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O sintoma dor é abordado adequadamente em internação hospitalar de Clínica Médica? Estudo transversal

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Dor é um dos principais motivos por assistência ao serviço médico-hospitalar. Desta forma, o objetivo deste estudo foi avaliar o atendimento de queixas dolorosas em enfermaria de clínica médica.

MÉTODOS:

Estudo transversal e descritivo nos hospitais Santa Lucinda (HSL) e Conjunto Hospitalar de Sorocaba (CHS). A coleta de dados foi realizada por: (1) entrevista com os participantes direcionada por um questionário estruturado elaborado pelos pesquisadores, e (2) acesso a informações como registro de dor e prescrição de fármacos no prontuário.

RESULTADOS:

A amostra foi composta por 85 pacientes, sendo 11.8% no HSL e 88,2% no CHS. Mais de 80% dos participantes relataram experiência prévia de dor aguda ou crônica em algum momento da vida. Quarenta e um por cento dos participantes relatou dor durante a internação independente da causa da internação. A minoria dos eventos de dor constava nos registros da queixa em seu prontuário. Houve fármaco prescrito para 73% dos pacientes, sendo em sua maioria, por demanda. Houve uma inadequação entre o tipo de fármaco prescrito e a intensidade da dor em 80% das prescrições.

CONCLUSÃO:

A queixa de dor é um sintoma prevalente entre pacientes internados de Clínica Médica. Neste estudo, 41,2%; das dores foram musculoesqueléticas, seguida de dores abdominais, independente do motivo da internação. A queixa de dor foi medicada na maior parte dos relatos de dor dos pacientes, porém cerca de 23% dos pacientes com queixa de dor não receberam fármacos. A maior parte dos pacientes (80%) com dor recebeu fármacos incoerentes à intensidade da dor; porém o registro da queixa de dor nas evoluções dos prontuários permanece insuficiente.

Descritores
Clínica médica; Dor; Qualidade de vida; Unidade hospitalar de clínica médica

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Pain is one of the main reasons for seeking medical care. Thus, the objective of the present study was to evaluate the treatment of pain complaints in a medical clinic ward.

METHODS:

Cross-sectional and descriptive study at the Santa Lucinda Hospital (Hospital Santa Lucinda - HSL) and Sorocaba Hospital Complex (Conjunto Hospitalar de Sorocaba - CHS). Data was collected by: (1) interviewing the participants using a structured questionnaire drawn up by the researchers, and (2) accessing information such as pain records and drug prescriptions in the medical records.

RESULTS:

The sample consisted of 85 patients, 11.8% in the HSL and 88.2% in the CHS. More than 80% of patients had already experienced pain at some point in their lives, whether chronic or acute. Forty-one percent of patients had pain during hospitalization, regardless of the reason for admission. A minority of pain events had the complaint recorded in their medical records. Drugs were prescribed for 73.0% of the patients, mostly on demand. There was a mismatch between the type of drug prescribed and the intensity of the pain in 80% of prescriptions.

CONCLUSION:

The complaint of pain is prevalent in Internal Medicine hospitalizations. In this study, 41.2% of the pain was musculoskeletal, followed by abdominal pain, regardless of the reason for hospitalization. The complaint of pain was medicated in most of the patients’ pain reports, but around 23% of the patients complaining of pain did not receive drugs. Most patients (80%) with pain received drugs that were inconsistent with the intensity of the pain; however, the recording of the complaint of pain in the medical records remains insufficient.

Keywords:
Clinical medicine; Hospitalization; Medical clinic hospital unit; Pain; Quality of life

DESTAQUES

  • O estudo enfatiza que sintoma dor é parte essencial do atendimento a qualquer doença clínica em pacientes internados;

  • O registro da queixa dor é frequentemente incompleta ou com erros;

  • Frequentemente ocorre uma inadequação entre o fármaco prescrito e a intensidade referida da dor.

DESTAQUES

  • O estudo enfatiza que sintoma dor é parte essencial do atendimento a qualquer doença clínica em pacientes internados;

  • O registro da queixa dor é frequentemente incompleta ou com erros;

  • Frequentemente ocorre uma inadequação entre o fármaco prescrito e a intensidade referida da dor.

INTRODUÇÃO

Dor é considerada “uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial”. Essa definição enfatiza o aspecto biopsicossocial do sintoma e reforça que seja abordada de maneira individualiza11 Raja SN, Carr DB, Cohen M, Finnerup NB, Flor H, Gibson S, Keefe FJ, Mogil JS, Ringkamp M, Sluka KA, Song XJ, Stevens B, Sullivan MD, Tutelman PR, Ushida T, Vader K. The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. Pain. 2020;161(9):1976-82.. De acordo com o tempo de duração da dor ela pode ser classificada em aguda, subaguda ou crônica, e sua fisiopatologia pode ser nociceptiva, neuropática ou nociplástica.

A complexidade na avaliação e classificação e tratamento da dor somam-se a sua natureza pessoal e subjetiva do fenômeno.

Desta forma, verifica-se na prática clínica a dificuldade de médicos e outros profissionais de saúde na avaliação da dor do paciente. A ausência de marcadores objetivos limita o acesso a aspectos quantitativos como a intensidade e qualitativos como descritores da dor22 Batista HSH, Ribeiro TO, Freitas JL. Onde dói? O sentido da dor para médicos e residentes. Arq Bras Psicol. 2018;70(2):204-18.. Na tentativa de contornar essa dificuldade, vários instrumentos foram propostos e desenvolvidos na literatura científica para o acompanhamento dos pacientes33 Delgado-Guay MO, Harding A. Multidimensional patient assessment. In: Textbook of palliative medicine and supportive care. CRC Press. 2021; 149-66p..

Esses instrumentos são questionários e índices que quantificam a intensidade da dor, seu impacto nas atividades do dia a dia e na qualidade de vida, além de descrever suas demais características clínicas44 Krug RC, Caneiro JP, Ribeiro DC, Darlow B, Silva MF, Loss JF. Back pain attitudes questionnaire: cross-cultural adaptation to Brazilian-Portuguese and measurement properties. Braz J Phys Ther. 2021;25(3):271-80.,55 Zambon LS, Ferreira D, Rosseto P. Diretriz Clínica QPS 014 / 2019 versão 1 Assunto: Protocolo de Dor - Escalas. 2019; 1-6p.. Eles podem ser classificados em: uni e multidimensionais. Os unidimensionais analisam apenas uma variável, em geral a intensidade e são vantajosos por sua aplicação mais rápida. Os multidimensionais fazem a avaliação de mais de uma dimensão, portanto, conseguem captar melhor a complexidade do sintoma33 Delgado-Guay MO, Harding A. Multidimensional patient assessment. In: Textbook of palliative medicine and supportive care. CRC Press. 2021; 149-66p.,55 Zambon LS, Ferreira D, Rosseto P. Diretriz Clínica QPS 014 / 2019 versão 1 Assunto: Protocolo de Dor - Escalas. 2019; 1-6p.

6 Wannmacher L. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Medicamentos de uso corrente no manejo de dor e febre. Brasil. Ministério da Saúde. 2012;1-14p
-77 Abreu NVB. Protocolo gerenciamento da dor. In: Gerenciamento da dor. 2019..

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o uso da “Escada Analgésica” para o plano de tratamento e manejo da dor e utiliza a intensidade da dor como um critério para a escolha da conduta terapêutica88 Salvetti MD, Garcia PC, Lima MA, Fernandes CG, Pimenta CA. Impacto da dor aguda e adequação analgésica em pacientes hospitalizados. BrJP, 2021;3(4):333-6.. No primeiro degrau, a OMS inclui as dores de menor intensidade e recomenda os analgésicos simples e os anti-inflamatórios não hormonais (AINH). No segundo degrau estão as dores moderadas e podem ser utilizados opioides fracos isolados ou associados aos analgésicos simples ou anti-inflamatórios. O terceiro degrau composto por dores intensas e se indica opioides fortes isolados ou associados. Se a analgesia atingida não for suficiente, o paciente deve ser reavaliado e os fármacos ajustados99 Oliveira LS, Macedo MP, Silva SA, Oliveira AP, Santos VS. Pain assessment in critical patients using the Behavioral Pain Scale. BrJP. 2019;2(2):112-6.,1010 Gimenes AB, Lopes CT, Rodrigues-Neto AJ, Salvetti MD. O registro da dor aguda em pacientes hospitalizados. BrJP, 2020;3(3):245-8..

A intensidade da dor, seja aguda ou crônica, costuma ser subdiagnosticada, mal avaliada e muitas vezes negligenciada, em todos os níveis de atenção à saúde. O relato de uma pessoa sobre uma experiência de dor deve ser respeitado, segundo a Declaração de Montreal, documento desenvolvido durante o Primeiro Encontro Internacional de Dor em 3 de setembro de 2010, declara que o “acesso ao tratamento da dor é um direito humano fundamental’’11 Raja SN, Carr DB, Cohen M, Finnerup NB, Flor H, Gibson S, Keefe FJ, Mogil JS, Ringkamp M, Sluka KA, Song XJ, Stevens B, Sullivan MD, Tutelman PR, Ushida T, Vader K. The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. Pain. 2020;161(9):1976-82..

A dor é uma queixa frequente no ambiente hospitalar e geralmente consiste no sintoma principal que motivou a busca por consulta e/ou gerou a indicação de internação. Dentre os desafios da equipe hospitalar na clínica médica está o de avaliar e registrar a dor de forma sistemática no prontuário do paciente e identificar se o tratamento da dor está coerente com a demanda do paciente entre a intensidade da dor e o tipo de fármaco prescrito.

Esta pesquisa teve como escopo estudar esse tema e investigar o registro da intensidade da dor nos prontuários dos pacientes internados na enfermaria da clínica médica, analisar se há correspondência entre a comunicação da dor e o tratamento realizado e avaliar a adequação entre a intensidade da dor e o fármaco prescrito.

MÉTODOS

Essa pesquisa descritiva e transversal utilizou entrevista estruturada aplicada aos pacientes internados em leitos de clínica médica nos hospitais Santa Lucinda e Conjunto Hospitalar de Sorocaba (CHS), ambos campos de estágio da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Campus Sorocaba (PUCSP). O hospital Santa Lucinda faz parte da rede municipal de saúde de Sorocaba e o CHS é um complexo hospitalar terciário que atende 48 municípios da região com sede em Sorocaba. Os dados foram coletados entre janeiro e julho de 2022.

A amostra estudada foi constituída de pacientes adultos (acima de 18 anos de idade) internados na enfermaria da clínica médica do HSL e do CHS. Foram excluídos pacientes com estado de consciência que impeça responder os questionários aplicados de forma completa ou que tinham idade inferior a 18 anos de idade. A amostra foi determinada por conveniência e foram incluídos todos os pacientes internados na Clínica Médica no período de janeiro a julho de 2022 que aceitaram participar do estudo e assinaram ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUCSP com o Parecer 4.763.697 e registrado na CONEP sob o número CAAE 45539121.2.0000.5373.

Coleta de dados

A coleta de dados em ambos os hospitais foi feita entre o 5o e 7o dia de internação.

Variáveis e instrumentos de coleta de dados

Um questionário foi desenvolvido pelos pesquisadores para acessar informações específicas para a descrição dos dados. As variáveis acessadas pelo questionário foram sexo, profissão, motivo da internação, experiência prévia com dor aguda ou crônica e presença de dor nessa internação. Outras informações foram coletadas por busca de dados nos prontuários dos participantes como: registro da queixa de dor no prontuário, prescrição de fármaco sob demanda ou contínua e tipo de analgésico prescrito, assim como intensidade da dor que motivou o pedido do fármaco. A coleta de dados foi realizada por preenchimento de formulário eletrônico desenvolvido pelos pesquisadores na plataforma “Google Forms”.

Quanto ao tipo de dor, considerou-se nociceptiva aquela dor cuja caracterização pelo paciente correspondia ao local da lesão descrita e cuja intensidade fosse proporcional ao esperado pelo tipo de lesão. A dor nociplástica é generalizada e acompanhada de fadiga e distúrbio do sono, além de associada à ansiedade e depressão. Dor neuropática se relaciona a lesão em estruturas do sistema nervoso e se apresenta como parestesia.

A intensidade da dor se refere à dor média e à dor máxima, percebida pelo paciente, durante a última semana de internação, antes do dia da coleta de dados. Utilizou-se para isso uma escala numérica de zero a 10, onde zero é ausência de dor e 10 significa dor intensa.

Tratamento dos dados

A análise dos dados demográficos e clínicos foi descritiva. As variáveis descritivas foram apresentadas por quantidade numérica (n) e percentuais.

Essa avaliação foi feita para cada hospital em separado e para o conjunto dos pacientes. A avaliação da adequação da analgesia em relação à intensidade da queixa foi realizada através do Índice de Manejo da Dor (IMD)1111 Cleeland CS, Gonin R, Hatfield AK, Edmonson JH, Blum RH, Stewart JA, Pandya KJ. Pain and its treatment in outpatients with metastatic cancer. N Engl J Med. 1994;330(9):592-6.. Os analgésicos foram classificados segundo sua potência em: zero = ausência de fármaco; 1= analgésico AINH; 2 = opioide fraco (codeína, tramadol); e 3 = opioide forte (morfina, meperidina). Em relação à adequação analgésica, a intensidade da dor foi classificada a partir da escala numérica, em: 1 = dor leve (1-4); 2 = dor moderada (5-7); 3 = dor intensa (8-10). O IMD foi obtido subtraindo-se da potência do analgésico (PA) a intensidade da dor (ID), ou seja, IMD = PA - ID. O escore do IMD varia de -3 a +3 e as pontuações negativas indicam inadequação analgésica, enquanto os escores positivos e o zero, indicam adequação1010 Gimenes AB, Lopes CT, Rodrigues-Neto AJ, Salvetti MD. O registro da dor aguda em pacientes hospitalizados. BrJP, 2020;3(3):245-8..

RESULTADOS

A amostra foi composta por 85 dos pacientes, internados em enfermaria de clínica médica entre janeiro e julho de 2022, na cidade de Sorocaba, SP. Onze pacientes se recusaram a participar da pesquisa. Entre os participantes entrevistados, 10 (11,8%) estavam internados no HSL, cuja a maioria internados na unidade coronariana decorrente de doenças cardiovasculares. Setenta e cinco dos participantes (88,2%) estavam no CHS com um perfil heterogêneo em relação às causas de internação.

A maior parte dos participantes do sexo feminino (52,9%), com idade entre 21 e 93 anos de idade, 80% declararam-se inativos (aposentados). A duração da internação variou de 4 a 13 dias.

Quanto à experiência prévia com dor, 55,3% referiram ter apresentado alguma experiência prévia de dor aguda (duração menor que 12 semanas), 32,9% dor crônica e 11,8% não referiram dor prévia.

No HSL, 100% foram internados por doença cardiovascular (hospital especializado nessa especialidade da Clínica Médica), enquanto no CHS as indicações de internação foram por doenças hematológicas (22,6%), renais (17,4%), pulmonares (16%), neurológicas (10,6%), cardiovasculares (9,4%), gastrointestinais (8,0%), aparelho genital (6,7%), cutâneas (5,3% e osteoarticulares (4%).

Trinta e cinco participantes (41,2%) queixaram-se de dor durante a internação, sendo quatro no HSL e os demais no CHS. As queixas de dor eram predominantemente musculoesqueléticas (37,1%) seguidas por dores abdominais (28,51%), cefaleia (14,29), torácica (11,41) e dor geniturinária (8,58). Entre os participantes com dores musculoesqueléticas, a metade (n=5) referiu dor crônica generalizada que se agravou durante a internação e relatou dores de características de dor nociplástica. Os demais tinham dores de características nociceptiva. Não houve relato de dor neuropática.

Entre os participantes com queixa dolorosa (41.2%), 73% solicitaram fármacos para a enfermagem e referiram que foram aplicados entre 10 minutos até 4 horas após a solicitação. Entre os fármacos utilizados estão os analgésicos comuns (dipirona e paracetamol), AINH (cetoprofeno) e opioides (tramadol, codeína e morfina).

Quanto ao regime de prescrição, ou seja, de horário e sob demanda, houve uma diferença importante entre os dois hospitais, sendo que no HSL predominou a prescrição de horário (80%) e no CHS sob demanda (81,8%).

Em relação à intensidade de dor percebida, através de uma escala numérica de zero a 10, a média da dor intensa na última semana foi de 7,9≤2,4. A média de intensidade da chamada dor média na última semana foi 4,7±1,8. Cinquenta e um por cento dos participantes classificou a sua dor no intervalo de 7 a 10.

Observou-se que os participantes tratados com analgésicos comuns ou anti-inflamatórios alcançaram uma média da intensidade da maior dor da semana de 7,0±1,8 no grupo que usou analgésicos comuns e os tratados com opioides de 10,0±0,78. Ao analisar os relatos dos participantes sobre a dor moderada ao longo da última semana observa-se queixa de dor 4,0±2,09 para os participantes medicados com analgésicos comuns e de 5,0±2,33 para aqueles medicados com opioides.

A revisão dos prontuários apresentou perda de registros, pois 41,2% dos participantes relataram queixar-se de dor durante a internação, porém a dor foi registrada em apenas 37,15% das anotações de evolução dos pacientes. Há descrição de administração dos fármacos prescritos em 49,4% dos prontuários, o que demonstra incoerência entre anotação sobre dor na evolução e registro de administração de fármaco. Quanto ao regime de prescrição, no geral, 37 pacientes tinham prescrição de horário e 48 sob demanda.

Considerando o escore IMD e os 35 pacientes que afirmaram sentir dor durante a internação, sua indicação na escala numérica de dor e as prescrições dos pacientes, identificou-se que 80% (n=28) dos respondentes tiveram analgesia inadequada durante a internação1010 Gimenes AB, Lopes CT, Rodrigues-Neto AJ, Salvetti MD. O registro da dor aguda em pacientes hospitalizados. BrJP, 2020;3(3):245-8..

As tabelas 1 e 2 apresentam os dados dos pacientes com dor dos dois hospitais em separado. Não foi possível realizar comparações estatísticas já que, em relação à Clínica Médica, o perfil e o número de pacientes são diferentes.

Tabela 1
Dados demográficos dos pacientes do Hospital Santa Lucinda (n = 10)
Tabela 2
Dados demográficos dos pacientes no Complexo Hospitalar de Sorocaba

DISCUSSÃO

Essa pesquisa teve como escopo estudar esse tema e investigar o registro da intensidade da dor nos prontuários dos pacientes internados na enfermaria da clínica médica, analisar se há correspondência entre a comunicação da dor e o tratamento realizado e avaliar a adequação e entre a intensidade da dor e os fármacos prescritos. Verificou-se que intensidade de dor e seu registro no prontuário ainda é negligenciado no ambiente de internação da enfermaria da Clínica Médica.

Em relação aos dados demográficos, chama a atenção o número de inativos, o que pode refletir uma maior faixa etária de pacientes internados em um hospital geral. A distribuição de causas de internação reflete a especialização dos dois hospitais na área de Clínica Médica. O HSL atende pacientes quase que exclusivamente pacientes cardiológicos, enquanto o CHS é um hospital de alta complexidade com alta prevalência de casos hematológicos, nefrológicos e oncológicos na Clínica Médica.

A maior parte dos pacientes já havia tido experiências com dor previamente. Experiências anteriores podem modular sua percepção atual e, por isso, esse dado deve ser considerado relevante.

Dados recentes da literatura têm demonstrado que mais de 50% dos pacientes hospitalizados queixaram-se de dor de moderada a intensa nas 24 horas prévias, independentemente das causas1111 Cleeland CS, Gonin R, Hatfield AK, Edmonson JH, Blum RH, Stewart JA, Pandya KJ. Pain and its treatment in outpatients with metastatic cancer. N Engl J Med. 1994;330(9):592-6.. No presente estudo, encontrou-se uma prevalência geral de 41,2% de dor no momento da entrevista, com média de 4,7 em uma escala de zero a 10, sendo a dor intensa (7 a 10) em 51,4%% dos casos. Em estudo sobre prevalência de dor em hospitais da Itália encontrou-se que 46,6% dos pacientes avaliados tiveram dor intensa, com média de intensidade de sete pontos em uma escala de zero a 10, dados semelhantes aos do presente estudo1212 Yang J, Bauer BA, Wahner-Roedler DL, Chon TY, Xiao L. The modified WHO analgesic ladder: is it appropriate for chronic non-cancer pain? J Pain Res. 2020;13:411-7..

O controle da dor, em qualquer cenário de atendimentos a saúde é vital. Esse estudo foi realizado em ambiente de enfermaria, mas mesmo em unidades de pacientes críticos, onde esse aspecto deveria receber uma atenção maior, há problemas nessa área. Apesar dos avanços tecnológicos no atendimento de pacientes críticos em unidades de emergência ou terapia intensiva, a avaliação da dor e seu manejo adequado têm sido pouco abordados1313 Subramanian P, Allcock N, James V, Lathlean J. Challenges faced by nurses in managing pain in a critical care setting. J Clin Nurs. 2012;21(9-10):1254-62..

O analgésico mais utilizado foi a dipirona em 88,2% dos pacientes. Para avaliar a adequação da analgesia foi utilizado o IMD que demonstrou uma adequação entre o fármaco prescrito e a intensidade da dor referida pelos pacientes. Entre os resultados da pesquisa o dado negativo que mais chamou a atenção foi o predomínio de inadequação entre a intensidade dolorosa e os fármacos prescritos.

Os analgésicos deveriam ser prescritos de acordo com a intensidade da dor, avaliada por uma escala validada para tal. Para isso, a observação clínica deve incluir uma avaliação completa e adequada da dor1414 Hagstrom S, O’Conner-Von S, Mathiason MA, Tracy MF. Nurses’ use of the clinically aligned pain assessment tool: a mixed methods study. Pain Manag Nurs. 2022;23(4):377-84.. Mensurar a dor é um grande desafio e as escalas devem ser aplicadas criteriosamente para que se evite tratamentos ineficazes. Além de se ter orientação clara sobre como usar as escalas de avaliação, é importante que se individualize cada tratamento1515 Azevedo T. Administração de medicamentos no horário adequado. Boletim ISMP Brasil. 2017;6(2):1-6..

A literatura também aponta dificuldades quanto aos registros de queixas dolorosas na documentação da enfermagem nos prontuários1515 Azevedo T. Administração de medicamentos no horário adequado. Boletim ISMP Brasil. 2017;6(2):1-6.. O presente estudo identificou situação semelhante já que a concordância entre o registro da queixa pela enfermagem e os relatos dos pacientes foi pequena.

Na amostra estudada, não foram identificados registros de dor utilizando escalas objetivas de dor, sendo assim as avaliações foram clínicas e não necessariamente seguiram algum protocolo. A partir da análise dos dados, foi possível verificar que pacientes apresentaram uma prescrição incompatível com a intensidade da dor referida.

O controle ineficaz da dor é resultado de uma série de fatores, entre eles, a escolha de um método inadequado de mensuração da dor, treinamento profissional insuficiente ou manejo inadequado da dor sem comprovação científica. Além disso, a resistência em mudar a rotina de muitos profissionais também é uma causa de inadequações no controle da dor em pacientes1616 Fernandes MDFP, Komessu JH. Desafios do enfermeiro diante da dor e do sofrimento da família de pacientes fora de possibilidades terapêuticas. Rev Esc Enferm USP, 2013;47:250-7..

Os obstáculos para o alívio eficaz da dor são um desafio em todo o mundo. As razões incluem baixa disponibilidade de fármacos, legislação nacional muitas vezes equivocada, falta de educação e treinamento de médicos e enfermeiros, assim como falta de conscientização pública de que a dor pode ser controlada1717 Boaventura da Silva Y, Andrucioli de Mattos Pimenta C. Analyse nursing records on pain and analgesia of patients hospitalized. Rev Esc Enferm USP. 2003;37(2):109-18.,1818 Corgozinho MM. Dor e sofrimento na perspectiva do cuidado centrado no paciente. Rev Bioética. 2020;28:249-56..

A literatura aponta dificuldades quanto aos registros de queixas dolorosas na documentação da enfermagem nos prontuários1515 Azevedo T. Administração de medicamentos no horário adequado. Boletim ISMP Brasil. 2017;6(2):1-6.. O presente estudo identificou situação semelhante já que a concordância entre o registro da queixa pela enfermagem e os relatos dos pacientes foi pequena.

Pesquisas em campo mostraram que a fármaco certo na dose certa na hora certa alivia de 80% a 90% da dor1313 Subramanian P, Allcock N, James V, Lathlean J. Challenges faced by nurses in managing pain in a critical care setting. J Clin Nurs. 2012;21(9-10):1254-62.. Nos pacientes avaliados nesse estudo, 30,6% informaram dor durante a internação. Desses, observou-se melhora considerável em apenas 38,4%, e para uma minoria foi prescrito fármaco de horário.

Os analgésicos devem ser administrados a intervalos regulares de tempo. A dose subsequente precisa ser administrada antes que o efeito da dose anterior tenha terminado. A dose correta dos opioides é a que causa alívio da dor com o mínimo de efeitos adversos. Se a analgesia é insuficiente, o paciente deve ser reavaliado e deve-se subir um degrau da escada analgésica e não prescrever fármacos da mesma categoria1717 Boaventura da Silva Y, Andrucioli de Mattos Pimenta C. Analyse nursing records on pain and analgesia of patients hospitalized. Rev Esc Enferm USP. 2003;37(2):109-18.. Observou-se grande número de indicações de analgésicos sob demanda, independentemente da intensidade da dor. Se os dados forem julgados sob a ótica da recomendação da OMS de prescrição de fármacos seguindo horário indicado pela farmacocinética, evitando-se o uso sob demanda, observa-se que a analgesia se apresenta inadequada1515 Azevedo T. Administração de medicamentos no horário adequado. Boletim ISMP Brasil. 2017;6(2):1-6.

16 Fernandes MDFP, Komessu JH. Desafios do enfermeiro diante da dor e do sofrimento da família de pacientes fora de possibilidades terapêuticas. Rev Esc Enferm USP, 2013;47:250-7.
-1717 Boaventura da Silva Y, Andrucioli de Mattos Pimenta C. Analyse nursing records on pain and analgesia of patients hospitalized. Rev Esc Enferm USP. 2003;37(2):109-18..

A Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organization (JCAHO), entidade norte-americana de avaliação de hospitais, incluiu o alívio da dor como item a ser avaliado na acreditação hospitalar, a partir de 2001. Tal decisão resultou no reconhecimento do direito que o doente tem de sua queixa dolorosa ser adequadamente avaliada, registrada no prontuário e controlada1717 Boaventura da Silva Y, Andrucioli de Mattos Pimenta C. Analyse nursing records on pain and analgesia of patients hospitalized. Rev Esc Enferm USP. 2003;37(2):109-18..

A dor do paciente deve ser compreendida do ponto de vista biopsicossocial, considerando suas dimensões psíquicas, sociais, espirituais e físicas1717 Boaventura da Silva Y, Andrucioli de Mattos Pimenta C. Analyse nursing records on pain and analgesia of patients hospitalized. Rev Esc Enferm USP. 2003;37(2):109-18.,1818 Corgozinho MM. Dor e sofrimento na perspectiva do cuidado centrado no paciente. Rev Bioética. 2020;28:249-56.. Nos hospitais avaliados, apesar de diferentes profissionais da saúde atuarem com os pacientes, a queixa dolorosa quando presente, é abordada quase exclusivamente por médicos e enfermagem e com ênfase no tratamento farmacológico. Essa rotina dificulta a atuação multiprofissional nos aspectos mais amplos relacionados à dor1818 Corgozinho MM. Dor e sofrimento na perspectiva do cuidado centrado no paciente. Rev Bioética. 2020;28:249-56.,19.

Esta pesquisa foi realizada em dois hospitais com características diferentes. O HSL é um hospital do nível secundário de assistência em saúde, especializado em tratamentos cardiológicos na área de Clínica Médica. Enquanto o CHS caracteriza-se por ser um hospital geral. Por estas características dos dois ambientes de coleta de dados, houve um menor recrutamento de participantes no HSL. Tanto os resultados quanto os comentários se concentraram no número total de pacientes avaliados. A escolha dos cenários, bem como o tempo de coleta e o número de sujeitos pesquisados levou em conta o propósito de descrever a forma como o tema tem sido abordado nos campos de assistência da PUCSP.

Também deve ser considerado que a pesquisa foi realizada âmbito universitário com participação de alunos e docentes. Assim, respeitou-se o calendário de programas de iniciação científica. Isso pode ser um limitante a pesquisa, porém abre oportunidade para que novas perguntas e hipóteses serem geradas para ampliação de dados no futuro. Um efeito secundário, mas igualmente importante, é provocar o interesse sobre o tema nesse meio. Outro limite do estudo está na dificuldade com a coleta de dados nos prontuários em função muitas vezes de falha de preenchimento.

Considerações finais

A necessidade de atenção a essa queixa tão prevalente nas internações fica explícita. O ensino de atendimento a dor no currículo de formação dos profissionais de saúde bem como na educação continuada deve ser enfatizado.

Entre as consequências dessa pesquisa os autores esperam que motive a elaboração de novos protocolos com essa temática para que dados sejam gerados para promover melhora do cuidado do sintoma dor nos vários cenários de atenção à saúde.

CONCLUSÃO

O registro de queixas dolorosas não é completo nos prontuários médicos e de enfermagem, a conduta terapêutica em relação à dor muitas vezes é prescrita sob demanda, quando o ideal seria de horário e, muitas vezes, realizada com demora. Também ocorre frequentemente inadequação entre a intensidade da dor e o fármaco prescrito.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2023
  • Aceito
    13 Set 2023
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