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MUITOS MUNDOS, MUITAS EDUCAÇÕES: educação popular, descolonização epistêmica e outras questões contemporâneas

INTRODUÇÃO

A nova forma de educar que Paulo Freire nomeou de libertadora ou problematizadora produz uma ruptura ao afastar-se de um ensino compensatório oferecido pelo Estado para o povo, e passa a ser definida como uma prática social que busca favorecer o protagonismo histórico dos oprimidos (Freire, 1987). A educação não deve ser uma transmissão de conteúdos, mas um ato político que parte do diálogo entre educador e educando, visando à superação das contradições e desigualdades que determinam a sociedade. Em sua pedagogia do oprimido, Freire preconiza dois momentos: primeiro, os oprimidos desvendam as estruturas de opressão e se engajam na práxis para sua transformação; em seguida, ao transformar os contextos sociais de desigualdades, a pedagogia do oprimido se transforma em pedagogia de um processo permanente de libertação (Freire, 1987).

Ao longo das últimas décadas, o próprio legado da educação popular vai configurando novas rupturas e continuidades. Há uma tentativa de compor a crítica ao enfoque econômico-político dos processos de opressão e dominação com a crítica aos fundamentos epistêmicos coloniais (Fleuri, 2018). Há uma aproximação da antropologia com a educação popular, que se desdobra em uma diversidade de métodos de pesquisa que propõem deslocar o distanciamento e a suposta neutralidade do pesquisador em relação aos “saberes populares”, como a pesquisa participante (Brandão, 2022), a sistematização de experiências ( Holliday, 2006HOLLIDAY, Oscar Jara. Para sistematizar experiências. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2006. ) e a pesquisa-ação ( Thiollent, 1986THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1986. ), e também a “práxis interseccional” ( Collins; Borges, 2021COLLINS, P. H. BORGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. ) que articula uma análise das diversas opressões (de gênero, classe, raça e etnia) sem abandonar a perspectiva da pedagogia crítica.

Os artigos deste dossiê, especificamente, buscam discutir, a partir de diferentes temáticas e abordagens, algumas das atualizações e deslocamentos do legado da educação popular. Consideramos especialmente os movimentos de descolonização produzidos na relação com os “saberes populares”, que, mais do que uma categoria homogênea, aparecem na multiplicidade das práticas e teorias dos coletivos indígenas, negros, camponeses, afro-indígenas.

Sobre esse aspecto, vale notar que, como argumentam Carlos R. Brandão e Valéria Vasconcelos (2021), diferentemente de outras propostas educacionais, a educação popular não é fruto de trabalho de um coletivo uniforme ou de uma única pessoa com sua assinatura individual. Ainda que Paulo Freire seja um “companheiro das primeiras ideias e práticas”, uma referência autoral que desenvolveu um repertório de princípios, preceitos e práticas pedagógicas, deve-se considerar também que a Educação Popular emergiu a partir da interação aberta e dialógica de pessoas e de seus coletivos, na mediação entre diferentes saberes, o que foi denominado pelos autores de “pluri-comunidade político-pedagógica” com vocação popular, insurgente e emancipatória. ( Brandão; Vasconcelos, 2021BRANDÃO, Carlos R.; VASCONCELOS, Valéria. Entre as origens e o agora: memórias e trajetos da educação popular. Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul, v. 29, n. 2, p. 10-24, mai./ago. 2021. )

Nesse caminho, além de dialogar com o centenário de Paulo Freire, o dossiê também recupera e busca fazer jus a um histórico de diálogo de quase 50 anos entre os mais distintos movimentos sociais e étnicos da América Latina – muitos deles interlocutores frequentes das ciências sociais – e a Educação Popular. Não é possível pensar os movimentos indígenas, camponeses e muitos outros em nosso continente sem atentar para o fato de que a Educação Popular influenciou fortemente – e ajudou a forjar – as estratégias políticas dos mais diversos coletivos, em variados territórios rurais e urbanos. Dessa maneira, esses movimentos também são formadores do legado teórico da Educação Popular, trazendo questionamentos e deslocamentos produzidos por esses encontros de mundos.

Observemos, por exemplo, o testemunho de um importante intelectual indígena como Florisberto Díaz, de Oaxaca (México) sobre o papel da educação popular para seu povo nos anos 80: a reflexão coletiva sobre a língua e a cultura mixe foram base para que a luta pelos direitos indígenas avançasse (Díaz, 2014, p. 319). Ou, ainda, o relato de uma educadora historicamente ligada ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), como Rossato (2020ROSSATO, Veronice L. Será o letrado ainda um dos nossos? Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020. , p. 82), sobre a inspiração da educação popular para as primeiras ações “alternativas” e “comunitárias” entre os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul – as quais, anos depois, desembocariam em conquistas como o Magistério Indígena Ara Verá ou a Licenciatura Intercultural Teko Arandu.

Outro exemplo claro dessa conexão está na contribuição de Nathalie Le Bouler Pavelic ao dossiê. A partir dos depoimentos dos Tupinambá de Olivença (Bahia), a autora recupera a história da educação escolar indígena na região da Serra do Padeiro, demonstrando como a história recente do movimento de luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas dessa população é inseparável de sua luta pela educação e consequente envolvimento com os movimentos de educação popular.

Como ocorreu nas últimas décadas, de forma geral, no campo das Ciências Humanas na América Latina, para a Educação Popular as alteridades têm sido não só um campo de aplicação de teorias exógenas, mas um motor fundamental para as inovações conceituais, abrindo debates sobre as relações de dominação e/ou simetria que se estabelecem entre as cosmovisões ocidentais e as das comunidades tradicionais e de outros coletivos extramodernos. Nesse sentido, podemos perceber, em dois dos artigos reunidos pelo dossiê, de Mariana Mora Bayo e Ana Paula Morel, como a reflexão conceitual proposta pelo movimento indígena – no caso, os neozapatistas de Chiapas (México) – pode proporcionar aportes originais poderosos ao debate acadêmico mais amplo.

E, por sinal, no artigo que discute a ideia de uma “universidade popular”, associada ao movimento da educação popular, Spensy Pimentel recupera entrevista recente de Brandão em que ele aponta ser exatamente a entrada massiva, nos últimos anos, de negros e indígenas nas universidades brasileiras o que poderia representar a expressão concreta mais próxima da aplicação das ideias da educação popular no âmbito dessas instituições (Brandão; Silva; Romano, 2021).

A construção das autonomias comunitárias, pilar fundamental da Educação Popular, é outro ponto de contato com as discussões sobre a autodeterminação dos povos. Considerando as demandas negras, indígenas – das populações tradicionais, de forma geral – por novas formas de conexões interepistêmicas, particularmente em torno do que conhecemos como “educação”, os debates latino-americanos sobre o tema são, também, uma mensagem para a própria academia, indicando a necessidade de fortalecer o que os intelectuais orgânicos ligados à Teia dos Povos (rede de movimentos sociais e étnicos destacada no artigo de Pimentel) denominam “soberania pedagógica” ( Ferreira; Felício, 2021FERREIRA, Joelson; FELÍCIO, Erahsto. Por terra e território – caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca, Teia dos Povos, 2021. ).

Essa busca pela autodeterminação – hoje materializada nas lutas pela autonomia (López-Bárcenas, 2007) – tem demonstrado a capacidade de inspirar e tornar-se, por si mesma, educativa, como reflete Daniel Munduruku (2012)MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012. . As reflexões de Mora Bayo apresentadas no dossiê, a partir de seu trabalho junto aos zapatistas, seguem nessa direção. Na avaliação da autora, a convivência com essas comunidades ensina a escutar, a buscar perguntas (não somente respostas) e a conectar o exercício analítico com o cotidiano.

Nosso dossiê busca, ainda, estabelecer uma contribuição que atualize alguns desses debates, em conexão com a literatura antropológica mais recente, que sublinha a necessidade de atentar às relações entre humanos e não humanos propostas pelas comunidades tradicionais – por exemplo, remetendo-nos a discussões sobre as chamadas “cosmopolíticas”. No artigo de Luiza Dias Flores, podemos perceber como é impossível compreender a discussão pedagógica realizada na comunidade quiilombola acompanhada pela pesquisadora sem levar em conta as diversas entidades de outros planos de existência que participam dos ipádès, as rodas de conversa que são a base da proposta educativa chamada pela comunidade de Multiversidade. O mesmo dá-se entre os Tupinambá de Olivença retratados por Pavelic, conforme já apontamos: por lá, a definição sobre os processos de aprendizagem é indissociável das ações dos Encantados.

Nesse sentido, há um deslocamento do fio que dá continuidade as polissemias da Educação Popular, a saber, o humanismo que atravessa as diferentes correntes (laicas, cristãs, marxistas) que a fundamentam ( Brandão; Vasconcelos, 2021BRANDÃO, Carlos R.; VASCONCELOS, Valéria. Entre as origens e o agora: memórias e trajetos da educação popular. Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul, v. 29, n. 2, p. 10-24, mai./ago. 2021. ). As palavras “humanismo”, “homem”, “humano” são recorrentes e embasam a pedagogia freiriana ( Freire, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ). Alguns movimentos contemporâneos apontam como questionar a centralidade do humanismo é uma tarefa ainda mais urgente em tempos de colapso ecológico.

Tal ponto é discutido, no dossiê a seguir, pelo artigo de Ana Paula Morel, que aponta como a autonomia freiriana é transformada para um diálogo cotidiano com uma rede de humanos e não humanos que habitam o cosmos. A autora também menciona os questionamentos trazidos no período de “refundação da educação popular” pelas perspectivas interseccionais. E, ao refletir especificamente sobre o movimento zapatista, a autora argumenta como o movimento produz uma indigenização que parte do protagonismo das mulheres deslocando as bases da educação popular por meio do pensamento maya e sua afirmação da multiplicidade.

Vale dizer ainda que, no geral, o dossiê busca reunir reflexões que partem de práticas acadêmicas e educativas desafiadoras do Estado e do Mercado, a partir dos quais surgem relações que terminam por oprimir determinados grupos sociais. O artigo de Maria Elena Torres, Patricia dos Santos Pinheiro e Bismark Karuá Tapuia-Tarairiú nos oferece relato baseado na criação de um curso online , durante o período da pandemia de covid-19, que buscou realizar uma reflexão entre alunos de pós-graduação sobre elementos caros à Educação Popular e às reflexões recentes sobre as epistemologias negras e indígenas: corporeidade e afeto.

Ao fim ao cabo, o viés crítico da Educação Popular conduz-nos, então, a questionamentos sobre o envolvimento do pesquisador com seus interlocutores. Quais são as consequências políticas e pedagógicas do trabalho de pesquisa? Como praticar um trabalho de pesquisa efetivamente comprometido com as comunidades? Como estar comprometido politicamente com as comunidades sem reproduzir lógicas colonialistas? Como melhor entender o fato de que as Ciências Sociais podem, enfim, ser afetadas por essas relações com os povos extramodernos e suas cosmovisões, ou ontologias políticas próprias? Como o “humanismo” fundador da Educação Popular pode ser deslocado pelas cosmopolíticas dos diferentes povos? Quais as potencialidades do encontro entre Educação Popular e a pesquisa acadêmica em Ciências Sociais para pensarmos caminhos diante do colapso ecológico e civilizacional em curso? Essas são algumas das questões com as quais esperamos contribuir a partir do conjunto de artigos que ora apresentamos.

REFERÊNCIAS

  • BRANDÃO, Carlos R. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • BRANDÃO, Carlos R.; VASCONCELOS, Valéria. Entre as origens e o agora: memórias e trajetos da educação popular. Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul, v. 29, n. 2, p. 10-24, mai./ago. 2021.
  • BRANDÃO, Carlos R.; CORREA BORGES, M. A pesquisa participante: um momento da educação popular. Revista de Educação Popular, [S. l.], v. 6, n. 1, 2008. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/19988 Acesso em: 27 mar. 2022.
    » https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/19988
  • BRANDÃO, Carlos Rodrigues; SILVA, Patrícia Nascimento; ROMANO, Pauliane. Centenário de Paulo Freire: aportes para se pensar a educação superior na atualidade: entrevista especial com o professor Carlos Rodrigues Brandão. Revista Docência do Ensino Superior, v. 11, e035140, p. 1-15, 2021.
  • COLLINS, P. H. BORGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.
  • DÍAZ, Floriberto. Escrito: comunalidad, energía viva del pueblo mixe Ayuujktsënää’yën – ayuujkwënmää’ny – ayuujk mëk’äjtën. Cidade do México: Unam, 2014 (ed. digital).
  • FERREIRA, Joelson; FELÍCIO, Erahsto. Por terra e território – caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca, Teia dos Povos, 2021.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • HOLLIDAY, Oscar Jara. Para sistematizar experiências. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2006.
  • LÓPEZ BÁRCENAS, Alfredo. Autonomias Indígenas en América Latina. Oaxaca/México, Coapi/MC, 2007.
  • MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012.
  • ROSSATO, Veronice L. Será o letrado ainda um dos nossos? Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020.
  • THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2023
  • Aceito
    04 Abr 2023
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