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Diálogos com Benetton e Latour: possibilidades de compreensão da inserção social

Resumo

Este ensaio busca tecer reflexões em torno da temática da inserção social, caminhando pela construção de conhecimento em terapia ocupacional, em sua lida com sujeitos imersos em problemáticas ligadas à exclusão social. Tais reflexões sustentam-se no trabalho desenvolvido por Bruno Latour, sociólogo francês, em especial em seu trabalho metodológico sobre a Teoria Ator-Rede, que busca desvelar a ação de seres humanos e não humanos que leva outros a agirem no mundo; e nas proposições do Método Terapia Ocupacional Dinâmica, desenvolvido por Jô Benetton, terapeuta ocupacional brasileira, em seu arcabouço metodológico para ajudar pessoas a agirem no mundo. Assim, este ensaio busca desvelar pontos nos quais essas duas propostas teórico-metodológicas se aproximam e podem oferecer novas possibilidades para compreender a inserção social em construção, no movimento dinâmico, fluido e instável do social, em processos que favoreçam a participação dos sujeitos na construção do coletivo, com base em seu modo de ser, de fazer e de se relacionar.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Participação Social; Prática Profissional; Meio Social

Abstract

This essay aims to weave reflections around the theme of social insertion, walking through the construction of knowledge in occupational therapy, in its deal with persons immersed in issues related to social exclusion. These reflections are based on the Bruno Latour's work, a French sociologist, in particular his Actor-Network Theory, which seeks to unveil the action of human and non-human beings that leads others to act in the world; and on the propositions of the Dynamic Occupational Therapy Method, developed by Jô Benetton, a Brazilian occupational therapist, in her methodological framework to help people to act in the world. This essay aims to reveal points in which these two theoretical-methodological proposals approach and can offer new possibilities to understand social insertion in construction, in the dynamic, fluid and unstable movement of the social, in processes that favor people´s participation in the construction of the collective, based on their way of being, doing and relating.

Keywords:
Occupational Therapy; Social Participation; Professional Practice; Social Environment

1 Introdução

Os termos inserção e participação social vêm ganhando espaço nas discussões recentes da terapia ocupacional brasileira, embora, desde a década de 1970, tal ideia venha sendo gestada como crítica à perspectiva funcionalista, de adaptação das pessoas à sociedade (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1773.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
). Tal crítica produziu fundamentos para a prática centrados no desejo de que as pessoas com quais a terapia ocupacional trabalha, e por meio desse trabalho, possam participar de uma sociedade menos desigual (objetiva e subjetivamente).

O conceito de exclusão social, reconhecidamente ambíguo, multidimensional e imerso em complexas questões sociais, é mais explorado na literatura do que o são os conceitos complementares de inclusão e inserção social (Fisher, 2008Fisher, A. M. (2008). Resolving the theoretical ambiguities of social exclusion with reference to polarisation and conflict (Working Paper Series, No. 90). London: Development Studies Institute, London School of Economics and Political Science.). Perspectivas interseccionais contemporâneas discutem que o reconhecimento da diferença e a redistribuição econômica são faces de uma mesma moeda e clamam por modelos integrados para alcançar justiça social (Fraser, 2007Fraser, N. (2007). Reconhecimento sem ética? Revista Lua Nova, 70, 213-222.).

Neste ensaio, propomo-nos a caminhar pela construção de conhecimento em terapia ocupacional, em sua lida com sujeitos imersos em problemáticas ligadas à exclusão social, para destacar elementos que possam contribuir para esse debate. Embora o foco não seja a discussão de questões sociais, parte-se da premissa de uma prática que busca pela vida qualificada, e que se coloca como resistência à necropolítica contemporânea (Mbembe, 2003Mbembe, A. (2003). Necropolitics. Public Culture, 15(1), 11-40. http://dx.doi.org/10.1215/08992363-15-1-11.
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; Lima, 2006Lima, E. M. F. A. (2006). A saúde mental nos caminhos da terapia ocupacional. Revista Mundo da Saúde, 30(3), 117-122.).

Para esta reflexão, escolhemos dois autores em cujas obras podemos encontrar elementos para ampliar nossa compreensão: a terapeuta ocupacional brasileira Jô Benetton e o sociólogo francês Bruno Latour. Apresentaremos as ideias centrais de cada autor para, posteriormente, tecer relações voltadas para uma compreensão da inserção social, fértil para práticos e pesquisadores.

2 Jô Benetton: Ampliar Espaços de Saúde no Cotidiano

Reunir indícios e identificar relações em torno dos fenômenos relativos à clínica terapia ocupacional vem sendo o projeto de Jô Benetton desde 1970 (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.). Seu modo de investigar assentou-se na observação e descrição da prática para identificação de seus fenômenos, para então ir em busca de teorias explicativas ou da construção de aportes teóricos novos – processo de construção do Método Terapia Ocupacional Dinâmica (MTOD).

Diante de sujeitos que não conseguiam realizar atividades na vida, das mais simples às mais complexas, Benetton observou que essa característica demarcava uma determinada posição que os excluía da participação na vida social, deixando-os à margem de inúmeras decisões sobre a condução de suas vidas. Tal posição, gerada pela repercussão de determinadas situações, que, entre social e pessoal, mantinha o sujeito paralisado.

[...] quando me refiro ao paciente grave, ele está assim não só pelo seu diagnóstico médico, mas, principalmente, pela repercussão social acarretada pelo seu quadro. Não fazer nada, estar trancado, agredir e destruir, mobiliza com tal força o sistema a que pertence que ninguém próximo fica imune (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 7).

Benetton (1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., 2010Benetton, J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na terapia ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12, 32-39.), assim, determina uma finalidade para o cuidado “[...] a manutenção ou a própria inserção social” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 64). Problema de natureza ambígua, múltipla e complexa, difícil de ser isolado. Para tal complexidade, Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas. propõe deixar em aberto as várias possibilidades de qualificação dos fenômenos deflagrados no projeto de busca pela inserção social, considerando toda a singularidade de cada situação.

[...] se permitir a crítica fundamentada no processo de maneira a questionar a normatização sem excluir os não normatizados. [...] Na clínica, a singularidade só nos permite refletir e elaborar sob valores relativos (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 64).

Desse modo, afastando-se de julgamentos ou classificações prévias, a autora propõe compreender o que está em jogo na situação atual do sujeito, que o paralisa e instaura tal posição de exclusão. Os aspectos a serem considerados para essa análise são múltiplos, a depender das particularidades do cotidiano.

Informações sobre o cotidiano precisam ser mapeadas e produzidas das mais variadas formas: pelo que o sujeito fala sobre si e sobre as pessoas com as quais convive; pelo que essas pessoas contam e pensam sobre ele; pelas atitudes de todos em convivência – inclusive outros profissionais ou equipe de referência do caso; pelo que se observa do que o sujeito faz e como ele qualifica suas produções; pelos outros diagnósticos. Esse diagnóstico situacional assemelha-se mais a um mapa do que a um quebra-cabeças, pois as ligações entre os pontos/peças não necessariamente se conectam clara e perfeitamente – há vazios “entre” que vão sendo mais ou menos preenchidos na medida em que novas informações são incorporadas.

Com esse mapa inicial em mente e com a finalidade de ajudar o sujeito alvo a sair de sua paralisia, Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas. observou que há uma primeira receita: “[...] é preciso fazer [...] dizer do fazer como resposta a essa complicada forma de demanda [...]” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 5). E “fazer atividades”, assim como todo o arsenal necessário para que elas sejam feitas, provoca modificações na relação entre terapeuta ocupacional e sujeito alvo, tornando tal relação triádica, e não somente interpessoal.

[...] fazer atividades não gera somente produtos, em um sentido unidirecional, do ser humano para sua produção, mas [...] forçam uma relação com ele e uma relação da ordem de ter que produzir (Benetton & Marcolino, 2013Benetton, J., & Marcolino, T. Q. (2013). As atividades no método terapia ocupacional dinâmica. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 21(3), 645-652. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.067.
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, p. 648).

O campo experimental, propiciado pelo fazer atividades em uma relação triádica, abre espaço para a subjetividade. Escolher, fazer, construir, destruir, são ações transpassadas por sentimentos e emoções, e carregam expectativas e desejos. Fazer atividades é tanto porta de entrada para o inusitado como abertura para a construção de sentidos que possam reformular com o sujeito “[...] sua inatividade e descrença” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 75).

Quando [...] alguém perde a referência da noção de cotidiano, é muito mais fácil retomá-la com atividades do que com palavras, ordens ou determinações. [...] é pelas atividades que poderemos escavar lembranças, que não terão que ser refeitas ou reabilitadas obrigatoriamente, mas poderão ser construídas com objetos e objetos novos, pois aí o paciente já mudou (Benetton, 2002Benetton, J. (2002). Diálogos em psiquiatria. Revista CETO, 7, 3-8., p. 6).

Benetton (1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., 2010Benetton, J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na terapia ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12, 32-39.) propõe que a(o) terapeuta ocupacional passe a analisar o movimento dinâmico da relação triádica. Para a autora, o sujeito é livre para escolher seu caminho, de modo que se possa identificar o que favorece sua criatividade, seu fazer.

Agir na dinâmica da relação triádica implica em fazer-se presente, como uma(um) terapeuta ocupacional ativa(o), que busca “[...] induzir ao sentir e ao se relacionar” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 81) de modo a favorecer, no sujeito, o surgimento do desejo de aprender, de fazer, de seguir em frente. A proposta é ampliar as possibilidades a partir das quais o sujeito sinta-se mobilizado, provocado a agir. “O outro, paciente na sua própria vida, precisa ser provocado para encontrar uma nova ou melhor forma de viver, em princípio, o dia-a-dia” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 102).

Desse modo, busca-se com que o sujeito se conheça, escolha o que experimentar e qualifique essas experimentações, assumindo para si tais valores, reconhecendo o que lhe faz bem. Como se busca manter em aberto as possibilidades do sujeito qualificar o que foi vivido, o que for qualificado como saudável vai se constituindo como espaço de saúde, em uma perspectiva de saúde que é dinâmica e que regula as possibilidades de ação (Maximino et al., 2012Maximino, V. S., Petri, E. C., & Carvalho, A. O. C. (2012). A compreensão de saúde para o método da terapia ocupacional dinâmica. Revista CETO, 13, 34-40.).

Entretanto, Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas. observa que somente fazer atividades não é suficiente. Há necessidade de integração entre o pensar e o fazer, tanto para o sujeito como para as pessoas com as quais ele(a) convive. Para isso, a autora propõe que a(o) terapeuta ocupacional memorize informações observáveis e corporificadas (pensamentos provenientes da interação, emoções e sentimentos vividos no próprio corpo). Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas. preconiza o desenvolvimento de um olhar perscrutador, cujo foco não esteja em compreender (atividades, gestualidades ou emoções), mas sim em observar e registrar para compor um “[...] acervo informativo do caso” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 97).

Utilizando o conjunto de atividades feitas, somadas à memória associativa (sustentada pelos registros), é possível propor ao sujeito uma avaliação do que foi feito. A técnica Trilhas Associativas, com maior enfoque, favorece a integração entre pensar e fazer.

Tal técnica consiste em reunir todas as atividades feitas e agrupá-las de acordo com qualquer proposição que o sujeito alvo compreenda que lhe faça algum sentido para, em seguida, nomear tais agrupamentos e explicá-los. A(O) terapeuta ocupacional pode referendar tais agrupamentos, fazer comentários ou mesmo propor novos agrupamentos que venham a desvelar suas hipóteses e associações construídas ao longo do tempo. Esse diálogo continua até que ambos estejam satisfeitos. Nesse caminho, “[...] fenômenos isolados podem ao longo do tempo ser comparados com seus significados” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 36) e “[...] o que nunca foi visto ou pensado [...] surpreende, ampliando ainda mais as possibilidades de busca de novas associações [...] e um novo sistema de valores vai sendo construído” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 106).

Antes de tudo, assim desencadeado, um processo associativo tem a finalidade de mostrar àquele que para a sociedade não faz nada, o quanto já se fez para si mesmo e para o interlocutor que o qualifica. Aqui existe história! (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 105).

A ampliação dos espaços de saúde, na medida em que fazer atividades passa a ser rotineiro, e os sentidos que o sujeito constrói para seu cotidiano são os fundamentos para a inserção social. Uma vez que ativamente ele tem sua participação ampliada, essa participação imprime mudanças na sociedade (Benetton, 2002Benetton, J. (2002). Diálogos em psiquiatria. Revista CETO, 7, 3-8.).

É, enfim, por meio dessa significação que o sujeito alvo, como cidadão, toma em suas mãos seu jeito de ser, para impor à sociedade que o receba desse jeito mesmo e que não precise esperar pela mudança social para nela se inserir. Nesse sentido, ele mesmo se torna agente dessa mudança (Benetton, 2010Benetton, J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na terapia ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12, 32-39., p. 39).

Benetton (1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., 2010Benetton, J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na terapia ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12, 32-39.) elucida que esse processo não é linear. Buscar a construção de sentidos é aproximar-se do “[...] risco do novo, do inusitado e nem sempre do sucesso. [...] o insucesso é também um instrumento para novas buscas [...] base para reformulações do nosso trabalho” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 110). Além disso, sustentar espaços de saúde demanda pensar singularidades sob valores relativos e manter-se aberto a todas as possíveis qualificações – paradoxos e controvérsias da vida dos sujeitos alvo precisam vir à tona e serem considerados, conjuntamente, para que se possa avançar (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.).

Assim, a construção do que hoje se denomina de Método Terapia Ocupacional Dinâmica pautou-se na observação dos fenômenos da prática de cuidado em terapia ocupacional, de modo que toda construção teórica e metodológica respondesse diretamente às necessidades de uma prática voltada para a inserção social. Nesse percurso, elementos inusitados foram chamados a compor esse arcabouço, com destaque para as atividades, os sentidos que se constroem sobre elas e todo o arsenal que elas mobilizam para que sejam feitas.

Esses elementos possuem uma ligação direta com as proposições vanguardistas de Bruno Latour, sociólogo francês contemporâneo, como será melhor detalhado a seguir.

3 Bruno Latour: Ampliar Conexões e Associações Que Levem a Agir

Bruno Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. é autor da Teoria Ator-Rede (ANT), uma das produções mais profícuas de sua obra, apresentada no livro Reagregando o Social: Uma introdução à teoria do Ator-Rede, obra que será apresentada e discutida neste ensaio. A ANT foi desenvolvida após seu trabalho etnográfico nos laboratórios de cientistas, e essa imersão etnográfica possibilitou-lhe um estudo acima, no sentido de que seus praticantes, com estatuto/status acima ao do pesquisador, “[...] não deixavam os sociólogos atravessar a sua seara e destruir seus objetos com 'explicações sociais' sem protestar com veemência” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 149).

O estudo no laboratório de cientistas, espaço acostumado a experimentos de risco assentados na falseabilidade da teoria, puderam tensionar as ciências sociais a realizar experimentos também abertos ao risco. Explicações sociais como “Capitalismo, Império, Normas, Individualismo, Campos [...]” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 200-201) e sua invisibilidade inerente possuem a capacidade de reduzir e obnubilar possíveis novas ocorrências que demandem outras associações e explicações que não as previamente disponíveis.

Latour mantém o respeito por uma sociologia que ajude a formatar certos aspectos sociais estáveis, mas como saber o que já está estabilizado no mundo contemporâneo? Para fenômenos complexos, Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. concorda com Stengers (2002)Stengers, I. (2002). A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. ao afirmar que é necessário “[...] inventar artifícios temerários para tornar o observador sensível a novos tipos de conexões” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 336). A nova ordem assumida foi a de não trabalhar com a invisibilidade, com o que está por trás das ações humanas, não tentar preencher lacunas, mas cultivar descrições do que existe ou, no mínimo, do que oferece algum indício de sua existência “[...] mesmo que indireta, vaga, complicada” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 217-218).

Latour (2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 337) propõe uma sociologia empírica, “[...] no sentido de respeitar a estranha natureza daquilo que é 'dado à existência'” em um jogo de irredução – quanto mais elementos na descrição, mais conexões rastreadas entre os elementos, mais contradições e controvérsias podem ser observadas. Ao eliminar o invisível do social, os objetos surgem como elementos novos, saltando do restrito lugar de serem parte do contexto para destacarem-se nas explicações sobre a multiplicidade da paisagem social na medida em que fazem a diferença, modificando a situação.

O que leva a agir? apresenta-se como questão condutora para se compreender o social que ganha dinamismo e fluidez nas associações entre o que faz a diferença, sejam atores humanos ou não-humanos. Essa característica acaba por criar tensões com modos de produzir conhecimento demasiadamente humanos, voltados à intencionalidade e significância das ações humanas.

Se ação se limita ao que os humanos fazem de maneira 'intencional' ou 'significativa', não se concebe como uma coisa possa agir. [...] precisamos partir da controvérsia sobre atores e atos, qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença é ator – ou caso ainda não tenha uma figuração, um actante (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 108, grifo do autor).

A ANT propõe que o social, em especial nos problemas complexos e contemporâneos, não precisa ser explicado. O social demanda explicações na medida em que seguimos os atores e prestamos atenção às suas marcas e a quais associações sobre o mundo social podem ser feitas.

Nesse sentido, o autor propõe seguir os atores sem saltos explicativos, buscando identificar o que leva a agir (como um mediador, aberto a novas associações) ou que se apresenta enrijecido, estabilizado, a partir do qual não há possibilidades para novas conexões (como um intermediário). O ator, do Ator-Rede, é “[...] aquilo que muitos outros levam a agir”, que não se pode ter clareza de “[...] quem ou o quê está atuando quando as pessoas atuam” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 75).

Ao afirmar que “[...] nem a sociedade, nem o social existem”, Latour (2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 61) pontua que o social está mais próximo de um movimento que liga as coisas. Assim, para a ANT, o social não é “[...] um lugar, uma coisa, um domínio ou um tipo de matéria, e sim um movimento provisório de associações novas” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 341). Nesse sentido, a sociedade não é a causa de tais associações, mas consequência delas.

Para identificar o que leva a agir, o autor propõe que se identifiquem as “[...] entidades em circulação” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 339), não limitando nada e ampliando “[...] o leque de agentes aptos a participar do curso da ação” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 115). Para isso, trabalha com as informações em forma de mapa, forçando as conexões entre as entidades a viverem em um espaço achatado, pois “[...] quando passamos a localizar melhor aquilo que circula, conseguimos perceber muitas outras entidades cujo deslocamento mal era visível antes” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 295).

Assim, a ação passa a ser considerada como um acontecimento, como uma surpresa, que precisa ser demonstrada pelo que é observável, e que carrega controvérsias e incertezas sobre quem ou o que está levando a agir. Ao trabalhar as informações em um mapa, permite-se que tais controvérsias possam “[...] ser exploradas a fundo, por mais difíceis que sejam [...]” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 80), favorecendo o afastamento de qualquer “subdeterminação da ação” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 74, grifo do autor), seja uma determinação biológica (como as habilidades específicas dos indivíduos), psicológica (como o poder do inconsciente) ou social (como a sociedade).

Esse processo é aberto ao imprevisto e ao inusitado, elementos que favorecem a identificação de novas posições e associações. Entretanto, para fazer objetos serem vistos e descritos em suas ações, Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. lança mão de algumas estratégias: (a) estudar inovações, dada sua intensa atividade em locais acostumados a novos projetos; (b) tomar distância, espacial ou temporal, pois, ao interromper o curso normal de ação, outros atores são chamados a entrar em cena, e os objetos transformam-se mais facilmente em mediadores; (c) descrever situações nas quais ocorrem acidentes ou rupturas, pois os objetos, de intermediários, passam a agir intensamente – como em um terremoto; (d) trazer os objetos à tona novamente, como documentos, pois carregam história.

Para serem levados em conta, os objetos precisam ingressar nos relatos. Quando não deixam traços, não fornecem nenhuma informação ao observador e não produzem efeito visível em outros agentes (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 118-119).

Ao dar voz aos objetos, Latour oferece um novo lugar para a interobjetividade, tensionando-a para além do contexto local, introduzindo deslocamentos temporais múltiplos, “[...] alguém, de outro lugar e de outra época, ainda está agindo por meio de conexões indiretas, mas plenamente rastreáveis” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 283-284). Latour também pontua que a intersubjetividade se dá em conexão com a interobjetividade, pois o que é interno (subjetivo) e externo (objetivo) não são mais considerados em exclusividade, mas por meio das conexões.

O autor reconhece a dificuldade em se rastrear a circulação de subjetivadores, mas destaca que repousa nessa circulação a possibilidade de se produzir e de se apreender sujeitos e interioridades. “Tom de voz, expressão inusitada, aceno de mão, modo de andar, postura – também isso pode ser rastreado?” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 301).

Embora o autor abandone a ideia das estruturas explicativas ocultas, reconhece a existência de padrões estruturantes (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 283, grifo do autor), que circulam tanto por canais materializados, “[...] técnicas gráficas [...] engrenagens, alavancas e ligações químicas” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 283-284) como em tecnologias intelectuais. Tais padrões fornecem informações sobre o coletivo e precisam ser incorporados na descrição, como elementos que ajudam a desdobrar o local.

[...] relatos coerentes e completos podem tornar-se os pontos de vista mais cegos, mais locais e mais parciais, esses panoramas devem ser estudados cuidadosamente porque propiciam a única ocasião para ver a 'história total' como um todo. Suas visões totalizadoras não devem ser descartadas [...], mas sim acrescentadas [...] à multiplicidade de locais que queremos desdobrar (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 273).

Assim, o que vai sendo formado ao seguir os atores caracteriza-se como uma rede de conexões. Essa é justamente a definição de rede adotada por Latour, “[...] é o traçado deixado por um agente em movimento” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 194). Dado que tal conexão se estabelece ponto por ponto, torna-se possível seu rastreamento e seu registro empírico, afastando-se do risco de se apresentar apenas o contexto. Assim, atores acabam se constituindo como os elementos que atuam no mundo e se conectam em rede por diferentes “[...] veículos, traços, trilhas, tipos de informação” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 260), por meio dos quais algo é transportado, transferido.

Para Latour (2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 193), o vazio deixado entre o traçado é o que não sabemos sobre o social, o “[...] vazio é a chave para percorrer os raros condutos por onde o social circula”. O mundo social mostra-se instável e fluido, aberto ao risco e ao novo, na medida em que uma nova associação venha a ocorrer. Nessa direção, Latour pondera: “Significará isso que devemos levar a sério as diferenças palpáveis e, às vezes, estranhamente pequenas entre as muitas maneiras pelas quais as pessoas ‘realizam o social’? Temo que sim” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 62), assumindo a pluralidade de regimes de existência possíveis no mundo.

Assim, termos como sociedade, política e vida coletiva ganham novas definições. Sociedade assume a definição de um “[...] conjunto de entidades já reunidas – feitas de material social” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 112), enquanto coletivo se caracteriza como um projeto de “[...] juntar novas entidades ainda não reunidas e que, por esse motivo, obviamente não são feitas de material social” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 112).

A vida coletiva apresenta-se, assim, em construção, e a política é a “[...] composição progressiva da vida coletiva” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 68), que se dá em maior ou menor potência na medida em que se tem uma rede maior ou menor de conexões que leve a agir. Em qual direção? Para quem busca ampliar a participação no mundo, na direção da liberdade, que se trata da “[...] fuga a uma sujeição perversa, não na ausência de sujeições” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 329).

Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. propõe que compreender o que leva a agir pode desvelar elementos que sujeitam (perversamente) ou sujeitificam as pessoas. Entretanto, a decisão sobre essa qualificação recai sobre os próprios atores. Assim, qualquer perspectiva de emancipação estaria distante da ideia de libertar as pessoas do que as acorrenta, mas próxima da ideia de construir e ampliar vinculações que favoreçam ao sujeito participar da vida comum, pois, para ele, “[...] emancipação [...] não significa ‘libertando de laços’, mas bem-vinculado” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 313).

Para isso, Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. aposta na liberdade dos próprios atores para definir e ordenar o social, para viver o seu mundo. Analistas/pesquisadores possuem então a tarefa de rastrear as conexões entre as controvérsias, sem buscar soluções, mas investigando o modo como o mundo dos atores é estabelecido.

A busca de ordem, rigor e padrão não é de modo algum abandonada, apenas reposicionada um passo à frente sob a forma de abstração, para que os atores possam desdobrar seus próprios e diversos cosmos, pouco importa quão irracionais pareçam (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 44)

4 Diálogos

Para dialogar com Benetton e Latour para uma proposta de compreensão da inserção social, elegemos dois pontos: a) o empirismo como eixo da produção de conhecimento: como saber sobre a inserção social?; e b) estratégias de construção da inserção social.

O modo de produzir conhecimento da ANT e do MTOD possui pontos de aproximação. Tanto Benetton (2005)Benetton, J. (2005). Além da opinião: uma questão de investigação para a historicização da terapia ocupacional. Revista CETO, 9, 4-8. como Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. adotam Stengers (2002)Stengers, I. (2002). A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. como referência na Sociologia das Ciências e propõem que o conhecimento seja construído passo por passo, sem antecipações e interpretações invisíveis, coletando indícios que podem ser reunidos para futuras compreensões. Eles propõem primeiramente observar e não compreender, principalmente porque transitam “[...] por um terreno ao mesmo tempo inteiramente banal – o mundo social a que estamos acostumados – e completamente exótico” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 38).

Para a ANT, é necessário o desdobramento das controvérsias pela descrição do que é captável e das associações que se estabelecem entre o que leva a agir; pela estabilização, que consegue explicar o que é demandado pelo social; e pela busca da influência política, para fazer com que esse novo conjunto de entidades possa ser reunido ao coletivo. Para o MTOD, a prática como objeto de estudo possibilita um modo de praticar-investigar para identificar novos fenômenos que demandem por explicações, abrindo espaço para que o novo possa surgir.

Benetton (1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., 2010Benetton, J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na terapia ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12, 32-39.) manteve o social aberto, particularizando concepções do que é ser saudável e do que é estar inserido socialmente “[...] como possibilidade do sujeito ser, estar, fazer e se relacionar a seu modo no social” (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 146). O que é social passou a ser dependente do que está à volta – sua proposta de construção diagnóstica é situada.

Entretanto, há uma clara distinção em jogo. Bruno Latour constrói a Sociologia das Associações para compreender o que leva a agir que constitui tal movimento dinâmico e fluido que é o social. Jô Benetton, interessada em como levar a agir sujeitos paralisados na vida social, constrói um método. Ambos propõem seguir os atores, descobrem que os elementos não humanos agem, e que se produz movimento (dinâmico, fluido, mas rastreável) nas conexões que vão se estabelecendo pelo que está a agir.

Todas as informações passíveis de serem obtidas, por diferentes meios, são organizadas e mapeadas de modo descritivo ou gráfico – o espaço achatado de Latour, o diagnóstico situacional de Benetton. Esse mapa permite melhor compreender as conexões entre os diferentes atores.

Para Latour, tal diagrama possibilita a identificação do que está levando a agir, do que se constitui como um mediador ou intermediário, do que pode estar sendo transportado pelos diferentes meios que conectam os atores, de qual rede vai sendo formada. Para Benetton, esse mapa permite analisar, sempre de modo hipotético, o que favorece a ação do sujeito ou o que o impede de agir – para alimentar um raciocínio que é analítico e associativo.

Se assumirmos que o objetivo da terapia ocupacional é a inserção social, Benetton propõe que ela aconteça por meio da ampliação de espaços de saúde, das atividades sob o status de serem “saudáveis”. Latour parece seguir caminhos similares quando aborda a “emancipação social” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 80) como a ampliação da rede de conexões que leve a agir e que se afaste de sujeições perversas, mantendo a qualificação dada pelos próprios atores.

Assim, seria possível apreender processos de inserção social ao identificar como um coletivo estaria sendo construído, na medida em que o mapa recebe novas conexões que incluem elementos, até então não sociais (ainda não reunidos na sociedade), que começam a participar do cotidiano dos sujeitos e forçam, assim, uma relação com o que já está formatado?

Para além disso, o diálogo entre Benetton e Latour pode avançar, pois há inserções sociais que demandam ações profissionais – terapeutas ocupacionais agem!

E também as atividades! Benetton sempre observou o potencial das atividades para levar os sujeitos a agirem. O movimento dinâmico entre os três termos da relação triádica é foco de análise da(o) terapeuta ocupacional para favorecer com que o sujeito alvo possa fazer. Será esse movimento dinâmico rastreável?

A(O) terapeuta ocupacional trabalha na relação triádica manejando as atividades (ao ensinar, conversar e refletir sobre as atividades) e os afetos da relação. A análise dos afetos circulantes na relação triádica possibilita ações que possam transformá-los, de modo que emoções e sentimentos sejam transportados – da(o) terapeuta para o sujeito alvo como um afeto de acreditar em seu desenvolvimento; e do sujeito alvo para a(o) terapeuta ocupacional como afeto de quem deseja aprender e se desenvolver (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.). Nesse processo, as experimentações na relação triádica favorecem com que o sujeito alvo possa se conhecer: suas habilidades, limitações, gostos, desgostos, seu modo de se relacionar, o que o ajuda a agir no mundo e o que lhe paralisa.

Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas. compreende a necessidade de maior integração entre pensar e fazer e descobre que a análise das atividades realizadas favorece o surgimento de associações sobre o fazer (fatos vividos e sentidos construídos), abrindo espaço para o diálogo. Nessa conversa, a(o) terapeuta ocupacional mostra aspectos, muitas vezes não percebidos, sobre o jeito singular de ser, fazer e de se relacionar do sujeito alvo, visando a construção de novos sentidos.

Nas Trilhas Associativas (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.), utilizam-se vários dos truques sugeridos por Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba. para fazer os objetos falarem: 1) trazer de volta os objetos ao organizar todas as atividades realizadas; 2) analisar as atividades em uma distância temporal, permitindo ao sujeito dimensionar conjunto de atividades em uma ideia que as une; 3) utilizar-se de “[...] acidentes, rupturas e golpes” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 121) e também do que aparece/apareceu como novo, ainda não compreendido, ativando “[...] o que você não via antes” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 298).

A composição das Trilhas Associativas também deixa um traçado que integra interobjetividades e intersubjetividades – fenômeno que também pode ser melhor investigado à luz da ideia da rede, como proposto por Latour, do “[...] traçado deixado por um agente em movimento” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., p. 194)? Mapear tal traçado poderia nos fornecer mais informações sobre o que está levando a agir ou a não agir?

Para o MTOD, é essencial que os sentidos possam ser construídos pelos sujeitos e que as hipóteses da(o) terapeuta ocupacional possam ser referendadas ou reformuladas, para que se possa continuar, finalizar ou rever insucessos. A medida tem a ver com a ampliação de espaços de saúde no cotidiano, que demonstrem maior inserção social do sujeito alvo.

Nesse processo, o reconhecimento de si abre caminho para a inserção social, em um movimento que demanda ser ativo, fazer um movimento na direção do social. As conexões com coisas e pessoas vão sendo ampliadas na direção do que faz bem, compondo o que Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas. nomeia como espaços potenciais de saúde.

Entretanto, considerando as ponderações de Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba., há muitas entidades já reunidas que compõem a sociedade e padrões estruturantes que precisam ser incorporados aos relatos, como elementos a mais que alimentam as controvérsias sobre o que leva a agir. Para Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., todas as descrições em torno da vida do sujeito são chamadas a dimensionar o que age em sua vida, incluindo relatos sobre padrões estruturantes.

[...] situação socioeconômica [...] impossível. Eles não têm apoios [...] seus familiares na maior parte das vezes estão preocupados em encontrar seus próprios empregos. Por isso, é frequente, inclusive, a aceitação da esquisitice, da passividade e mesmo das crises curadas com remédios desse paciente que tem por emprego, afinal, ficar trancado no barraco cuidando para que ele não seja assaltado. [...] (Benetton, 1994Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., p. 111).

O diagnóstico situacional favorece a identificação de como mediadores humanos (pessoas que convivem com o sujeito alvo) e não humanos (mobiliário, estruturas dos edifícios, leis) (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. Salvador: Edufba.) agem, e se/como paralisam o fazer do sujeito. Mediadores passíveis de intervenções para transformações que levem o outro a agir.

Assim, é o sujeito inteiro que se apresenta para se pensar ações em terapia ocupacional, em uma realidade que não é somente dele, é nossa realidade! Se nós, como terapeutas ocupacionais, trabalhamos para ampliar os espaços de saúde em um cotidiano feito de mediadores que mais levam à inatividade, tais mediadores também precisam ser alvo de nossa reflexão e de nossas ações.

Assim, além de se conhecer, o sujeito alvo precisa fazer-se conhecer, ser reconhecido. Embora ações em terapia ocupacional possam ser diretamente direcionadas à comunidade, em uma perspectiva colectivista (Malfitano et al., 2019Malfitano, A. P. S., Whiteford, G., & Molineux, M. (2019). Transcending the individual: the promise and potential of collectivist approaches in occupational therapy. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 1-13. http://dx.doi.org/10.1080/11038128.2019.1693627.
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), transformações na composição do coletivo são guiadas pelas necessidades de reconhecimento social desse sujeito, de sua diferença. Assim, não há aqui proposta de adaptar-se a um social degradado, pois é na ação política do sujeito que repousa a composição da vida coletiva.

Desse modo, propomos pensar a inserção social em construção, no movimento dinâmico, fluido e instável do social, por meio de processos ativos de participação dos sujeitos na construção do coletivo. Ao considerar as questões de reconhecimento da diferença e distribuição econômica como os pilares para se pensar a inserção social (Fraser, 2007Fraser, N. (2007). Reconhecimento sem ética? Revista Lua Nova, 70, 213-222.), reconhecemos limitações da terapia ocupacional em atuar diretamente na redistribuição econômica. Podemos, sim, concordar com Algado (2012)Algado, S. S. (2012). Terapia Ocupacional eco-social: hacia una ecologia ocupacional. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 7-16. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2012.001.
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, ao assumirmos o compromisso da construção de comunidades inclusivas e sustentáveis, mas nossa contribuição mais direta parece ser a do reconhecimento social da diferença.

E, nesse sentido, a receita encontrada por Benetton (1994)Benetton, J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., de que é preciso fazer como resposta a complicadas demandas, talvez possa ser mais explorada em busca da ampliação das possibilidades da vida.

5 Considerações Finais

Este ensaio buscou apresentar reflexões para a compreensão de fenômenos em torno da temática da inserção social no diálogo com dois autores que caminham pela construção de conhecimento como um processo empírico, dinâmico e aberto ao novo – Jô Benetton e Bruno Latour. O novo é o que Benetton espera alcançar com as pessoas assistidas em terapia ocupacional, em sua aposta de que é preciso fazer e deixar-se guiar pelo que brotará nesse percurso. Nossa aposta aqui é a de que a ANT de Latour possa nos ajudar a refinar as possibilidades de encontrar o novo, para a clínica e para a pesquisa em terapia ocupacional.

Foram muitos os pontos de conexão entre as obras, e o texto buscou levantar pontos para discussão que fomentem reflexões e que ofereçam abertura para futuras investigações. Entretanto, o eixo condutor foi a proposição do MTOD para uma terapia ocupacional dinâmica, fluida, processual.

Damos destaque para processos desenhados em redes de conexões: a composição diagnóstica (situacional e processual); a intervenção centrada no movimento dinâmico da relação triádica; e a avaliação pelas Trilhas Associativas, no dinamismo do processo de construção de sentidos que integra objetividades e subjetividades. Aspectos delineados pela investigação empírica, mas sempre abertos a novas explorações, as quais podem se dar em uma parceria frutífera com a ANT.

Seguir os atores (humanos e não-humanos), deixá-los livres em suas ações e assumir responsavelmente a reflexão, o diálogo e a intervenção em torno do que limita as ações e limita a vida são aspectos que este ensaio buscou destacar para se pensar processos de inserção social. Conceito que se assume no movimento dinâmico, fluido e instável do social, por meio de processos ativos de participação dos sujeitos na construção do coletivo.

  • Como citar: Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araújo, A. S. (2020). Diálogos com Benetton e Latour: possibilidades de compreensão da inserção social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional. Ahead of Print. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032
  • Fonte de Financiamento Este estudo foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio da concessão de bolsas de estudo de mestrado, para Ana Carolina Carreira de Mello (2017-2019) e doutorado para Angélica da Silva Araújo (2018), além do financiamento CAPES – Código 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2019
  • Revisado
    05 Fev 2020
  • Aceito
    01 Jun 2020
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