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EFEITOS POLÍTICOS DA TERCEIRA OFENSIVA NEOLIBERAL NA BOLÍVIA E NO BRASIL

POLITICAL EFFECTS OF THE THIRD NEOLIBERAL OFFENSIVE IN BOLIVIA AND BRAZIL

EFFETS POLITIQUES DE LA TROISIÈME OFFENSIVE NÉOLIBÉRALE EN BOLIVIE ET AU BRÉSIL

Resumos

Neste artigo, nosso objetivo foi o de descrever e analisar o que chamamos de efeitos políticos da terceira ofensiva neoliberal na América Latina, período que corresponde, em geral, à fase inaugurada pelos desdobramentos da crise econômica de 2007-2008 que atingiu governos progressistas na região. A partir dos casos boliviano e brasileiro, indicamos que os efeitos políticos mais salientes dessa nova ofensiva neoliberal se expressam por engendrar golpes de novo tipo, com certo grau de observância de mecanismos legais, e por fomentar a constituição de movimentos de massa reacionários típicos de processos de fascistização. Da análise dos dois casos, argumentamos que uma exigência do golpismo de novo tipo é obter uma participação mais ativa, constante e ideologicamente coesa de suas bases sociais, de forma a conferir legitimidade às investidas excepcionais de poderes de Estado a decisões estabelecidas pelo sufrágio universal. A politização dessa base social não se faz, contudo, apenas com a “razão neoliberal”. A atualização do discurso anticomunista, a defesa da moral conservadora cristã e a disputa cultural em torno da identidade do “povo-nação” têm potencializado movimentos reacionários de massa, seja nas redes sociais ou nas ruas, que configuram, ainda que de forma não autodeclarada, um campo neofascista nessa complexa conjuntura.

Neoliberalismo; Neofascismo; Crise política; Eleições; Bolívia; Brasil


The aim of this article is to describe and analyze what we call the political effects of the third neoliberal offensive in Latin America, which is defined as a period that corresponds, in general, to the phase inaugurated by the consequences of the 2007-2008 economic crisis that affected progressive governments in the region. Based on Bolivian and Brazilian cases, we indicate that the most salient political effects of this new neoliberal offensive are expressed by engendering coup d’état of a new type, with a certain degree of observance of legal mechanisms, and by fostering the constitution of reactionary mass movements typical of fascistization processes. From the analysis of the two cases, we argue that a requirement of the new type of coup d’état is to obtain a more active, constant and ideologically cohesive participation of its social bases, in order to give legitimacy to the exceptional attacks of state powers on decisions established by universal suffrage. However, the politicization of this social base is not only built by a “neoliberal reason”. The updating of the anti-communist discourse, the defense of conservative Christian morality and the cultural dispute over the identity of the “nation-people” have boosted reactionary mass movements, whether on social networks or in the streets, which leads, albeit in an undeclared way, to a neo-fascist camp in this complex conjuncture.

Neoliberalism; Neofascism; Political crisis; Elections; Bolivia; Brazil


Dans cet article, notre objectif était de décrire et d’analyser ce que nous appelons les effets politiques de la troisième offensive néolibérale en Amérique latine, une période qui correspond, en général, à la phase inaugurée par les développements de la crise économique de 2007-2008 qui a frappé les gouvernements progressistes de la région. À partir des cas bolivien et brésilien, nous indiquons que les effets politiques les plus marquants de cette nouvelle offensive néolibérale s’expriment en engendrant de nouveaux types de coups d’État, avec un certain degré de respect des mécanismes légaux, et en favorisant la constitution de mouvements de masse réactionnaires typiques des processus fascistes. En analysant les deux cas, nous soutenons que l’une des exigences du nouveau type de coup d’État est d’obtenir une participation plus active, constante et idéologiquement cohérente de ses bases sociales, afin de donner une légitimité aux attaques exceptionnelles des pouvoirs d’État contre les décisions établies par le suffrage universel. La politisation de cette base sociale ne se fait cependant pas uniquement par la «raison néolibérale». L’actualisation du discours anticommuniste, la défense de la morale chrétienne conservatrice et la dispute culturelle sur l’identité du «peuple-nation» ont stimulé les mouvements réactionnaires de masse, que ce soit sur les réseaux sociaux ou dans la rue, qui configurent, bien que de manière non déclarée, un camp néo-fasciste dans cette situation complexe.

Néolibéralisme; Néofascisme; Crise politique; Élections; Bolivie; Brésil


INTRODUÇÃO

Nos últimos quinze anos, a América Latina presenciou uma nova fase de sucessivos processos de instabilidade e de crise políticas. Trata-se, por certo, de um quadro complexo e multifacetado, cujas intensidade e temporalidade variam de acordo com os diferentes quadros institucionais, sistemas partidários e dinâmica própria dos conflitos sociais de cada país.

Em que pesem essas variações, uma tendência se destaca: a tentativa de reeditar partes essenciais do modelo neoliberal1 1 Modelo que é apresentado como solução à crise criada pelo próprio neoliberalismo em nível global em 2007-2008: abertura comercial ao capital estrangeiro e diminuição de regulação sobre capital financeiro; privatizações e desnacionalizações – recursos naturais, energéticos e serviços; políticas de “austeridade” para conter gasto público e reformas regressivas em legislações trabalhistas, previdenciárias e sociais. contra governos de esquerda reformista ou neodesenvolvimentista combina-se com movimentos reacionários, contribuindo assim para desestabilizar e/ou esvaziar de conteúdo instituições e regras do regime democrático. Embora possa ainda se viabilizar em certos contextos por via eleitoral, essa ofensiva recorre de maneira frequente ao expediente de golpe de Estado,2 2 Operamos com um conceito de golpe de Estado que leva em consideração três dimensões indissociáveis e que considera a primeira delas o aspecto determinante e detonador das demais dimensões, a saber: a) a primeira dimensão diz respeito às disputas entre as frações da classe dominante pelo controle da política estatal – força dirigente do golpe; b) a segunda refere-se aos agentes burocráticos ou de representação política que executaram o golpe – força perpetradora do golpe; e c) a terceira designa os meios empregados pelas forças golpistas para atingir o objetivo de destituir o atual mandatário – uso da violência/uso casuístico das leis, etc. Para um tratamento mais teórico do conceito de golpe de Estado ou para um debate crítico com as teses sobre o neogolpismo na América Latina, ver Martuscelli (2018, 2024). ainda que, nessa nova fase, a deposição de determinados governos eleitos seja feita com algum grau de observância formal de dispositivos legais.

Neste artigo, temos como objeto dois casos emblemáticos do que iremos sugerir como efeitos políticos da terceira ofensiva neoliberal na América Latina. Bolívia e Brasil viveram ciclos relativamente extensos de governos progressistas que, eleitos democraticamente – principalmente pelo peso do sufrágio das classes populares –, buscaram realizar modalidades distintas de reforma no modelo de capitalista neoliberal legado por antecessores. Ambos enfrentaram um golpismo de novo tipo – 2016 no Brasil e 2019 na Bolívia – que não visava a mudança de regime político – de regimes democráticos para ditatoriais, tal como se sucedeu nos anos 1960 e 1970 na região. Trata-se de mudanças no regime político democrático viabilizadas pelo crescimento do ativismo do Judiciário via lawfare – radicalização do uso de dispositivos excepcionais que limitam o direito de defesa e presunção de inocência – ou pela ascensão das Forças Armadas ou de forças de segurança – polícias nacionais ou militares – na cena política e no interior do aparato estatal ocupando cargos antes designados a civis.

Da análise dos dois casos, argumentamos que uma exigência do golpismo de novo tipo é obter uma participação mais ativa, constante e ideologicamente coesa de suas bases sociais, de forma a conferir legitimidade às investidas excepcionais de poderes de Estado a decisões estabelecidas pelo sufrágio universal. A politização dessa base social não se faz, contudo, apenas com a “razão neoliberal”. A atualização do discurso anticomunista, a defesa da moral conservadora cristã e a disputa cultural em torno da identidade do “povo-nação” têm potencializado movimentos reacionários de massa, seja nas redes sociais ou nas ruas, que configuram, ainda que de forma não autodeclarada, um campo neofascista nessa complexa conjuntura.

Procuramos, então, desenvolver uma análise, ainda que não exaustiva, das crises e instabilidades políticas que marcaram as conjunturas boliviana e brasileira recentes, de modo a identificar causas e tendências que também podem se mostrar pertinentes à análise geral dos efeitos políticos da terceira ofensiva neoliberal na América Latina como um todo.3 3 Em outro artigo, analisamos, à luz da teoria política poulantziana, como movimentos reacionários de massas, enraizados principalmente nas classes médias, se reorganizaram e causaram efeitos desestabilizadores no cenário político pós-crise econômica mundial de 2007-2008. De forma ilustrativa, indicamos alguns traços comuns desse processo em países como Estados Unidos, França, Itália, Brasil e Bolívia. Ver: Cavalcante e Martuscelli (2023).

QUAIS ASPECTOS SINGULARIZAM A TERCEIRA OFENSIVA NEOLIBERAL EM COMPARAÇÃO ÀS ANTERIORES?

A primeira ofensiva é, na verdade, aquela que fez da região o solo histórico dos primeiros laboratórios neoliberais em todo o mundo. Viabilizada pela eliminação da oposição política, repressão de movimentos sociais e sindicatos e poder autocrático de controle das instituições, o neoliberalismo emergiu, na década de 1970, com as ditaduras de Augusto Pinochet no Chile e Jorge Videla na Argentina.

A segunda ofensiva do neoliberalismo se constituiu entre meados dos anos 1980 e início da década de 1990 com as vitórias eleitorais de Víctor Paz Estenssoro na Bolívia, Carlos Salinas no México, Carlos Menem na Argentina, Carlos Andrés Perez na Venezuela, Alberto Fujimori no Peru e Fernando Collor de Mello no Brasil, vindo a se espraiar e se consolidar em vários países latino-americanos nos anos seguintes.4 4 Para uma análise panorâmica desse processo inicial, ver: Anderson (1995). Tal processo emerge em um contexto de crise dos governos desenvolvimentistas na região, de dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e de crise do movimento socialista internacional e de estabelecimento e consolidação da hegemonia político-ideológica internacional dos Estados Unidos da América (EUA). Embora com desfechos distintos, essa segunda onda de governos neoliberais se efetivou pela via do sufrágio universal e buscou constituir uma hegemonia, em sua maior parte, dentro das regras do jogo, ainda que tal [...] hegemonia se definisse como “regressiva, passiva e instável”[...] (Boito Júnior, 2002, p. 26).

Essa tendência cedeu lugar, primeiramente, a um cenário de derrotas eleitorais sucessivas de candidaturas neoliberais no início dos anos 2000, garantindo a formação de governos progressistas que lograram questionar de algum modo as versões mais ortodoxas do neoliberalismo – a chamada “onda rosa” na América Latina. Os casos aqui analisados representam, de certa forma, duas modalidades de resistência na região: a forma mais abertamente antineoliberal, anti-imperialista e ancorada em movimentos de massa que radicalizaram a disputa sobre o conteúdo da ideia de “povo-nação” – como, além de Bolívia, Equador e Venezuela – e a forma mais moderada, mais institucional e conciliatória do que mobilizadora, como, além de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.5 5 Para um exame abrangente do ciclo de governos que resistiram ao neoliberalismo na América Latina entre o final dos anos 1990 e a primeira década dos anos 2000, ver: Klachko e Arkonada (2017) e Ouviña e Thwaites Rey (2018).

Em decorrência desse quadro, a terceira ofensiva neoliberal na América Latina caracteriza-se: a) pelo “dobrar de aposta” nos princípios neoliberais de modo a se apresentar como solução a problemas supostamente criados apenas pelo viés reformista e/ou desenvolvimentista de governos de esquerda, ocultando desdobramentos estruturais da crise de 2007-2008, sendo dirigida politicamente pelo capital financeiro internacional e pelas burguesias locais a ele associadas; b) pela organização de think tanks, grupos e movimentos sociais que se valem de protestos de rua e sistemas de agitação e propaganda próprios em redes sociais, os quais mobilizam especialmente a classe média e a pequena burguesia; c) pela aposta na combinação da “razão neoliberal” com fundamentos morais de religiosidade cristã conservadora no intuito de alcançar base social também entre classes populares; d) pelo esvaziamento, quando necessário, do conteúdo de instituições e regras da democracia liberal e do sufrágio universal,6 6 Nesse caso, via questionamento dos resultados ou denúncias contra supostas fraudes eleitorais. de modo a fazer com que os golpes de Estado sejam tratados como legítimos em razão de algum grau de observância da legalidade vigente.

Em países como Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016), Bolívia (2019) e Peru (2022), as coalizões políticas que representavam de maneira mais forte essa ofensiva recorreram ao expediente de golpes de Estado, com gradações distintas em termos da observância formal e seletiva de dispositivos legais para justificar a interrupção de governos democraticamente eleitos. Tal expediente foi adotado em outros contextos, mas sem sucesso imediato, como nos indicam os casos dos golpes fracassados na Argentina e na Bolívia (2008), no Equador (2010), na Venezuela (2019) e no Brasil (2023)BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Brasília, DF, 2023. Disponível em: https://dadosabertos.tse.jus.br/. Acesso em:
https://dadosabertos.tse.jus.br/...
.7 7 Vale também lembrar que, antes de 2007-2008, dois governos progressistas latino-americanos sofreram golpes de Estado dirigidos por forças ligadas ao imperialismo estadunidense e ao neoliberalismo ortodoxo. Foram eles: Hugo Chávez na Venezuela em 2002 e Jean-Bertrand Aristide no Haiti em 2004. Em outros contextos, a vitória pelas urnas foi possível com: Maurício Macri na Argentina (2015), Jair Bolsonaro no Brasil (2018), Luis Lacalle Pou no Uruguai (2019), Guilherme Lasso no Equador (2021) e, mais recentemente, Daniel Noboa no Equador e Javier Milei na Argentina, ambos eleitos em 2023.

Importantes contratendências também podem ser observadas como resposta a essa terceira ofensiva neoliberal, entre as quais destacamos: a) as vitórias eleitorais de candidatos identificados com o espectro progressista de crítica ao neoliberalismo ortodoxo no período de 2018 a 2022, tais como: López Obrador no México, Alberto Fernández na Argentina, Luis Arce na Bolívia, Pedro Castillo no Peru, Xiomara Castro em Honduras, Gabriel Boric no Chile, Gustavo Petro na Colômbia e Lula da Silva no Brasil; b) as lutas de massa com forte componente antineoliberal no Equador, na Colômbia e no Chile – os chamados estallidos sociales; e c) as resistências populares e de governos da Bolívia, de Cuba e da Venezuela às investidas do imperialismo estadunidense.

Por fim, seria importante considerar uma variação do modelo neoliberal, mais forte nas economias centrais e ainda incipiente na América Latina, que diz respeito ao que Nancy Fraser (2020)FRASER, N. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica (com Nancy Fraser e Rahel Jaeggi). São Paulo: Boitempo, 2020. designou de neoliberalismo progressista, ou seja, a incorporação – ou cooptação – seletiva da politização progressista da diferença – de gênero, raça, sexualidade, ecologia etc., desvinculada de direitos sociais do trabalho, por exemplo, no intuito de ampliar a legitimidade da própria lógica neoliberal de grandes corporações capitalistas. Essa variação, embora tenha sido relevante na contenção do processo golpista do Brasil em 2023BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Brasília, DF, 2023. Disponível em: https://dadosabertos.tse.jus.br/. Acesso em:
https://dadosabertos.tse.jus.br/...
, se mostra frágil em termos de representação partidária e de base social, mas talvez possa ser o indício de uma alternativa, dentro do modelo neoliberal, às tendências aqui descritas.

O CASO BOLIVIANO

Após a política boliviana passar por um processo de agudização dos conflitos sociais decorrentes das lutas de massa populares contra a privatização da água e do gás no início dos anos 2000, as eleições presidenciais de 2005 deram vitória a Evo Morales, que foi uma das mais destacadas lideranças indígenas desse processo. Em seus primeiros quatro/cinco anos, o governo Morales foi marcado: a) por iniciativas abrangentes de estatização e nacionalização de setores estratégicos da economia, ainda que pese a dificuldade de superarem a posição de economia de enclave, muito alicerçada no setor minerador e energético, cujo processo permitiu a emergência da burguesia nacional de Estado como força social, que passou a assumir o controle das principais empresas estatizadas; b) por um discurso oficial claramente crítico do imperialismo estadunidense, resultando, ainda em 2008, no rompimento da relação de cooperação do governo boliviano com a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão de combate às drogas ligado ao Departamento de Justiça do governo dos EUA e na expulsão do país do embaixador estadunidense, Philip Goldberg, ambos acusados de participarem de conspiração golpista contra o governo do Movimiento al Socialismo – Instrumento por la Soberanía de los Pueblos (MAS-IPSP)8 8 Cinco anos depois, pelas mesmas razões, o governo Morales determinou a saída do país da United States Agency for International Development (USAID), órgão do governo dos EUA supostamente responsável por dar apoio externo aos países, mas que desde sua criação tem fomentado uma política de desestabilização de governos progressistas, de apoio a ditaduras e a governos democráticos neoliberais na América Latina. ; e c) pela implementação do novo constitucionalismo, que procurou criar e ampliar mecanismos de participação popular nos processos de implementação da política estatal, vindo a estabelecer uma série de direitos e resultando na construção de uma nova forma de Estado, e/ou que permitiu a construção do chamado Estado plurinacional que passou a reconhecer e conceder aos povos indígenas e aos camponeses uma série de direitos e participação em diferentes níveis das representações burocrática e política, e direitos sociais9 9 Lalander (2014) trata das tensões existentes entre a defesa constitucional dos direitos à natureza e de povos indígenas e o modelo extrativista boliviano. .

No período de 2009 a 2016, a Bolívia viveu sob relativa estabilidade política,10 10 Para uma discussão do conceito de golpe de Estado, ver: Martuscelli (2018). Para uma crítica das análises formalistas orientadas pela problemática institucionalista que tendem a invisibilizar os golpes de Estado ocorridos na América Latina no período contemporâneo, ver: Boron (2010), Martuscelli (2020a) e Vitullo e Silva (2020). tendo em vista que a oposição de direita recuou na hostilização e radicalização das ações contra o governo Morales – comportamento político que marcou profundamente a crise boliviana em 2008-2009. No período seguinte, o governo Morales tentou inclusive se aproximar de segmentos das classes dominantes ligados à região da Media Luna, através da organização de Fóruns de Concertação Nacional com grupos empresariais e da adoção de medidas que visavam atender seus interesses econômicos (Cunha Filho, 2018). Tais aproximações foram questionadas por movimentos indígenas e camponeses e deram início a sucessivos conflitos entre o governo Morales e tais movimentos. O conflito mais emblemático desse processo foi o que envolveu o governo e os movimentos indígenas, em particular aqueles que residiam no Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS) (Cunha Filho, 2018).11 11 Tal processo engendrou cisões na relação do governo Morales com os movimentos indígenas, o que contribuiu em alguma medida para enfraquecê-lo e distanciá-lo de certos movimentos que antes estavam abrigados em sua base de sustentação política. No entanto, tais conflitos não produziram o impacto gerado pela crise política de 2008 sobre o processo político boliviano.

No que se refere à situação da economia boliviana no período de 2009 a 2016, é possível também observar relativa estabilidade, como atestam os dados sobre as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que só decaem no ano do golpe de 2019, mas mesmo assim mantêm-se em níveis superiores aos apresentados pela média alcançada pelo Brasil e pelo conjunto dos países da América Latina e do Caribe no período de 2008 a 2019, conforme indica o Gráfico 1.

Gráfico 1
– Taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) total anual – 2008-2019 – (%)

Apesar de passar por um ano de queda do crescimento do PIB em 2019, a Bolívia não havia enfrentado de fato um processo de recessão econômica que pudesse ser explorado pela oposição de direita como trunfo para organizar suas mobilizações. Nesse caso, a crise política não se sincronizou com uma crise econômica, de forma a criar os mesmos efeitos explosivos gerados no Brasil.

A incapacidade hegemônica da coalizão oposicionista e o ponto de não retorno da crise política

Quais fatores imediatos contribuíram para a deflagração da crise política boliviana que resultou no golpe de Estado contra Morales e no processo de fascistização? E que relações tais fatores possuem com aspectos históricos constitutivos do conflito de classe na formação social boliviana – em especial com as sucessivas e reiteradas intervenções das potências imperialistas no processo político boliviano12 12 No caso boliviano, as tentativas de golpes contra governos democraticamente eleitos, a implementação de ditaduras militares, a aplicação de políticas de Estado de caráter antipopular e antinacional e a inviabilização política e econômica de governos progressistas, seja o do Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) – 1952-1964 – ou do MAS-IPSP, sempre contaram com a conivência e/ou apoio aberto das potências imperialistas, em particular dos Estados Unidos. e com o histórico conflito regional que envolve o poder subnacional das classes dominantes da região da Media Luna, dirigido pelo departamento de Santa Cruz e apoiado pelos departamentos de Tarija, Beni e Pando13 13 Como observa Cunha Filho (2018, p. 137): “Até a promulgação da Constituição de 2009, os governos departamentais eram chamados de prefecturas e até 2005 eram nomeados diretamente pelo presidente boliviano, quando então um acordo legislativo para a convocação de eleições gerais antecipadas daquele ano estabeleceu a realização da consulta popular e nomeação pelo presidente, do candidato mais votado. Após a promulgação da nova carta magna, os então prefectos passaram a ser nomeados governadores, com a primeira eleição constitucional direta realizando-se em 2010”. – e o poder central dirigido pela burguesia nacional de Estado?

A incapacidade hegemônica é um dos traços característicos da posição ocupada pela coalizão oposicionista de classes situada na região da Media Luna desde que o MAS-IPSP assumiu o governo boliviano em 2006. Duas foram as tentativas de golpe arquitetadas por tal coalizão, 2008 e 2019, sendo a última bem-sucedida, mas logo revertida após a ocorrência de sucessivas mobilizações massivas e bloqueios de estradas organizados por forças do campo político do MAS-IPSP, exigindo novas eleições e contrariando a política do governo de fato que fez uso do argumento da crise sanitária para postergar a realização das eleições. Tal processo culminou com o retorno do MAS-IPSP ao governo nacional e a vitória de Luis Arce com 55,1% nas eleições de outubro de 2020, distando cerca de 26% do segundo colocado.

Tal coalizão oposicionista possui as seguintes características: a) se constrói historicamente pela via da organização dos Comitês Cívicos, especialmente o de Santa Cruz que se tornou uma espécie de comitê central dos comitês cívicos (Bejarano, 2023BEJARANO, S. Comité Cívico Cruceño: movimento social de las élites. Programa Desacuerdo, [s. l.], 12 fev. 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TrDqgVzHmws&t=2s. Acesso em: 4 jun. 2023.
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) e possui uma reduzida inserção no plano partidário, vindo a se articular historicamente como grupo de pressão – tendência já destacada por Bowen (2014)BOWEN, J. D. The right and non party forms of representation and participation: Bolivia and Ecuador compared. In: LUNA, J. B.; KALTWASSER, C. R. (org.). The resilience of the Latin American right. Baltimore: John Hopkins University Press, 2014. p. 94-116.; b) tem obtido fraquíssimo desempenho eleitoral, não logrando assim constituir-se como força política capaz de vencer eleitoralmente o MAS-IPSP nas disputas presidenciais, de obter maioria nos governos de departamentos e municipais e nas representações parlamentares nos níveis nacional, departamental e municipal. No caso dos governos dos departamentos, as únicas exceções são Santa Cruz e Tarija, onde, nas quatros eleições realizadas no período de 2005 a 2021, o MAS-IPSP jamais conseguiu se consagrar como vitorioso nas urnas.14 14 Desde 2010, o MAS-IPSP se constituiu como a segunda principal força nas eleições ao governo do departamento de Santa Cruz, perdendo assim no primeiro turno para os diferentes partidos que encabeçaram no nível local a coalizão oposicionista ao governo nacional (Atlas Electoral de Bolívia, 2023). Em outros departamentos, o predomínio eleitoral da coalizão oposicionista sempre foi mais instável, tendo o MAS-IPSP vencido ao menos uma eleição departamental entre 2005 e 2021 em Beni, Chuquisaca, Cochabamba, La Paz, Oruro, Pando e Potosí; c) está orientada por um programa neoliberal ortodoxo e reúne entidades representativas dos interesses das burguesias comerciais e agrárias locais associadas ao imperialismo, o que a leva a agir como uma espécie de correia de transmissão dos interesses imperialistas dos EUA no país e a lutar contra a estatização dos recursos minerais e energéticos, demarcando-se com uma força política de oposição aos interesses da burguesia nacional de Estado e à constituição de um “capitalismo de Estado de tipo periférico” (Durán Gil, 2008DURÁN GIL, A. Bolívia: duas revoluções nacionalistas?. Perspectivas, São Paulo, v. 33, p. 157-189, 2008. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/1457. Acesso em: 18 dez. 2023.
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); d) possui uma base de massa fortemente nucleada em setores das classes médias urbanas tradicionais que reagem contra as políticas distributivistas ou contra as iniciativas que apontam para a redução das desigualdades sociais. Em grande medida, trata-se de uma reação de classe orientada pelo ódio racializado contra as populações indígenas e camponesas e que é marcada por elementos nitidamente fascistizantes (Linera, 2019LINERA, A. G. O golpe militar foi uma vingança contra os indígenas. Jacobin Brasil, [s. l.], 19 nov. 2019. Disponível em: https://jacobin.com.br/2019/11/o-golpe-militar-foi-uma-vinganca-contra-os-indigenas/. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://jacobin.com.br/2019/11/o-golpe-m...
, 2021LINERA, A. G. Como o marxismo indigenista venceu o golpe na Bolívia – e é fundamental para o socialismo democrático. Jacobin Brasil, [s. l.], 23 jul. 2021. Disponível em: https://jacobin.com.br/2021/07/como-o-marxismo-indigenista-venceu-o-golpe-na-bolivia-e-e-fundamental-para-o-socialismo-democratico/. Acesso em: 18 dez. 2023.
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); e e) se articula com grupos paramilitares ou de choque que reúnem jovens de classe média urbana com fortes inclinações anti-indigenistas, racistas e fascistas (Aillón, 2022AILLÓN, L. O. El ultraje a la cara. Génesis de la reacción de la pequeña burguesía mestiza en Cochabamba (octubre-noviembre de 2019). In: CLAROS, L.; CUÉLLAR, V. D. (org.). Crisis política en Bolivia 2019-2020. La Paz: Plural Editores/Fundación Rosa Luxemburg, 2022. p. 49-86.; Molina, 2021MOLINA, F. Racismo y poder en Bolivia. La Paz: Oxfam/FES, 2021.), seja aqueles com longa trajetória na vida política boliviana, como é o caso da Unión Juvenil Cruceñista, braço paramilitar do Comité Cívico Pro Santa Cruz, que historicamente construiu laços com a organização fascista Falange Socialista Boliviana, ou constituídos mais recentemente durante o próprio processo do último golpe de Estado, tal como é o exemplo da Resistencia Juvenil Cochala (Goodale, 2021GOODALE, M. Dios, patria, hogar: revelando el lado oscuro de nuestra virtud antropológica. Población & sociedad, Tucuman, v. 28, n. 2, p. 51-79, 2021. Disponível em: https://cerac.unlpam.edu.ar/index.php/pys/article/view/6130. Acesso em: 18 dez. 2023.
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; Ravindran; Diaz, 2020RAVINDRAN, T.; DIAZ, T. L. Para que los “salvajes” no vuelvan al poder: anatomía de la extrema derecha boliviana. In: BRAVO, O. A. (org.). Las nuevas derechas: un desafío para las democracias actuales. Cali: Universidad Icesi, 2020. p. 149-171.; Tórrez, 2020TÓRREZ, Y. F. Oposición no partidaria al MAS-IPSP: antes, durante y después de la crisis de octubre-noviembre. In: SOUVEREIN, J.; RODRÍGUEZ, J. L. E. (org.). Nuevo mapa de actores en Bolivia: crisis, polarización e incertidumbre (2019-2020). La Paz: Friedrich Ebert Stiftung (FES), 2020. p. 77-137.).

O golpe de Estado na Bolívia ocorrido em 2019 pode ser caracterizado como uma contratendência do fenômeno da incapacidade hegemônica das forças da oposição ao governo Morales oriundas do departamento de Santa Cruz e da Media Luna ou seria mais adequado tratá-lo como expressão dessa incapacidade? O retorno do MAS-IPSP ao governo nacional e as massivas mobilizações contra o golpe indicam que não podemos confundir mudanças circunstanciais com tendências históricas. O que é certo é que, no contexto que antecedeu a crise e que propiciou o golpe de 2019, as forças de oposição lograram confiscar certas insatisfações sociais acumuladas contra o governo Morales – construindo a linha do debate nacional em torno da oposição = democracia e MAS-IPSP/governo Morales = autoritarismo – e dirigir politicamente tais insatisfações com propósitos claramente golpistas e reacionários.

No entanto, tais forças foram incapazes de estabelecer efetivamente uma nova hegemonia. Na verdade, o golpismo e o confisco de pautas democráticas com finalidades reacionárias têm se constituído como soluções emergenciais encontradas pela oposição ao governo do MAS-IPSP em um quadro de persistente incapacidade hegemônica de tais forças.

O referendo de 2016 foi outro elemento que marcou o processo político boliviano recente, contribuindo para desgastar politicamente o governo Morales e fomentar a constituição das bases sociais do golpe e o processo de fascistização, além de constituir-se como uma espécie de ponto de não retorno da crise política. Tal referendo ratificou com 51,3% dos votos o dispositivo constitucional que impedia o presidente da República de se eleger pela terceira vez consecutiva, marcando uma inflexão na política boliviana.

Nesse processo, a oposição de direita e de extrema-direita valeu-se de todos os meios possíveis para debilitar o governo Morales e sua proposta de garantir constitucionalmente uma nova reeleição, apelando inclusive para a denúncia, às vésperas do referendo, de que Morales havia tido um filho com Gabriela Zapata que atuava, na época, como gerente comercial da empresa chinesa China’s CAMC Engineering com a qual o governo boliviano havia firmado contratos milionários de infraestrutura.15 15 Além da paternidade de filho que havia tido de fato com Zapata, mas que havia morrido dias depois de nascer em 2007, denunciaram Morales por tráfico de influência por viabilizar a concretização de tais contratos com sua ex-companheira. A campanha midiática feita em torno do caso, que resultou na prisão de Zapata por uma série de crimes, se por um lado não logrou incriminar ou levantar provas contra Morales, por outro, produziu efeitos imediatos e foi decisiva para derrotá-lo no referendo por uma pequena diferença de votos.

O governo Morales não aceitou o resultado do referendo e recorreu ao Tribunal Constitucional Plurinacional16 16 Na Bolívia, é a Assembleia Legislativa Plurinacional (ALP) quem define os 96 postulantes que disputarão através do voto popular as 26 cadeiras da cúpula do Judiciário, que são distribuídas da seguinte maneira: Consejo de la Magistratura (três membros), Tribunal Constitucional Plurinacional (nove membros), Tribunal Supremo de Justicia (nove membros) e Tribunal Agroambiental (cinco membros). Trata-se do único país do mundo que escolhe os membros da cúpula do Judiciário mediante voto popular. Além disso, observamos que a composição da ALP tende a filtrar e influir no perfil político da lista de postulantes aos cargos supracitados. De acordo com o jornal oposicionista Página Siete, que apurou informações sobre quem havia trabalhado no Estado e tinha alguma relação com o MAS-IPSP, em 2017, 73 dos 96 candidatos haviam tido alguma ligação com o MAS-IPSP. No caso específico do Tribunal Constitucional, havia 26 de um total de 36 candidatos com alguma relação com o MAS-IPSP (Página Siete, 2017 apudFundación para el Debido Proceso Legal, 2018, p. 10). Isso explica em parte por qual motivo o fenômeno do lawfare, que se tornou tão corriqueiro contra os governos progressistas na América Latina, não logrou se apresentar como uma possibilidade efetiva na política boliviana. alegando que o limite de dois mandatos consecutivos era uma “violação aos direitos humanos”, na medida em que feria a liberdade de um cidadão se eleger e ser eleito. Esse recurso foi acatado por esse tribunal e, posteriormente, o Tribunal Supremo Electoral boliviano autorizou Morales a participar da quarta disputa presidencial. Tais decisões tomadas pelos Tribunais Constitucional e Eleitoral foram alvos de críticas e questionamentos por parte da oposição situada na Media Luna, nos centros urbanos da Bolívia e até mesmo de setores ligados à base de governo, vindo a engendrar um novo ciclo de instabilidade e crise política no país.

Nessa conjuntura, a posição do governo Morales no tabuleiro político regional já se encontrava enfraquecida por conta das sucessivas tentativas de golpes que vinha ocorrendo na região e a vitória de candidaturas neoliberais. Mesmo ficando isolado na região e tendo se desgastado com o processo decorrente do referendo e também das discussões referentes ao código penal que provocaram a reação de massa das classes médias urbanas (Rimassa, 2019RIMASSA, G. K. Clases medias en las calles y en las redes. Bitácora Intercultural, [New York], n. 1, p. 25-38, 2019.), o governo Morales ainda contava com forte base de sustentação no Congresso – Câmara e Senado – e nos Departamentos, fatores que indicavam a incapacidade hegemônica da oposição de direita, restando a ela se entrincheirar nas lutas subnacionais, especialmente na região da planície chamada de Media Luna. Os resultados eleitorais no período de 2005 a 2021 demonstram a clara preferência do eleitorado pelos candidatos do MAS-IPSP em todos os níveis representativos, como indica a Tabela 1.

Tabela 1
– Desempenho eleitoral do MAS-IPSP (2005-2021)

Embora tenha oscilado o número de cadeiras no Parlamento e de governadores do MAS-IPSP no período considerado, chama a atenção o fato de que esse partido se posicionou como força política majoritária e seu presidente se viu afastado do fantasma do golpe do impeachment que assombrou os governos progressistas na conjuntura latino-americana mais recente. Em linhas gerais, dados os vínculos do MAS-IPSP com o movimento operário e popular, é possível caracterizá-lo como um partido de massas com alta capacidade de organizar suas bases sociais e eleitorais. Tal caracterização se traduz também no âmbito administrativo, permitindo a formação de um governo de partido. Nesses dois aspectos, são flagrantes as diferenças com o Partido dos Trabalhadores (PT) que se define como um partido de clientela eleitoral, já que estabelece relações de tipo populista com sua base política, logrando assim se constituir apenas como um partido de governo que jamais obteve maioria sólida na composição de ministérios e no Congresso Nacional (ver Apêndice A).

A destituição forçada de Morales e o processo de fascistização na Bolívia

Se o MAS-IPSP contava com toda essa força política, institucional e de massa, o que permitiu a renúncia forçada de Morales na crise boliviana de 2019? Consideramos oportuno considerar alguns fatores para explicar esse fenômeno.

Essa crise foi marcada pela agudização das contradições no seio das classes dominantes. Referimo-nos à contradição entre capital público e capital privado – nacional e internacional – e à contradição entre as classes dominantes ligadas à planície Media Luna e a burguesia estatal vinculada ao poder central e ao altiplano. No primeiro caso, aguçou-se a pressão do imperialismo e seus aliados locais contra a política do governo do MAS-IPSP de nacionalização e de controle estatal sobre os recursos minerais e energéticos, em especial em torno do lítio, tendo em vista a importância que tem esse recurso mineral para a indústria de carros elétricos, de computadores, big techs etc. (Cancino; Aponte-García, 2021CANCINO, A. R. C.; APONTE-GARCÍA, M. Litio, cadenas de valor, empresas, políticas de industrialización y golpe de Estado en Bolivia. In: BEREICOA, T. L. et al. (org.). Bolivia y las implicaciones geopolíticas del golpe de Estado. Buenos Aires: CLACSO; México, DF: UNAM, 2021. p. 133-160.; Rodríguez, 2021RODRÍGUEZ, S. L. El golpe de Estado en Bolivia. Entre la disputa hegemónica y la geopolítica de los minerales. In: BEREICOA, T. L. et al. (org.). Bolivia y las implicaciones geopolíticas del golpe de Estado. Buenos Aires: Clacso; México, DF: UNAM, 2021. p. 113-132.). No segundo caso, foi reativado o histórico conflito que decorre das disputas pelo controle das receitas oriundas da exploração dos recursos oriundos principalmente do gás, do petróleo e do lítio, o que tem engendrado inclusive a constituição de movimentos autonomistas e separatistas na região da Media Luna (Kumano, 2021KUMANO, M. Y. La Media Luna boliviana como factor de inestabilidad. Documento de opinión, [s. l.], n. 54, p. 484-489, 2021. Disponível em: https://www.ieee.es/Galerias/fichero/docs_opinion/2021/DIEEEO54_2021_MAYYAS_Bolivia.pdf. Acesso em: 18 dez. 2023.
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). O entrecruzamento desses dois tipos de contradição está na raiz da crise política em tela.

A conjuntura em questão aprofundou a crise de representação dos partidos tradicionais. Tal fenômeno já vinha se expressando desde antes da chegada do MAS-IPSP ao governo nacional. A importante votação do Comunidad Ciudadana, partido de Carlos Mesa Gisbert nas eleições de 2019 (36,1%) e de 2020 (28,83%), não alterou o quadro histórico de crise de representação pelo qual passou os partidos tradicionais e não abriu brechas efetivas para a emergência de novos partidos, tendo em vista que a votação de Luis Fernando Camacho, candidato pelo recém-criado Creemos e uma das principais lideranças do golpe de 2019, foi um evidente fracasso, alcançando apenas 14% dos votos nas eleições de 2020.

Há algum tempo a oposição conservadora e reacionária vinha procurando se organizar por meio de grupos de interesse – o Comité Cívico Pro Santa Cruz tem exercido papel central nesse processo – e de forças paramilitares – via Unión Juvenil Cruceñista e Resistencia Juvenil Cochala. Se os Comitês Cívicos foram importantes para articular as manifestações massivas da direita e da extrema-direita contra o governo Morales, as organizações paramilitares desempenharem papel fundamental em atos de violência e terrorismo praticados contra dirigentes e militantes do MAS-IPSP e populações indígenas quéchuas e aimarás, engendrando juntamente com o aparato policial massacres na capital boliviana La Paz, em Sacaba (Cochabamba) e em Senkata (El Alto), o que resultou na morte de dezenas de pessoas e em centenas de feridos. Criada no contexto do golpe, a Resistencia Juvenil Cochala realizou uma série de ações violentas e terroristas em Cochabamba, mobilizando-se com motocicletas e armas contra a população local apoiadora do MAS-IPSP. O amplo relatório produzido pelo Grupo Interdiciplinario de Expertos Independientes de Bolivia contém informações detalhadas sobre os atos de violência e violação dos direitos humanos cometidos por esses agentes durante o golpe de 2019 (Bolivia, 2021BOLIVIA. Grupo Interdisciplinario de Expertos Independientes. Informe final: Sobre los hechos de violencia y vulneración de los derechos humanos ocurridos entre el 1 de septiembre y 31 de diciembre de 2019. Bolívia: GIEI, 2021.).

Outra evidência do reduzido papel desempenhado pelos partidos tradicionais na política boliviana atual pode ser observada tanto nos fracos resultados eleitorais obtidos em todos os níveis de representação da administração ou do parlamento, como também na incapacidade desses partidos liderarem o próprio golpe de Estado. Apesar de Carlos Mesa Gisbert ter vindo a público questionar os resultados eleitorais de 2019 e mobilizar sua base para exigir a renúncia de Morales, sua liderança política foi bastante questionada e substituída no curso dos acontecimentos pela liderança de Camacho, então presidente do Comité Cívico Pro Santa Cruz, que estimulou atos de violência contra representantes do governo nacional e do MAS-IPSP e populações indígenas, organizou a renúncia forçada de Morales por meio da articulação com forças policiais e militares e ingressou no Palácio Quemado com a Bíblia e a bandeira da Bolívia consagrando o golpe.

Entre os fatores associados à crise política, também incluímos o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ela foi uma das primeiras organizações a questionar os resultados de 2019 e a caracterizar o processo eleitoral como fraude. Posteriormente, a auditoria das urnas e os questionamentos feitos pela OEA sobre as eleições foram profundamente criticados por entidades ligadas à transparência eleitoral, mas já era tarde demais, pois a posição da OEA já havia sido fundamental para inflamar os ânimos da oposição a Morales e ao MAS-IPSP. É certo que a interrupção da Transmissão dos Resultados Eleitorais Preliminares não oficiais (TREP) também contribuiu para isso, mas apenas de forma secundária, pois a OEA já havia dado respaldo oficial para a tese da fraude eleitoral (Ugarteche e Negrete, 2021UGARTECHE, O.; NEGRETE, A. Aproximaciones desde la geoeconomía al golpe de Estado en Bolivia. In: BEREICOA, T. L. et al. (org.). Bolivia y las implicaciones geopolíticas del golpe de Estado. Buenos Aires: Clacso; México, DF: UNAM, 2021. p. 161-194.).

Aqui, é preciso observar o papel que a OEA cumpriu não só para deslegitimar o processo eleitoral, mas para fazer valer a ingerência dos Estados Unidos na política latino-americana, considerando que, em sucessivas ocasiões, a OEA, sob a liderança de Luis Almagro, exerceu decisiva intromissão nas políticas nacionais de vários Estados da região, em especial contra os governos progressistas.

Nessa situação de crise, é preciso destacar também que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reconheceu com entusiasmo o governo oriundo do golpe, ao afirmar publicamente que: “Os Estados Unidos aplaudem o povo boliviano por exigir liberdade e ao Exército boliviano por acatar seu juramento de proteger não só uma pessoa e, sim, a Constituição da Bolívia” (Laborde, 2019LABORDE, A. Trump aplaude saída de Evo Morales após pressão do Exército. El País, Madrid, 12 nov. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/11/internacional/1573506886_378058.html. Acesso em: 18 dez. 2023.
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). Pouco tempo depois, em julho de 2020, já sob o governo oriundo do golpe, o empresário Elon Musk, proprietário de fábrica de carros elétricos e interessado no lítio boliviano, chegou a publicar o seguinte post no Twitter: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso” (Folha de S. Paulo, 2020). Tais pronunciamentos do presidente dos EUA e de um grande capitalista somados ao posicionamento da OEA no processo político boliviano são evidências das pressões imperialistas pela mudança de governo por vias não eleitorais.

As forças policiais e militares foram as forças institucionais principais perpetradoras do golpe de Estado, vindo a organizar motins em alguns departamentos, no primeiro caso, ou vir a público solicitar a renúncia de Morales do governo, no segundo caso (Aillón, 2022AILLÓN, L. O. El ultraje a la cara. Génesis de la reacción de la pequeña burguesía mestiza en Cochabamba (octubre-noviembre de 2019). In: CLAROS, L.; CUÉLLAR, V. D. (org.). Crisis política en Bolivia 2019-2020. La Paz: Plural Editores/Fundación Rosa Luxemburg, 2022. p. 49-86.; Rodas, 2020). Foi justamente após a combinação de tais iniciativas que a continuidade de Morales no governo ou mesmo a possibilidade de realizar o segundo turno ou novas eleições tornou-se inviável. Como já observamos anteriormente, do ponto de vista das forças institucionais do Estado, o governo Morales encontrava-se blindado pelo apoio que detinha tanto no âmbito da representação parlamentar e de governos subnacionais, quanto, como vimos acima, em relação à alta cúpula do Judiciário.

Como observa Jordán (2022)JORDÁN, H. I. A. El golpe de Estado combinado en Bolivia. In: CLAROS, L.; CUÉLLAR, V. D. (org.). Crisis política en Bolivia 2019-2020. Bolivia: La Paz: Plural Editores: Fundación Rosa Luxemburg, 2022. p. 169-194., diante das renúncias de vários parlamentares do MAS-IPSP e membros da equipe governamental ocorrida depois da renúncia forçada de Morales, o golpe foi completado pelo Parlamento, que sem considerar nenhum dos dispositivos constitucionais previstos para a ocupação da vaga de presidente da Bolívia, em casos de renúncias dele e de sua equipe governamental e também dos líderes do Congresso, nomeou ao arrepio da lei a senadora Jeanine Añez. Em suma, do ponto de vista institucional, o golpe se iniciou com um golpe policial e militar sem mudança de regime e foi finalizado com um golpe parlamentar que desconsiderou certas premissas constitucionais para a posse da nova presidente da Bolívia.

O elemento religioso também foi mobilizado na conjuntura do golpe e pode ser observado tanto nas intervenções públicas da presidente interina Jeanine Áñez, que empunhou uma Bíblia de grandes dimensões e bradou “De volta ao Palácio” , quanto no discurso de Luís Fernando Camacho, principal liderança do movimento neofascista, que ingressou no Palácio Quemado, fez toda uma performance ao se ajoelhar diante de um exemplar da bíblia posto em cima da bandeira boliviana e postou um vídeo no Twitter um dia após a renúncia forçada de Morales com o seguinte pronunciamento: “Não derrubamos governos, libertamos um povo de fé. Somente foi levada uma Bíblia ao Palácio. Uma Bíblia e uma carta de renúncia em razão do que antes foi mencionado e em 15 minutos o Presidente renunciou”. Na mensagem que acompanhava o vídeo, Camacho (2019)17 17 Ver em: https://twitter.com/LuisFerCamachoV/status/1193942374759706624?s=20. inseriu a hashtag amplamente difundida nas redes e intitulada: CristoVolvióAPalacio. Para Gonzales (2020GONZALES, E. P. ¿Política laica o plurirreligiosa? actores confeccionales y partidos en la política boliviana contemporánea. In: SOUVEREIN, J.; RODRÍGUEZ, J. L. E. (org.). Nuevo mapa de actores en Bolivia: crisis, polarización e incertidumbre (2019-2020). La Paz: Friedrich Ebert Stiftung, 2020. p. 259-305., p. 292, grifo nosso): “[...] foram o CPSC [Comité Cívico Pro Santa Cruz] e Luis Fernando Camacho que deram evidência à imagem de Deus como imagem decisiva nas mobilizações em uma espécie de cruzada pela democracia”. No entanto, cabe observar que a religião cumpriu um papel mais circunstancial do que duradouro nesse conflito político, tendo em vista que não era uma questão que vinha ganhando centralidade até aquele momento ou mesmo poderia ser tratada como um dos detonadores da crise.

Por fim, e não menos importante, caberia mencionar o papel desempenhado pelas lutas travadas pelas forças golpistas contra o Estado plurinacional. Em 2009, por meio de consulta popular, o governo Morales logrou aprovar a Nova Constituição que, entre seus pontos centrais, concedeu formalmente ao povo boliviano a propriedade sobre os recursos naturais e ao Estado a administração desses recursos para fins coletivos, reconheceu e assegurou aos povos indígenas participação nas instâncias estatais, nos tribunais e nos órgãos de representação política e criou limitações à extensão da propriedade da terra, além de estabelecer critérios de desapropriação, caso a função social da terra não fosse cumprida.

Orientadas por uma linha política refratária à reforma agrária, à presença de indígenas e camponeses na política e à estatização de recursos energéticos e minerais, tais forças golpistas procuraram resgatar os ideais conservadores da antiga República, empunhar a bandeira oficial do país adotada em 1851 e incinerar nas ruas a bandeira da wiphala, que simbolizava as lutas dos povos indígenas da região dos Andes. Em diversos registros midiáticos e das redes sociais, é possível encontrar manifestantes da oposição ao governo do MAS-IPSP não só queimando a wiphala, como também cortando e retirando tal símbolo dos uniformes das Forças Armadas e de outros espaços das instituições do Estado no contexto do golpe.

As ações da oposição ao governo Morales foram também profundamente marcadas por práticas de violência contra as instituições estatais, como comprovadas pelos incêndios dos tribunais eleitorais de várias localidades e bloqueios de ruas e estradas que passaram a ser administrados por grupos milicianos, como também por ataques físicos e a residências de dirigentes e militantes do MAS-IPSP e à população indígena e camponesa, em particular as oriundas do altiplano, denotando, nesse caso, fortes traços racistas e reforçando certas tendências organizativas que vinham se articulando há algum tempo a exemplo do Movimiento Nación Camba, que foi constituído por descendentes de europeu e mestiços de espanhóis no início dos anos 2000 (Kumano 2021KUMANO, M. Y. La Media Luna boliviana como factor de inestabilidad. Documento de opinión, [s. l.], n. 54, p. 484-489, 2021. Disponível em: https://www.ieee.es/Galerias/fichero/docs_opinion/2021/DIEEEO54_2021_MAYYAS_Bolivia.pdf. Acesso em: 18 dez. 2023.
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).18 18 Dois documentários disponíveis no YouTube retratam em detalhes os fatos ocorridos durante o golpe de Estado e permitem observar como se deu esse processo de fascistização na Bolívia: Fue Golpe, dirigido por María Fernanda Rada, e Noviembre Rojo, dirigido por Verónica Córdova.

Vale ainda observar que o governo oriundo do golpe assumido por Jeanine Añez foi marcado por forte aumento da repressão sobre os movimentos populares, pela militarização das principais cidades bolivianas, pela omissão em relação à investigação dos massacres que resultaram em clara violação dos direitos humanos, por sucessivas tentativas de adiar a convocação de novas eleições presidenciais, por envolvimento em corrupção na compra superfaturada de equipamentos respiratórios para controlar a pandemia da covid-19, pela queda abrupta do PIB e aumento do desemprego e também pela retomada das relações com os EUA, país que voltou a instalar uma embaixada na Bolívia. Com a vitória de Arce nas eleições de 2020, uma série de processos foram abertos contra os conspiradores do golpe, levando à prisão a própria Ãnez, Camacho, além do ex-comandante das Forças Armadas, Williams Kalliman, e outros ministros e políticos.

Embora contida pelas manifestações populares que antecederam as eleições de 2020 e propiciaram a vitória de Luis Arce, a terceira ofensiva neoliberal na Bolívia resultou no golpe contra o governo Morales e em um processo de fascistização muito mais acentuado por seu caráter fortemente violento em termos de violação política e dos direitos humanos quando comparado ao caso brasileiro que abordaremos a seguir.

O CASO BRASILEIRO

A terceira ofensiva neoliberal no Brasil significou, sobretudo, uma reação ao reformismo que caracterizou o ciclo progressista de governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores entre 2003 e 2016. Embora as políticas de viés neodesenvolvimentista e os programas sociais não tenham logrado superar o modelo neoliberal legado dos anos de 1990, produziram um conjunto importante de efeitos no que aqui sugerimos separar em três camadas: a) na hegemonia no interior do bloco no poder; b) na relação com as classes dominadas; e c) na politização das diferenças de raça, gênero e sexualidade.

No tocante ao primeiro, a modificação mais substantiva foi a ascensão da grande burguesia interna que, especialmente a partir do segundo mandato de Lula, se fortaleceu politicamente e passou a ocupar um lugar de maior protagonismo no bloco no poder. A exposição e a análise desse processo, que retrata os conflitos no interior das frações da classe dominante, foi feita de forma extensa e detalhada por Boito Júnior (2018), do que destacamos os seguintes pontos: embora não apresente adesão a projetos anti-imperialistas, a grande burguesia interna brasileira deu base de sustentação política importante aos governos petistas na medida em que esses promoviam inflexões no padrão de acumulação que atendia prioritariamente o capital financeiro e a burguesia a ele associada19 19 Para uma análise detalhada e ampla do comportamento político de frações burguesas nos governos Lula e Dilma e na crise do impeachment, ver: Valle e Narciso (2021). . Foram várias as medidas que caracterizaram essa inflexão, como programas de financiamento da produção interna – especialmente para o complexo agroindustrial, energético e de recursos naturais; formação, com apoio estatal, de “campeões nacionais” para aumentar participação dessas empresas no mercado interno e externo; política externa que favorecia os interesses de empresas nacionais; programas de desonerações fiscais ao capital produtivo etc.

Como observa Boito Júnior (2018), essa inflexão não pode ser confundida como uma simples reedição do modelo desenvolvimentista erigido ao longo do século XX, o qual logrou resultados mais robustos em termos de complexificação do parque industrial e tecnológico. Trata-se, em vez disso, de um “desenvolvimentismo possível dentro do modelo capitalista neoliberal periférico” (Boito Júnior, 2018, p. 57, grifos do autor), cuja marca foi a geração de empregos mais na base na estrutura ocupacional – especialmente nos serviços – do que em postos de maior exigência de qualificação (Oliveira, 2015OLIVEIRA, T. Trabalho e padrão de desenvolvimento: uma reflexão sobre a reconfiguração do mercado de trabalho brasileiro. 2015. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.).

Ainda que estruturalmente limitado, o neodesenvolvimentismo foi favorecido por um contexto de valorização de mercadorias primárias que compunham a pauta de exportação do país e, a partir dessa combinação, logrou ampliar de forma significativa a área de atuação de empresas estatais – sendo a Petrobrás a marca principal desse período – e o peso do capital estatal como indutor de crescimento em detrimento do capital privado. O peso de órgãos financeiros estatais, como Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, rivalizou com o poder tradicionalmente concentrado em grupos privados nacionais e internacionais (Costa, 2016COSTA, F. N. Bancos Públicos no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2016.).

No que se refere aos programas sociais que visavam a necessidades historicamente represadas e interesses imediatos das classes dominadas, o ciclo petista promoveu uma melhoria relativa importante das condições de vida de trabalhadores e segmentos historicamente excluídos ou com inserção precária ao próprio mercado de trabalho – “massa marginal” ou “subproletariado”. Para tanto, programas como Bolsa Família e o aumento do crédito consignado a pensionistas permitiram uma elevação de renda e consequente ampliação do mercado consumidor. A política oficial de valorização do salário mínimo e o incentivo à formalização do emprego – em que se destaca a legislação de maior regulamentação do trabalho doméstico – repercutiu de forma significativa no mercado de trabalho.20 20 Como resultados, foram alcançadas taxas menores de desemprego, diminuição do índice de Gini e o valor real do salário mínimo mais do que duplicou em uma década, sendo que seu poder de compra, em 2015, foi o maior desde agosto de 1965 (BC, 2015 apudCavalcante, 2015) De forma concomitante, programas dedicados ao aumento de vagas e financiamento do ensino superior, privado e público, combinados com programas de cotas sociais e raciais levaram milhões de jovens das classes populares à universidade – de 3,5 milhões, em 2002, para quase 7 milhões em 2016 – mudando o perfil majoritariamente de classe média e branco que caracterizava o alunado nesse nível de formação (Rios; Peres, 2020).

Quanto à terceira camada, os governos petistas absorveram e, em pontos essenciais, incentivaram um conjunto diversos de pautas e reivindicações históricas de grupos e movimentos sociais que podemos caracterizar como agentes da politização progressista da diferença de gênero, raça e dissidência de sexualidade. Tais movimentos enfrentavam as formas de poder e sociabilidade que naturalizavam a desigualdade e a violência provocada pelo machismo, racismo e discriminação contra dissidências de gênero e sexualidade. Para que fossem efetivadas na esfera pública e na arena cultural, essas lutas apoiaram-se na afirmação de identidades invisibilizadas ou subjugadas pelo modelo patriarcal de origem colonial e escravocrata. Por meio dessas identidades, foram agentes importantes da formulação de políticas públicas que buscavam ampliar a direitos civis, políticos e sociais desses grupos.

Do ponto de vista da questão racial, por exemplo, esse processo exigiu enfrentar o peso da ideologia da democracia racial que interditava o enfrentamento efetivo da opressão racial existente no país (Pinho, 2021PINHO, P. S. Whiteness has come out of the closet and intensified Brazil’s reactionary wave. In: JUNGE, B. et al. (org.). Precarious democracy: ethnographies of hope, despair, and resistance in Brazil. Ithaca: Rutgers University Press, 2021. p. 62-76.). As diversas inovações legislativas que ampliavam o conteúdo das políticas de direitos humanos – cotas raciais, Lei Maria da Penha, programas para população LGBTQIAPN+ etc.21 21 Alguns trabalhos mapeiam essas mudanças legislativas, como: Guimarães (2016), Biroli, Vaggione e Machado (2020) e Facchini e França (2020). – incidiram de maneira transformadora na própria ideia de “povo-nação” que buscava, tradicionalmente, atingir a “representação da unidade” nacional (Poulantzas, 2019POULANTZAS, N. Poder politico e classes sociais. Campinas: Ed. UNICAMP, 2019.).

A disputa em torno da memória que fundamentaria a unidade nacional teve outro grande abalo imposto pela constituição, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para apurar os crimes de Estado praticados no contexto da ditadura militar (1964-1985). Embora tenha sido fraca em termos do impacto penal sobre os agentes de crimes políticos e contra os direitos humanos nesse período, a CNV foi suficientemente forte para ativar um movimento reacionário em vários níveis do quadro hierárquico das Forças Armadas, as quais, nos anos seguintes, passam a desemprenhar um papel proeminente na cena política – alegando um suposto “poder moderador” que seria avalizado pelo art. 142 da Constituição Federal – com efeitos marcantes na interdição da candidatura de Lula em 2018 e na militarização do governo de Jair Bolsonaro (Martins Filho, 2019).

O quadro até aqui exposto é, por certo, apenas panorâmico e exigiria inúmeros desdobramentos e precisões no sentido de dar conta da complexidade, oscilações e até mesmo contradições dos processos sociais em questão. Contudo, por meio dele já seria possível identificar as forças sociais mais importantes que passam a atentar contra os governos petistas: a) o capital financeiro, especialmente externo, e a burguesia a ele associada dirigem a reação que visa a retomar o programa neoliberal “puro” ante a proeminência das ações de intervenção do Estado no ciclo petista (Boito Júnior, 2018); b) a classe média, especialmente sua camada superior, reage às políticas sociais que desestabilizam a ideologia meritocrática e dificultavam a manutenção de poder sobre o trabalho doméstico, enquanto a pequena burguesia radicaliza a defesa de poder irrestrito sobre a propriedade (Cavalcante, 2015CAVALCANTE, S. M. Classe média e conservadorismo liberal. In: CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Perseu Abramo, 2015. p. 177-195., 2020CAVALCANTE, S. M. Classe média e ameaça neofascista no Brasil de Bolsonaro. Crítica Marxista, São Paulo, n. 50, p. 121-130, 2020. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/dossie2020_05_26_14_14_34.pdf. Acesso em: 18 dez. 2023.
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), sendo que, juntas, formam a base social de apoio ativo a investidas da operação Lava Jato, que organizou parte do Judiciário e Ministério Público contra as candidaturas do PT; c) um grupo importante da classe média, os militares – polícias e Forças Armadas –, que incitaram e/ou aceitaram a politização de cúpulas e do baixo oficialato contra “a esquerda”; e d) o conservadorismo cristão – católico e, sobretudo, evangélico – que organiza um contra-ataque reacionário, com efetivo poder de penetração popular, contra os avanços reais obtidos pelos grupos e movimentos que desestabilizam o modelo de familiar patriarcal, visto como base da nação.

Em suma, essa nova ofensiva neoliberal no país é liderada pela fração do capital financeiro, interno e externo, que busca a retomada de renda e poder propiciada pelo neoliberalismo “puro” e encontra sua base social mais ativa em camadas da sociedade que logram combinar, de diferentes modos, a “razão neoliberal” ao conservadorismo patriarcal. Desse modo, a propaganda anticomunista – ou atualizada para “antibolivariana” – ganha protagonismo e pôde servir de mínimo denominador comum a essa reação. Um anticomunismo que passa a ser o outro nome da aversão à própria democracia (Kaysel, 2022KAYSEL, A. O anticomunismo é um outro nome para o ódio à democracia, avalia pesquisador. [Entrevista cedida ao] Jornal da Unicamp. Jornal da Unicamp, Campinas, 22 dez. 2022. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2022/12/22/o-anticomunismo-e-um-outro-nome-para-o-odio-democracia-avalia-pesquisador. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.unicamp.br/unicamp/index.php...
).

Crise política e o golpe do impeachment

Os efeitos políticos da nova ofensiva neoliberal repercutem de modo gradual, mas crescentemente radicalizado, nos fundamentos dos processos eleitorais e do regime democrático brasileiros.

O programa neoliberal ortodoxo foi derrotado nas urnas por quatro eleições seguidas desde 2002. Em 2014, a oposição neoliberal começa a renunciar à possibilidade de mudança via sufrágio. O questionamento dos resultados eleitorais foi um processo inaugurado pela reação do candidato derrotado, Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no segundo turno de 2014. Neves afirma ter perdido não para um campo político, mas “para uma organização criminosa” e solicita impugnação da candidatura de Rousseff junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O ano de 2014 é também o início da Operação Lava Jato, que combinou ações da vara de Curitiba encabeçada pelo juiz Sergio Moro e do grupo do Ministério Público liderado por Deltan Dallagnol. A operação promoveu um salto de qualidade no espírito “antissistema” das manifestações de classe média que se fortaleceram nas últimas “fases” dos protestos de rua de junho de 2013. A Lava Jato adota de maneira deliberada e organizada um conjunto de mecanismos excepcionais para combater a corrupção, de modo a, na prática, impedir o acesso ao direito de ampla defesa e anular a presunção de inocência dos réus. Com o tempo, elege como alvo exclusivo o governo federal petista, sua base de sustentação partidária e as empresas que eram símbolo do neodesenvolvimentismo.

Rousseff inicia seu segundo mandato num quadro bastante negativo: a coalizão partidária que sustentou o ciclo petista, desde seu início, perde força. Embora com baixo desemprego, as expectativas de acentuação da crise econômica e pressões cada vez maiores para corte de gastos fazem com que Rousseff ceda ao programa neoliberal de ajuste fiscal. A guinada não acalma o processo de radicalização da oposição no Judiciário e nas ruas. Entre março de 2015 e abril de 2016, manifestações nacionais são convocadas por redes sociais por grupos como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem para Rua (VPR) e Revoltados Online (ROL) para exigir o impeachment. Os protestos de rua são majoritariamente compostos pela classe média alta (Cavalcante; Arias, 2019CAVALCANTE, S. M.; ARIAS, S. A divisão da classe média na crise política brasileira (2013-2016). In: BOUFFARTIGUE, P. et al. (org.). O Brasil e a França na mundialização neoliberal: mudanças políticas e contestações sociais. São Paulo: Ed. Alameda, 2019. p. 97-125.) e, além de pautas neoliberais, compartilham o espaço com grupos conservadores e outros abertamente favoráveis a uma intervenção militar.

A justificativa do impeachment é construída, sintomaticamente, com base no não cumprimento do governo da Lei de Responsabilidade Fiscal, as chamadas pedaladas fiscais. A campanha midiática organizada em meios de comunicação tradicionais e nas redes sociais, em perfeita sincronia com as ações da Operação Lava Jato, leva a uma profunda deterioração da popularidade de Rousseff. Parte importante da grande burguesia interna que integrava a frente neodesenvolvimentista começa a abandonar o governo. Michel Temer, o vice-presidente, inicia seu descolamento e anuncia, em outubro de 2015, um programa tipicamente neoliberal, chamado “Ponte para o futuro”.

Do ponto de vista de sua fundamentação legal, a acusação que levou ao impeachment era reconhecidamente frágil, a ponto de sua versão original precisar ser alterada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, quando acatou o pedido em dezembro de 2015. Outros governos, em diversos níveis e escalas, haviam aplicado o mesmo tipo de mecanismo contábil, além de não haver indício efetivo de dolo pessoal da presidente. A dimensão política que também fundamenta o mecanismo legal do impeachment foi tomada como condição suficiente para atribuir legitimidade ao processo. Os ritos processuais foram cumpridos no Congresso, avalizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e a mudança de governo se efetivou sem o recurso das armas. A utilização do conceito de golpe para caracterizar a deposição de Rousseff é, até hoje, um procedimento encarado como equívoco “ideológico” pela posição hegemônica da luta de ideias na esfera pública.

Análises da ciência política institucionalista fortalecem a recusa do conceito22 22 Para uma crítica das análises institucionalistas do impeachment de Dilma e da crise política que atravessou o processo eleitoral de 2018, ver: Miguel (2019) e Martuscelli (2020a, 2020b). . Em estudo recente sobre o processo, Limongi (2023)LIMONGI, F. Operação impeachment. São Paulo: Todavia, 2023. defende o argumento de que, mesmo nesse contexto adverso, Rousseff promoveu formas institucionais de enfrentamento da crise, como reformas ministeriais, sendo somente derrotada em 2016 quando parlamentares identificaram que o governo não teria forças suficientes de conter a ânsia punitivista da Lava Jato. Na análise do autor, o processo institucional é descurado dos interesses da oposição neoliberal e mesmo o peso das manifestações massivas de rua é visto como não determinante para o desfecho. Para Limongi, a “operação impeachment” pode ser exclusivamente explicada pelo fato de a maioria dos parlamentares, num cálculo racional, ver na deposição da presidente a única forma de proteger seus próprios mandatos.

Essa interpretação institucionalista, ainda que rica e bem detalhada, incorre, contudo, numa explícita petição de princípio, pois toma como dado aquilo que exatamente deveria ser explicado: por que a Lava Jato pôde desempenhar papel tão decisivo naquela conjuntura política? Qual força social que, fora das instituições, permite a um aparelho do Estado ganhar a autonomia necessária para impor por métodos excepcionais – alguns deles, explicitamente ilícitos, como vazamento seletivo de gravações telefônicas obtidas de forma ilegal – a deposição da chefe do Executivo como única alternativa de resolução da crise? Como explicar que essa parte do Judiciário não teve força suficiente para derrubar Michel Temer quando esse governo, mesmo acuado por denúncias de corrupção, adotava o programa neoliberal, aplicando reformas como o teto de gastos, a reforma do ensino médio e a reforma trabalhista?

O golpe do impeachment em 2016 é uma espécie contemporânea do gênero amplo de golpes de Estado que caracteriza a terceira ofensiva neoliberal na América Latina e promove uma desestabilização do regime democrático cujos efeitos não são totalmente controlados por seus agentes. Não é possível compreender a dinâmica subsequente do conflito, com o fortalecimento da extrema-direita autoritária, sem prestar as devidas contas com esse primeiro ataque ao conteúdo das “regras do jogo” do regime democrático.

O processo de fascistização no Brasil

A politização exigida para criar um movimento de massas que desse legitimidade à deposição de Rousseff pelo golpe do impeachment em 2016 exigiu incorporar bases sociais e uma pauta reacionária mais amplas, que não se restringiam ao programa neoliberal. A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 não se efetivou sem, antes, o uso dos mesmos aparelhos do Judiciário, com apoio declarado de militares de alta cúpula, para autorizar a prisão de Lula e posterior impugnação de sua candidatura. Ademais, parece-nos possível sustentar a hipótese de que a penetração nas camadas populares da candidatura de Bolsonaro não se fez por uma adesão direta, via “empreendedorismo popular”, ao programa neoliberal ortodoxo representando por Paulo Guedes, mas principalmente pelo conservadorismo em “defesa da família” – patriarcal – e o confisco do sentimento antissistema contra a degeneração moral provocada pela corrupção.

O movimento de massa iniciado pela oposição ampla ao reformismo petista, calcada principalmente na classe média e na pequena burguesia, passa por um processo de depuração e se radicaliza a ponto desse reacionarismo instaurar como “seu objetivo político principal a eliminação do pensamento e dos movimentos de esquerda” (Boito Júnior, 2021, p. 6-7, grifos do autor).

Os partidos que tradicionalmente representavam os interesses das frações burguesas dentro dos limites do regime democrático, tais como são os casos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e do PSDB, perdem espaço em detrimento do avanço de um campo que passa a mobilizar permanentemente, com alto grau de coesão e hierarquização das pautas, sua base social de apoio. Os pilares normativos de instituições democráticas passam a ser atacados em várias frentes e sistemas de agitação e propaganda próprios, não mais dependentes da pauta imposta por meios de comunicação tradicionais, podem oferecer um canal eficiente de constate engajamento político.

Seguimos aqui o argumento de Boito Júnior (2021), segundo o qual a crise política brasileira iniciada em 2014 passou por várias fases e conduziu o país ao governo de Bolsonaro (2018-2022), no qual predominou um grupo político neofascista, ou seja, uma espécie do gênero fascista mais amplo que se define por ser um movimento reacionário de massa enraizado em classes intermediárias das formações sociais capitalistas.

Não seria possível, nos limites deste artigo, desenvolver de modo mais detalhado questões importantes que definem o neofascismo bolsonarista, como sua composição regional, relação com conservadorismo cristão, com os militares, a dinâmica ideológica própria colocada nas disputas culturais ou mesmo sua penetração tanto nas frações burguesas quanto nas classes populares.

Para o processo que aqui procuramos expor, importa notar que, nesses quatro anos, a deterioração do regime democrático provocada pelo governo Bolsonaro não é possível de ser compreendida sem a naturalização de métodos de exceção e de uma exigência de purificação da política, da economia e da nação que se faziam presentes desde a crise política do governo Dilma. Seu saldo destruidor mais mortífero se expressou na condução da pandemia da covid-19 que, ao ter como objetivo fazer o vírus circular, recusando de medidas sanitárias e atrasando a compra de vacinas, teve como resultado não apenas dezenas de milhares de mortes evitáveis, mas até mesmo a normalização dessas mortes em parte expressiva da população (Cavalcante, 2021CAVALCANTE, S. M. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio,São Leopoldo, v. 19, p. 4-17, 2021. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/calidoscopio/article/view/22745. Acesso em: 18 dez. 2023.
https://revistas.unisinos.br/index.php/c...
).

Ao longo de 2022, a radicalização do questionamento das urnas eletrônicas fomentou movimentos civis e militares de resistência, cujo ápice se deu na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Movimento golpista que se tentou desde novembro de 2022 e, assim como o de 2016, também foi desenhado para atender algum nível de observância de legalidade, ainda que menos plausível à maioria da opinião pública: a “minuta do golpe” encontrada na casa de seu Ministro da Justiça, Anderson Torres, não era um simples rascunho, mas o desdobramento detalhado da tese de poder moderador das Forças Armadas, sob liderança de Bolsonaro, supostamente avalizada pelo art. 142 da Constituição vigente.23 23 Mesmo as desesperadas operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para impedir o acesso às sessões de eleitores em bases reconhecidamente petistas se deram, em geral, de maneira formalmente legal, identificando “apenas” descumprimentos da legislação de trânsito. Pauta, aliás, exposta nas ruas desde 2015, em faixas e bandeiras, sem qualquer tipo de responsabilização a quem as tolerou ou as normalizou em nome da luta contra “a corrupção do PT”.

CONCLUSÕES

Para entender as implicações que tiveram os golpes de Estado perpetrados contra os governos de Dilma Rousseff (2016) e Evo Morales (2019) para os processos políticos brasileiro e boliviano na conjuntura mais recente, é fundamental destacar alguns traços comuns que caracterizam os golpes de Estado nesses países e nos demais casos que integram o ciclo de deposições de governos progressistas legitimamente eleitos, iniciado com a derrubada do governo de Manuel Zelaya em Honduras em 2009 e que teve seu último episódio com a queda do presidente peruano Pedro Castillo em 2022. Os aspectos em comum a todas as reações golpistas aos governos progressistas são os seguintes:

  1. o neoliberalismo ortodoxo tem se configurado como o programa econômico e social que orienta politicamente a frente golpista que visa conter ou neutralizar as iniciativas de confronto ao(ou) de reforma do modelo capitalista neoliberal;

  2. o capital financeiro nacional e internacional e a burguesia a ele associada têm se apresentado como a força dirigente do golpe e contado com o apoio de uma base social oriunda principalmente das classes intermediárias – classe média e pequena burguesia –, que tem se constituído como força social distinta e permitido até mesmo a formação de movimentos reacionários de massa de natureza neofascista;

  3. a desconstrução ou esvaziamento político de uma série de iniciativas que visavam dar certa autonomia aos países latino-americanos em relação ao imperialismo estadunidense, tais como o grupo econômico composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), indicam que os resultados dos golpes foram benéficos para os interesses dos EUA na região e que os governos interinos golpistas procuraram se aproximar de tais interesses;

  4. os golpes não têm resultado em mudanças de regime político – de regimes democráticos para regimes ditatoriais, tal como se sucedeu nos anos 1960 e 1970 na região. Nos casos aqui em questão, é possível observar mudanças no regime político democrático, processos que têm contribuído para a deterioração da democracia liberal, especialmente nos países que foram marcados pelo crescimento do ativismo do Judiciário via lawfare ou pela ascensão das Forças Armadas ou de forças de segurança – polícias nacionais ou militares – na cena política e no interior do aparato estatal ocupando cargos antes designados a civis;

  5. o fortalecimento do conservadorismo moral e a reorganização da direita anticomunista, ideologias que têm logrado obter impacto popular, sobretudo entre os adeptos do cristianismo evangélico que se encontra em franca expansão e tem produzido efeitos importantes sobre os processos políticos da região, especialmente por formar uma base reacionária em defesa do “resgate” da concepção tradicional de “povo-nação”;

  6. a resistência a esse processo de golpismo de novo tipo e fascistização por parte dos governos progressistas exige uma reorientação da tendência personalista e de baixa intensidade mobilizadora das classes dominadas. A reversão do golpe na Bolívia e a fragilidade do atual governo Lula são expressões de capacidades distintas de os movimentos populares e progressistas formarem governos com maior base parlamentar própria e defesas mais duradouras das conquistas obtidas contra o programa neoliberal.

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    » https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/view/26975
  • 1
    Modelo que é apresentado como solução à crise criada pelo próprio neoliberalismo em nível global em 2007-2008: abertura comercial ao capital estrangeiro e diminuição de regulação sobre capital financeiro; privatizações e desnacionalizações – recursos naturais, energéticos e serviços; políticas de “austeridade” para conter gasto público e reformas regressivas em legislações trabalhistas, previdenciárias e sociais.
  • 2
    Operamos com um conceito de golpe de Estado que leva em consideração três dimensões indissociáveis e que considera a primeira delas o aspecto determinante e detonador das demais dimensões, a saber: a) a primeira dimensão diz respeito às disputas entre as frações da classe dominante pelo controle da política estatal – força dirigente do golpe; b) a segunda refere-se aos agentes burocráticos ou de representação política que executaram o golpe – força perpetradora do golpe; e c) a terceira designa os meios empregados pelas forças golpistas para atingir o objetivo de destituir o atual mandatário – uso da violência/uso casuístico das leis, etc. Para um tratamento mais teórico do conceito de golpe de Estado ou para um debate crítico com as teses sobre o neogolpismo na América Latina, ver Martuscelli (2018MARTUSCELLI, D. E. O golpe de Estado como fenômeno indissociável dos conflitos de classe. Revista Demarcaciones, [Chile] n. 6, p. 1-15, 2018. Disponível em: https://revistademarcaciones.cl/wp-content/uploads/2023/N6_2018/PDFS/13.-Martuscelli.pdf. Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://revistademarcaciones.cl/wp-conte...
    , 2024MARTUSCELLI, D. E. Reflexões críticas sobre o debate em torno do neogolpismo na América Latina. In: TZEIMAN, A.; MARTUSCELLI, D. E. (org.). La crisis de la democracia en América Latina. Buenos Aires: Clacso, 2024. No prelo.).
  • 3
    Em outro artigo, analisamos, à luz da teoria política poulantziana, como movimentos reacionários de massas, enraizados principalmente nas classes médias, se reorganizaram e causaram efeitos desestabilizadores no cenário político pós-crise econômica mundial de 2007-2008. De forma ilustrativa, indicamos alguns traços comuns desse processo em países como Estados Unidos, França, Itália, Brasil e Bolívia. Ver: Cavalcante e Martuscelli (2023)CAVALCANTE, S. M.; MARTUSCELLI, D. E. Contributions théoriques de Poulantzas pour l’analyse de l’extrême droite contemporaine. Terrains/Théories, n. 18, 2023. No prelo..
  • 4
    Para uma análise panorâmica desse processo inicial, ver: Anderson (1995)ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P. (org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23..
  • 5
    Para um exame abrangente do ciclo de governos que resistiram ao neoliberalismo na América Latina entre o final dos anos 1990 e a primeira década dos anos 2000, ver: Klachko e Arkonada (2017)KLACHKO, P.; ARKONADA, K. Desde abajo, desde arriba: De la resistencia a los gobiernos populares: escenarios y horizontes del cambio de época en América Latina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2017. e Ouviña e Thwaites Rey (2018)OUVIÑA, H.; THWAITES REY, M. Estados en disputa. Auge y fractura del ciclo de impugnación al neoliberalismo en América Latina. Buenos Aires: El Colectivo, 2018..
  • 6
    Nesse caso, via questionamento dos resultados ou denúncias contra supostas fraudes eleitorais.
  • 7
    Vale também lembrar que, antes de 2007-2008, dois governos progressistas latino-americanos sofreram golpes de Estado dirigidos por forças ligadas ao imperialismo estadunidense e ao neoliberalismo ortodoxo. Foram eles: Hugo Chávez na Venezuela em 2002 e Jean-Bertrand Aristide no Haiti em 2004.
  • 8
    Cinco anos depois, pelas mesmas razões, o governo Morales determinou a saída do país da United States Agency for International Development (USAID), órgão do governo dos EUA supostamente responsável por dar apoio externo aos países, mas que desde sua criação tem fomentado uma política de desestabilização de governos progressistas, de apoio a ditaduras e a governos democráticos neoliberais na América Latina.
  • 9
    Lalander (2014)LALANDER, R. Rights of nature and the indigenous peoples in Bolivia and Ecuador: A strait jacket for progressive development politics?. Iberoamerican Journal of Development Studies, [España], v. 3, n. 2, p.148-172, 2014. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2554291. Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
    trata das tensões existentes entre a defesa constitucional dos direitos à natureza e de povos indígenas e o modelo extrativista boliviano.
  • 10
    Para uma discussão do conceito de golpe de Estado, ver: Martuscelli (2018)MARTUSCELLI, D. E. O golpe de Estado como fenômeno indissociável dos conflitos de classe. Revista Demarcaciones, [Chile] n. 6, p. 1-15, 2018. Disponível em: https://revistademarcaciones.cl/wp-content/uploads/2023/N6_2018/PDFS/13.-Martuscelli.pdf. Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://revistademarcaciones.cl/wp-conte...
    . Para uma crítica das análises formalistas orientadas pela problemática institucionalista que tendem a invisibilizar os golpes de Estado ocorridos na América Latina no período contemporâneo, ver: Boron (2010)BORON, A. Invisibilizando golpes de estado: lo que la teoría hegemónica en la ciencia política no quiere ver. Rebelión, [s. l.], 2010. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=98071. Acesso em: 18 dez. 2023.
    http://www.rebelion.org/noticia.php?id=9...
    , Martuscelli (2020a) e Vitullo e Silva (2020)VITULLO, G. E.; SILVA, F. P. O que a Ciência Política (não) tem a dizer sobre o fenômeno no neogolpismo latino-americano?. Revista Estudos e Pesquisas sobre as Américas, Brasília, DF, v. 14, n. 2, p. 27-66, 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/view/26975. Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://periodicos.unb.br/index.php/repa...
    .
  • 11
    Tal processo engendrou cisões na relação do governo Morales com os movimentos indígenas, o que contribuiu em alguma medida para enfraquecê-lo e distanciá-lo de certos movimentos que antes estavam abrigados em sua base de sustentação política. No entanto, tais conflitos não produziram o impacto gerado pela crise política de 2008 sobre o processo político boliviano.
  • 12
    No caso boliviano, as tentativas de golpes contra governos democraticamente eleitos, a implementação de ditaduras militares, a aplicação de políticas de Estado de caráter antipopular e antinacional e a inviabilização política e econômica de governos progressistas, seja o do Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) – 1952-1964 – ou do MAS-IPSP, sempre contaram com a conivência e/ou apoio aberto das potências imperialistas, em particular dos Estados Unidos.
  • 13
    Como observa Cunha Filho (2018, p. 137): “Até a promulgação da Constituição de 2009, os governos departamentais eram chamados de prefecturas e até 2005 eram nomeados diretamente pelo presidente boliviano, quando então um acordo legislativo para a convocação de eleições gerais antecipadas daquele ano estabeleceu a realização da consulta popular e nomeação pelo presidente, do candidato mais votado. Após a promulgação da nova carta magna, os então prefectos passaram a ser nomeados governadores, com a primeira eleição constitucional direta realizando-se em 2010”.
  • 14
    Desde 2010, o MAS-IPSP se constituiu como a segunda principal força nas eleições ao governo do departamento de Santa Cruz, perdendo assim no primeiro turno para os diferentes partidos que encabeçaram no nível local a coalizão oposicionista ao governo nacional (Atlas Electoral de Bolívia, 2023).
  • 15
    Além da paternidade de filho que havia tido de fato com Zapata, mas que havia morrido dias depois de nascer em 2007, denunciaram Morales por tráfico de influência por viabilizar a concretização de tais contratos com sua ex-companheira.
  • 16
    Na Bolívia, é a Assembleia Legislativa Plurinacional (ALP) quem define os 96 postulantes que disputarão através do voto popular as 26 cadeiras da cúpula do Judiciário, que são distribuídas da seguinte maneira: Consejo de la Magistratura (três membros), Tribunal Constitucional Plurinacional (nove membros), Tribunal Supremo de Justicia (nove membros) e Tribunal Agroambiental (cinco membros). Trata-se do único país do mundo que escolhe os membros da cúpula do Judiciário mediante voto popular. Além disso, observamos que a composição da ALP tende a filtrar e influir no perfil político da lista de postulantes aos cargos supracitados. De acordo com o jornal oposicionista Página Siete, que apurou informações sobre quem havia trabalhado no Estado e tinha alguma relação com o MAS-IPSP, em 2017, 73 dos 96 candidatos haviam tido alguma ligação com o MAS-IPSP. No caso específico do Tribunal Constitucional, havia 26 de um total de 36 candidatos com alguma relação com o MAS-IPSP (Página Siete, 2017 apudFundación para el Debido Proceso Legal, 2018FUNDACIÓN PARA EL DEBIDO PROCESO LEGAL. Elecciones judiciales en Bolivia: ¿aprendimos la lección?. Washington, D.C.: DPLF, 2018. Disponível em: https://www.dplf.org/sites/default/files/informe_dplf_elecciones_judiclaes.pdf. Acesso em: 18 dez. 2023.
    https://www.dplf.org/sites/default/files...
    , p. 10). Isso explica em parte por qual motivo o fenômeno do lawfare, que se tornou tão corriqueiro contra os governos progressistas na América Latina, não logrou se apresentar como uma possibilidade efetiva na política boliviana.
  • 17
  • 18
    Dois documentários disponíveis no YouTube retratam em detalhes os fatos ocorridos durante o golpe de Estado e permitem observar como se deu esse processo de fascistização na Bolívia: Fue Golpe, dirigido por María Fernanda Rada, e Noviembre Rojo, dirigido por Verónica Córdova.
  • 19
    Para uma análise detalhada e ampla do comportamento político de frações burguesas nos governos Lula e Dilma e na crise do impeachment, ver: Valle e Narciso (2021)VALLE, A. F. P.; NARCISO, P. F. A burguesia brasileira em ação: de Lula a Bolsonaro. Florianópolis: Enunciado, 2021..
  • 20
    Como resultados, foram alcançadas taxas menores de desemprego, diminuição do índice de Gini e o valor real do salário mínimo mais do que duplicou em uma década, sendo que seu poder de compra, em 2015, foi o maior desde agosto de 1965 (BC, 2015 apudCavalcante, 2015CAVALCANTE, S. M. Classe média e conservadorismo liberal. In: CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Perseu Abramo, 2015. p. 177-195.)
  • 21
    Alguns trabalhos mapeiam essas mudanças legislativas, como: Guimarães (2016)GUIMARÃES, A. S. As cotas nas universidades públicas 20 anos depois. In: ARTES, A.; UNBEHAUM, S.; SILVÉRIO, V. Ações afirmativas no Brasil: reflexões e desafios para a pós-graduação. São Paulo: Cortez, 2016. v. 2, p. 93-124., Biroli, Vaggione e Machado (2020) e Facchini e França (2020)FACCHINI, R.; FRANÇA, I. (org.). Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Ed. UNICAMP, 2020..
  • 22
    Para uma crítica das análises institucionalistas do impeachment de Dilma e da crise política que atravessou o processo eleitoral de 2018, ver: Miguel (2019)MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo: Expressão Popular, 2019. e Martuscelli (2020a, 2020b).
  • 23
    Mesmo as desesperadas operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para impedir o acesso às sessões de eleitores em bases reconhecidamente petistas se deram, em geral, de maneira formalmente legal, identificando “apenas” descumprimentos da legislação de trânsito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2023
  • Aceito
    24 Nov 2023
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