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Pode o corpo ser mais que um autômato a ser consertado? Encontros entre a filosofia de Espinosa e o conceito Bobath 1 1 Trata-se de texto composto por parte de tese da primeira autora apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Professora Livre-Docente junto ao Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional (Disciplina de Terapia Ocupacional) em fevereiro de 2020 e por reflexões sobre as experiências de ensino da disciplina analisada, que é ministrada pelas duas autoras, em conjunto, no curso de graduação de Terapia Ocupacional da FMUSP.

Resumo

Este ensaio reflete sobre o ensino do conceito Bobath junto aos estudantes de graduação de terapia ocupacional da Universidade de São Paulo considerando as premissas da filosofia de Espinosa, que compreende o corpo como relacional, e suas interrelações com as intervenções terapêuticas ocupacionais. Essa filosofia é utilizada como ferramenta para analisar as experiências de ensino do conceito Bobath discutidas no ensaio. São analisados aspectos relacionados ao corpo compreendido como máquina, mecânico, orgânico, entre outras adjetivações, como preconizado nas premissas cartesianas, que fundamentam as práticas biomédicas modernas no campo da saúde e em outras áreas. Em seguida, o conceito de corpo relacional na filosofia de Espinosa é apresentado em suas interrelações com a terapia ocupacional como uma alternativa ao modelo biomédico. Para tanto, há que considerar o conceito de desejo - que não é falta, mas presença - como proposto por Espinosa, que lembra que ele é a origem da ação na relação com outros corpos. Por fim, a experiência do ensino do conceito Bobath é analisada sob a perspectiva de Espinosa. As aulas que abordam tais conteúdos são práticas, sem anotações, dialogadas, com experimentações corporais e simulações e ensinam os procedimentos. A memória corporal é priorizada no processo de ensino-aprendizagem. São apontados os limites de todas as técnicas corporais, que são recursos, não a totalidade das intervenções terapêuticas ocupacionais. Faz-se necessário ensinar o conceito Bobath e democratizá-lo para que seja amplamente utilizado em diferentes serviços da rede pública de saúde.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Ensino Superior; Corpo Humano; Reabilitação; Reabilitação Neurológica

Abstract

This essay reflects on the teaching of the Bobath concept to occupational therapy undergraduate students at the College of Medicine of the University of São Paulo (FMUSP) considering the premises of Spinoza’s philosophy, which understands the body as relational, and its interrelationships with occupational-therapeutic interventions. Spinoza’s philosophy is used as a tool to critically analyze the experiences of teaching the Bobath concept discussed in the essay. Aspects related to the body—understood as a machine, mechanic, organic, among other adjectives, as advocated by the Cartesian assumptions, which underlie modern biomedical practices in the field of health and other areas—are analyzed. Next, the concept of relational body in Spinoza’s philosophy is presented in its interrelations with occupational therapy practice as an alternative to the biomedical model. To this end, it is necessary to consider the concept of desire, which does not refer to absence, but to presence, as proposed by Spinoza, who recalls that desire is the origin of action in relation to other bodies. Finally, the experience of teaching the Bobath concept under Spinoza’s perspective is analyzed. Classes that address such content are practical, without notes, dialogued, with body experiments and simulations, and procedures are taught. Body memory is prioritized in the teaching-learning process. The limits of all body techniques, which are just resources, not the totality of occupational-therapeutic interventions, are pointed out. The Bobath concept should be taught and democratized so that it can be widely used in different public health services.

Keywords:
Occupational Therapy; Higher Education; Human Body; Rehabilitation; Neurological Rehabilitation

Introdução

O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo - exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente - pode e o que não pode fazer. (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 167).

Ensinar técnicas de trabalho corporal para terapeutas ocupacionais tem sido um desafio, pois desperta, entre outros diálogos, questões sobre como ensiná-las, suas inter-relações com outros recursos terapêuticos e as correspondências com os princípios epistêmicos dos diferentes modelos de atuação da profissão. Assim, quando um curso de graduação elabora seu currículo, encara o desafio de definir o lugar dos conteúdos das práticas corporais e de como entende o que é o “corpo” e “o que ele pode”. A proposta deste ensaio é refletir sobre o ensino de uma modalidade de prática corporal muito utilizada por diferentes profissionais da saúde e, portanto, por muitos terapeutas ocupacionais: o conceito Bobath. A reflexão aqui construída refere-se à experiência de uma disciplina especifica do curso de graduação de terapia ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Não se pretende discutir o currículo desse curso, nem metodologias de ensino, mas as contribuições da filosofia de Bento de Spinoza (2013)Spinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.2 2 A primeira publicação de “Ética demonstrada à maneira dos geômetras” ocorreu em 1675, na Holanda. , que compreende o corpo como relacional, no ensino dessa técnica.

A leitura de Espinosa sobre o corpo tem se expandido desde a década de 1990 com as importantes contribuições de Damásio (1996Damásio, A. (1996) O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras., 2004Damásio, A. (2004). Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras.); porém, ela ainda está em minoridade considerando as modalidades de cuidado que utilizam uma leitura cartesiana do trabalho corporal (Rocha, 2019Rocha, E. F. (2019). Terapia Ocupacional e Reabilitação de pessoas com deficiência: como aprendi a polir lentes com Espinosa (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. ; Saito & Castro, 2011Saito, C. M., & Castro, E. D. D. (2011). Práticas corporais como potência da vida. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 19(2), 177-188.), que prevê ações corretivas e biomédicas. No contexto da terapia ocupacional, as leituras baseadas em Espinosa sobre o corpo são raras, principalmente aquelas voltadas aos indivíduos3 3 Utilizamos o conceito de indivíduo de Espinosa e não o de pessoa, palavra derivada do latim – persona – que designa máscara usada no teatro. Para maior aprofundamento no conceito, ver Campos (2008), que coloca que se trata de um “... conceito problemático que precede em muito a sua adoção pelas filosofias da Modernidade...” (Campos, 2008, p. 10) e que “Com a Modernidade, a jurídico-política, Descartes e Hobbes cruzam as duas problemáticas, e misturam o indivíduo e a pessoa: uma pessoa individual. Spinoza vai muito mais longe. O seu indivíduo é princípio constitutivo da metafísica e da ontologia do sistema, perpassando todas as áreas do mesmo: chegando à jurídico-política, absorve o que se dissera de pessoa, e torna-se tema fundamental de direito e de política.” (Campos, 2008, p. 6). com alterações corporais permanentes ou transitórias.

Tenho um corpo ou sou um corpo?

No campo do conhecimento (Novaes, 2003Novaes, A. (2003) A ciência no corpo. In A. Novaes (Ed.), O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo (pp. 7-14). São Paulo: Companhia das Letras.), o corpo, na sociedade contemporânea, é mecânico, orgânico, cibernético, enfim, a ele são atribuídas diversas adjetivações, porém todas em consonância com a premissa de que ele é uma máquina (Le Breton, 2003Le Breton, D. (2003). Adeus ao corpo. In A. Novaes (.), O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo (pp. 123-138). São Paulo: Companhia das Letras.). Essa máquina tem que funcionar perfeitamente e os seus atributos lhes são conferidos, não lhes pertence. Ou seja, o corpo não “é”, ele “deve ser” ou “deve estar para” (Rouanet, 2003Rouanet, S. P. (2003). O homem máquina hoje. In A. Novaes (Ed.), O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo (pp. 37-64). São Paulo: Companhia das Letras.). Ele é passível de modulações e correções, pois obedece a uma lógica mecânica desejável em seu funcionamento - deve ser ágil, perfeito, belo, produtivo, sensual, eficiente - e, portanto, deve ser algo que se adquire e não que se é (Ortega, 2008Ortega, F. (2008). Modificações corporais na cultura contemporânea. In F. Ortega (Ed.), O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea (pp. 55-66). Rio de Janeiro: Garamond.). Nessa lógica, as alterações corporais que o desviam do considerado normal transformam-no em incapaz, inapto, supliciado, inumano, estigmatizado, antiestético, não desejável, passível de violências e exclusões - máquinas imperfeitas (Corbin, 2012Corbin, A. (2012). Dores, sofrimentos e misérias do corpo. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Eds.), História do corpo: da Renascença às luzes (pp. 267-346). Petrópolis: Editora Vozes.; Courtine, 2012Courtine, J. J. (2012). O corpo inumano In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Eds.), História do corpo: da Renascença às luzes (pp. 487-502). Petrópolis: Vozes.), tornando-se, portanto, passível de correções. Se eu posso conquistá-lo, eu não o sou, ele pode ser recomposto e aperfeiçoado de modo mecânico, encontra-se no devir (Novaes, 2003Novaes, A. (2003) A ciência no corpo. In A. Novaes (Ed.), O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo (pp. 7-14). São Paulo: Companhia das Letras.; Faure, 2012Faure, O. (2012). O olhar dos médicos. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Eds.), História do corpo: da Renascença às luzes (pp. 13-56). Petrópolis: Vozes.).

Trata-se, portanto, da tradução contemporânea de corpo formulada por Descartes (1987)Descartes, R. (1987). Descartes. (Os Pensadores, Vol. I.). São Paulo: Nova Cultural.4 4 O “Discurso sobre o método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência” foi publicado pela primeira vez em 1637, na Holanda. , que aprofundou e fundamentou geometricamente o dualismo psicofísico, a concepção de que o corpo é separado da alma. O “eu” cartesiano é puro pensamento; o corpo é coisa externa, extensão material. Constitui-se aí uma visão de corpo como objeto, expressa no modelo hegemônico de intervenção das ciências biomédicas (Novaes, 2003Novaes, A. (2003) A ciência no corpo. In A. Novaes (Ed.), O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo (pp. 7-14). São Paulo: Companhia das Letras.). Nessa lógica, a perspectiva corretiva sobre o corpo é predominante, desde as abordagens estéticas até as de cuidados complexos em saúde, e nesse contexto estão muitas das práticas corporais utilizadas no campo da reabilitação, entre elas o conceito Bobath (Rocha, 2019Rocha, E. F. (2019). Terapia Ocupacional e Reabilitação de pessoas com deficiência: como aprendi a polir lentes com Espinosa (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

O imaginário do corpo como máquina tem a sua gênese na medicina do século XVI, quando a anatomia emergiu como uma das formas de conhecimento do corpo humano por meio da dissecação. Suas partes são denominadas na linguagem da engenharia: bombas, válvulas, canais e foles, na qual, por exemplo, o coração funciona como uma bomba vital (Luz, 2019, pLuz, M. T. (2019). Natural racional social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Fiocruz Edições Livres.. 84). Essas ideias coadunam-se, historicamente, com a perspectiva cartesiana.

A comparação com um relógio mecânico torna-se prevalente, corpo como um autômato superior, um autômato animado (Figuras 1 e 2)5 5 As Figuras 1 e 2 retratam três autômatos, os primeiros robôs da humanidade capazes de escrever, desenhar e tocar criados pelo relojoeiro suíço Pierre Jaquet-Droz (1774 e 1768). , porém sensível e vivente, e que para funcionar necessita ter determinada ordem anatômica e receber o comando vindo da alma (Descartes, 1987Descartes, R. (1987). Descartes. (Os Pensadores, Vol. I.). São Paulo: Nova Cultural.).

Figura 1
Gravura publicada na Scientific American (1903a)Scientific American. (1903a). Recuperado em 24 de janeiro de 2023, de https://archive.org/details/scientific-american-1903-04-18/scientific-american-v88-n16-1903-04-18?view=theater#page/n8/mode/1up
https://archive.org/details/scientific-a...
, exibe o próprio relojoeiro Jaquet Droz e os seus três automatos: o escritor, o músico e o desenhista.
Figura 2
Gravura publicada na Scientific American (1903b)Scientific American. (1903b). Recuperado em 24 de janeiro de 2023, de https://archive.org/details/scientific-american-1903-04-18/scientific-american-v88-n16-1903-04-18?view=theater#page/n8/mode/1u
https://archive.org/details/scientific-a...
, mostra o mecanismo embutido no autômato “o escritor”.

No século XIX, sob a influência da filosofia naturalista-empirista fundamentada em Aristóteles, a imagem de corpo máquina/autômato é expandida para a ideia de organismo, corpo como máquina natural. A força motriz do seu funcionamento emerge de si, e são as “causas naturais” que desencadeiam as doenças, até então encaradas como “espécies mórbidas” (Luz, 2019, pLuz, M. T. (2019). Natural racional social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Fiocruz Edições Livres.. 114). Assim, as doenças são compreendidas como capazes de danificar o autômato humano, perturbando o seu funcionamento natural. Desse modo, a medicina da época clássica dos séculos XVII e XVIII representa a doença como um “mal” que se apossa do corpo humano (Luz, 2019, pLuz, M. T. (2019). Natural racional social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Fiocruz Edições Livres.. 116). Esse mal tem de ser enfrentado pela medicina e, posteriormente, por outros profissionais da saúde, corrigindo as “patologias” e as “anormalidades”.

Desse modo, o corpo com deficiência percorreu o século XX, e ainda é, no início do século XXI, uma expressão do anormal, desdobramento da patologia (Rocha, 2019Rocha, E. F. (2019). Terapia Ocupacional e Reabilitação de pessoas com deficiência: como aprendi a polir lentes com Espinosa (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. ), e muitas técnicas corporais consideram essas ideias.

O corpo relacional

Espinosa concebe o corpo não mais como máquina/autômato movido por algo externo a si, mas pela imanência do desejo de preservação na existência, um corpo relacional, vivo, dinâmico, onde não há dissociação com a mente/alma (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 177).

Para Espinosa, mente e corpo apenas traduzem a mesma coisa de maneiras diferentes, a ideia é imanente ao corpo, ou seja, são expressões finitas do processo de autoprodução da natureza eterna e infinita. Com isso, o filósofo recusa a possibilidade de que a alma/mente e o corpo sejam substâncias/seres em si e por si, mas sim expressões singulares da atividade imanente de uma substância única, a natureza.

O corpo relacional não é constituído por partes, por uma unificação delas, é um todo (unio corporum) que está em relação consigo mesmo enquanto mente (alma)/corpo (órgãos, líquidos, sistemas etc.) e com outros corpos (alimentos, ambientes, objetos, outros seres humanos etc.), sendo afetado por eles e os afetando, realizando-se na coexistência e composição com esses encontros. Assim, o corpo, em sua singularidade, é composto na relação com infinitos corpos, que podem aumentar a sua força para preservar sua existência ou decompô-la.

Aqui reside a crítica à ideia de união substancial cartesiana, assim como à ideia platônica de mente/alma como piloto do corpo e à correspondente posição aristotélica do corpo enquanto órgão da alma, órganon, ou seja, um instrumento (Chauí, 2005Chauí, M. (2005). Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna.). Portanto, para Espinosa é inconcebível uma relação de causalidade entre a mente e o corpo, uma vez que a interação é algo inerente aquele modo singular.

Damásio (2004)Damásio, A. (2004). Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras. nos lembra da sofisticação dessa definição feita no século XVII, que prevê que a natureza dos encontros dos corpos pode determinar o seu fortalecimento e/ou a sua decomposição. As pesquisas no campo da neuroplasticidade demonstram a capacidade do sistema nervoso de mudar, adaptar-se e moldar-se em nível estrutural e funcional ao longo do desenvolvimento neuronal e quando sujeito a novas experiências. Sacks (1995Sacks, O. (1995). Um antropólogo em Marte. São Paulo: Companhia das Letras., 1997Sacks, O. (1997). O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras.) também descreve como, em situações de alteração, o corpo também pode criar, por meio de experiências, novas formas de expressão, sendo essas muitas vezes de natureza adaptativa ou de superação de limites.

Em Espinosa, o corpo compõe-se e decompõe-se com outros corpos, regenera-se e regenera outros corpos, ou seja, age como um sistema complexo, tanto em seus movimentos internos como externos, e em constante intercorporeidade.

A ideia de intercorporeidade estabelece uma crítica ao mecanicismo cartesiano, pois o corpo do indivíduo é considerado uma estrutura, uma organização constituída de partes relacionadas entre si de forma inteligível e coesa, nas suas relações internas e externas.

Toda ação externa tem consequências sobre o corpo, ou seja, o que ocorre ao seu redor o afeta, assim como ele afeta o seu entorno. Dessa forma, o fortalecimento ou enfraquecimento do corpo depende das relações que são constituídas com outros corpos. Quanto mais o indivíduo estiver isolado e solitário, mais empobrecido e fraco estará seu corpo, seu desejo e seu pensamento. Quanto mais solidários e complexos forem os bons encontros com outros corpos, mais ele se tornará potente e apto a sua autoconservação, regeneração e transformação. Essa lógica - passível de ser vivida em toda a complexidade das relações com outros corpos - se constitui como primordial no campo da saúde. O trabalho corporal é uma possibilidade desses encontros, podendo ter diferentes expressões.

O conceito Bobath: corpo mecânico ou relacional?

O conceito Bobath (Bobath, 1984Bobath, K. (1984). Uma base neurofisiológica para o tratamento da paralisia cerebral. São Paulo: Manole.) é uma abordagem que visa melhorar o controle corporal junto aos indivíduos que têm algum tipo de lesão no sistema nervoso central, adquirida desde o pré-natal até a velhice. Seus procedimentos atuam no corpo como um todo, atendendo às particularidades de cada um.

Na década de 1940, o casal Bobath rompeu com as abordagens ortopédicas utilizadas em casos neurológicos, iniciou pesquisas que se estenderam por 47 anos e elaborou o conceito, neuroevolutivo, amplamente utilizado em muitos países na reabilitação.

O conceito prevê a observação da sequência do desenvolvimento motor típico, utiliza movimentos rotatórios e em diagonal e considera que as aquisições motoras ocorrem no sentido cefalocaudal, de proximal para distal. Inicialmente, as aquisições seguem padrões/ações simples passando para os complexos e, nessa experiência, a neuroplasticidade é fomentada. Reconhece que os movimentos humanos voluntários ocorrem de forma automática e independente do pensamento ou da consciência, principalmente no que se refere aos ajustes posturais, como a manutenção da postura contra a gravidade e do equilíbrio, daí a importância da experiência sensório-motora. Pressupõe a exploração das diferentes mudanças posturais, como rolar, sentar-se, arrastar-se, engatinhar e andar, assim como as atividades do cotidiano, como vestir-se, limpar-se, alimentar-se, deslocar-se, manusear etc.

Na ação corporal, as técnicas de facilitação, inibição e estimulação são utilizadas por meio de pontos de apoio em articulações do corpo do indivíduo, que são chamados de pontos chaves (cabeça, ombros, cotovelos, polegar, quadril, joelhos, tornozelos e artelhos). O contato se dá com a palma da mão e a intenção é direcionar o movimento, sem força nem pressão. Essa experiência corporal prevê o alcance de um tônus postural o mais próximo possível do típico e a emergência do Mecanismo do Reflexo Postural Normal6 6 Conceito que explica como o homem é capaz de manter sua postura contra a gravidade e, ao mesmo tempo, ter uma diversidade de movimentação altamente especializada. É composto por Reações Automáticas: as Reações de Endireitamento ou de Retificação e de Proteção e as Reações de Equilíbrio. Quando o sistema nervoso central sofre lesões, ele altera-se, ocorre o chamado Mecanismo do Reflexo Postural Anormal, que se expressa por meio da presença de alteração do tônus postural (hipertonia, hipotonia ou distonia), perda de equilíbrio e de movimentos de retificação, dificuldades de reações de proteção corporal e alterações nos movimentos, como atetose e ataxia, entre outras possibilidades. (Bobath, 1984, pBobath, K. (1984). Uma base neurofisiológica para o tratamento da paralisia cerebral. São Paulo: Manole.. 5-11), com movimentação ativa contra a gravidade, com a menor interferência possível da atividade reflexa patológica. Respeita-se, antes de tudo, o conforto, o prazer e, a nosso ver, a graciosidade dos movimentos humanos, sem partir da proposição de correção violenta do corpo (Rocha, 2019Rocha, E. F. (2019). Terapia Ocupacional e Reabilitação de pessoas com deficiência: como aprendi a polir lentes com Espinosa (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

Diante disso, como ensinar essa técnica corporal para graduandos de terapia ocupacional com base no conceito de corpo relacional?

Lições de Pedro

Em aulas do curso de especialização do conceito Bobath na década de 1980, ensinava-se, entre outros temas, que indivíduos com quadros de paralisia cerebral do tipo diparesia espástica tem o tônus muscular aumentado, com maior comprometimento nos membros inferiores, mas também apresentam alterações nos membros superiores. Esses indivíduos têm dificuldades no controle de tronco e da cabeça, na marcha, no equilibro, e podem sofrer quedas e ter dificuldades em dissociações do tronco. As funções dos membros superiores também podem estar comprometidas por causa da espasticidade e do padrão flexor nos braços, rotação interna e adução dos membros ao tronco. As ações manuais são dificultadas quando exigem a prono-supinação do antebraço, agarrar, movimentos de preensão e pinça, manipular, segurar e carregar objetos pequenos ou pesados. Para melhor desempenho nessas atividades, o indivíduo deveria ficar sentado, com as pernas abduzidas, tronco e pés apoiados, e a mesa deve estar na altura do peito para que seus braços pudessem estar à sua frente. Essa posição inibiria a atividade reflexa patológica e diminuiria a espasticidade (Bobath, 1984, pBobath, K. (1984). Uma base neurofisiológica para o tratamento da paralisia cerebral. São Paulo: Manole.. 87-99). Com a experiência do atendimento de Pedro por parte de uma das autoras, narrada abaixo na primeira pessoa, essas premissas foram questionadas:

Pedro7 7 Pedro é um nome fictício de um menino que residiu em uma instituição de moradia que tinha serviços de reabilitação e onde uma das autoras trabalhou como terapeuta ocupacional (1979-1989). O relato aqui apresentado está descrito em Rocha (1990, 2019) À época da primeira pesquisa em 1990, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) ainda não havia sido criada, o que ocorreu em 1997; assim, as aprovações dos estudos restringiam-se a comitês/pareceristas de especialistas da referida instituição. , menino loiro, de nove anos, magrinho, com a pele um pouco manchada, com marcas da subnutrição com que chegou à instituição onde residia na década de 1980, costumava ser quieto e com pouca iniciativa para as atividades. Seu diagnóstico clínico era de paralisia cerebral do tipo diparesia espástica com deficiência intelectual associada.

Entra na sala de terapia ocupacional com seu andar claudicante, jogando seu tronco para os lados e com os braços abertos para melhorar seu equilibro, senta-se à mesa, e me diz o que quer fazer, o que não era seu costume: Hoje eu quero fazer um radinho de pilha 8 8 Rádio transistorizado, inventado na década de 1950, que funciona com pilha. !

Surpresa, eu pergunto: Mas como assim? Como vamos fazer uma radinho de pilha?

Ele responde que era fácil e que viu alguns com os pedreiros que estavam trabalhando na instituição e ele o descreve: Ele é pequenininho, assim (me mostra o tamanho com as mãos), e tem uma anteninha, um botão de lado que roda para pôr na música que eu quero ouvir. E ele pode ser carregado assim (põe uma das mãos no ouvido e sai andando e cantando pela sala).

Senta-se novamente à mesa e completa: Ah, tem que ter aqueles furinhos para a música sair. Eu insisto: E como vamos fazer então esse radinho? Que materiais você precisa? Como vamos montá-lo? Como a música vai sair?

Ao fazer essas perguntas, ele fica me olhando tranquilamente, sentado do outro lado da mesa. Quando eu termino, aflita que já estava com a proposta, ele levanta, vai até o armário de materiais, pega uma ripa de madeira, um lápis, um serrote, cola, uma rolha e um prego e me explica:

Assim... serramos essa madeira desse tamanho (me mostra na ripa), com o lápis pintamos os furos da música, depois martelamos o prego no desenho dos furos para ela sair. Depois colocamos o prego aqui (me mostra o lugar da antena) e o rádio está pronto.

Então eu pergunto: E o que você vai fazer com o rádio? (Que pergunta!)

Ele responde: Ah, vou me sentar com os meus amigos pedreiros na hora do almoço e descansar, ouvindo música e conversando...

Bom, resolvido qual seria a atividade e como iria fazê-la, restava a tarefa de executá-la. Mas como?

Com o intuito de seguir os protocolos do curso de especialização, tenho a ideia de colocá-lo sentado em uma cadeira abdutora e pedir para que ele segure a madeira com as duas mãos à sua frente, enquanto eu a serro.

Pedro rejeita completamente a proposta. Levanta-se, fica de pé em frente a um balcão que tinha uma morsa fixa, suas pernas em “X”, com alguma abdução e semifletidas, o tronco suavemente fletido para frente, braços aduzidos e um pouco flexionados, antebraços com rotação interna, ou seja, com um padrão corporal esperado para seu quadro de paralisia cerebral.

Pega a ripa e o serrote, fixa a ripa na morsa e serra a madeira usando força. Solta o toco de madeira, senta-se à mesa, faz pontinhos com o lápis desenhando o autofalante do rádio. Pega o martelo e o prego, pede para eu segurar o toco de madeira e faz os buraquinhos nos pontinhos desenhados, segurando o prego com uma mão e o martelo com a outra.

Depois repete o pedido para eu segurar o toco de madeira de pé e coloca o prego como antena. No final, cola a rolha de lado para ser o botão do rádio. A rolha não fixa, então ele a remove e desenha o botão com o lápis. Terminou! Ele diz.

Levanta-se, olha-me com um grande sorriso, pega seu rádio, coloca-o na orelha e diz: Vou almoçar porque depois vou encontrar os meus amigos pedreiros para ouvir música e conversar!

Sai feliz e cantando, e eu fico sem ação. Seu tônus muscular não aumentou, não teve atividades reflexas patológicas, usou martelo, segurou o prego, usou força, tudo ao contrário do preconizado no curso. Trouxe a ideia de uma atividade, planejou como fazê-la e a fez. E mais, pediu meu auxilio só para pequenos passos da atividade. E no final, saiu leve e feliz da sala.

Tive uma aula diferente sobre paralisia cerebral e intervenção corporal. Aprendi que ninguém sabe o que o corpo pode desde que ele atue sob o imperativo do desejo.

E o que fiz com a especialização do conceito Bobath? Eu o ensino na graduação há 38 anos. E por quê?

Aprendi com Pedro e Espinosa a reler esse recurso terapêutico. Ele não é reducionista em si, é a leitura que podemos fazer dele que pode torná-lo organicista e biomédico. Não é uma intervenção terapêutica em si, é apenas um meio utilizado nesse processo. Portanto, não é bom ou ruim em si, depende da sua composição na ação terapêutica, que deve considerar o desejo e a imaginação, pois o desejo é aquilo que nos parece como um bem. (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 237).

O corpo relacional e o ensino do conceito Bobath

[...] a alegria e a tristeza são paixões pelas quais a potência de cada um - ou seja, seu esforço por perseverar no seu ser - é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada. Ora, por esforço por perseverar em seu ser, enquanto esse esforço está referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo, compreendemos o apetite e o desejo. Portanto, a alegria e a tristeza são o próprio desejo ou o apetite, enquanto ele é aumentado ou diminuído, estimulado ou refreado, por causas exteriores, isto é, é a própria natureza de cada um... (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 233).

Nesses anos de docência, o ensino do conceito Bobath consistiu-se um desafio, para tanto, debruçamo-nos nos estudos da filosofia de Espinosa e de autores como Sacks (1995Sacks, O. (1995). Um antropólogo em Marte. São Paulo: Companhia das Letras., 1997Sacks, O. (1997). O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras.) e Damásio (2004)Damásio, A. (2004). Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras., que lembram que o desejo é a origem da ação e o corpo é relacional.

Transformamos as aulas em momentos de experimentação do próprio corpo. Organizamos a disciplina de forma prática: os estudantes se apresentam às aulas com roupas confortáveis, não podem anotar em papel, fotografar ou filmar, e a experiência de aprendizado tem que ser corporal e na relação com o professor e com os colegas. O laboratório de práticas corporais é preparado com colchonetes e bolas, sem cadeiras e mesas.

As primeiras experimentações são relacionadas às possibilidades dos corpos - o que o meu corpo faz e como faz. O estudante vivencia como rola, senta-se, passa para a posição de gato, ajoelha-se, fica em pé, anda e manipula objetos. Quais são os pré-requisitos para essas ações? O que sentimos? Dificuldades, surpresas... Eles têm que atualizar o que já aprenderam, têm que descobrir outras explicações. Começa assim o entendimento do que é o Mecanismo do Reflexo Postural Normal. Concomitantemente, inicia-se a compreensão de como o corpo se altera e o que se modifica na presença de uma alteração neurológia, ou seja, o que é o Mecanismo do Reflexo Postural Anormal. Essa é a base para a compreensão da técnica, aplicável a todas outras técnicas corporais.

Também recorremos às aulas dialogadas e aos círculos de conversa. Todo início de aula, propõe-se um aquecimento corporal e alongamentos e, após essa atividade, sentamos no chão para relembrarmos o que aprendemos na aula anterior e pensarmos aquele dia. Antes do final da aula, refazemos o círculo. Sentados novamente no chão, lembramos o que aprendemos e como vivenciamos corporalmente o conteúdo - tudo sem anotação. Insistimos na memória corporal: quando o estudante não consegue explicar com palavras, pedimos que demonstre e depois traduza a experiência em palavras e em termos técnicos. Após esse fechamento conceitual, fazemos um relaxamento com novos alongamentos para nos cuidarmos. A aula dura duas horas e ocorre uma vez por semana.

A simulação das alterações corporais compõe o processo de ensino-aprendizado, e isso ocorre simultaneamente ao ensino da potência da técnica. Um estudante simula uma alteração neurológica e outro experimenta a intervenção. São formados pequenos grupos. Eles são parceiros, e cada um tem que oferecer devolutivas aos colegas: A mão estava bem colocada? A pressão sobre o corpo foi adequada? O movimento fluiu? Ou seja, retornos sobre a qualidade da manipulação experimentada. Nós professores rodiziamos entre os estudantes, corrigimos, tiramos dúvidas e facilitamos o aprimoramento do toque corporal.

Nos círculos de conversa, exploramos como a técnica foi organizada, como evoluiu, seus procedimentos e, principalmente, trabalhamos a pergunta: Temos um corpo ou somos um corpo? A questão parece simples, mas não é. Com essa pergunta, ensinamos procedimentos do conceito Bobath sob a perspectiva do corpo relacional, fortalecendo a diferenciação da leitura cartesiana.

Manipular e ser manipulado tem que ser um ato de prazer e estar inserido no contexto das paixões alegres. A qualidade do toque tem que exprimir gentileza, respeito e uma atitude de acolhimento. Deve assemelhar-se a uma dança, não a um exercício, pois ao dançar com o outro, eu posso conduzir e ser conduzido, em um encontro corporal prazeroso. Essa é a possibilidade de uma abordagem que supera o modelo organicista e biomédico hegemônico: o trabalho corporal não consiste em um exercício mecânico, é um encontro de corpos e as singularidades, e os desejos do indivíduo singular são prioritários.

Mas a superação do dualismo psicofísico exige um pouco mais do que isso, necessita que essa técnica esteja contextualizada em um processo terapêutico. A técnica por si só não é boa ou má, tampouco responde a todas as necessidades. Ela detém um determinado potencial dependendo de como é praticada, mas a sua aplicação não garante o resultado. Aqui reside outro tema do aprendizado em aula: a técnica nem sempre deve ser utilizada apenas porque o indivíduo tem uma lesão neurológica, ela tem que estar contextualizada em um processo terapêutico, que pressupõe o envolvimento de todos na busca do viver bem (Rocha, 2019Rocha, E. F. (2019). Terapia Ocupacional e Reabilitação de pessoas com deficiência: como aprendi a polir lentes com Espinosa (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

Desafiamos os estudantes a pensar quando e como irão utilizar esse recurso, observamos em aula que quando estamos com o indivíduo com deficiência utilizando uma técnica corporal, ela tem que ser vivida como um bom encontro, como ludicidade. Durante a disciplina, é explicitado que as técnicas corporais, assim como outros recursos, compõem a intervenção terapêutica ocupacional, pois, por si só, não respondem a todas as necessidades das pessoas com deficiência em processo de reabilitação.

O corpo relacional e o processo terapêutico

Ninguém pode desejar ser feliz, agir e viver bem sem, ao mesmo tempo, desejar ser, agir e viver, isto é, existir em ato. (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 291).

Na perspectiva do corpo relacional, o trabalho corporal considera o desejo, e esse não é falta, é presença, pois fortalece o Conatus 9 9 Termo latino que significa esforço de ou para; na filosofia do século XVII, é usado a partir da nova física que, ao apresentar o princípio de inércia – um corpo que permanece em movimento ou em repouso se nenhum corpo atuar sobre ele modificando seu estado, torna possível a ideia de que todos os seres do universo possuem a tendência natural e espontânea à autoconservação e se esforçam para permanecer na existência. (Chauí, 2005, pChauí, M. (2005). Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna.. 99), que é a emergência da imanência do corpo. Ele não tem um fim em si mesmo, mas compõe o processo terapêutico, contribui para a constituição de acontecimentos, pautados em encontros, dotados de significados nas histórias de vida. Os encontros podem compor ou decompor o Conatus do indivíduo (Spinoza, 2013Spinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.), dependendo da sua natureza, “bons” ou “maus”, dotados de paixões alegres ou tristes10 10 Todos os afetos são derivados dos afetos primários, da alegria e da tristeza, como: admiração, desprezo, amor, ódio, atração, aversão, escárnio, esperança, medo, segurança, desespero, gáudio, decepção, comiseração, reconhecimento, indignação, consideração, desconsideração, inveja, misericórdia, satisfação, humildade, arrependimento, soberba, rebaixamento, glória, vergonha, saudade, emulação, agradecimento, benevolência, ira, vingança, crueldade, temor, audácia, covardia, pavor, cortesia, ambição, gula, embriaguez, avareza e luxúria. (Spinoza, 2013, p. 237-257). . As paixões alegres compõem o Conatus, já as paixões tristes, o definham.

Uma prática corporal dirigida à correção corporal desperta ideias inadequadas11 11 A ideia, para Espinosa, pode ser imaginativa ou inadequada e intelectiva ou adequada. As ideias inadequadas são compostas por imagens mutiladas e truncadas, fabricadas na consciência a partir das experiências sensoriais, que geram um processo inexato de interpretação da realidade existente nos encontros entre os corpos, pois toma como primazia apenas o conhecimento empírico. Por outro lado, as ideias adequadas, por natureza, são capazes de unir-se a outras ideias num bom raciocínio, porque conhecem tanto a causa que as produz quanto a causa que produz a própria ideia em nós. (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 165), confusas e obscuras sobre si, sentimentos de incapacidade, impotência, entre outros. Por outro lado, uma ação corporal dotada de significado desperta a imaginação - não a razão - na direção de projetar e sustentar o presente, bem como engendrar o futuro.

O conceito Bobath, nessa perspectiva, pode desenvolver habilidades motoras, diminuir a influência de atividades reflexas, normalizar o tônus muscular, fomentar a marcha, a fala, diminuir ou evitar deformidades, favorecer maior conforto respiratório, muscular, sensorial, circulatório, digestivo e excretório, entre outras probabilidades, sem que suas ações se tornem um fim em si mesmo, mas uma composição de novas possibilidades.

Na perspectiva do corpo relacional, o recurso pode beneficiar a emergência da singularidade do indivíduo e auxiliar o rompimento com ideias imaginativas de que o corpo com deficiência é inferior a outros e de que tem que ser treinado para ser melhor, pois se manifesta como uma ação que produz novas composições corporais, apreciando a materialidade da mente/corpo como uma só, ou seja, um contato corporal que toca em muitos corpos e edifica novas possibilidades de ser, fazer e viver no cotidiano.

Com as contribuições aqui apresentadas, pretendemos colaborar para a expansão dos estudos de terapia ocupacional no campo das práticas corporais considerando fundamentos epistêmicos divergentes da produção cartesiana e biomédica sobre o corpo.

Ademais, é importante afirmar que conhecer e utilizar esse recurso técnico potente também é um ato político. A sua ciência tem que ser democratizada. Ele tem que ser oferecido na rede pública, em todos os níveis assistenciais, para diferentes populações (Acidente Vascular Encefálico, Paralisia Cerebral, Zica Virus, COVID-19, entre outras), e não pode se restringir a poucos que o pagam em cursos de especialização, pois seu uso colabora para o cuidado, contempla os cuidadores e proporciona acesso a bens de saúde, educação, lazer e cultura, e a participação social e em ações de cidadania.

Agradecimentos

Aos estudantes de graduação de terapia ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

  • 1
    Trata-se de texto composto por parte de tese da primeira autora apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Professora Livre-Docente junto ao Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional (Disciplina de Terapia Ocupacional) em fevereiro de 2020 e por reflexões sobre as experiências de ensino da disciplina analisada, que é ministrada pelas duas autoras, em conjunto, no curso de graduação de Terapia Ocupacional da FMUSP.
  • 2
    A primeira publicação de “Ética demonstrada à maneira dos geômetras” ocorreu em 1675, na Holanda.
  • 3
    Utilizamos o conceito de indivíduo de Espinosa e não o de pessoa, palavra derivada do latim – persona – que designa máscara usada no teatro. Para maior aprofundamento no conceito, ver Campos (2008)Campos, A. S. (2008). O indivíduo em Spinoza: absorção de personalidade. Polymatheia - Revista De Filosofia, 4(5), 5-38., que coloca que se trata de um “... conceito problemático que precede em muito a sua adoção pelas filosofias da Modernidade...” (Campos, 2008, pCampos, A. S. (2008). O indivíduo em Spinoza: absorção de personalidade. Polymatheia - Revista De Filosofia, 4(5), 5-38.. 10) e que “Com a Modernidade, a jurídico-política, Descartes e Hobbes cruzam as duas problemáticas, e misturam o indivíduo e a pessoa: uma pessoa individual. Spinoza vai muito mais longe. O seu indivíduo é princípio constitutivo da metafísica e da ontologia do sistema, perpassando todas as áreas do mesmo: chegando à jurídico-política, absorve o que se dissera de pessoa, e torna-se tema fundamental de direito e de política.” (Campos, 2008, pCampos, A. S. (2008). O indivíduo em Spinoza: absorção de personalidade. Polymatheia - Revista De Filosofia, 4(5), 5-38.. 6).
  • 4
    O “Discurso sobre o método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência” foi publicado pela primeira vez em 1637, na Holanda.
  • 5
    As Figuras 1 e 2 retratam três autômatos, os primeiros robôs da humanidade capazes de escrever, desenhar e tocar criados pelo relojoeiro suíço Pierre Jaquet-Droz (1774 e 1768).
  • 6
    Conceito que explica como o homem é capaz de manter sua postura contra a gravidade e, ao mesmo tempo, ter uma diversidade de movimentação altamente especializada. É composto por Reações Automáticas: as Reações de Endireitamento ou de Retificação e de Proteção e as Reações de Equilíbrio. Quando o sistema nervoso central sofre lesões, ele altera-se, ocorre o chamado Mecanismo do Reflexo Postural Anormal, que se expressa por meio da presença de alteração do tônus postural (hipertonia, hipotonia ou distonia), perda de equilíbrio e de movimentos de retificação, dificuldades de reações de proteção corporal e alterações nos movimentos, como atetose e ataxia, entre outras possibilidades.
  • 7
    Pedro é um nome fictício de um menino que residiu em uma instituição de moradia que tinha serviços de reabilitação e onde uma das autoras trabalhou como terapeuta ocupacional (1979-1989). O relato aqui apresentado está descrito em Rocha (1990Rocha, E. F. (1990). Uma nova abordagem de terapia ocupacional no tratamento dos deficientes físicos. Relatório de pesquisa - período de 1985 a 1990. São Paulo: Universidade de São Paulo., 2019Rocha, E. F. (2019). Terapia Ocupacional e Reabilitação de pessoas com deficiência: como aprendi a polir lentes com Espinosa (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. ) À época da primeira pesquisa em 1990, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) ainda não havia sido criada, o que ocorreu em 1997; assim, as aprovações dos estudos restringiam-se a comitês/pareceristas de especialistas da referida instituição.
  • 8
    Rádio transistorizado, inventado na década de 1950, que funciona com pilha.
  • 9
    Termo latino que significa esforço de ou para; na filosofia do século XVII, é usado a partir da nova física que, ao apresentar o princípio de inércia – um corpo que permanece em movimento ou em repouso se nenhum corpo atuar sobre ele modificando seu estado, torna possível a ideia de que todos os seres do universo possuem a tendência natural e espontânea à autoconservação e se esforçam para permanecer na existência.
  • 10
    Todos os afetos são derivados dos afetos primários, da alegria e da tristeza, como: admiração, desprezo, amor, ódio, atração, aversão, escárnio, esperança, medo, segurança, desespero, gáudio, decepção, comiseração, reconhecimento, indignação, consideração, desconsideração, inveja, misericórdia, satisfação, humildade, arrependimento, soberba, rebaixamento, glória, vergonha, saudade, emulação, agradecimento, benevolência, ira, vingança, crueldade, temor, audácia, covardia, pavor, cortesia, ambição, gula, embriaguez, avareza e luxúria. (Spinoza, 2013, pSpinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.. 237-257).
  • 11
    A ideia, para Espinosa, pode ser imaginativa ou inadequada e intelectiva ou adequada. As ideias inadequadas são compostas por imagens mutiladas e truncadas, fabricadas na consciência a partir das experiências sensoriais, que geram um processo inexato de interpretação da realidade existente nos encontros entre os corpos, pois toma como primazia apenas o conhecimento empírico. Por outro lado, as ideias adequadas, por natureza, são capazes de unir-se a outras ideias num bom raciocínio, porque conhecem tanto a causa que as produz quanto a causa que produz a própria ideia em nós.
  • Como citar: Rocha, E. F., & Souza, C. C. B. X. (2023). Pode o corpo ser mais que um autômato a ser consertado? Encontros entre a filosofia de Espinosa e o conceito Bobath. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3512. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoARF269335121

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  • Spinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica.

Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Ana Paula Serrata Malfitano

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2023
  • Revisado
    01 Fev 2023
  • Revisado
    09 Mar 2023
  • Revisado
    12 Jun 2023
  • Aceito
    22 Jun 2023
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