org/10.1086/710356...
    , p. 430).
  • 10
    Identificados nos levantamentos de Arqueologia Preventiva no âmbito do licenciamento ambiental das PCH Sacre 2, Garganta Jararaca, Baruíto e Inxú (Moi et al., 2009Moi, F. P., Souza, E. R., Morales, W. F., & Paresi, R. W. A. (2009). Memória e oralidade: interpretação de grafismos rupestres entre os Aruak do noroeste do estado de Mato Grosso, Brasil. In W. F. Morales & F. P. Moi (Org.), Cenários regionais em arqueologia brasileira (pp. 205-237). Annablume.; Robrahn-González, 2004; Hirooka, 2018Hirooka, S. (Coord.). (2018). Relatório final: prospecção arqueológica PCH Inxu Fase II. Archaeo Pesquisas Arqueológicas). Embora se tenham recuperado materiais cerâmicos e líticos via escavações arqueológicas (Robrahn-González, 2004Robrahn-González, E. (Coord.). (2004). Programa mitigador de patrimônio Arqueológico PCH Baruíto – LT 138 Kv (Campo Novo dos Parecis, MT) – 2º Relatório de andamento. Documento Arqueologia e Antropologia Ltda.), carece-se de informação cronológica sobre as ocupações que estarão na origem das gravuras.
  • 11
    Outros abrigos com arte rupestre foram identificados, por exemplo, em levantamentos preventivos no Rio Claro, região dos Haliti-Paresi e Nambikwara (Teles & Melo, 2019Teles, M., & Melo, J. (Coord.). (2019). Relatório final: projeto de levantamento arqueológico na área de implantação da PCH Perdidos - municípios de são José do Rio Claro e Diamantino - MT. Griphus Consultoria.).
  • 12
    Na aldeia Topapoho, a cobra-canoa deu um pedaço de kamalu (suas fezes, ou barro, na perspectiva humana) a uma senhora bakairi. A narrativa faz, assim, referência a trocas rituais outrora estabelecidas entre os Wauja e os Bakairi, por ocasião de celebrações em Topapoho.
  • 13
    São abundantes as histórias sobre a árdua tarefa de carregar a canoa por terra até o outro lado da cachoeira de Kamukuwaká e das múltiplas corredeiras da Pedra da Anta. Algumas viagens chegavam às fazendas dos brancos na região de Paranatinga, onde se trocavam recursos nativos por açúcar e instrumentos de metal.
  • 14
    Além das aunaki yaji, as ‘histórias de verdade’, mencione-se as chamadas aunaki tai (‘pequenas ou meras histórias’), testemunhos e relatos factuais da história recente – por exemplo, a história de invasões e confrontos com os Ikpeng, as interações com os Bakairi e os processos invasivos da monocultura e definição de limites territoriais indígenas (Ireland, 1988Ireland, E. (1988). Cerebral savage: the white man as symbol of Cleverness and savagery in Waurá myth. In J. Hill (Org.), Rethinking history and myth (pp. 157-173). University of Illinois Press.). Ambas as modalidades narrativas descrevem diferentes facetas e ocupações dos mesmos lugares.
  • 15
    Ver Brightman et al. (2016)Brightman, M., Fausto, C., & Grotti, V. (Eds.). (2016). Ownership and Nurture: studies in native Amazonian property relations. Berghahn Books. e Fausto e Neves (2018)Fausto, C., & Neves, E. G. (2018). Was there ever a Neolithic in the Neotropics? Plant familiarisation and biodiversity in the Amazon. Antiquity, 92(366), 1604-1618. https://doi.org/10.15184/aqy.2018.157
    https://doi.org/10.15184/aqy.2018.157...
    .
  • 16
    O termo Arqueologia Preventiva ou de Contrato se refere a trabalhos de avaliação, resgate e mitigação de impactos sobre o patrimônio arqueológico, vinculados ao licenciamento ambiental de empreendimentos. Para um compêndio da informação disponível para o Alto Xingu, ver Ramos (2020)Ramos, M. (2020). Paisagens do Alto Xingu: contributos para a avaliação do patrimônio cultural dos rios formadores do Xingu: rios Tamitatoala/Batovi e Culuene. Instituto Socioambiental (ISA)..
  • 17
    Dispostos na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, sobre povos indígenas e tribais (OIT, 1989Organização Internacional do Trabalho (OIT). (1989, jun. 27). Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes [Convenção 169]. https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/legislacao/legislacao-docs/convencoes-internacionais/convecao169.pdf/view
    https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/c...
    ) e na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007 (Nações Unidas, 2008Naçoes Unidas. (2008). Declaração das Naçoes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf
    https://www.acnur.org/fileadmin/Document...
    ).
  • 18
    Embora os documentos se tenham focado na descrição da ocupação histórica Wauja no médio curso do rio, área da atual terra indígena Batovi, é recorrente a menção à importância de espaços a montante.
  • 19
    Leia-se no documento de instrumentação do processo de tombamento de 2008: “Vale salientar que dois elementos inicialmente registrados pelos Waurá no desenho da paisagem do Kamukuwaká correspondem à Aldeia Flechal, Aldeia do Uluru e Portal da Anta. O cacique Kamalá informou que se trata de locais geograficamente distantes dali (kilómetros rio acima, segundo ele). Por conta disto, as duas áreas não foram incluídas no que se define como paisagem cultural do Kamukuwaká, embora já estejam sendo consideradas na continuidade do Programa de Patrimônio Cultural, mais especificamente, nos estudos de implantação do Corredor Ecológico-Cultural” (Robrahn-González, 2008Robrahn-González, E. (Coord.). (2008). Programa de Patrimônio Cultural PCH Paranatinga II – Arqueologia colaborativa, etapa 2, instrumentação ao processo de tombamento das paisagens sagradas do Sagihengu e Kamukuwaká, Alto Xingu/MT Documento Antropologia e Arqueologia Ltda./Atiaia Energia., p. 163). Não se tem notícia da continuidade dos estudos de implantação do corredor ecológico-cultural mencionados.
  • 20
    Elaborado em 2017, em Governança Geral, o protocolo define “a construção de novas obras no entorno do nosso território . . . . e formulação de políticas públicas que nos dizem respeito [como] exemplos de decisões que só devem ser tomadas após consulta” (PCPTIX, 2017Protocolo de Consulta dos Povos do TIX (PCPTIX). (2017). ATIX/RCA/ISA., p. 33).
  • 21
    Relativa a lugares que preservam sua importância memorial apesar de terem sofrido severa destruição (Portaria IPHAN n. 375, 2018Portaria IPHAN n. 375. (2018, set. 19). Institui a Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan e dá outras providências. http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/portaria3752018sei_iphan0732090.pdf
    http://portal.iphan.gov.br/uploads/legis...
    ).
  • 22
    Instrumento que visa conciliar as divisões artificiosas de patrimônio material, imaterial e ecológico, mas que, desafortunadamente, apesar de contar com mais de dez anos de existência, ainda não foi implementado (Pereira, 2020Pereira, D. C. (2020). A chancela de paisagem cultural brasileira: 10 anos de caminhos e descaminhos de uma política de cultura com compromisso social. Revista memória em Rede, 12(22), 173-197. https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria/article/view/16018
    https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/ind...
    ).
  • 23
    Regulamentado na Lei n. 9.985/2000 (Brasil, 2000Brasil. (2000, jul. 18). Lei n. 9.985/2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Diário Oficial da União. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
    ) e no Decreto n. 4.340/2002 (Brasil, 2002Brasil. (2002, jul. 18). Decreto nº 4.340. Regulamenta artigos da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá outras providências. Diário Oficial da União. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4340.htm
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de...
    ).
  • 24
    Visando a elaboração de um mapa virtual interativo do território Wauja no âmbito de um projeto do professor Christopher Ball, da Universidade de Notre Dame, com a colaboração de Rodrigues-Niu.
  • 25
    Contando com a colaboração da equipe de assessoria arqueológica pro bono e em parceria com o Instituto Homem Brasileiro, Factum Foundation for Digital Technology in Conservation e People’s Palace Projects.

AGRADECIMENTOS

A pesquisa de Rodrigues-Niu contou com o apoio das seguintes instituições: Wenner-Gren Foundation (WGF, Dissertation Fieldwork Grant, 2019-em curso, Gr. 9925); National Science Foundation (NSF, prêmio Cultural Anthropology Research Experience for Graduates, 2018, Id: 1729151,); Institute for Scholarship in the Liberal Arts (ISLA, Graduate Student Research Awards, 2017 e 2019), Kellogg Institute for International Studies e Notre Dame University (bolsa de doutorado, 2017-em curso). Agradecimentos aos orientadores de pesquisa de doutorado, Fabíola Silva e Christopher Ball, pela leitura prévia e pelos comentários criteriosos, e a Emilienne Ireland e Dr. Aristóteles Barcelos Neto, pelas conversas e partilhas. As autoras agradecem o apoio e parceria das associações indígenas Wauja Tulukai (AIT), Ulupuwene (AIU), Sapukuyawa Arakuni (AISA), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Homem Brasileiro (IHB), People’s Palace Projects (PPP), Factum Foundation for Digital Technology in Conservation (FF). Os mais profundos agradecimentos às comunidades, historiadores e pesquisadores Wauja pelo acolhimento e colaboração.

  • Rodrigues-Niu, P. F., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma Arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022.

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Editado por

Responsabilidade editorial: Fernando Ozório de Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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