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Princípios da clínica na rua e os funcionamentos do crack

Resumo

A partir de etnografia realizada com equipe de Consultório na Rua da cidade do Rio de Janeiro em seus encontros com pessoas em cenas de uso de crack, apresentam-se: seu modo de funcionamento por meio de princípios; as consequências desse modo sobre as pessoas que busca atender; e outros saberes acerca do crack que emergem a partir desse encontro entre um serviço de saúde e usuários de tal substância. Conclui-se que o Consultório na Rua instaura aberturas para que aquelas pessoas que se tornam suas usuárias o transformem, fazendo-o acolher vidas cada vez mais heterogêneas. Dessa forma, torna-se capaz de ampliar o acesso ao Sistema Único de Saúde, calcando um caminho para que este seja cada vez mais permeável às diferenças.

Pessoas em situação de rua; Cocaína crack; Sistema Único de Saúde

Abstract

The present study was based on an ethnography produced with a team from a Street Clinic in the city of Rio de Janeiro through their encounters with crack cocaine users. It describes: the functioning of the clinic based on principles; the consequences of this mode of functioning on those it seeks to help; and other knowledge about crack that emerged from the encounter between a health service and the people who use the drug. It was concluded that the Street Clinic establishes opportunities for drug users to transform their lives, and embraces increasingly heterogeneous lives. It can therefore expand access to the Sistema Único de Saúde (the Unified Health System), and offer a path for the system to become increasingly open to differences.

Homeless persons; Crack cocaine; Unified Health System

Resumen

A partir de una etnografía realizada con el equipo de un Consultorio en la Calle, en la ciudad de Río de Janeiro, en sus encuentros con personas en situaciones de uso de crack, se presenta: su modo de funcionamiento a través de principios; las consecuencias de esta modalidad en aquellas personas que se pretende atender; y otros conocimientos sobre el crack que emergen de este encuentro entre un servicio de salud y los usuarios de dicha sustancia. Se concluye que el Consultorio en la Calle instaura aperturas para que aquellas personas que se tornan usuarias lo modifiquen, haciéndose apto para acoger vidas cada vez más heterogéneas. De esta forma, se torna capaz de ampliar el acceso al Sistema Único de Saúde (Sistema Único de Salud), trazando un camino para que éste sea cada vez más permeable a las diferencias.

Personas sin hogar; Cocaína crack; Sistema Único de Salud

O artigo é fruto de pesquisa qualitativa desenvolvida, entre os anos de 2013 e 2015, com equipe de Consultório na Rua (CR) da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, e pessoas que se encontram em cenas de uso de crack e se tornaram, ou não, usuárias desse serviço de saúde. Um dos autores acompanhou as visitas do CR a essas cenas. Para tanto, seguiu orientações da equipe, em especial dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), para atuar na distribuição de insumos (camisinhas e informativos), na apresentação do CR e no preenchimento de cadastro de usuários(as). Permitiu-se, também, que acompanhasse as reuniões de equipe e compartilhasse os momentos nos quais usuários(as) aguardavam seu atendimento na clínica. Dessas experiências, registradas em diário de campo, emergem os dados – enunciados, gestos, silêncios – a partir dos quais este artigo foi produzido.

Destaca-se, inicialmente, a tecnicidade do termo “cena”, presente na expressão “cenas de uso de crack” para denotar a presença e o destaque dado a essa variação da cocaína em certos locais atendidos pelo CR. A equipe, desde as primeiras visitas a esses locais, percebeu que não podia configurar a partir de si como se daria o atendimento a pessoas em situação de rua em cenas de uso de drogas. É necessário entrar em cena vivenciando-a em ato. Não se trata de inserir o paciente em cena institucional previamente definida, que opera a partir de espaços terapêuticos e categorias sistematizadas a priori.

Na maior parte dos serviços de saúde, quando um paciente chega à clínica, a simples passagem ao seu interior funciona como um processo de purificação, no qual os aspectos de onde e como vive, que possuem efeitos positivos e negativos sobre seu bem-estar, são excluídos da análise. O mesmo ocorre com procedimentos baseados em ações programáticas, nas quais se predeterminam os grupos a serem atendidos (hipertensos, diabéticos, por exemplo), assim como as datas, horários e funcionamentos das ações. Tem-se ali certa “purificação categorial” prévia que permitirá ação, talvez, mais focal, como ocorre na Estratégia Saúde da Família. Trata-se, aí, da constituição de cena de autoria das instituições de saúde, na qual os pacientes participam de acordo com sua classificação institucional. Este trabalho, em contrapartida, questiona como o CR se insere e atua nas cenas que independem de sua autoria.

Tem-se como objetivo trazer à luz os princípios que guiam o trabalho do Consultório na Rua. Seguem-se, assim, os elementos que constituem percurso para a atuação da bioética fora do contexto clínico 11. Araujo E. Fragmentos para uma bioética urbana: ensaio sobre poder e assimetria. [Internet]. Rev. bioét. (Impr.). 2015 [acesso 2 fev 2017];23(1):98-104. Disponível: http://bit.ly/2f6cIPy
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: etnografia; variação/criação de princípios; e oferta de tais princípios a outros campos relacionados ao problema em questão. Afirma-se que não se trata apenas da aplicação dos princípios que regem o Sistema Único de Saúde (SUS) – universalidade, equidade e integralidade –, mas de processo criativo. Por ele são produzidos princípios diversos, para que se chegue ao acesso universal à saúde, à adaptação do atendimento aos diferentes modos de existência e suas demandas, e à ampliação e multiplicação das vias de passagem entre os serviços, garantindo acesso, acolhimento e resolutividade nos diferentes momentos do processo saúde-doença.

Busca-se detalhar três desses princípios: subtração, passagem e engate. Sustenta-se que um dos efeitos do funcionamento desse conjunto de princípios é a abertura para uma análise referente, especificamente, ao crack e a seu uso, que pretende acoplar três saberes: o de quem cuida, o de quem usa e o de quem analisa. Daí a utilidade da etnografia, método que consiste na produção de dados a partir de compartilhamento de experiências entre quem pesquisa e aqueles com quem a pesquisa é conduzida. Permite-se que os dados produzidos a partir deste encontro entre alteridades – o CR, a pessoa em cenas de uso de crack, e aquela que está no papel de pesquisadora – sejam efeitos do contato entre saberes heterogêneos.

Funcionamento do consultório na rua

O surgimento do CR se dá devido à existência de bloqueios formais e informais ao acesso da população em situação de rua ao SUS e, em especial, aos serviços da atenção básica à saúde. Portar documento, como requisito para atendimento, exemplifica esses bloqueios. O cheiro do corpo e da roupa da pessoa que procura atendimento também é utilizado como justificativa para negá-lo. Diante disso, o objetivo do CR é facilitar, mesmo abrir, tal acesso. Expressa-se a reorientação dos serviços de saúde para grupos vulneráveis atuando na prevenção, promoção e atenção com enfoque na integralidade das ações de saúde e na perspectiva de um cuidado ampliado com respeito ao contexto sociopolítico em que se inserem, bem como com as peculiaridades culturais locais22. Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe consultório na rua de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. [Internet]. Ciênc Saúde Coletiva. 2016 [acesso 15 jan 2017];21(6):1839-48. p. 1841. Disponível: https://goo.gl/T8vQYi
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Diz-se que o CR funciona mais por princípios do que por metas quantitativas 33. Macerata IM. Traços de uma clínica de território: intervenção clínico-política na atenção básica com a rua [tese]. Niterói: UFF; 2015., como explicitado na fórmula de integrante da equipe: “a produção é zero, mas existe produção”. Os princípios seriam aqueles do SUS, mas se pode dizer também que no cotidiano da equipe existem outros em funcionamento. Concretamente existem processos nos quais estratégias, ações e suas consequências agenciam-se a partir de problema específico e em dado espaço-tempo.

Talvez se possa pensar que tal agenciamento se configura como a aplicação de princípio já conhecido. No entanto, as variações concretas dos problemas, das estratégias, das ações e de suas consequências impõem mutação completa do princípio inicial. Essas alterações tornam possível o trabalho do serviço em seu encontro com os que manejam sua existência nas ruas. Salienta-se, acerca do CR, que há poucas condições prévias para coordenar a assistência de saúde, o caminho está sempre por se fazer junto ao usuário acolhido (no encontro real e a seu tempo), de modo que os ditos lugares identitários de cada profissão são reconfigurados em ato44. Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. [Internet]. Interface Comun Saúde Educ. 2014 [acesso 8 jun 2016];18(49):251-60. p. 256. Disponível: http://bit.ly/2xyShCk
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Pode-se afirmar que o serviço se transforma a partir da variação das vidas que encontra. A criatividade profissional do CR apressa-se para poder engrenar-se à criatividade existencial das vidas na rua. Para tanto, há “esforço” por parte da equipe, como diz a médica do CR, mas “a tensão permanece”. Há ainda atividade paralela e, ao mesmo tempo, posterior de composição teórica de um princípio, o momento no qual se busca compor estratégias, ações e suas consequências concretas sobre certo problema para criar um princípio que deverá retornar ao campo prático e que poderá extrapolá-lo em direção a outras circunstâncias.

Procura-se, assim, um tratamento teórico-prático, cuja utilidade dependerá do tratamento prático dado à teoria. Daí poder dizer que se trata de atividade paralela, já que parece ser lateral à prática, como uma presença virtual teórica da prática, e ao mesmo tempo posterior, quando a prática se lateraliza e passa a ser uma presença virtual prática da teoria. Por isso, a criação de princípios é um trabalho coletivo, prático e teórico. Portanto, pode-se dizer que este trabalho busca captar também a atividade de revezamento entre teoria e prática, na busca para consolidar os princípios da ação. Esse processo é estabelecido a partir dos princípios em ação em campo: subtração, passagem e engate, distintos abstratamente e misturados em seus funcionamentos concretos.

Princípios de uma clínica na rua: subtração

O princípio de subtração é colocado em funcionamento pelo CR, e contra sua própria natureza, pois o CR em questão nasce orbitando ao redor do crack – a proposta de lhe dar vida, apresentada em um Conselho Local de Saúde, deriva do que foi chamado “especificidade de Manguinhos”: uso intensivo de crack e outras drogas. Não só o serviço, mas as ruas e as vidas que as habitam estariam plenamente sob a força do crack. Não haveria necessidade, então, da pergunta “você está precisando de alguma coisa da área da saúde?”, tão presente durante o trabalho dos ACS quando circulam pelas ruas e, em particular, pelas cenas de uso de crack, oferecendo os serviços do CR. Desde já se teria a resposta: “precisa-se parar de usar crack”. Dessa maneira, a pergunta é ato de subtração, exemplificando o princípio.

Não que a equipe finja não ver o crack; ela vê, conversa-se sobre ele e as pessoas mostram como é usado. A diferença é que na cena a equipe “subtrai” o crack como inimigo, como agente epidêmico. Subtrai-se o papel do crack como protagonista. Torna-se possível, assim, olhar para as vidas nas cenas em toda sua complexidade e, ao mesmo tempo, conjurar aquele procedimento segundo o qual tais vidas são colocadas sob o jugo de certo modelo, vazio, de vida. Por meio desse princípio, pode-se procurar aprender algo sobre como o crack funciona: seja como mero componente entre outros ou como meio de destruição. Portanto, não há motivos para se considerar o crack em si, mas, sim, o crack e a vida de quem dele faz uso. Logo, tal princípio torna possível ver o crack por outras perspectivas. Passa a ser possível perguntar “o que a droga faz por você?55. Khantzian EJ, Albanese MJ. Understanding addiction as self-medication: finding hope behind the pain. Lanham: Rowman & Littlefield; 2008. p. 2..

Mas não só isso. O princípio de subtração permite que não se veja o crack onde ele não está; afinal, como disse uma integrante do Movimento Nacional da População de Rua, nem todo mundo que está em situação de rua faz uso de substâncias psicoativas 66. Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Atenção Básica. Consultório na rua: a rua não é um mundo fora do nosso mundo [vídeo]. [Internet]. 27 set 2013 [acesso 15 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/1NmeOjx
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. Conjura-se, pois, o espraiamento de termos como “cracolândia” e “cracudos” sobre as vidas que se encontram na rua, já que classificar certa pessoa ou território por tais termos tende a funcionar como justificativa para ações estigmatizantes e arbitrárias.

Essas ações podem ser estatais, como em casos de recolhimento, internações compulsórias, agressões da polícia e mesmo negação de atendimento em serviços de saúde. Ou vinculadas indiretamente ao Estado, como ações de milícia, em parte composta por agentes ou ex-agentes do Estado, como policiais e bombeiros 77. Mendonça T. Batan: tráfico, milícia e pacificação na zona oeste do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: UFRJ; 2014., e do tráfico de drogas, por sua existência estar atrelada à criminalização do uso de drogas e sua estrutura espelhar aquela estatal, já que apresenta comando político centralizado, quadro hierárquico definido, controle territorial (…) participação de homens públicos em suas redes88. Rafael A. Segmentaridade e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Alceu. 2001;2(3):166-79. p. 167..

Não só em relação ao crack o princípio da subtração funciona. Ao avaliar possível integrante do CR, a equipe considera que tal pretendente ainda pensa como quem trabalha com HIV. Ou seja, tudo passa a girar em torno da doença assim que diagnóstico positivo é obtido. Nesse cenário, o vírus se torna protagonista, e a vida – essa era a avaliação da equipe – desliza para a penumbra. De modo semelhante, ao lidar com possível centralização em relação aos procedimentos biomédicos, tende-se a subtraí-los para despontarem outros modos de proceder, como aquele das pessoas que atuam como ACS. Mas “a tensão permanece”, e o perigo de tudo girar em torno dos procedimentos biomédicos é constante.

A importância de tal princípio é apontada por uma integrante do CR do centro da cidade do Rio de Janeiro: “Se a gente tivesse visto o menino antes, feito um atendimento para além da coisa do crack… da tensão da assistência social, ele não teria morrido. A gente ficou nessa do vício do crack, mas o problema era outro99. Macerata IM. Op. cit. p. 208.. Aqui, volta-se à pergunta “você está precisando de alguma coisa da área da saúde?”. Essa indagação fundamental emerge como ato próprio a esse princípio: desloca o crack do centro da cena. Tal pergunta já atua em relação a outro princípio, aquele da passagem; conecta e diferencia os dois princípios.

Princípios de uma clínica na rua: passagem

O princípio de passagem é definido pela busca por fazer algo passar. Ou seja, implica em não haver passividade no ato de escuta colocado em prática pelo CR a partir da pergunta “você está precisando de alguma coisa da área da saúde?”. E, obviamente, não há passividade ao respondê-la, mesmo que a resposta seja um longo silêncio. Instauram-se brechas, meios de passagem entre a rua e o serviço. Parte-se do pressuposto segundo o qual o caráter institucional de um serviço funciona ao bloquear e/ou filtrar os efeitos de seu encontro com a alteridade e ao configurá-la a partir de si.

Assim, ao mesmo tempo que se escuta o usuário do serviço, trata-se de instalar um sistema de detecção que ignorará aquilo que possui força transformacional e encontrará ancoragens institucionais no “fora”. Desse modo, pode-se traçar uma linha sobre a multiplicidade e, a partir de si, constituir o par de um sistema binário (médico-paciente, policial-criminoso), fixando nas particularidades encontradas nesse par as atribuições relacionais gerais (o que é um dependente químico e como se deve dar a relação entre ele e uma instituição).

O “você está precisando de alguma coisa da área da saúde?” é o momento de abertura, mas depende de certa atividade para que se fluam fragmentos do exterior em direção ao interior institucional. Compreende-se que sobre as minorias se instalam os bloqueios mais fortes. Desse modo, buscam-se situações nas quais aquelas pessoas que estão na rua possam falar por si mesmas e colocar problemas à instituição que as atende.

Daí a importância e efetividade da figura ACS como profissional cuja experiência comunitária a torna especialista na equipe de saúde: trata-se do fora dentro do serviço. A figura do ACS é aquela que se pode identificar como estando na passagem: é por meio dela que o tratamento dado pelo “fora” comunitário imbrica-se “dentro” do serviço de saúde e, ao mesmo tempo, que o tratamento dado pelo “dentro” desse serviço passa para esse “fora” comunitário. Trata-se do profissional que conjurará contra a instituição como o centro de uma existência, afinal há a comunidade; e oferecerá à comunidade a instituição como possível componente existencial.

Por estar em local e posição liminar, pois a rigor não tem formação na área de saúde, na acepção estrita do termo, não é surpresa verificar a precariedade das condições de trabalho dos ACS: baixos salários, pouco amparo legal, poucos instrumentos formais para enfrentar as condições do campo de trabalho, além da insistência por parte de outros profissionais de saúde em submetê-los às suas vontades 1010. Vidal SV, Motta LCS, Siqueira-Batista R. Agentes comunitários de saúde: aspectos bioéticos e legais do trabalho vivo. [Internet]. Saúde Soc. 2015 [acesso 10 jan 2017];24(1):129-40. Disponível: http://bit.ly/2vVmCXg
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. Ou seja, institui-se o fora dentro da instituição, mas de forma concomitante instituem-se modos de cerceá-lo.

Em suma, não seria de outro lugar, senão do ACS, que emergiria a complexa e polivalente questão “você está precisando de alguma coisa da área da saúde?”. Então, retorna-se a ela: um ato próprio a este princípio, instaurando aberturas institucionais. Mas logo ela passa a atuar em relação a outro princípio, o engate. Novamente, esse princípio conecta e diferencia os demais.

Princípios de uma clínica na rua: engate

Engatar-se a uma existência como um componente, não a fazer girar a seu redor: tal é o princípio de engate. Isso quer dizer que se lida com movimentos, fluxos. O funcionamento do CR se dá por engate a certos fluxos (assim como por bloqueios a outros, como é o caso da tentativa de bloqueio em relação a pessoas que passam a ser domiciliadas). A pergunta “você está precisando de alguma coisa da área da saúde?” é o momento de preparação, a velocidade quase zero que antecede a arrancada.

As respostas – sejam elas um longo silêncio, uma lágrima, um sorriso, uma história de vida ou um seco “não” – têm a potência de impulsionar o CR para zonas desconhecidas, desde que se mantenha atento e disposto para engatar-se a tais movimentos. Aqui, o termo “usuária(o)” ganha força, sentido. Usa-se um serviço quando se emprega certo movimento a ele; no entanto, para ser possível tal movimentação, o serviço, por sua parte, precisa içar sua âncora de si mesmo, permitindo, assim, engatar-se ao fluxo da pessoa ou grupo que dele faz uso.

Um engate não se dá de qualquer maneira. Há um procedimento de transferência, termo empregado em sentido de transporte, de fazer passar o fluxo de um lugar para outro. Assim, o fluxo empregado pela pessoa usuária sobre a equipe irá, necessariamente, modificar-se de acordo com os meios possíveis dispostos pela clínica. Há também mau funcionamento esperado, “uma tensão” que “não é possível desfazer” própria a esse engate. Tal transferência acaba por “exigir” que “o usuário tenha também que se organizar para entrar no fluxo da unidade [básica de saúde]”, nas palavras da médica.

Afinal, ainda existem horários, regras, certa distribuição de recursos e centralidade em relação aos procedimentos biomédicos próprios a serviço de saúde, que impõem limites aos meios de transferência entre rua e clínica. Essa limitação acaba por fazer com que vários fluxos heterogêneos passem por um processo de homogeneização, espécie de filtro daquilo que é diverso, ao se engrenarem aos fluxos clínicos. Quanto menores os recursos de transferência, maiores serão esses processos de homogeneização.

Os princípios e as drogas

Diferente de afirmação de imperativos em relação a substância, da qual emergiria a questão “você é contra ou a favor das drogas?”, lida-se com composição na qual os princípios elencados são ferramentas para que outras dimensões relativas a entorpecentes – geralmente obstruídas nas possíveis passagens para outros campos, como os da macropolítica e da ciência – possam ultrapassar bloqueios. Parece ser esse um dos meios possíveis para que a chamada “política das drogas” passe a lidar com as diversas dimensões das relações traçadas entre pessoas, grupos e drogas.

O funcionamento dos princípios de subtração, passagem e engate possui efeito relativo ao crack: sabe-se mais sobre ele a partir das perspectivas das cenas. Pode-se dizer que passam outras dimensões da droga para além das fronteiras das chamadas “cracolândias”. Dessa maneira, distinguem-se usos e funcionamentos do crack a partir das pessoas usuárias. Não se trata, então, de “questão de princípio”, aquela que faz emergir os “a favor” e os “contra as drogas”, mas sim de como os princípios podem funcionar na multiplicação das questões. Os princípios destacados aqui são como conjuração tática contra os conteúdos “deve-se ou não” e, pode-se dizer, conjuração estratégica contra o desejo de esmagar as diferenças, investido nos menores momentos cotidianos. Afinal, as drogas não estão sozinhas; estão, sim, engrenadas em existências diversas.

O crack

Muitos olhos miram o crack, e muito se diz a partir dessas visões. Tais olhos funcionam como diferentes lentes de um grande olho aparentemente desinteressado que chegaria a conclusões “objetivas” acerca do crack em si. Impõem-se, assim, verdades por meio de conteúdos farmacológicos e sociais que passam a dar significado ao crack – a rapidez de sua ação, a brevidade de seus efeitos e o salto para a dependência (como se esta fosse mero efeito lógico da rapidez e da brevidade), a passagem do âmbito da dependência para a marginalidade e, logo, a criminalidade.

Nesses saltos torna-se visível algo que não se restringe a eles: um procedimento de que permite acreditar ser possível chegar ao fato bruto, o ponto no qual não há mais interpretação, apenas a “verdade” do crack. A partir desse instante tal verdade passa a instaurar um modelo, arma de julgamento e apelo à salvação. Daí pode-se entender o ato de posicionar a abstinência, mesmo breve, como condição para qualquer tratamento: “a gente vai te ajudar, mas você tem que parar de usar drogas”, e suas variações.

Lida-se, nesse enunciado, de modo simultâneo, com um julgamento direcionado à vida que se afasta de certo modelo – aquele de vida abstinente – e a emersão de um salvador porta-voz e defensor desse modelo de vida. De fato, o efeito desse enunciado é menos aquele de gerar processo de abstinência e mais o abandono dos tratamentos. Nesse sentido, relembram-se estudos realizados nos Estados Unidos e Reino Unido relacionados à tentativa de conter por meio da abstinência a epidemia de aids entre pessoas que faziam uso de drogas injetáveis. Esses estudos apresentam proporção de 80% de recaídas, o que permite concluir que era ilusório esperar combater a epidemia de aids entre injetores pela abstinência1111. Coppel A, Doubre O. Drogues : sortir de l’impasse : expérimenter des alternatives à la prohibition. Paris: La Découverte; 2012. p. 23..

Esse diagnóstico aponta para o surgimento da política de redução de riscos ou danos associados ao uso de drogas, promovida a partir da aliança entre saberes clínicos e os das pessoas usuárias. Esse consórcio predispõe modificações nos modos de consumo, como aquele do compartilhamento de seringas. Também propicia migrações para o uso de outras drogas mais distantes dos riscos de contaminação pela doença, tanto aquelas circunscritas no campo legal, como as utilizadas nos programas de substituição – a exemplo da metadona – quanto aquelas restritas ao campo da ilegalidade.

Nesta pesquisa há relatos nos quais, tendo sido informadas por médicas(os) que era necessário parar de usar crack para poder tomar medicamentos para tratar a tuberculose, as pessoas suspendiam o uso dos remédios para fazer uso da substância. Seguiam a recomendação de não utilizar concomitantemente as duas drogas, os medicamentos e o crack, escolhendo evitar os primeiros. Há também relatos radicalmente diferentes. Ao se informar que o importante é a manutenção do tratamento, sendo ideal a diminuição do uso do crack, passam a emergir novos enunciados: “falam que doidão não toma remédio, eu tô aqui para tomar remédio”, ou seja, visualiza-se campo no qual ser “doidão” e se tratar não estão em oposição.

Pode-se observar também processos nos quais o uso não transforma pessoa usuária ou serviço que a atende em reféns das “verdades” do crack. Destarte, o enfermeiro do CR relata que informou a um usuário, que usava crack em uma cena, onde ele poderia encontrar a equipe e como chegar à clínica. E ao relatar o acontecido, diz que acreditava que, quando passassem os efeitos do crack, o usuário não iria se recordar do encontro e muito menos das informações. Para surpresa do enfermeiro, no mesmo dia o usuário compareceu à clínica.

Dessa forma, o enunciado “a gente vai te ajudar, mas você tem que parar de usar drogas” pertence ao modelo de vida abstinente, que nega as vidas concretas que dele fogem. Modelo que se revela sempre vazio, pois parte de vício de base, o julgar, funcionando, assim, como extático moral. A partir daí é possível compreender quando se diz “narcóticos” ao referir-se à moral e a certos ideais 1212. Nietzsche F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras; 1998.. Em suma, a questão da droga extrapola aquela das substâncias.

Os funcionamentos do crack

Um dos efeitos dos princípios aqui descritos é a possibilidade de as vidas em relação com o crack colocarem a “verdade” do crack em questão. Elas problematizam – por meio de enunciados como “tem gente que fuma na frente de vocês, eu não”; “eu controlo a droga, ela não me controla” – a conclusão de que todo uso de crack é destrutivo. Pode-se dizer, assim, que nessas falas não há antítese a priori entre crack e vida. Logo, torna-se viável a questão: “o que o crack faz por você?”.

Ressalta-se que a resposta a essa pergunta não será objeto de avaliação; o que se avaliará é a capacidade de o campo institucional, do qual provém a pergunta, ser afetado pela resposta. O olhar de escrutínio troca de perspectiva. Trata-se de propor a transferência e a extensão do que se sabe, se experimenta sobre como funciona o crack por outros meios e em direção a outras conceituações. Não se tem como objetivo confrontar tais saberes, experiências e funcionamentos com critério de verdade exógeno. Pretende-se que o encontro de campos de experiência e conhecimento diferentes – a rua, clínica; a rua, teoria – opere na produção de dados que fomentem ações criativas e adequadas àquelas pessoas que usam crack. Com essa intenção se apresentam a seguir trechos de falas registrados na observação que traduzem alguns funcionamentos do crack, majoritariamente nas cenas de uso ou em momentos antes do uso, durante os atendimentos do CR.

Terapia

Uma pessoa chegou muito perto de meu ouvido e perguntou: “que remédios vocês têm aí?”, não tive chance de dar minha resposta, pois, rapidamente, ele começou a pronunciar vários nomes de medicamentos. Perguntei como sabia tantos remédios, disse-me que tinha terceiro grau, era engenheiro, mas tinha problemas: já tinha gasto R$ 1.600,00 naquela cena. O ACS, que já participava da conversa, sugeriu que ele fosse para a clínica conosco, tendo como resposta “não quero mais um laudo, já fui internado três vezes… mais um laudo?!”. O ACS insistiu, explicando o trabalho do CR: “vamos conversando para tentar descobrir uma forma de te ajudar”, ao que ele respondeu: “é porque não adianta internar, eu escuto vozes e a única forma de parar de ouvir é quando uso crack… E quando uso forte”.

A fala destaca a inutilidade da internação para a pessoa que faz uso do crack, mas permite entrever outro uso do termo “internar”. Ao lembrar que muitas dessas pessoas já passaram por diversos modos de internação, o uso do termo parece importante, inclusive porque mostra que não se refere exclusivamente à relação espacial. Em geral, a pessoa se interna com objetivo. Interna-se em comunidades terapêuticas para interromper temporariamente o uso e recuperar-se dos efeitos do crack sobre si, para poder depois retomá-lo. A pessoa “interna-se”, também, quando usa crack de modo intenso, longos períodos nos quais faz uso continuado com o objetivo de lidar com um transtorno mental e parar de ouvir vozes, por exemplo.

Dependência

A equipe atendeu um senhor que estava com cateter intravenoso no braço e dormia em uma calçada. Conversando, disse: “saí de casa porque as palavras do pastor não saíam de minha cabeça”. Depois ele foi visto na cena usando crack. Demonstrava estar envergonhado quando percebeu a presença da equipe, dizendo: “quero voltar para casa, mas não consigo. Não consigo sair daqui”. Assim, o uso do crack parece atuar como força centrípeta que o mantém ali, após a força centrífuga das palavras do pastor o expulsar de casa.

Assistência

Na linha do trem, uma mulher tinha na mão um copo de plástico pronto para o uso. O copo ainda tinha a tampa de alumínio, em que havia buraco feito com a ponta de um dedo e, do lado oposto, pequenos buracos feitos com prego ou agulha; distribuídas em cima desses, cinzas de cigarro e, em cima dessas, uma pedra de crack. Ela não fumou na nossa frente, disse que tinha vergonha, completando: “tem gente que fuma na frente de vocês, eu não. Tem gente que se deixa dominar pela droga. Eu não. Eu controlo a droga, ela não me controla”. E continuou, “eu usaria menos, tipo só no fim de semana (…) se tivesse minha casinha, meu dinheiro, mas não é assim”. Assinala a possibilidade de usar o crack de modo recreativo, mas devido à situação usa-se mais vezes, ainda de modo controlado, como um apoio, uma assistência à vida na rua.

Anestésico

Verificou-se também, algumas vezes, o uso do crack para parar a dor. A definição de dor tanto pode ser tomada da forma mais elementar, remetendo a problema físico, quanto relacionada ao sofrimento e à angústia experimentados no cotidiano. Estas duas acepções mesclam-se nas falas à ideia de dor.

Aprimoramento

Aproximei-me de um homem que por vezes se encontrava na cena e, em algumas delas, usava crack. Andava em sua direção, ele de costas para mim. Ao mesmo tempo em que falei “E aí pintor?!”, toquei um de seus ombros. Nesse momento ele se afastou rapidamente, assustado, e se virou para mim levantando o braço – no que parecia ser a preparação de um soco. Logo me reconheceu e passou a pedir desculpas; disse-me que estava sozinho, então precisava se cuidar; afinal, ali tem “muita ruindade”.

Essa “ruindade” é indicada nos relatos, feitos pelas pessoas atendidas pela CR, em relação às ações violentas perpetradas pela polícia, pelo tráfico varejista de drogas e pelas milícias. Assim, propõe-se, aqui, que onde existe “muita ruindade”, como parece ser o caso das ruas e, em particular, das cenas de uso de crack, a chamada paranoia proporcionada pela droga pode ser caracterizada de modo mais preciso como aprimoramento da capacidade de recear e de reagir. Ou seja, caso se viva em um ambiente no qual é grande o risco de sofrer violências, parece justificável, mesmo indicado, ampliar a capacidade de agir como se qualquer toque fosse uma ameaça.

Formação de grupo

O crack é uma substância que ficou conhecida por seu uso público, em grupos. Segundo um ACS, isso é produção específica dessa substância: “o crack tem uma coisa de ser uma droga que faz grupos. A pessoa vai lá, compra a droga, usa por ali e fica por ali mesmo com as outras pessoas”. Formam-se grupos, erguem-se casas, namora-se, briga-se, morre-se, come-se, dança-se junto. Destarte, se, por um lado, fala-se do crack como veículo de exclusão social, por outro, pode-se dizer que tal substância promove socialização, mesmo a formação de uma comunidade.

Captura

Na observação das interações do CR pode-se verificar que existe variação da questão “o que o crack faz por você?”: “o que faz o crack acontecer?”. Um dos aspectos evidenciados é a própria difusão da droga pela mídia que, segundo essas falas, teria potencial de desafiar a força e o autocontrole da pessoa, seduzindo ou induzindo ao uso 1313. Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015. p. 28-9.: Quando Dráuzio Varela mostrou (…) a diferença entre o crack e o oxi, disse quanto custava, onde era vendida e que a droga é tão poderosa que se a experimentarmos uma vez não é possível se livrar dela, a população da chamada cracolândia mais do que duplicou no final de semana seguinte.

Essa fala está em consonância com aquela de uma pessoa atendida por equipe de redução de danos: eu nem usava droga direito, mas aí quando falaram do crack no Globo Repórter, dizendo que era uma droga que viciava na primeira vez que usava, fui correndo atrás (…) eu usei e não me viciei na primeira vez (…) Fiquei usando até me viciar, e hoje tá foda de largar1414. Domanico A. “Craqueiros e cracados: bem-vindo ao mundo dos nóias!” Sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetos-piloto do Brasil [tese]. Salvador: UFBA; 2006. p. 135..

O modo de existir de uma ciência de campo

Não é uma questão, para o CR, saber se tais resultados são “efeitos verdadeiros” do crack. Pode-se dizer que o modo de atuação dessa instituição propõe que tais funcionamentos passem a ser partes constituintes do saber sobre a droga e, ao mesmo tempo, do próprio CR como dispositivo terapêutico à disposição daquelas pessoas que estão na rua e fazem uso do crack (assim como de outras drogas, registradas como lícitas ou ilícitas). Diz-se, portanto, que a produção de conhecimento e de técnicas por parte do CR é aquela própria a ciência de campo: trata-se de identificar relações, de observar variações, de reunir indícios que possibilitam a reconstrução e a narração de cena concreta 1515. Stengers I. As políticas da razão: dimensão social e autonomia da ciência. São Paulo: Edições 70; 2000.. Daí o caráter técnico da categoria cena utilizada pela equipe.

Mas tal ciência, como praticada pelo CR, é distinta daquelas de laboratório: nela não há meios de encenar a própria questão que se quer responder. Isto é, não há “purificação” de fenômeno que proporcionaria a quem está no papel de cientista a visão da verdadeira face do objeto de estudo e a possibilidade de sua reprodução em um experimento. Isso permite caracterizar outras visões divergentes como equivocadas. De modo diferente, a reconstrução e narração de cena em ciência de campo não demanda ou institui juízes, mas abre caminho para que os diferentes elementos estudados no processo de produção e variação de conhecimento e de técnicas emerjam, interajam e atravessem as cenas. Destarte, a relação com aquelas pessoas que se encontram na cena é momento único, experimental peculiar.

Nesse momento, a equipe, por um lado, testa abordagens, enunciados, técnicas sob o escrutínio de quem ela está atendendo; ou seja, pode-se sempre ouvir um simples e seco “não”. Por outro lado, esse escrutínio pode se configurar como experimentação própria de quem usa o serviço: testa-se a flexibilidade institucional, verifica-se até onde se pode confiar na instituição, assim como se examinam os impactos e as possibilidades dessa interação em sua própria existência. Pode-se dizer, assim, que as condições da produção de conhecimento de um são também, inevitavelmente, condições de produção de existência para o outro1616. Stengers I. As políticas da razão: dimensão social e autonomia da ciência. São Paulo: Edições 70; 2000. p. 167..

Nesse sentido, há algo peculiar na própria existência do CR, que reflete a complexidade do lugar de fala ambíguo no qual se situa, que é – exatamente – aquilo que parece permitir seu funcionamento como instituição e como ciência de campo: lidar concomitantemente com a finitude, a singularização e a irreversibilidade 1717. Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34; 2012.. Nesse sentido, pode-se afirmar que o CR trabalha para a sua própria dissolução: horizonte de dissolução de serviços especializados para população de rua1818. Macerata IM. Op. cit. p. 176..

Por fim, está posicionado em relação a outras instituições, a outros coletivos, em um processo histórico de luta por acesso à saúde e, principalmente, à existência daqueles que passam a ser seus usuários. Assim, torna-se visível o nexo que conecta a produção de conhecimento, a produção institucional e a produção de existências. Daí os princípios postos em funcionamento pelo CR funcionarem como guias em encontro com modos de existência diversos. Nesse encontro, o CR passa a seguir tais existências, aprender com elas. Passa, então, a não só acompanhar, mas variar com essas existências, tornando o CR componente de apoio existencial aos usuários.

Portanto, a análise do trabalho do CR possibilita verificar que ao mesmo tempo que esses princípios funcionam como guias para o encontro, funcionam também como comandos ontológicos 1717. Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34; 2012. para a própria instituição. Ou seja, os princípios apontarão de que forma uma instituição como o CR pode existir, evidenciando processo que deriva inevitavelmente do encontro com a alteridade.

Considerações finais

O CR apresenta limites visíveis relacionados, por exemplo, às possibilidades de uma política de substituição do crack por outra droga, lícita ou não, cuja efetividade pode ser comprovada, ou ao fornecimento de maior gama de insumos para redução de danos, como piteiras de silicone e hidratantes labiais. Entretanto, no momento da finalização deste artigo, esses insumos se restringiam a informativos e preservativos. Além disso, o CR se encontra em uma rede de serviços que sofre de precariedades e que, assim como a educação, ainda é alvo preferido do constante ciclo de cortes de recursos em “eras de crise”, que emergem cada vez com mais frequência dos interesses conservadores do jogo macroeconômico e político.

No entanto, o trabalho de campo demonstrou que o serviço apresenta capacidade de inovação em relação ao próprio modo de atuar, assim como a possibilidade de transformar outros serviços do SUS. Isso porque, ao buscar romper as barreiras que bloqueiam o acesso daquelas pessoas que se encontram em situação de rua e, em particular, cenas de uso de crack, essas equipes promovem uma tensão em direção à adequação desses serviços a uma população cada vez mais heterogênea com demandas também heterogêneas.

Isso quer dizer que se pode passar da instituição de um modelo ideal, como o da vida abstinente, para a proliferação de serviços que possam apoiar, em toda sua concretude e complexidade, os mais diferentes modos de existência. Para tanto, o CR atua por princípios – subtração, passagem e engate – relacionados àqueles do SUS – universalidade, equidade e integralidade –, mas que deles diferem. Dessa maneira, tendo em vista o ideal segundo o qual o acesso aos serviços de saúde é universal, tais princípios são trabalhados pelo CR, atuando como guias para o acolhimento da população em situação de rua e em cenas de uso de crack.

Indica-se que o trabalho da equipe permite não só o contato, mas a possibilidade de que aquelas pessoas que se encontram em cenas de uso de crack intervenham sobre esse serviço que busca atendê-las; ou seja, dá-se concretude ao termo “usuário”. Aponta-se, por fim, para uma tarefa: a abertura para que o saber daquelas pessoas que fazem uso do crack se acople aos saberes de quem pesquisa e de quem trabalha no cuidado de quem o usa – saberes distintos, mas não hierarquizáveis. Assim, não só se produzirá conhecimento acerca do crack, mas também meios concretos para potencializar a vida das pessoas que o usam, mesmo que tal uso perdure.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    8 Fev 2017
  • Revisado
    8 Jul 2017
  • Aceito
    2 Set 2017
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