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Recidiva extramedular de leucemia mieloide aguda mimetizando otite externa necrotizante: a cintigrafia com leucócitos mononucleares pode ser o melhor método diagnóstico? Como citar este artigo: Laurindo R, Souza S, Moura J, Tomita S, da Fonseca LB, Gutfilen B. Extramedullary relapse of acute myeloid leukemia mimicking a necrotizing external otitis: could mononuclear leukocyte scintigraphy be the best diagnostic method? Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82:487-90.

Introdução

A otite externa necrotizante (OEN) é uma doença infecciosa invasiva que envolve o conduto auditivo externo (CAE) cartilaginoso e/ou ósseo e que afeta particularmente pacientes imunocomprometidos.11. Chandler JR. Malignant external otitis. Laryngoscope. 1968;78:125794. Em geral, os pacientes se apresentam com uma otalgia renitente e desproporcional aos sinais clínicos e à otorreia purulenta. O diagnóstico de OEN se fundamenta em uma combinação de achados clínicos, laboratoriais e imagiológicos.22. Mani N, Sudhoff H, Rajapogal S, Moffat D, Axon PR. Cranial nerve involvement in malignant external otitis: implications for clinical outcome. Laryngoscope. 2007;117:907-10. Os instrumentos atualmente em uso para o diagnóstico de OEN são tomografia computadorizada (TC), ressonância magnética (IRM) e cintigrafia. A combinação de exames radiológicos com radionuclídeos é crucial, tanto no diagnóstico inicial como no seguimento da resposta ao tratamento.

Relato de caso

Paciente, homem, com 19 anos, diagnosticado com leucemia mieloide aguda (LMA) e em remissão se apresentou com otalgia intensa, plenitude aural, paralisia facial direita (com escore V na escala de House-Brackmann). Durante a otoscopia, foram observados edema da parede posterior do conduto auditivo externo e otorréia. A hipótese diagnóstica de OEN foi considerada, e o paciente foi tratado empiricamente com imipenem durante 12 dias. A resposta ao imipenem, foi insatisfatória, o que fez com que a equipe médica o substituísse por cefepima. Mesmo após a troca de medicação, não houve melhora dos sintomas.

Exames complementares demonstravam níveis elevados de proteína C reativa, a TC mostrava opacificação das células mastoides, assim como erosão da parede posterior do CAE (fig. 1A-B). A IRM ponderada em T2 revelou intensificação pelo gadolínio no interior da cavidade timpânica e em torno do canal carotídeo, com prolongamento até o pavilhão auricular e os tecidos moles adjacentes (fig. 1C-D). Os achados da cintigrafia óssea com 99mTc-MDP foram consistentes com um processo inflamatório/infeccioso no osso temporal. No entanto, a cintigrafia com leucócitos mononucleares marcados com 99mTc não revelou qualquer evidência de processo inflamatório.

Figura 1
Imagens de TC de alta resolução das mastoides em projeção coronal (A-B). A, Erosão da parede posterior do conduto auditivo externo (CAE; seta branca) e espessamento e intensificação do tecido mole na região do CAE (seta vermelha). B, Erosão da cortical mastoidea (seta preta) e destruição do trabeculado ósseo. IRM das mastoides (C-D). C, Imagem axial ponderada em T1 demonstrando infiltração dos tecidos moles em torno do CAE, tecido subcutâneo e glândula parótida. D, Imagem FLAIR axial ponderada em T2 exibindo as cavidades timpânica e mastoidea, com captação de contraste pelo tecido com disseminação anteroinferior.

Diante desses resultados e da presença dos sintomas depois de seis semanas de antibioticoterapia, a equipe médica considerou a hipótese de doença neoplásica (fig. 2). Em consequência dessa suspeita, o paciente foi submetido a uma timpanomastoidectomia. O exame histopatológico confirmou o diagnóstico de Sarcoma mieloide (SM), um tipo de recorrência extramedular da LMA. Não foram notados sinais de doença na medula óssea. Iniciamos um protocolo de quimioterapia e observamos rápida melhora em termos de dor e também nos achados à otoscopia. Depois do tratamento, a paralisia facial regrediu para o escore III na escala de House-Brackmann. Foi recomendado um transplante heterólogo, com recuperação completa.

Figura 2
Cintigrafia com leucócitos mononucleares marcados por 99mTc (A-C). Cintigrafias planares obtidas 1, 3 e 24 horas após a administração dos leucócitos mononucleares marcados indicam que não ocorreu captação ao longo da topografia mastoidea durante o exame.

Discussão

SM é uma condição rara, caracterizada pela ocorrência de um ou mais tumores compostos de células mieloides imaturas em uma localização extramedular. É raro que essa doença afete o osso temporal, sendo mais comumente observada em outros ossos, tecido mole, pele e sistema nervoso central.33. Murakami M, Uno T, Nakaguchi H, Yamada SM, Hoya K, Yamazaki K, et al. Isolated recurrence of intracranial and temporal bone myeloid sarcoma - case report. Neurol Med (Tokyo). 2011;51:850-4. Os sintomas de SM no osso temporal são perda da audição, vertigem, paralisia facial, zumbido, plenitude aural, otalgia e tumefação retroauricular e do conduto auditivo externo, possivelmente mimetizando otomastoidite ou OEN. Com frequência, os achados de estudos por imagem nos estágios iniciais de OEN são sutis; e mesmo em casos avançados, esses achados podem não ser identificados como OEN, a menos que o diagnóstico já esteja sendo considerado.

As imagens nucleares desempenham um papel importante no diagnóstico e seguimento de pacientes com OEN. Com efeito, as cintigrafias ósseas com uso de 99mTc-MDP proporcionam informações mais apropriadas sobre a inflamação, por enfatizarem áreas com atividade osteoblástica. A cintigrafia óssea pode revelar resultados positivos antes da ocorrência de alterações radiológicas evidentes; também poderá ter utilidade na rápida detecção da doença. No entanto, 99mTc-MDP não é específico para infecção, pois esse marcador também pode ser positivo para doença maligna e não detecta a disseminação pelos tecidos moles, sem envolvimento ósseo.44. Chen CN, Chen YS, Yeh TH, Hsu CJ, Tseng FY. Outcomes of malignant otitis: survival vs mortality. Acta Otolaryngol. 2010;130:89-94. As cintigrafias ósseas também permanecem positivas depois da resolução da doença, não sendo úteis para a monitoração da resposta ao tratamento. Foi demonstrado que a cintigrafia com gálio-67 tem sensibilidade de 70% e especificidade de 93% para o diagnóstico de osteomielite, sendo a técnica investigativa de escolha para a monitoração da resposta ao tratamento. TC é eficiente na definição da extensão da destruição óssea na parede do conduto auditivo ou na base do crânio, por delinear os planos adiposos normais e corticais ósseas, e a importância da TC no diagnóstico de OEN já ficou devidamente estabelecida.IRM é considerada uma técnica mais sensível do que a TC para o delineamento dos planos de tecido mole. Em sua maioria, as anormalidades da base do crânio exibem baixo sinal em imagens ponderadas para T1 e sinal intenso em imagens T2.55. Patmore H, Jebreel A, Uppal S, Raine CH, McWhinney P. Skull base infection presenting with multiple lowe cranial nerve palsies. Am J Otolaryngol. 2010;31:376-80.

A cintigrafia com leucócitos mononucleares marcados com 99mTc é empregada no diagnóstico de infecção, osteomielite, rejeição de enxerto e febre de origem desconhecida. A técnica é ainda considerada como padrão para osteomielite pós-operatória ou pós-traumática crônica.66. Gutfilen B, Lopes de Souza SA, Martins FPP, Cardoso LR, Pinheiro Pessoa MCP, Fonseca LMB. Use of 99mTc-mononuclear leukocyte scintigraphy in nosocomial fever. Acta Radiol. 2006;47:699-704.,77. Horger M, Eschmann SM, Pfannenberg C, Storek D, Dammann F, Vonthein R, et al. The value of SPET/CT in chronic osteomyelitis. Eur J Nucl Med Mol Imaging. 2003;30:1667-73. Até onde vai nosso conhecimento, esta é a primeira vez em que um paciente com suspeita de OEN foi submetido à cintigrafia com leucócitos mononucleares marcados com 99m. No presente caso, a cintigrafia óssea foi positiva, TC demonstrou erosão do osso na parede do conduto auditivo e IRM foi compatível com resposta inflamatória. O único achado que não confirmou uma etiologia inflamatório-infecciosa foi a cintigrafia com leucócitos mononucleares marcados com 99mTc, que foi mais compatível com etiologia neoplásica.

Conclusão

OEN exibe uma série de apresentações clínicas e, em consequência, ampla gama de aspectos radiológicos. No presente caso, os achados clínicos e a maior parte dos exames radiológicos levaram nosso grupo a diagnosticar o paciente com OEN e a dar início ao tratamento. A cintigrafia com leucócitos mononucleares marcados com 99mTc foi o único exame radiológico que foi compatível com os achados histopatológicos finais. Encontram-se em andamento estudos adicionais com o objetivo de determinar se a cintigrafia com leucócitos poderia ser melhor opção para o diagnóstico de OEN, em comparação com outros métodos mais comumente aplicados em nossa prática.

References

  • 1
    Chandler JR. Malignant external otitis. Laryngoscope. 1968;78:125794.
  • 2
    Mani N, Sudhoff H, Rajapogal S, Moffat D, Axon PR. Cranial nerve involvement in malignant external otitis: implications for clinical outcome. Laryngoscope. 2007;117:907-10.
  • 3
    Murakami M, Uno T, Nakaguchi H, Yamada SM, Hoya K, Yamazaki K, et al. Isolated recurrence of intracranial and temporal bone myeloid sarcoma - case report. Neurol Med (Tokyo). 2011;51:850-4.
  • 4
    Chen CN, Chen YS, Yeh TH, Hsu CJ, Tseng FY. Outcomes of malignant otitis: survival vs mortality. Acta Otolaryngol. 2010;130:89-94.
  • 5
    Patmore H, Jebreel A, Uppal S, Raine CH, McWhinney P. Skull base infection presenting with multiple lowe cranial nerve palsies. Am J Otolaryngol. 2010;31:376-80.
  • 6
    Gutfilen B, Lopes de Souza SA, Martins FPP, Cardoso LR, Pinheiro Pessoa MCP, Fonseca LMB. Use of 99mTc-mononuclear leukocyte scintigraphy in nosocomial fever. Acta Radiol. 2006;47:699-704.
  • 7
    Horger M, Eschmann SM, Pfannenberg C, Storek D, Dammann F, Vonthein R, et al. The value of SPET/CT in chronic osteomyelitis. Eur J Nucl Med Mol Imaging. 2003;30:1667-73.
  • Como citar este artigo: Laurindo R, Souza S, Moura J, Tomita S, da Fonseca LB, Gutfilen B. Extramedullary relapse of acute myeloid leukemia mimicking a necrotizing external otitis: could mononuclear leukocyte scintigraphy be the best diagnostic method? Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82:487-90.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2015
  • Aceito
    23 Abr 2015
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