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Suspensão de nutrição enteral a pacientes em coma persistente

Resumo

Estado vegetativo persistente é condição clínica definida como período prolongado, de seis meses a um ano, em estado de coma, sendo somente possível com tecnologia médica. Em alguns países, é lícito aos responsáveis legais solicitar a suspensão de nutrição enteral a esses pacientes, o que certamente leva a óbito em intervalo de poucos dias. É necessária terminologia para diferenciar limitação terapêutica, negligência e eutanásia. A limitação terapêutica surge no momento de intercorrências agudas em pacientes crônicos terminais, enquanto a eutanásia é pedido de morte controlada. Conclui-se, portanto, que a retirada intencional de suporte nutricional a esses pacientes é prática de eutanásia.

Lesões encefálicas traumáticas; Cuidados paliativos; Eutanásia; Gastrostomia; Cuidados paliativos na terminalidade da vida

Abstract

Persistent vegetative state is a clinical condition defined as a long period, from six months to one year, in a coma, which is only possible with the use of medical technology. In some countries, it is lawful for legal guardians to request the suspension of enteral nutrition for these patients, which certainly leads to death within a few days. There is a need for terminology that differentiates between therapeutic limitation, neglect and euthanasia. Therapeutic limitation arises at the moment of acute intercurrences affecting chronic terminal patients, while euthanasia is a request for controlled death. It is concluded, therefore, that the intentional withdrawal of nutritional support for these patients is an act of euthanasia.

Brain injuries traumatic; Palliative care; Euthanasia; Gastrostomy; Hospice care

Resumen

El estado vegetativo persistente es una condición clínica definida como un período prolongado, de seis meses a un año, en estado de coma, lo cual sólo es posible con el uso de tecnología médica. En algunos países, es lícito para los responsables legales solicitar la suspensión de la nutrición enteral de estos pacientes, lo que ciertamente conduce al óbito en un intervalo de pocos días. Se requiere la terminología para diferenciar lo que es la limitación terapéutica, la negligencia y la eutanasia. La limitación terapéutica surge al momento de las complicaciones agudas en pacientes crónicos terminales, mientras que la eutanasia es una petición de muerte controlada. Se concluye, por lo tanto, que la retirada intencional del soporte nutricional en estos pacientes es una práctica de eutanasia.

Lesiones traumáticas del encéfalo; Cuidados paliativos; Eutanasia; Gastrostomía; Cuidados paliativos al final de la vida

Lesões cerebrais podem se correlacionar a distúrbios variados da consciência, refletindo maior ou menor gravidade do dano cerebral, bem como sua transitoriedade ou permanência. Desordens crônicas de consciência são relacionadas tanto a quadros demenciais crônicos, nos quais por vezes não fica clara a distinção entre envelhecimento e doença, quanto a danos agudos ao cérebro, como acidentes vasculares, traumas, situações de anoxia (afogamento, pós-reanimação cardiorrespiratória etc.) 11. Schiff ND, Fins JJ. Brain death and disorders of consciousness. Current Biology. 2016;26(13):R572-6.. Ampla e recente revisão acerca das desordens crônicas de consciência foi realizada por Schiff e Fins 11. Schiff ND, Fins JJ. Brain death and disorders of consciousness. Current Biology. 2016;26(13):R572-6..

Sem dúvida, lesões que provocam distúrbios de consciência levantam questionamentos bioéticos bastante complexos. Entre as desordens crônicas de consciência, o estado de coma permanente, ou estado vegetativo, é contexto clínico de falta de reação ou respostas comportamentais a estímulos ambientais, conservando, porém, funções autônomas e outras respostas cerebrais 22. Carneiro AV, Antunes JL, Freitas AF. Relatório sobre o estado vegetativo persistente. Portugal: Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida; 2005..

O estado vegetativo persistente está correlacionado à perda de parte do encéfalo, mas que, ao se manterem ativas determinadas áreas controladoras das funções vitais mais básicas, ainda possibilita a vida do indivíduo por período mais prolongado. Nesses casos, a manutenção da vida se dá sobretudo com o auxílio de tecnologia de suporte aos sistemas vitais, principalmente ventilação mecânica como suporte respiratório e nutrição por sondagem nasal ou gastrostomia, além de cuidados gerais de higiene, mudança de decúbito etc. 33. Pessini L. Dignidade humana nos limites da vida: reflexões éticas a partir do caso Terri Schiavo. Bioética. 2005;13(2):65-76.

Desde 1994, com a publicação de estudos do grupo Multi-Society Task Force on the Persistent Vegetative State 44. Multi-Society Task Force on PVS. Medical aspects of the persistent vegetative state (1). N Engl J Med. 1994;330(21):1499-508.,55. Multi-Society Task Force on PVS. Medical aspects of the persistent vegetative state (2). N Engl J Med. 1994;330(22):1572-9., o estado comatoso persistente tem sido definido por critérios temporais relativamente prolongados: três meses após coma decorrente de anoxia ou 12 meses após trauma craniano. Na prática, Pessini 66. Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola; 2001. ressalta que, a despeito da cronicidade inerente à definição do quadro de estado comatoso persistente, os pacientes apresentam várias características de terminalidade de vida, e essa dualidade intrínseca está na raiz dos debates bioéticos sobre essa condição clínica.

Segundo Clary 77. Clary EM. Embracing PVS 2.0 (the “permanent? vegetative? state?”): medical research beckons ethicists considering the issue of ANH withdrawal to adopt a more challenging situational narrative. Ethics Med. 2017;33(1):43-53., o estado comatoso persistente é situação recente na história médica da humanidade, posto que concomitante ao surgimento, por volta da década de 1960, de tecnologias avançadas de suporte a pacientes em coma. Até então, conforme Turner-Stokes 88. Turner-Stokes L. A matter of life and death: controversy at the interface between clinical and legal decision-making in prolonged disorders of consciousness. J Med Ethics. 2017;43(7):469-75., ou a consciência nesse estado era recobrada naturalmente ou o paciente falecia em poucos dias. Ou seja, na classificação de Garrafa 99. Garrafa V. Reflexões bioéticas sobre ciência, saúde e cidadania. Bioética. 1999;7(1):13-20., o coma persistente se enquadra no grupo das situações emergentes em bioética.

Clary 77. Clary EM. Embracing PVS 2.0 (the “permanent? vegetative? state?”): medical research beckons ethicists considering the issue of ANH withdrawal to adopt a more challenging situational narrative. Ethics Med. 2017;33(1):43-53. argumenta também que o paradigma inerente à definição de estado comatoso persistente seja que, havendo ausência de respostas do paciente, haja também ausência de percepções e sentimentos. Ao mesmo tempo, questiona tal paradigma, mostrando que até um terço dos pacientes pode recobrar algum grau de resposta, ainda que mínima, a estímulos ambientais e que a própria definição temporal desse estado demandou quase meio século de debates científicos para definição mais precisa. De todo modo, há sempre esperança, ainda que pouco provável, de que o paciente nessa condição volte a apresentar reações ao ambiente e eventualmente consiga estabelecer alguma forma de comunicação.

A comunidade médica mundial surpreendeu-se em 2005 com o caso de Terri Schiavo, norte-americana em estado comatoso persistente que faleceu após médicos removerem suporte nutricional e hidratação depois de longo processo judicial – o esposo clamava pela suspensão de nutrição enquanto os pais da paciente desejavam que se mantivessem os cuidados. Esse caso emblemático trouxe à tona a discussão bioética do fato que, em alguns países, é lícito à equipe médica, mediante solicitação dos responsáveis pelo paciente nessa condição, suspender todo e qualquer suporte nutricional, enquanto mantém-se o paciente sob sedação profunda. Obviamente, trata-se de medida que leva inexoravelmente ao óbito por desidratação em poucos dias 1010. Tsai E. Withholding and withdrawing artificial nutrition and hydration. Paediatr Child Health. 2011;16(4):241-2..

Os debates acerca da retirada de suporte nutricional – chamado “nutrição artificial” – surgem, portanto, em momento no qual se discute muito a ética dos cuidados paliativos e a rejeição à obstinação terapêutica. No entanto, dada as particularidades do paciente em estado comatoso persistente – ausência de comunicação, heteronomia total e absoluta, possível ausência de percepções sensoriais e emocionais, cronicidade do quadro clínico etc. –, a comunidade bioética mundial não chegou a consenso sobre a validade ética de tal prática.

Resumidamente, conforme Pessini 33. Pessini L. Dignidade humana nos limites da vida: reflexões éticas a partir do caso Terri Schiavo. Bioética. 2005;13(2):65-76., os antagonismos concernentes à suspensão de nutrição artificial dizem respeito a valores subjacentes, ou seja, se é prática de limitação terapêutica em contexto de terminalidade de vida ou se, ao contrário, é forma eticamente inaceitável de gestão de fim de vida que afronta a dignidade humana. Assim, este trabalho tem por objetivo conceituar se a suspensão de suporte nutricional enteral em pacientes em estado comatoso persistente é prática de limitação terapêutica ou modo de eutanásia. Não é objetivo deste trabalho discutir se tal prática é eticamente aceitável ou não.

Método

Os fundamentos dos cuidados paliativos foram pesquisados em textos de associações nacionais de cuidados paliativos, bem como em trabalhos de teóricos que publicam sobre o tema. O levantamento do debate sobre a suspensão de nutrição em pacientes em estado comatoso persistente foi feito mediante cruzamento das palavras-chave em inglês “withdrawal”, “artificial nutrition” e “vegetative” na ferramenta de busca Google Scholar, em período restrito aos últimos dois anos.

Os artigos foram analisados sequencialmente conforme listados pelo programa de busca até que não se encontrassem novos fundamentos éticos concernentes à discussão. É interessante considerar que houve preponderância de autores britânicos, uma vez que no Reino Unido é preciso processo judicial para se retirar o suporte enteral desses pacientes.

Dignidade humana

A expressão “dignidade humana”, assim como os vocábulos relacionados a valores éticos, carrega em si, ao mesmo tempo, característica axiomática, ou seja, que é compreendida por si, e aspecto polissêmico, pois, quando se trata de resultados concretos, a expressão chega a ser evocada em práticas diametralmente opostas 33. Pessini L. Dignidade humana nos limites da vida: reflexões éticas a partir do caso Terri Schiavo. Bioética. 2005;13(2):65-76. – no caso, a manutenção ou retirada de alimentação artificial. Segundo Gomes 1111. Gomes JCM. Aspectos éticos do diagnóstico pré-natal. Bioética. 2003;11(2):117-28., o antagonismo da situação descrita pode apresentar o mesmo fundamento – dignidade humana – ao se abordar o problema sob a ótica da contradição entre sacralidade da vida e qualidade de vida, que surge em situações extremas. Dessa forma, existe conceito ambíguo: o de morte digna. Ora, mas a morte é justamente a única certeza em vida e a que mais revolta os seres humanos! O ser humano tenta controlar, naquilo que lhe convém, seus próprios processos biológicos.

Por um lado, isso se expressa de forma profunda e radical na autonomia do doente terminal como tendo o direito de decidir controlar seu próprio processo de morte. Ao mesmo tempo, há referencial ético que considera que, sendo a vida algo não decifrado, não é eticamente lícito ao ser humano decidir o instante de sua morte 1212. Kottow M. Bioética del comienzo de la vida: ¿cuántas veces comienza la vida humana? Bioética. 2001;9(2):25-42.. Para Almeida 1313. Almeida LD. Suscetibilidade: novo sentido para a vulnerabilidade. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):537-48., esse ponto de vista metafísico evidencia, especialmente nos pacientes em estado vegetativo, que a dignidade humana seria vinculável ao princípio de autonomia: na perda de possibilidade de interação social, a autonomia reduzida redundaria no absurdo de gerar dignidade também diminuída. Pessini 33. Pessini L. Dignidade humana nos limites da vida: reflexões éticas a partir do caso Terri Schiavo. Bioética. 2005;13(2):65-76. esclarece que dignidade é valor imensurável; não há mais ou menos dignidade, mas há dignidade ou não.

A criação do Estado democrático de direito repousa na noção de dignidade do ser humano, princípio moral centrado na pessoa, sendo atributo inalienável. A dignidade continua presente inclusive e de forma mais nítida em situações em que, aparentemente, há apenas sofrimento e deficiências diversas 1313. Almeida LD. Suscetibilidade: novo sentido para a vulnerabilidade. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):537-48.. Se dignidade fosse algo válido e pleno somente em períodos de completa saúde, a doença significaria desumanização, perda de dignidade, contrariando, assim, os pactos fundamentais dos direitos humanos, que procuram reforçar o conceito exatamente em momentos de crise – doenças, catástrofes, guerras, epidemias. No entanto, embora a dignidade humana seja arcabouço do Estado democrático de direito, o consenso recente da Sociedade Europeia de Nutrição Clínica e Metabolismo baseou-se apenas nos princípios tecnicistas da prática médica, nada tendo mencionado a respeito da dignidade humana 77. Clary EM. Embracing PVS 2.0 (the “permanent? vegetative? state?”): medical research beckons ethicists considering the issue of ANH withdrawal to adopt a more challenging situational narrative. Ethics Med. 2017;33(1):43-53..

Futilidade terapêutica

Futilidade terapêutica é definida por Biondo, Silva e Secco 1414. Biondo CA, Silva MJP, Secco LM. Dysthanasia, euthanasia, orthotanasia: the perceptions of nurses working in intensive care units and care implications. Rev Latinoam Enferm. 2009;17(5):613-9. como prática médica de adotar tratamentos invasivos e, portanto, dolorosos e incômodos que apenas prolonguem a agonia do paciente terminal. Contudo, aos poucos, esse conceito se expandiu, incluindo qualquer tipo de tratamento médico, dependendo do contexto clínico geral do paciente. Porta i Sales 1515. Porta i Sales J. Sedación en cuidados paliativos: reflexiones éticas. Acta Bioeth. 2000;6(1):79-87. diferencia o conceito de futilidade terapêutica, afirmando que não se aplica a pacientes agudos (traumas, infecções sérias, acidentes vasculares etc.) que eventualmente apresentem evolução grave. Para esses pacientes, ainda que a tecnologia biomédica não se mostre eficaz, obstinação terapêutica não é concepção aplicável. O investimento maciço de tecnologias como sendo futilidade é conceito que se aplica somente a pacientes já cronicamente doentes.

Diniz 1616. Diniz D. Quando a morte é um ato de cuidado: obstinação terapêutica em crianças. Cad Saúde Pública. 2006;22(8):1741-8. distingue “tratamento doloroso” de “tortura médica” da seguinte maneira, usando as palavras dos pais de criança crônica e gravemente doente: se dado tratamento invasivo apresenta potencial de cura ou de melhoria, é tratamento doloroso a ser suportado. Mas na ausência de perspectiva sequer de melhora parcial, “futilidade terapêutica” ou “obstinação terapêutica” tornam-se apenas eufemismos para “tortura”.

Simone 1717. Simone GG. El final de la vida: situaciones clínicas y cuestionamentos éticos. Acta Bioeth. 2000;6(1):49-62., bem como Biondo, Silva e Secco 1414. Biondo CA, Silva MJP, Secco LM. Dysthanasia, euthanasia, orthotanasia: the perceptions of nurses working in intensive care units and care implications. Rev Latinoam Enferm. 2009;17(5):613-9., unifica os conceitos de distanásia, tratamento fútil, tratamento inútil e obstinação terapêutica em uma mesma sinonímia. Taboada 1818. Taboada P. El derecho a morir con dignidad. Acta Bioeth. 2000;6(1):91-101. e Alonso 1919. Alonso JP. Contornos negociados del buen morir: la toma de decisiones médicas en el final de la vida. Interface Comun Saúde Educ. 2012;16(40):191-203. relacionam ainda esses conceitos ao valor de dignidade no momento da morte. Haveria, portanto, um ideal do que seria o bem morrer incompatível com a crescente obstinação terapêutica, pois, conforme Nunes 2020. Nunes R. Proposta sobre suspensão e abstenção de tratamento em doentes terminais. Rev. bioét. (Impr.). 2009;17(1):29-39., a hipermedicalização da morte, na qual se intensifica relação fria e institucional com o paciente, termina por se instalar como prática generalizada, abrindo questionamentos éticos profundos.

Burlà e Py 2121. Burlà C, Py L. Peculiaridades da comunicação ao fim da vida de pacientes idosos. Bioética. 2005;13(2):97-106., ao refletirem sobre o significado desse conceito de bem morrer, ou ortotanásia, para a prática clínica, concluem que não existe exatamente um bem morrer, muito menos que a morte em si tenha como ser digna. A morte é o evento inexorável que mais deixa o ser humano indignado, e quando se mostra próxima, desestabiliza seriamente a estrutura psíquica do indivíduo. Esse paradoxo é sintetizado e bem explanado por Taboada 1818. Taboada P. El derecho a morir con dignidad. Acta Bioeth. 2000;6(1):91-101., para quem, dada a realidade de medicalização do local de morte, as questões éticas, jurídicas e técnicas devem se voltar à assistência a pacientes terminais. Ou seja, discussões abstratas sobre valores éticos abstratos são concretizáveis e palpáveis na ideia de boa gestão médica de final de vida.

Essa gestão tem por base concreta, segundo Kovács 2222. Kovács MJ. Comunicação nos programas de cuidados paliativos: uma abordagem multidisciplinar. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola; 2004. p. 275-86., a natureza inerente a todo tratamento médico, que apresenta duplo efeito: ao mesmo tempo, há sempre aspecto positivo (ou desejável) e negativo (ou indesejável), os quais somente são balanceáveis em termos de risco-benefício em relação a paciente concreto. Assim, a futilidade é atributo relativo, e saber quais são as possibilidades de dado tratamento – se há perspectiva de cura real ou apenas alívio – é a base para legitimar a caracterização de determinada terapêutica como fútil ou necessária. Mais ainda, a dicotomia futilidade/necessidade remete à avaliação de valores, sendo, portanto, julgamento moral. Mas tal julgamento deve estar suficientemente fundamentado também em dados estatísticos de situações similares prévias que permitam inferir expectativa de sobrevida, incidência de efeitos colaterais graves, chance de sucesso etc.

A Academia Nacional de Cuidados Paliativos define paciente terminal como aquele cujo diagnóstico e estadiamento permitisse esperar, com 95% de certeza, que o óbito aconteça entre três e seis meses 2323. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro: ANCP; 2009.. Evidentemente, esse tipo de intervalo matemático não deve ser interpretado de modo absoluto, mas, no caso de pacientes em estado vegetativo persistente, certamente a alimentação artificial prolonga a vida por período indefinido e superior a seis meses. Aliás, pela larga temporalidade envolvida na definição de estado vegetativo persistente, a própria alimentação artificial torna-se um dos recursos terapêuticos que permite a existência dessa condição clínica.

Calderón, Pazitková e Naranjo 2424. Calderón MY, Pazitková TV, Naranjo IC. Presencia de la bioética en los cuidados paliativos. Rev Cuba Med Gen Integr. 2010;26(2):330-7., assim como Nunes 2525. Nunes L. Ética em cuidados paliativos: limites ao investimento curativo. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):41-50., listam as situações mais típicas quanto à limitação terapêutica: em dado paciente, se claramente um tratamento mostrar mais efeitos deletérios do que benefícios, deve ser suspenso. Se a expectativa for que o risco/custo/malefício seja maior do que eventual benefício, o tratamento deve ser renunciado. Se determinado tratamento está trazendo conforto ao paciente, não se admite interrupção. Porém, nem sempre essas distinções são óbvias, motivando, continuamente, pesquisas biomédicas e reflexões éticas. Essencialmente, o modo mais legítimo de embasar decisões acerca de limitação terapêutica é o diálogo com o paciente e seus responsáveis.

Cuidados paliativos

Nas acepções da palavra “paliar”, o dicionário traz como sinônimos “atenuar”, “aliviar”. Mas como a sinonímia nunca é perfeita, a palavra “paliativo” traz intrínseca também a conotação de “incompleto” e “temporário”. Para este debate é preciso delimitar que paliação é toda medida terapêutica que resulte em alívio permanente ou temporário de sofrimento. Alívio sintomático é parte essencial da terapêutica, não apenas para pacientes terminais. Como exemplo, infecções simples de vias aéreas superiores são autolimitadas, mas o tratamento é instituído visando alívio de sintomas.

Cuidados paliativos, como definido pela Organização Mundial da Saúde em 2002, são abordagem terapêutica que promove qualidade de vida a pacientes e familiares no enfrentamento de doenças que ameaçam a continuidade da vida, mediante prevenção e alívio do sofrimento 2525. Nunes L. Ética em cuidados paliativos: limites ao investimento curativo. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):41-50.. Os princípios éticos dos cuidados paliativos, segundo Floriani e Schramm 2626. Floriani CA, Schramm FR. Cuidados paliativos: interfaces, conflitos e necessidades. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13(2 Suppl):2123-32., situam-se entre eutanásia e obstinação terapêutica, rejeitando a ambos os extremos. Ao recusar a obstinação terapêutica, os cuidados paliativos buscam apenas aliviar sintomas que acometem o processo de final de vida.

Serviços de cuidados paliativos são indicados desde que haja diagnóstico de doença previsivelmente fatal, como insuficiência cardíaca, neoplasias etc. Entretanto, esses serviços têm por foco pacientes já em condição de terminalidade de vida. Trata-se, portanto, de indivíduos com reduzida competência e, portanto, com reduzida autonomia. Os cuidados paliativos revelam que todo cuidado à saúde apresenta aspecto tutelar, de proteção à dignidade humana, e embora o diálogo com os responsáveis e familiares do paciente seja o pilar ético da limitação terapêutica, não se admite sua autonomia absoluta na tomada de decisão. Há princípios éticos e de responsabilidade profissional a serem seguidos 1313. Almeida LD. Suscetibilidade: novo sentido para a vulnerabilidade. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):537-48..

Isso porque, conforme ressalta Leone 2727. Leone C. A criança, o adolescente e a autonomia. Bioética. 1998;6(1):51-4., se nas relações humanas houvesse apenas respeito mútuo, não faria sentido elaborar normas e leis que protegessem os pacientes menores e incapacitados. Por regra, os cuidadores buscam o bem máximo das pessoas sob sua responsabilidade, mas a exceção é frequente o bastante para motivar tais medidas estatais de tutela e proteção. Por outro lado, os cuidadores são também pessoas em situação de vulnerabilidade, expostos a adversidades de toda ordem, e não basta tutelar o paciente “contra” eventuais cuidadores mal-intencionados, mas sustentar e proteger o próprio âmbito social/familiar de todos aqueles que se veem nessa situação.

A limitação terapêutica não deve ser decidida de forma brusca nem de modo urgente, mas ser planejada diante do diagnóstico de doença crônica fatal. O médico sempre terá liberdade e responsabilidade de iniciar tratamento, mas quando se trata de limitação terapêutica, a decisão deve ser previamente dialogada e programada. Quanto mais diretrizes e estudos houver em relação ao curso clínico das doenças e ao impacto das terapêuticas disponíveis, mais segura será essa programação 2828. Brook L, Hain R. Predicting death in children. Arch Dis Child. 2008;93(12):1067-70..

Na literatura há vários autores que se expressam nos termos de “eutanásia passiva”, tentando relacionar limitação terapêutica a óbito imediato e redução de expectativa de vida. Contudo, os princípios dos cuidados paliativos se legitimam na base matemática de Tan e colaboradores 2929. Tan GH, Totapally BR, Torbati D, Wolfsdorf J. End-of-life decisions and palliative care in a children’s hospital. J Palliat Med. 2006;9(2):332-42., que indicam o contrário, ou seja, que com cuidados adequados e menos obstinados, os pacientes apresentam tanto melhor qualidade quanto prolongamento de vida.

Explica-se esse achado com base na natureza do duplo efeito dos tratamentos: considerando a extrema fragilidade típica em contexto de terminalidade, não expor o paciente aos efeitos colaterais é mais importante do que tentar algum benefício terapêutico. Ainda que Feltman e colaboradores 3030. Feltman D, Stokes T, Kett J, Lantos JD. Is treatment futile for an extremely premature infant with giant omphalocele? Pediatrics. 2014;133(1):123-8. considerem que qualquer tratamento médico pode ser discutido com respeito à renúncia ou suspensão, as discussões éticas mais calorosas têm recaído sobre suporte respiratório ou ventilação mecânica e nutrição artificial.

Morrison e Kang 3131. Morrison W, Kang T. Judging the quality of mercy: drawing a line between palliation and euthanasia. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):S31-6. concordam com Rapoport e colaboradores 3232. Rapoport A, Shaheed J, Newman C, Rugg M, Steele R. Parental perceptions of forgoing artificial nutrition and hydration during end-of-life care. Pediatrics. 2013;131(5):861-9. ao considerar que para situações que envolvam novas tecnologias é preciso criar vocabulário capaz de distinguir nuances entre limitação terapêutica e crime de negligência. Assim, para Morrison e Berkowitz 3333. Morrison W, Berkowitz I. Do not attempt resuscitation orders in pediatrics. Pediatr Clin North Am. 2007;54(5):757-71., a palavra “eutanásia” deve se referir a situações que atendam a dois critérios: 1) pedido explícito de morte; e 2) medidas tomadas nos períodos intercríticos do paciente. Assim, somente em situações de crise ou reagudização é que o conceito de limitação terapêutica poderia ser afirmado.

Adentrando discussões mais avançadas e de maior complexidade, Feltman e colaboradores 3030. Feltman D, Stokes T, Kett J, Lantos JD. Is treatment futile for an extremely premature infant with giant omphalocele? Pediatrics. 2014;133(1):123-8. e Wilfond 3434. Wilfond BS. Tracheostomies and assisted ventilation in children with profound disabilities: navigating family and professional values. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):S44-9. relembram que mesmo cuidados de alívio pouco invasivos – como traqueostomia ou gastrostomia – não são a priori obstinados, mas podem produzir e criar novas complicações, e o tratamento dessas complicações pode configurar obstinação terapêutica.

Diekema e Botkin 3535. Diekema DS, Botkin JR. Clinical report: forgoing medically provided nutrition and hydration in children. Pediatrics. 2009;124(2):813-22. e também Ambler 3636. Ambler J. When is the right time? Complex issues around withdrawing life-sustaining treatment in children. S Afr Med J. 2014;104(7):507-9. partem do pressuposto que o suporte nutricional seria cuidado essencial somente se o paciente puder deglutir e/ou retomar tal capacidade e que, portanto, no caso de estado vegetativo persistente, a suspensão desse suporte seria eticamente aceitável. Contudo, os autores não esclarecem a situação de pacientes que por fim perdem a capacidade de deglutição, mas mantêm nível relativamente preservado de consciência.

Por sua vez, o arcabouço jurídico britânico e norte-americano deixa essa ponderação a cargo dos responsáveis pelo paciente. Leeuwenburgh-Pronk e colaboradores 3737. Leeuwenburgh-Pronk WG, Miller-Smith L, Forman V, Lantos JD, Tibboel D, Buysse C. Are we allowed to discontinue medical treatment in this child? Pediatrics. 2015;135(3):1-5. levantaram os pedidos de suspensão de nutrição e apontaram que o motivo do pedido não é que a nutrição seja maléfica, mas que o estado clínico geral do paciente é muito penoso.

Morrison e Berkowitz 3333. Morrison W, Berkowitz I. Do not attempt resuscitation orders in pediatrics. Pediatr Clin North Am. 2007;54(5):757-71. revisam a nutrição artificial e reconhecem que há situações em que a nutrição é danosa ao paciente terminal. Exemplo típico foi publicado por Hidayat e colaboradores 3838. Hidayat T, Iqbal Z, Nasir A, Mohamad N, Taib F. Can I give food or drink to my terminally ill child? Educ Med J. 2015;7(3):e73-8., no qual uma moça sofria de câncer terminal que lhe provocava muita fome e desejo de se alimentar, mas, sempre que o fazia, sofria de vômitos que a desidratavam. Voltando aos pacientes em coma persistente, Wellesley e Jenkins 3939. Wellesley H, Jenkins IA. Withholding and withdrawing life-sustaining treatment in children. Paediatr Anaesth. 2009;19(10):972-8. relatam que pelo menos metade dos médicos norte-americanos não considera eticamente aceitável a suspensão de nutrição artificial. Já na Europa, DeVictor e Latour 4040. DeVictor DJ, Latour JM. Forgoing life support: how the decision is made in European pediatric intensive care units. Intensive Care Med. 2011;37(11):1881-7. apontam tendência ética de renunciar à nutrição artificial de acordo com as circunstâncias, mas dificilmente as equipes médicas proporiam sua retirada.

Considerações finais

Nenhum dos artigos levantados 4141. Halliday S, Kitzinger C, Kitzinger J. Law in everyday life and death: a socio-legal study of chronic disorders of consciousness. Leg Stud. 2015;35(1):55-74.

42. Jox RJ, Kuehlmeyer K, Klein AM, Herzog J, Schaupp M, Nowak D et al. Diagnosis and decision making for patients with disorders of consciousness: a survey among family members. Arch Phys Med Rehabil. 2015;96(2):323-30.

43. Kendal E, Maher LJ. Should patients in a persistent vegetative state be allowed to die? Guidelines for a new standard care in Australian hospitals. Monash Bioeth Rev. 2015;33(2-3):148-66.

44. Kitzinger C, Kitzinger J. Withdrawing artificial nutrition and hydration from minimally conscious and vegetative patients: family perspectives. J Med Ethics. 2015;41(2):157-60.

45. Kitzinger C, Kitzinger J. Court applications for withdrawal of artificial nutrition and hydration from patients in a permanent vegetative state: family experiences. J Med Ethics. 2016;42(1):11-7.

46. Marcus E-L, Golan O, Goodman D. Ethical issues related to end of life treatment in patients with advanced dementia: the case of artificial nutrition and hydration. Diametros. 2016;50:118-37.

47. Druml C, Ballmer PE, Druml W, Oehmichen F, Shenkin A, Singer P et al. ESPEN guideline on ethical aspects of artificial nutrition and hydration. Clin Nutr. 2016;35(3):545-56.

48. Veshi D. Comments on the Lambert case: the rulings of the French Conseil d´État and the European Court of Human Rights. Med Health Care Philos. 2017;20(2):187-93.
-4949. Romagano MP, Scorza WE, Lammers SE, Dorr C, Smulian JC. Treatment of a pregnant patient in persistent vegetative state. Obstet Gynecol. 2017;129(1):107-10. considera que o suporte nutricional seja medida desconfortável, dolorosa ou inaceitável para esses pacientes. Isso contrasta com o conhecimento anteriormente consolidado para outros grupos de usuários, como pacientes oncológicos 5050. Benarroz MO, Faillace GBD, Barbosa LA. Bioética e nutrição em cuidados paliativos oncológicos em adultos. Cad Saúde Pública. 2009;25(9):1875-82., para quem a nutrição enteral pode estar correlacionada à piora da condição clínica em geral 5151. Sochacki M, Fialho LF, Neves M, Silva ACSB, Barbosa LA, Cordeiro R. A dor de não mais alimentar. Rev Bras Nutr Clín. 2008;23(1):78-80., podendo exigir ajustes na composição dietética 5151. Sochacki M, Fialho LF, Neves M, Silva ACSB, Barbosa LA, Cordeiro R. A dor de não mais alimentar. Rev Bras Nutr Clín. 2008;23(1):78-80.,5252. Oliveira AC, Silva MJP. Autonomia em cuidados paliativos: conceitos e percepções de uma equipe de saúde. Acta Paul Enferm. 2010;23(2):212-7. e até mesmo ser melhor ao paciente que a tenha suspensa como cuidados de dignidade em fim de vida 5050. Benarroz MO, Faillace GBD, Barbosa LA. Bioética e nutrição em cuidados paliativos oncológicos em adultos. Cad Saúde Pública. 2009;25(9):1875-82.,5151. Sochacki M, Fialho LF, Neves M, Silva ACSB, Barbosa LA, Cordeiro R. A dor de não mais alimentar. Rev Bras Nutr Clín. 2008;23(1):78-80.,5353. Kovács M. Autonomia e o direito de morrer com dignidade. Bioética. 1998;6(1):61-9..

Ainda assim, os valores elencados para justificar a suspensão nutricional nos pacientes em coma vegetativo persistente se baseiam em qualidade de vida, melhores interesses, fardo para os familiares, sujeição a intercorrências clínicas diversas, autonomia do paciente, legitimidade do tutor em representar o paciente em sua autonomia e curso “natural” para o óbito de paciente gravemente enfermo. A linguagem jurídica primeiramente tenta definir se suporte nutricional é tratamento médico ou simples cuidado de saúde, porque, se for definido como “tratamento médico”, sua retirada ou renúncia é passível de ser discutida. Por outro lado, caso o suporte nutricional seja compreendido como simples cuidado de saúde, caracteriza-se como algo que não se pode negar ao paciente.

Sob esta argumentação, Veshi 4848. Veshi D. Comments on the Lambert case: the rulings of the French Conseil d´État and the European Court of Human Rights. Med Health Care Philos. 2017;20(2):187-93. refina o debate levantando a diferença entre nutrição via sondagem nasogástrica e nutrição por gastrostomia. Dado que a passagem de sonda nasogástrica é procedimento simples e pode ser realizado inclusive por familiares, é possível considerá-la como cuidado básico de saúde, que não poderia ser negado ou retirado. A realização de gastrostomia, ao contrário, depende de procedimento cirúrgico, factível apenas por médicos e que, sendo considerada tratamento, poderia, em certas circunstâncias e atendendo a determinados protocolos, não ser realizada.

Jox e colaboradores 4242. Jox RJ, Kuehlmeyer K, Klein AM, Herzog J, Schaupp M, Nowak D et al. Diagnosis and decision making for patients with disorders of consciousness: a survey among family members. Arch Phys Med Rehabil. 2015;96(2):323-30. concluem que a maioria dos familiares de pacientes em coma persistente não solicita a retirada de suporte nutricional. Em seu levantamento, a noção de dignidade humana se concretiza na constante esperança que o paciente retorne, ao menos em parte, à consciência, tentando estabelecer comunicação, ainda que mínima.

Marcus, Golan e Goodman 4646. Marcus E-L, Golan O, Goodman D. Ethical issues related to end of life treatment in patients with advanced dementia: the case of artificial nutrition and hydration. Diametros. 2016;50:118-37. comparam a abordagem nutricional em pacientes idosos portadores de demência avançada e a de pacientes adultos em estado comatoso persistente. São contextos clínicos de certa forma semelhantes, mas cada um com suas peculiaridades, necessitando, portanto, de embasamentos éticos distintos.

Os quadros de demência avançada apresentam, nos momentos finais, recusa do paciente em se alimentar, ou seja, não há impedimentos à deglutição, mas questão cognitiva que faz com que o enfermo não se alimente nem se hidrate. Embora o paciente se sinta confortável com essa decisão, termina por falecer no período esperado para pessoa em total jejum.

Assim, discute-se em relação aos cuidados médicos de fim de vida se seria mandatório ou não o início de nutrição enteral por gastrostomia ou se alimentação à revelia caracteriza obstinação terapêutica. De todo modo, essa condição diverge do estado comatoso persistente, uma vez que, por definição, este só é definível após período relativamente prolongado, o qual somente terá sido possível em decorrência do uso de suporte nutricional.

Kitzinger e Kitzinger 4444. Kitzinger C, Kitzinger J. Withdrawing artificial nutrition and hydration from minimally conscious and vegetative patients: family perspectives. J Med Ethics. 2015;41(2):157-60.,4545. Kitzinger C, Kitzinger J. Court applications for withdrawal of artificial nutrition and hydration from patients in a permanent vegetative state: family experiences. J Med Ethics. 2016;42(1):11-7. deixam explícito que o pedido para retirada de nutrição enteral tem o propósito do óbito previsível do paciente, ou seja, eutanásia. Trata-se claramente de pedido de morte, que, nas palavras de Druml e colaboradores 4747. Druml C, Ballmer PE, Druml W, Oehmichen F, Shenkin A, Singer P et al. ESPEN guideline on ethical aspects of artificial nutrition and hydration. Clin Nutr. 2016;35(3):545-56., seria morte “natural”. Aqui cabe compreensão antropológica essencial, aplicada à bioética, de que não existe exatamente um “natural” na experiência humana: a construção da visão de mundo, os padrões de interpretação e a interação do ser humano com o mundo exterior, inclusive em seus últimos momentos, são intermediados pelo constructo cultural de seu grupo social. Assim, a menção a “morte natural” não encontra respaldo no contexto dos pacientes em coma persistente, uma vez que a própria condição clínica decorre exclusivamente do uso de tecnologia médica.

O escopo da discussão sobre a retirada de nutrição enteral sai da esfera dos cuidados paliativos e entra no campo da eutanásia, que apresenta fundamentação ética (favorável/desfavorável) distinta. Enquanto os fundamentos éticos acerca de cuidados paliativos são consenso bioético, a eutanásia apresenta aceitação jurídica restrita a poucos países, tendo se tornado até mesmo tabu. A obstinação terapêutica está relacionada ao desconforto que o próprio tratamento causa em contexto de terminalidade de vida.

Essa confusão conceitual é deletéria para o aperfeiçoamento dos cuidados paliativos, uma vez que passam a ser evocados para justificar práticas de eutanásia. Palhares, Santos e Cunha 5454. Palhares D, Santos IA, Cunha ACR. Limitação terapêutica para crianças portadoras de malformações cerebrais graves. Rev. bioét. (Impr.). 2016;24(3):567-78. já indicavam a necessidade de definir práticas de limitação terapêutica, diferenciando, por exemplo, limitação terapêutica ética e juridicamente válida de crime de negligência médica.

De todo modo, a prática em si é passível de definição somente no contexto clínico. Assim, a limitação terapêutica – renúncia ou retirada de tratamentos invasivos – pode ser evocada somente na vigência de intercorrência clínica. Ou seja, a retirada de suporte nutricional de paciente em coma persistente não pode ser considerada limitação terapêutica, uma vez que é feita de forma planejada, intencional, nos momentos de estabilidade clínica do paciente.

No caso do Reino Unido, um intervalo de 9 a 14 meses tem sido relatado para autorizar judicialmente a retirada de nutrição artificial 4444. Kitzinger C, Kitzinger J. Withdrawing artificial nutrition and hydration from minimally conscious and vegetative patients: family perspectives. J Med Ethics. 2015;41(2):157-60.,4545. Kitzinger C, Kitzinger J. Court applications for withdrawal of artificial nutrition and hydration from patients in a permanent vegetative state: family experiences. J Med Ethics. 2016;42(1):11-7.. Ora, se por consenso ético a limitação terapêutica se impõe quando a perspectiva de vida do paciente adulto é de menos de seis meses, definitivamente a prática de retirada de suporte nutricional não é feita em contexto de limitação terapêutica em intercorrências agudas, mas como forma planejada de encerrar a vida do paciente.

Pode-se discutir se é lícito ou não aos tutores de pacientes em coma persistente solicitar explicitamente sua morte, dado o contexto crônico de luto, fardo e sofrimento dessa situação, mas não é admissível que haja qualquer confusão terminológica entre prática de eutanásia e limitação terapêutica. Essa confusão não permite a discussão clara e precisa sobre a melhor forma de gestão médica de fim de vida de um paciente. Essa indistinção, tomando eutanásia como ato de limitação terapêutica, pode prejudicar o próprio aprimoramento dos cuidados paliativos, uma vez que sempre haverá a sombra da dúvida se esses cuidados estão voltados para a preservação da dignidade humana por meio de limitação terapêutica ou se são simples eufemismo para eutanásia.

De todo modo, poderia ser benéfico para esses pacientes que a palavra “eutanásia” fosse explicitamente mencionada, de modo que lento processo previsível de morte por inanição e desidratação pudesse ser substituído por modo mais imediato. Afinal, a eutanásia é uma das expressões do desejo humano de controlar processos biológicos, no caso a morte, do modo mais suave possível.

Da maneira como tem sido feita, a suspensão de suporte nutricional acaba por tornar-se ritual de cuidados de fim de vida, que tenta sublimar e ocultar o que seria prática de eutanásia. O que poderia ser procedimento simples torna-se lenta e dispendiosa agonia, com administração de sedativos e analgésicos e até mesmo realização de exames laboratoriais, como no caso de Terri Schiavo. Em conclusão, os autores consideram que a suspensão programada e intencional de nutrição artificial a pacientes em estado comatoso persistente é forma de eutanásia e não deve ser denominada limitação terapêutica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2017
  • Revisado
    6 Out 2017
  • Aceito
    7 Out 2017
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